sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Rei do arrocha

Publicado no jornal O Diário (6/12/13)

Não sei o nome do cara. Sei que se mudou para o apartamento do lado há pelo menos cinco meses, e transformou a minha vida num inferno. O desgraçado faz parte de uma dessas duplas sertanejas - o que mais tem nessa cidade são duplas sertanejas. Todo sábado de manhã ele abre a goela, junto com outro desgraçado, berrando, em agudos estridentes, coisas do Michel Teló e do Fernando & Sorocaba.

A falta de técnicas e sua voz empostada é o que menos incomoda – nenhum desses pelegos sabe cantar com o mínimo de decência. Sou pianista profissional há quatro décadas, nunca vi a música brasileira tão decadente. Com o sertanejo universitário, os bares cancelaram as minhas temporadas. Quer dizer, me obrigaram a tocar essa escória, e eu recusei, claro.

Um dia, ele bateu na minha porta. Explicou que era o vizinho do apartamento do lado, e que me ouviu, ao teclado, executando uma “baladinha tão tocante”. Aquilo me irritou de uma forma estranha. A “baladinha tão tocante” que o imbecil me ouviu tocando era “Dammi I Colori”, uma das minhas árias favoritas da “Tosca”, ópera do Puccini, compositor clássico italiano. Ultimamente, sempre que eu voltava de uma entrevista de emprego, ligava o teclado e tocava alguma ária do Puccini. Eu tocava num teclado ordinário, porque o meu piano elétrico Yamaha, o piano que meu pai parcelou em quase dois anos e me deu de presente no Natal de 1995 – o único presente de Natal da minha vida –, o piano elétrico eu tive que vender. Mas isso eu não falei para o sertanejo. Quem falou, naquela hora, foi ele. Disse que a banda de apoio acabava de perder o tecladista. Ele estava à procura de um instrumentista à altura do antigo. “Você tem o perfil ideal para tocar sertanejo com a gente”, disparou, antes de me convidar ao seu apartamento. Só podia ser brincadeira.

Respondi que estava ocupado, mas ele insistiu à beça. Concordei em passar rapidamente por lá, dali a uma hora. No horário combinado, bati à porta dele. O sertanejo me recebeu com um sorrisão - além de tudo, tinha um jeitão afeminado. Disse, novamente, que nunca ouviu uma “baladinha tão tocante” quanto àquela música que eu estava tocando. A ignorância dele começava a me irritar profundamente.

“Só César Menotti & Fabiano conseguem fazer baladas tão boas assim”. Tenho que me controlar, pensei. Mas ele insistiu no assunto. Ele falava muita porcaria. “Música clássica me dá sono. Bom mesmo é o arrocha”, continuou.

O sertanejo tirou o violão do tripé, que estava ao lado o sofá. Falou que iria cantar uma música própria. Eu conhecia aquela música. Era aquela do “arrocha, arrocha, arrocha”. Todo o dia ele ensaiava aquela música, empostando a voz nos agudos do refrão: “arrocha, arrocha, arrocha”. Ele e outros pelegos me tiraram do mundo da música. Ele e os malditos do “arrocha, arrocha, arrocha”. Ele estava concentrado, cantava com os olhos fechados, empolgadíssimo com a pronúncia de cada verso. Ninguém tinha me visto entrar naquele apartamento. Levantei da cadeira, peguei o tripé. E, de uma só vez, meti a base de ferro do tripé no rosto do “arrocha, arrocha, arrocha”. Certeiro: o suficiente para derrubá-lo de queixo no chão. Aí começou a diversão. Com força, continuei a enfiar o tripé no meio da fuça dele. Foi uma, duas, três, dez, trinta vezes, e já ia metendo nas costas, pernas, barriga, meti até perder a força nos braços: o rosto dele era um lodo de sangue, sem dentes na arcada dentária. Notei que a perna direita tinha uns espasmos engraçados. Voltei com o tripé e carimbei, sem dó, a cara dele por mais uns trinta minutos. “Arrocha, arrocha, arrocha”. Eu, sim, sou o rei do arrocha.  

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Arrocha (conto)

O japonês me liga uma vez por semana.
Sem falta quase sempre na quinta.
Exige vestido, decote e salto alto de vinte centímetros.
Batom não aceita além do vermelho.
Já me disse que é professor, promotor, escritor: um treco assim.
Só o nome, não, nunca disse.
Pra mim, ele é o Ulisses.
Nunca quis tomar cerveja comigo.
Chega apressado, senta no sofá e tira a roupa:
Cueca preta, magrelo, amarelo.
Gosta do rádio ligado bem alto.
Em algum sertanejo da Nativa FM.
“Arrocha, arrocha, arrocha.”
Aproveito e tiro a roupa.
Só de calcinha, sutiã e, claro, o saltinho de vinte centímetros.
A pedido dele, danço uma música inteira.
Rebolando, sempre olhando para a parede.
Jamais para ele.
Daí deito no carpete azul marinho.
De bruços.
“Arrocha, arrocha, arrocha.”
Com os pezinhos para cima, ainda no salto alto.
Gemendo, peço que venha.
Ele junta meus pezinhos com as mãos, coloca o pintinho lá no meio.
E esfrega, esfrega, esfrega, esfrega.
Não é raro soltar um gritinho de prazer agudo.
É tudo muito rápido.
Saciado, é a vez dele.
Não deixa que eu me lave nem fale nada.
Quieta, sempre, sem um pio.
Eu levanto, enquanto ele, tremendo, deita no carpete.
De bruços.
Pernas para cima.
Pede que eu aumente o som da Nativa FM.
“Arrocha, arrocha, arrocha.”
Tiro o saltinho e cuspo forte naqueles 20 e poucos centímetros de madeira.
Um treco assim, ó, desse tamanho, consegue imaginar?
Tem tarado pra tudo em Maringá.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

"Verve na língua", entrevista com Fabrício Corsaletti

Texto publicado no Correio Braziliense (9/11/13)

Fabrício Corsaletti responde o e-mail rapidamente. Pelo iPhone, com palavras abreviadas e um erro de digitação lá no meio da mensagem, topa a entrevista e sugere o local da conversa. “Vamos a um bar na Rua Augusta, às 10h30. Me ligue uma hora antes, que te passo o endereço”.

Agendado, o botecão, para a manhã de uma árdua segunda-feira em São Paulo: vida de poeta é mesmo uma coisa fabulosa. O convite à cerveja, embora tão cedo, não soa estranho. É na mesa do bar que Corsaletti costuma atender os repórteres: entrevistas regadas a cevada e acepipes. Quando lançou Esquimó (Companhia das Letras, 2010), seu mais recente livro de poesia, um jornal paulista estampou uma foto dele confortavelmente sentado num de seus botecos favoritos da capital: ao lado da cerveja de 600 ml, o olhar sóbrio encarava o fotógrafo e o leitor.

Conforme o combinado, ligo para Corsaletti, às 9h30: o bar, em cima da hora, vai por água abaixo. E do outro lado da linha telefônica, naquela segunda ensolarada, ele passa o endereço de uma padaria, localizada a poucas quadras do apartamento onde mora, na mesma Augusta. “É muito cedo para a gente beber, né?”

Aos 34 anos, Corsaletti é apontado pelos críticos Manuel da Costa Pinto e Alcides Villaça como um dos grandes novos nomes da poesia brasileira. Ele teve seus primeiros quatro livros de poesia reunidos no volume Estudos para o seu corpo (Companhia das Letras, 2007) e publicou, ainda, duas
obras com versos direcionados ao público infantil, além de um livro de contos e um romance.

Leitor de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Guillaume Appolinaire, Fernando Pessoa e William Faulkner, Corsaletti reúne boas doses de humor, lirismo e tristeza, em poemas quase sempre concisos, bem resolvidos em uma página. A anáfora e a repetição, exploradas a partir de seu segundo livro de poesia, O sobrevivente (2003), foram aos poucos dominando sua escrita,
que rendeu passagens invejáveis nas páginas do Esquimó”.

Nascido em Santo Anastácio, no interior de São Paulo, ele está radicado há 16 anos na capital, onde
trabalha como cronista da Folha de S. Paulo, escrevendo a cada duas semanas aos domingos.

Seu horário, flexível, é bem diferente dos demais paulistanos, que, afoitos, sobem a Augusta equilibrando pilhas de documentos e correm desesperados para alcançar o ônibus no ponto da próxima esquina: tardes e manhãs livres, todas dedicadas à produção literária.

Sentado próximo à janela, encontro Corsaletti numa padaria charmosa e vazia, tomando uns goles de um café espresso. “Você é um boêmio, Corsaletti?” Ele ri. “Não, não. Raramente bebo antes das 18h.” À garçonete, ele pede outro espresso. Numa conversa sem álcool, fala sobre o processo criativo de seus poemas, defende a importância da inspiração e anuncia que o próximo livro de poesia será esteticamente parecido com o Esquimó.

Muitos de seus poemas exploram o humor. Não é o mesmo de Machado de Assis, que é fino. Nem é semelhante ao do João Gilberto Noll, que é grotesco. Como você avalia o humor na sua obra?

Aprecio o humor na literatura, mas não gosto quando ele está em primeiro plano. Gosto quando escritores combinam, por exemplo, um texto sério com um humor negro. É mais ou menos como eu gosto da poesia junto com a prosa. Gosto do humor do Big Bang Theory, mas não suporto o humor desses stand-ups. Gosto do humor que há na poesia da Angélica Freitas, no Drummond, no Vinicius de Moraes. Nos meus primeiros livros, há pouco humor. Acho que fiquei mais bem-humorado, sei lá, porque fui envelhecendo. Mas não sei avaliar o humor da minha literatura. Não sei em que tipo ele se enquadra.

Quando você começa a escrever um poema sempre sabe como irá terminá-lo?

Não. Nunca sei como vou terminar um poema. Também não sei como será a forma do poema. Não sei se o poema terá rimas, se será versificado...

Essa falta descontrole sobre o seu próprio texto não te apavora?

Não, jamais. Sei que isso faz parte do jogo.

Você acredita em inspiração?

Sei que essa palavra está muito batida, mas acredito, sim. A poesia se faz da palavra, mas a emoção faz você chegar à palavra certa. Escrevi muita coisa com raiva, escrevi muita coisa com paixão: a escrita toma forma a partir desses estados. Não acredito na ideia de inspiração de que haja uma musa, e que essa musa fala ao poeta, sabe?

E Eva Green, que você homenageou nos versos de “Plano”, é uma dessas suas musas?

Claro! Quem nunca se apaixonou pela Eva Green? A escolha do nome dela, nesse poema, não foi nada por acaso. Não pode ser apenas subtraído e substituído pelo nome de outra mulher. Eva Green carrega um significado próprio, uma sonoridade. Eva faz alusão à Bíblia; Green, ao verde. Não foi uma escolha gratuita.

Você é dependente da opinião de amigos?

Sou dependente, sim. Às vezes, meus amigos apontam umas coisas muito ruins nos meus poemas, coisas que eu nem tinha reparado, como cacofonias, e aceito as mudanças. Em outros momentos, quando discordo das críticas deles, não mudo nada. No “Penúltimo Poema sobre Meus Pais”, do Esquimó, meu amigo Alberto Martins mandou que eu separasse o poema em duas partes: para dar uma mudança no tom. A Companhia das Letras, no entanto, nunca modificou meus poemas.

Os jornais foram generosos no lançamento do Esquimó.Você ficou surpreso com o espaço que
a mídia te deu?

Olha, não fiquei surpreso. Mas confesso que não esperava que fosse assim, tão bem recebido.

E quanto ao material inédito, o que você já tem pronto?

Já tenho 50 poemas, cheguei a publicar alguns na Folha de S. Paulo, mas ainda não senti que o novo livro está pronto. Está faltando alguma coisa. Alguns poemas, que eu já havia escrito e até gostava, agora já não gosto mais. Dá para sentir que o novo livro não terá uma mudança radical com relação ao Esquimó: são livros esteticamente parecidos.

Você utiliza muitas anáforas nos seus versos, principalmente no último livro. Por quê?

Eu nunca fui atrás das repetições, porém eu gosto muito. Sempre gostei daqueles versos do Alberto Caeiro, de “O Luar Através dos Altos Ramos”: “O luar através dos altos ramos / dizem os poetas todos que ele é mais / que o luar através dos altos ramos / mas para mim, que não sei o que penso / o que o luar através dos altos ramos”. Li esse poema quando tinha 16 anos. A minha paixão pelas repetições vem desse poema.

Achei que tivesse sido por influência do Bob Dylan. Por falar no Dylan, você chegou a traduzir
algumas canções dele, né ? Como foi sua tentativa de verter o Dylan para o português?

Tentei traduzir duas músicas: Isis e uma outra. Fiquei completamente perdido. Não sabia se ia atrás das rimas, ou se ia atrás das imagens. Para piorar, meu inglês é insuficiente: foi muito difícil traduzir o Dylan. Talvez seja uma missão para o Augusto de Campos, mas não sei se ele gosta. O que eu gosto mesmo, sabe, é das minhas coisas.

“Seu Nome”, um belo poema de amor, é o seu poema mais conhecido. Até rendeu boas visualizações no YouTube, num vídeo divulgado pela Companhia das Letras. Como você escreveu o poema?

Levei umas duas semanas para escrevê-lo. Precisei fechar as sequências, evitar as repetições e troquei a ordem dos versos. “Seu Nome” reúne muita coisa que eu queria abordar. Não é, porém, o meu favorito: é o poema a que sou mais grato.

Num dos versos do “Seu Nome”, você citou o Chico Buarque, seu colega da Companhia das Letras: “Não entendo por que Chico Buarque nunca compôs uma música com o seu nome”. Você chegou a mandar seu livro ao Chico?

Mandei um exemplar pela editora, mas ele nunca me respondeu.

Você tem belos poemas sobre o amor. Por que não escreveu nada sobre sexo?

Acho muito difícil escrever sobre sexo. Quero que funcione não no meio termo. A beleza física me dá
vontade de escrever poemas líricos. O tesão não me dá vontade de escrever: me dá vontade de trepar. Gosto dos versos eróticos do Catulo e do Drummond, embora O amor natural não seja um grande livro: é um livro médio, com uma variação de tom.

Alguns leitores dizem que seus poemas chegam a ser fofos. O que acha disso?

Odeio quando me dizem isso. Fico triste de saber.

Você acha que seus livros vão resistir ao tempo?

Acho que não vão resistir, não. Talvez uns dois ou três poemas resistam em antologias futuras. Quem sabe?

Além de Bob Dylan, que som você gosta de escutar? Gosta de Philip Glass, Arvo Pärt?

Não conheço esses dois. Em casa, só ouço Bob Dylan, Johnny Cash e muita música popular. Mas ultimamente tenho preferido o silêncio. Não fico procurando CDs, nem converso sobre as novidades da música. Não consigo mentalizar todos os lançamentos. Sinto que estou cada vez mais isolado com um único objetivo: ler melhor. Ainda nem terminei todo o Faulkner... Escrever dá muito trabalho.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Dalton, velho sátiro

Publicado no Diário do Norte do Paraná - 31/10/13

Dalton Trevisan é um poeta, e pouca gente sabe disso. Em toda a sua trajetória literária, apenas uma minoria crítica, composta por resenhistas de jornais, notou sua verve lírica. Quando Alfredo Bosi escreveu sobre a literatura do contista curitibano, apontou para as misérias morais de Curitiba, a presença do grotesco, do sádico e do macabro. Nada de lirismo.

Na avaliação de outro grande crítico literário, Massaud Moisés, o lirismo também foi escanteado. Moisés apontou para o grotesco, a província e aos aspectos do cotidiano. Novamente, o lirismo passou em branco.

Antônio Houaiss timidamente acenou para a poesia de Dalton Trevisan, numa orelha de "O Pássaro de Cinco Asas" (1974). Resumidamente, ele afirma que Dalton Trevisan "enlaça poesia e náusea". Sem citar exemplos de passagens que justificassem seu posicionamento, sua observação se perde, infelizmente, em linhas demasiadamente genéricas e superficiais.

Se para Houaiss a poesia de Dalton Trevisan está associada à náusea, para o jornalista curitibano Luiz Geraldo Mazza (1988), em crítica publicada no jornal Correio de Notícias, a poesia do contista paranaense está relacionada à maneira peculiar de retratar a capital do Paraná: menos glamourosa que a dos cartões-postais, com seus botecos triviais e pontos turísticos ignorados no dia-a-dia. Numa resenha publicada em 1972 no Suplemento Literário de Minas Gerais, Ralph Niebuhr dedicou um olhar menos superficial aos elementos líricos do contista paranaense, avaliando a relação com a morbidez da trama das histórias.

Em sua leitura, Niebuhr afirma que, embora o impulso lírico explicitamente faça parte do artesanato literário do autor paranaense, quase nunca é o elemento dominante de sua prosa. E aponta o conto "Ponto de Crochê", do livro "Novelas Nada Exemplares" (1959), como a história em que os elementos líricos, juntamente com o tom mórbido da trama, chegam a dominar o conto: "O elemento lírico é, quase sempre, usado como uma técnica para dar ênfase à condição basicamente triste dos personagens de Dalton Trevisan, e por extensão, de todo ser humano".

No meio acadêmico, não há publicações, até o momento, sobre o lirismo na obra de Dalton Trevisan. O único estudo que se aproxima desta questão é a obra de Vera Marquêa ("O Vampiro Habita A Linguagem: Uma Leitura da Obra de Dalton Trevisan"), publicada recentemente. Marquêa afirma que Dalton Trevisan se apropria de um "corte poético" na década de noventa, com a publicação de "Ah, É" (1994) e "234" (1997). Contos como "a cigarra anuncia o incêndio de uma rosa vermelhííísima" – metáfora da chegada da primavera –, "uma nuvenzinha branca enxuga no arame do varal" – o dia amanhecendo –, e "bolem na vidraça uns dedos tiritantes de frio" – a chuva –, abordam a natureza sob uma nova perspectiva, dentro da produção do contista, segundo a pesquisadora.

Ao apontar os elementos poéticos de Dalton Trevisan, críticos e pesquisadores estabeleceram, portanto, relações com a natureza, com o grotesco e até com a forma de retratar a Curitiba provinciana. E só. Não há nada que relacione, por exemplo, o lirismo ao erotismo nas histórias de Dalton Trevisan.

Se até agora foi um tremendo vacilo ninguém ter se dedicado, com firmeza, aos aspectos líricos em Dalton Trevisan, o lançamento de "Novos Contos Eróticos" é o fim da linha para esse pouco caso de acadêmicos e resenhistas. Não notar a poesia nesta obra, é um erro imperdoável e injustificável.

O livro é um apanhado de 30 contos de Dalton Trevisan, extraídos de obras recentes – principalmente de "Macho Não Ganha Flor" (2006), "O Maníaco do Olho Verde" (2008) e "Violetas e Pavões" (2009).

No conto "O Noivo Perneta", Dalton Trevisan aborda a história de um rapaz que perde a perna pouco antes de se casar com a mulher amada. Carregado de humor e de referências ao texto bíblico, o conto traz as marcas do estilo do escritor curitibano, como a elipse de conjunções/locuções conjuntivas e a preferência por verbos na forma nominal. Quando o narrador (noivo perneta) recorda as suas relações sexuais, passa a descrever as partes íntimas da mulher amada. Em vez de descambar num texto vulgar e pornográfico, Dalton Trevisan investe numa série de elementos poéticos, compondo ilhas de poesia durante o conto.

"O seu corpo uma ilha descoberta pelo sedento náufrago. Sem marca na areia de pé estranho - rósea e perfumada. Golfo e promontório. Baía e península. Caverna dos Nove Tesouros do Pirata da Perna de Pau. Na límpida fonte nadam hipocambo e lambari de rabo dourado. Búzio com cantiquinho de corruíra madrugadora. Passagem secreta para gruta encantada. Dunas calipígias movediças. Ninho escondido de penas de beija-flores. Em voo rasante garça-azul de bico sanguíneo."

As metáforas incomuns, retomadas nas ilhas de poesia, garantem o tom satírico do conto "O Noivo Perneta". E essa mesma apropriação se repete em outras tantas histórias de "Novos Contos Eróticos". Mas lançar mão da poesia e do humor precisamente na hora H, em que as cenas estão ficando calientes, não é uma fórmula limitada do autor curitibano. Em "Duas Normalistas", a poesia divide as linhas com – e por que não dizê-los? – termos como "xota", "bucetinha" e "pau colosso". Não é um erotismo barato, feito para chocar. É o novo Dalton Trevisan, livre para escrever o que – e como – quiser. Ler "Novos Contos Eróticos", com o verbo solto, é uma experiência radicalmente diferente do que se aventurar nas páginas de "Contos Eróticos", livro publicado em 1984. Bem mais pudicas aquelas narrações oitentistas. Não há presença de palavrões e a carga lírica, naqueles contos, é regulada, distribuída concisamente entre as narrativas.

Ler "Novos Contos Eróticos" é constatar que Dalton Trevisan ficou, sim, extremamente poético e mais erótico. "Violetas e Pavões", "Lábios Vermelhos de Paixão" e "Mariskha" são prova disso. Sacana, o contista vai lançando mão de metáforas e outros recursos poéticos – sempre com humor – até o momento em que o conto está submerso em poesia – uma poesia que, de tão rebuscada, propositalmente ganha ares parnasianos. O Vampiro de Curitiba, severo crítico do simbolismo e do bairrismo de Emiliano Perneta – chegou a chamá-lo de "poeta medíocre" –, vem compondo, em sua trajetória literária, uma articulação profundamente irônica. Quem diria, virou parnasiano. Danado zombador da enrolação literária. Dalton Trevisan, o famoso recluso contista curitibano, é um tremendo poeta satírico.

NOVOS CONTOS ERÓTICOS
Autor Dalton Trevisan
Editora Record
Preço R$ 30 (206 páginas)

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O silêncio de Raduan Nassar

Publicado no Correio Braziliense,  em 21/9/2013

Para um escritor recluso, Raduan Nassar é muito vacilão. Até dezembro do ano passado, qualquer um podia descobrir seu telefone e endereço com uma ligeira fuçada no Google: a bendita da internet, alcagueta impiedosa dos discretos literatos. Pessimista, não acreditei no achado.Mais provável, do outro lado da linha, um homônimo anônimo. Liguei umas duas ou três vezes, deu ocupado. E só fui tentar novamente após algumas semanas, nem crendo naquilo, num meio-dia de algum dia da semana.
 — Por favor, o Raduan Nassar.
— É ele, quem fala?
—Mas é o Raduan, do Lavoura arcaica?
— Raduan é o autor; Lavoura, a obra. Quem é?
Apressei a fala. Acho que até gaguejei um pouco tentando me identificar: aluno do Mestrado em Estudos Literários, em Maringá, e aspirante a escritor. Elogio Lavoura arcaica, digo que é bom pacas, que a prosa poética é invejável. Ouço um“obrigado”, seco e ligeiro, do outro lado da linha. Após o elogio, pergunto se ele teve de enfrentar um processo doloroso para encerrar sua curta trajetória literária, de apenas três obras. A resposta vem rápida, à queima-roupa.

“Não é nada doloroso parar de escrever”, revelou o escritor. “Mas eu preciso desligar agora, tá? Estou
muito ocupado”, avisou.

Não dei trégua. Com Raduan Nassar do outro lado da linha telefônica, pedi um conselho. Para mim, para
outros jovens escritores. Ele soltou uma risada meio sem graça, acompanhada de um grunhido sinistro: mescla de ironia e desprezo.“Conselho? Essa palavra até me assusta”, respondeu.

Aproveito o silêncio dele, aproveito que ainda não bateu o telefone na minha cara e indago sobre seu estilo próprio, sua preciosa prosa poética.“Como você fez para se livrar das influências, como alcançou um estilo próprio?”, pergunto. “Cada escritor tem um jeito: vá escrevendo. Se você ainda não encontrou seu estilo próprio, não se preocupe.Você tem quantos anos? Só 24?Você é jovem, ainda vai encontrar o seu caminho. Mas agora eu preciso desligar. Estou realmente muito ocupado. Tudo de bom para você”, diz, cordialmente, batendo o telefone na minha cara.

Em Sampa

“O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor”, escreveu Raduan Nassar, lá pelas tantas, no Lavoura arcaica. E me pego rindo dessa frase quando cruzo a roleta do metrô, levando um exemplar da obra nas mãos.Tempo, no meu caso, prevejo que seja mínimo — se Raduan Nassar descer ao portão do prédio ou, numa inimaginável possibilidade, se permitir que eu, um insignificante leitor desconhecido, suba
ao seu apartamento. Meu maior tesouro, na frente de Raduan Nassar, são as perguntas certeiras: estratégias para prendê-lo, para assegurar algum tempo.

Às três da tarde, o maldito sol de São Paulo não perdoa os poucos pedestres de Pinheiros. Depois de uma boa caminhada,confiro o número e o nome da rua no papel amassado que levo no bolso. Aperto a campainha e pergunto de Raduan Nassar ao porteiro do prédio. “Ele mora aqui, sim. Aguenta aí que vou interfonar para ele”,diz o sujeito,solícito.Depois de um minuto, o porteiro me pergunta de onde eu sou. “Sou um leitor dele, do Paraná”, explico. E aguardo. O sujeito abre o portão e aponta para o interfone: “O Raduan quer falar com você.”
— O que você quer de mim, pergunta o escritor.
—Vim do Paraná para te conhecer. Estou no Mestrado de Literatura.Você pode assinar o meu Lavoura arcaica?
Raduan Nassar solta um resmungo incompreensível do outro lado da linha. E só depois de algum tempo ele diz. “Olha, estou muito ocupado. Muito ocupado mesmo. Eu vou assinar o seu livro, mas será tudo bem rapidinho, tá bom?” Digo que sim, está tudo bom, já vou subir, e o porteiro me avisa, apontando o caminho do elevador, que é no quinto andar. Entro no elevador. “O tempo é o maior tesouro de que um homem
pode dispor”. O cara do meu lado olha o meu exemplar de Lavoura arcaica e adianta que o escritor é gente fina. "Todo fim de semana aparece alguém aqui no prédio. As pessoas aproveitam que estão em
São Paulo e vêm conhecer o Raduan. Às vezes ele atende, às vezes não”, comenta o vizinho.

Com um sorriso no rosto, Raduan abre, silenciosamente, a porta de seu apartamento. Chego agradecendo, “obrigado mesmo por me receber”, esse tipo de coisa. Elogio novamente Lavoura arcaica. Ele me encara, não é um sujeito grande. Mede um pouco mais de 1,60 metros, está vestindo uma camiseta branca, calça bege e sapatos. Prestes a completar 78 anos, em 27 de novembro deste ano, ele está bem conservado. “Você perdeu o seu tempo lendo esse livro”, diz o autor, arrancando uma boa risada nossa, e já vai me apresentando a seu filho, que puxa uma cadeira e senta na sala. “Ali, vamos ali na mesa para eu assinar o livro para você. Estou muito ocupado. Será tudo muito rápido, tudo bem?”

Livros encalhados

Frente a frente com Raduan, falo das minhas desconfianças. “Duvido de que você nunca mais escreveu
um outro livro”, provoco. Ele garante que não. “Eu abandonei a literatura há mais de 30 anos. Nunca mais
escrevi uma linha, nunca mais vou voltar a escrever”, responde, abrindo o livro para iniciar a dedicatória.
“Onde você quer que eu assine?”, pergunta o autor. Peço que assine em qualquer lugar, onde preferir.

Enquanto ele olha a edição, indago sobre Lavoura arcaica. Quando a obra foi lançada, em 1975, ninguém
deu a mínima importância. Os livros ficaram encalhados na casa de Raduan, e ele só virou um ícone da lite-
ratura em 1989, quando foi reeditado pela Companhia das Letras. Pergunto, enquanto Raduan observa aquela edição, se daqui a 50 anos as pessoas ainda vão ouvir falar de Lavoura arcaica.

O escritor abre um sorriso atrás da mesa. Seu filho também sorri. E fecha o livro nas mãos.“A literatura é
imprevisível. Mas acho que daqui a 50 anos ninguém vai mais saber do Lavoura arcaica”, diz, enquanto todos rimos. Mas seu filho, que até agora estava curvado em seu próprio silêncio, rebate a resposta paterna: “Ah, vão saber, sim”, diz. Raduan continua sorrindo, pergunta qual é o meu nome inteiro e já vai rascunhando num pequeno papel, para observar o esqueleto da grafia que, depois, será levada ao livro.

Na pequena sala, não há vestígio algum de literatura. Não há livros nas estantes, não há livros espalhados
pelo chão, aquela não parece a casa de um escritor. A fala de Raduan, concisa e lacônica, também não se parece com a voz de um escritor. Alguns escritores falam por meio da poesia, recorrem a metáforas paridas na hora, comentam, empolgados, os detalhes do processo criativo de determinadas obras: vivem e respiram a literatura diariamente. Não é o caso de Raduan. Não há metáforas em suas falas, nem poesia vazando daquele verbo, mas há o silêncio. Não chega a ser triste nem melancólico, mas é um pouco desconfiado. Tem contundência aquele silêncio.Tem textura aquele silêncio. É o mesmo silêncio que enche, aos berros estridentes, a literatura dele. E aproveito que ele está novamente em silêncio para perguntar sobre seu estilo próprio.

Embora inovadora no Brasil, a prosa fortemente lírica queRaduan se apropriou já fazia sucesso, há anos, em Portugal.Indago se Raul Brandão e os outros autores portugueses influenciaram, de alguma forma, a sua literatura. Aresposta é rápida.“Nunca li Raul Brandão nem os outros autores portugueses para escrever Lavoura arcaica.”

Com Chico Buarque

Pela primeira vez, começo a notar os papéis que estão à minha frente, na mesa de Raduan. São recortes de jornais de várias épocas, não dá para saber exatamente sobre o quê. Leio algo sobre Chico Buarque e Raduan Nassar juntos, em algum evento de literatura. Pergunto sobre esse encontro. “Mostre para ele, filho”, ordena, calmamente e com um sorriso, Raduan.

Então o filho de Raduan ergue a pilha de jornais e tira uma página lá do meio. Meio amarelada pelo tempo, a capa do caderno de cultura de um jornal carioca traz a foto de Chico Buarque e Raduan, lado a lado, sorridentes: dois velhos amigos das letras.

“Eu e o Chico fizemos três leituras. Em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Ele lia trechos do meu livro, Menina a caminho, e eu lia trechos do Estorvo, o primeiro livro do Chico. Para mim, esse é o melhor livro dele. O último ele me mandou, mas não cheguei a ler”, diz Raduan, voltando-se para o seu silêncio e para a dedicatória.

“E o que você acha da literatura brasileira contemporânea?”, pergunto. “A literatura brasileira já não é mais a mesma, está diferente. Não sei dos novos escritores”, diz Raduan, emendando uma pergunta para mim. “Você me disse que está fazendo mestrado. Então, você terá de fazer uma tese, não é?” Digo que sim. Revelo que minha tese será sobre a obra de Dalton Trevisan. Mas que não descarto, num Doutorado, estudar Lavoura arcaica.

Raduan Nassar dá outro sorriso.“Você vai  gastar seu tempo à tôa”, ironiza. E novamente o filho rebate, rindo, a fala do pai.“Faça, sim.Você vai ganhar muito, se fizer”, incentiva o filho. “Aqui está”, diz o escritor, me passando o livro sobre a mesa.“Para Alexandre Gaioto, muito cordialmente, com um abraço do Raduan Nassar”, escreveu o autor, com letras miúdas, típicas de pessoas tímidas e reservadas.

Agradeço a dedicatória, enquanto o escritor se levanta da cadeira e estende a mão.“E, daqui a 50 anos, Raduan, como você vai querer ser lembrado?”, indago. E, pela primeira vez na nossa conversa, ele se
apropria da poesia para soltar a resposta.“Como alguém que sai desse mundo cantando”, diz Raduan, com um sorriso nos lábios, iluminando a sala vazia de literatura.

Ao lado do filho, Raduan me acompanha até a porta. É hora de ir embora. Agradeço a rápida conversa, agradeço a recepção cordial em seu apartamento.“E volte a escrever, poxa”, eu peço. São as minhas últimas palavras: um incentivo à sua prosa poética. Com um sorriso amigável, o escritor nada não diz. Espera eu entrar no elevador e só então fecha a porta, submerso num silêncio de cristaleiras.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

você me olha como se eu fosse
um alien
obcecado pelos seus pés
(minhas mãos em brasa não despertam o mínimo de compaixão)

você me ouve num silêncio estridente
enquanto imploro cada acorde mudo da sua voz
(às vezes levo até quinze dias para decifrar a cor da sua voz)

às vezes você me olha como se eu fosse um arame
um balde cheio de água da torneira da rua
um poste na esquina dessa mesma rua

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

IV

se você um dia esquecer isso amor
releia cada palavra das primeiras
dedicatórias nos livros onde você
escrevia o seu nome inteiro
o ano
o nome da cidade
e lá no final do texto dizia eu te odeio
eu te odeio
eu te odeio
(era cedo demais para escrever eu te amo)
aí você vai entender tudo
talvez até me ligue de madrugada
da mesma forma como estou fazendo agora

II

quando sua nuca finalmente se enjoar dos meus dentes
minha língua terá a pior morte de todas as bocas

sábado, 23 de março de 2013

Caçando João Gilberto

“Você gosta de João Gilberto?”, indaga o vendedor de CD’s, quando me vê fuçando entre os álbuns disponíveis do criador da bossa nova na estante. Respondo que sim, que estou hospedado há uma semana exatamente a uma quadra do apartamento onde ele mora e que gosto de perambular pelas mesmas ruas em que provavelmente ele já caminhou. O vendedor vira-se para a seção de jazz, ajeita um CD desalinhado e diz que “o João é um gênio, mas um tremendo babaca”. Respeito os segundos de silêncio que preenchem sua fala e aguardo a justificativa. “João Gilberto matou o meu amigo”, afirma, sem esconder o rancor.

Depois de uma semana colecionando histórias do recluso cantor baiano, eu não poderia deixar de ouvir mais uma. No máximo, perderei alguns minutos na famosa livraria do Leblon, escutando uma lorota para entreter turistas. O vendedor nota minha curiosidade para ouvir os detalhes do causo. Ao ser abordado por um cliente em busca de CD's de tangos, o vendedor adianta: “É uma história muito cavernosa, mas já vou te contar”, avisa.

É assim que tenho passado os meus dias no Rio de Janeiro: esperando. Estou de campana no prédio de João Gilberto, desde que deixei na segunda-feira, por volta das 15h, dois CD's dentro de um envelope para serem autografados. Deixei com um jovem porteiro, que se identificou como Gustavo e recebeu o pacote com um sorriso amigável, quase complacente, garantindo que levaria ao cantor. “Vim do Paraná para entregar isso ao João Gilberto”, eu disse, passando o envelope pelo portão.

João Gilberto, aos 81 anos, teria pouco trabalho: abrir o envelope, autografar os dois álbuns em anexo e mandar o pacote de volta para a portaria. Moleza. Contabilizando meio por cima, cinco minutos seriam o suficiente. Um dia depois, na terça de manhã, toco a campainha da portaria. Quem atende é um outro sujeito, mais velho, e rapidamente me apresso a explicar a situação. Ele me interrompe bruscamente. “Escuta aqui, eu sei quem é você. Não tem nada para você aqui”, informa, impaciente, antes de bater o interfone na minha cara.

Anônimo

O Leblon, com suas ruas elegantes e mulheres de fino trato, é uma Hollywood tupiniquim. Artistas de tevê, milionários excêntricos e escritores residem ou batem cartão no bairro. Perambulando naquelas vielas é comum esbarrar em Chico Buarque, Caetano Veloso, João Ubaldo Ribeiro, Sérgio Sant'Anna, Tony Bellotto, Malu Mader e Cláudia Abreu.


Mas João Gilberto não é exatamente uma celebridade. Ele não tem um rosto tão conhecido como o do Chico Buarque ou do Caetano Veloso. Nem mesmo o seu nome, por incrível que pareça, é reconhecido naquelas bandas. “João do quê? Meu Deus, nem sei quem é esse!”, comenta a cearense Rose Gomes, 37, que trabalha há dois anos em uma cafeteria localizada próxima ao prédio de João Gilberto.

Na surdina, João Gilberto pode tomar um sofisticado café com blends especiais, das 9h às 22h, sem ser perturbado pela atendente da cafeteria. Pode caminhar até a esquina, em plena madrugada, e discretamente gelar o calor de 37 graus, ignorado pelas moças do McDonald's.

Se quiser comprar um serrote (R$ 19,90), uma lâmpada (de R$ 12 a R$ 14,90) ou um óleo lubrificante (R$ 4), o cantor continuará gozando os privilégios do silencioso manto do anonimato. “Não faço a mínima ideia de quem é esse cara”, comenta Marlon Costa, 18, que trabalha em uma loja de material de construção, na Rua Carlos Góes.

Na quarta-feira, uma boa notícia. Soube pelo próprio Gustavo, o porteiro, que meu envelope havia sido entregue em mãos, na mesma segunda, ao João Gilberto. Passei a interfornar uma vez por dia na portaria do prédio do cantor para saber que fim tomaram os meus CD's. Mas nada surgiu na quinta nem na sexta. Camarada, um dos porteiros até abriu o portão, permitiu que eu chegasse ao interior do prédio e me explicou, cordialmente, que não havia nenhuma correspondência deixada pelo João Gilberto. “De todos os porteiros aqui do condomínio, o seu João só fala com dois. E o Gustavo é um deles”, tranquilizou-me. Deixo o prédio, sigo pela rua.

Gente famosa

Na Carlos Góes, alguns vizinhos de João Gilberto topam colaborar com relatos, desde que não tenham de ter o nome revelado. “Um dia passei pela portaria e vi o Caetano Veloso sentado no sofá. Depois soube que ele tomou um chá de cadeira. O João não deixou o Caetano subir”, lembra, rindo, uma das moradoras. E acrescenta: “Só quem tem acesso livre ao apartamento é a Bebel (Gilberto), que é filha, e a mulher dele (Cláudia Faissol). É comum encontrá-las no prédio”, diz. Outro morador conta que os demais parentes se correspondem com ele por meio de bilhetes deixados na portaria. “E a comida ele pede por telefone. O entregador leva até o apartamento. Quando precisa sair de carro, espera lá na garagem. Nunca na calçada”, afirma.

De todos os dias em campana, o sábado parece ser o mais quente. Na areia do Leblon, loiras, negras, ruivas e orientais bronzeiam a alma, e as costas, as pernas, as coxas, os peitos, esperando o último aceno do Sol: da cor do pecado. E para cada mulher que cruza a minha frente no mar do Leblon, João Gilberto tem o sussurro certeiro, para ser entoado no momento exato, baixinho, com suaves toques sincopados. Triste é viver na solidão.

Senhor gentil

Ninguém, por mais recluso que seja, consegue resistir ao calor do Leblon. Nem mesmo João Gilberto. E ele dá as caras nas ruas do bairro quando sai para caminhar durante o dia. Solitário. Sem ser reconhecido por ambulantes, balconistas do McDonald's, funcionários das lojas de material de construção e paparazzis. Sai de casa sem o terno e o violão a tiracolo, obviamente.

“Ele usa roupas simples, bermuda e camisa de caminhar, está sempre sozinho. Ninguém o reconhece na rua. Parece ser um senhor gentil”, conta a vizinha que mora no sétimo andar, abaixo de João Gilberto. Em três anos, ela jura já ter encontrado o cantor no hall do condomínio em duas ocasiões. Sempre de dia. E é possível ouvir João Gilberto cantando lá de cima? “Nunca escutei um barulho. Ele é discreto”, diz.

A descrição da vizinha, de senhor “gentil”, não bate com a feita pelo vendedor de CD's — “um gênio, mas um tremendo babaca”. Alguém está mentindo ou exagerando. Quando o vendedor de CD's termina de atender o freguês em busca de tangos, segue para o setor onde estou e retoma a fala. Na trama rocambolesca, seu amigo seria um pernambucano que debandou para o Rio de Janeiro e João Gilberto teria se afeiçoado a ele. Depois de tardes tocando violão na casa do mito da MPB, o cantor teria oferecido um emprego de roadie para o pernambucano. E assim foi. “Ele virou o afinador do violão do João. No shows, era o cara que passava o som do violão. Com o João é assim: tem um cara só para passar o som do violão e outro só para passar a voz”, conta o vendedor.

Durante as turnês nacionais e internacionais, a amizade dos dois nunca sofreu abalos. Pelo contrário. João havia encontrado um roadie competente, além de um fiel amigo. “O problema foi na passagem de som de um show na Áustria, eu acho”, lembra.“O meu amigo estava meio esquentado e tratou mal um dos técnicos de som de lá, pouco antes do show. O clima ficou tenso, e quando a história chegou ao João, ele simplesmente demitiu o meu amigo lá mesmo, no exterior. E o cara nem sabia falar em inglês! Isso não se faz com ninguém. Depois de um bom tempo, sabe-se lá como, esse meu amigo conseguiu voltar e desembarcou no Brasil. Só que ele desembarcou aqui e morreu. Foi assim que João Gilberto matou o meu amigo”, encerrou, um pouco emocionado.

Acusação veemente

Fã declarado de João Gilberto, o vendedor de CD's traz outros causos na manga e, aproveitando que a essa hora não há movimento na livraria, emenda outra história. Diz que o cantor um dia ligou para seu empresário, acusando-o de roubar R$ 10 mil dólares no meio de uma turnê internacional. O empresário teria rechaçado veementemente a acusação, dizendo que as contas feitas pelo cantor estavam todas erradas e que ele calculasse novamente.

“Alguns dias se passaram e João não tocou mais no assunto. Parecia ter esquecido aquilo de vez.” No fim da turnê, que recebeu elogios da crítica e foi um sucesso de público, o cantor teria se juntado ao empresário e aos roadies para comemorar o resultado, jantando num luxuoso hotel do Rio de Janeiro. “Então, ele se virou para o empresário, no meio do jantar, e o acusou: mas aqueles R$ 10 mil dólares você me roubou, né?”

Com o coração na mão, paro na frente do prédio onde mora João Gilberto e interfono ao porteiro. Quem atende, para a minha felicidade, é o Gustavo. Explico que estou indo embora, gostaria de pegar meus CD's. “Ele deixou algo para mim?”, pergunto. Nada. Nem ao menos devolveu os encartes, sem assinar. Indago se há alguma forma de recuperar os CD's. Fora de cogitação. “O João Gilberto só se comunica com a gente, aqui na portaria, quando ele quer. Desde a última segunda, ele não faz contato com nenhum porteiro. A cada dez pedidos de autógrafos, ele atende dois”, comentou.

Olho para o oitavo andar. É um apartamento alugado, de 130 m². As janelas continuam cerradas, protegidas por cortinas e bloqueadores. Lá se foram meus CD's, sorrateiramente afanados por João Gilberto.

Matéria publicada no Correio Braziliense em 21/3/2013