quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Dalton, velho sátiro

Publicado no Diário do Norte do Paraná - 31/10/13

Dalton Trevisan é um poeta, e pouca gente sabe disso. Em toda a sua trajetória literária, apenas uma minoria crítica, composta por resenhistas de jornais, notou sua verve lírica. Quando Alfredo Bosi escreveu sobre a literatura do contista curitibano, apontou para as misérias morais de Curitiba, a presença do grotesco, do sádico e do macabro. Nada de lirismo.

Na avaliação de outro grande crítico literário, Massaud Moisés, o lirismo também foi escanteado. Moisés apontou para o grotesco, a província e aos aspectos do cotidiano. Novamente, o lirismo passou em branco.

Antônio Houaiss timidamente acenou para a poesia de Dalton Trevisan, numa orelha de "O Pássaro de Cinco Asas" (1974). Resumidamente, ele afirma que Dalton Trevisan "enlaça poesia e náusea". Sem citar exemplos de passagens que justificassem seu posicionamento, sua observação se perde, infelizmente, em linhas demasiadamente genéricas e superficiais.

Se para Houaiss a poesia de Dalton Trevisan está associada à náusea, para o jornalista curitibano Luiz Geraldo Mazza (1988), em crítica publicada no jornal Correio de Notícias, a poesia do contista paranaense está relacionada à maneira peculiar de retratar a capital do Paraná: menos glamourosa que a dos cartões-postais, com seus botecos triviais e pontos turísticos ignorados no dia-a-dia. Numa resenha publicada em 1972 no Suplemento Literário de Minas Gerais, Ralph Niebuhr dedicou um olhar menos superficial aos elementos líricos do contista paranaense, avaliando a relação com a morbidez da trama das histórias.

Em sua leitura, Niebuhr afirma que, embora o impulso lírico explicitamente faça parte do artesanato literário do autor paranaense, quase nunca é o elemento dominante de sua prosa. E aponta o conto "Ponto de Crochê", do livro "Novelas Nada Exemplares" (1959), como a história em que os elementos líricos, juntamente com o tom mórbido da trama, chegam a dominar o conto: "O elemento lírico é, quase sempre, usado como uma técnica para dar ênfase à condição basicamente triste dos personagens de Dalton Trevisan, e por extensão, de todo ser humano".

No meio acadêmico, não há publicações, até o momento, sobre o lirismo na obra de Dalton Trevisan. O único estudo que se aproxima desta questão é a obra de Vera Marquêa ("O Vampiro Habita A Linguagem: Uma Leitura da Obra de Dalton Trevisan"), publicada recentemente. Marquêa afirma que Dalton Trevisan se apropria de um "corte poético" na década de noventa, com a publicação de "Ah, É" (1994) e "234" (1997). Contos como "a cigarra anuncia o incêndio de uma rosa vermelhííísima" – metáfora da chegada da primavera –, "uma nuvenzinha branca enxuga no arame do varal" – o dia amanhecendo –, e "bolem na vidraça uns dedos tiritantes de frio" – a chuva –, abordam a natureza sob uma nova perspectiva, dentro da produção do contista, segundo a pesquisadora.

Ao apontar os elementos poéticos de Dalton Trevisan, críticos e pesquisadores estabeleceram, portanto, relações com a natureza, com o grotesco e até com a forma de retratar a Curitiba provinciana. E só. Não há nada que relacione, por exemplo, o lirismo ao erotismo nas histórias de Dalton Trevisan.

Se até agora foi um tremendo vacilo ninguém ter se dedicado, com firmeza, aos aspectos líricos em Dalton Trevisan, o lançamento de "Novos Contos Eróticos" é o fim da linha para esse pouco caso de acadêmicos e resenhistas. Não notar a poesia nesta obra, é um erro imperdoável e injustificável.

O livro é um apanhado de 30 contos de Dalton Trevisan, extraídos de obras recentes – principalmente de "Macho Não Ganha Flor" (2006), "O Maníaco do Olho Verde" (2008) e "Violetas e Pavões" (2009).

No conto "O Noivo Perneta", Dalton Trevisan aborda a história de um rapaz que perde a perna pouco antes de se casar com a mulher amada. Carregado de humor e de referências ao texto bíblico, o conto traz as marcas do estilo do escritor curitibano, como a elipse de conjunções/locuções conjuntivas e a preferência por verbos na forma nominal. Quando o narrador (noivo perneta) recorda as suas relações sexuais, passa a descrever as partes íntimas da mulher amada. Em vez de descambar num texto vulgar e pornográfico, Dalton Trevisan investe numa série de elementos poéticos, compondo ilhas de poesia durante o conto.

"O seu corpo uma ilha descoberta pelo sedento náufrago. Sem marca na areia de pé estranho - rósea e perfumada. Golfo e promontório. Baía e península. Caverna dos Nove Tesouros do Pirata da Perna de Pau. Na límpida fonte nadam hipocambo e lambari de rabo dourado. Búzio com cantiquinho de corruíra madrugadora. Passagem secreta para gruta encantada. Dunas calipígias movediças. Ninho escondido de penas de beija-flores. Em voo rasante garça-azul de bico sanguíneo."

As metáforas incomuns, retomadas nas ilhas de poesia, garantem o tom satírico do conto "O Noivo Perneta". E essa mesma apropriação se repete em outras tantas histórias de "Novos Contos Eróticos". Mas lançar mão da poesia e do humor precisamente na hora H, em que as cenas estão ficando calientes, não é uma fórmula limitada do autor curitibano. Em "Duas Normalistas", a poesia divide as linhas com – e por que não dizê-los? – termos como "xota", "bucetinha" e "pau colosso". Não é um erotismo barato, feito para chocar. É o novo Dalton Trevisan, livre para escrever o que – e como – quiser. Ler "Novos Contos Eróticos", com o verbo solto, é uma experiência radicalmente diferente do que se aventurar nas páginas de "Contos Eróticos", livro publicado em 1984. Bem mais pudicas aquelas narrações oitentistas. Não há presença de palavrões e a carga lírica, naqueles contos, é regulada, distribuída concisamente entre as narrativas.

Ler "Novos Contos Eróticos" é constatar que Dalton Trevisan ficou, sim, extremamente poético e mais erótico. "Violetas e Pavões", "Lábios Vermelhos de Paixão" e "Mariskha" são prova disso. Sacana, o contista vai lançando mão de metáforas e outros recursos poéticos – sempre com humor – até o momento em que o conto está submerso em poesia – uma poesia que, de tão rebuscada, propositalmente ganha ares parnasianos. O Vampiro de Curitiba, severo crítico do simbolismo e do bairrismo de Emiliano Perneta – chegou a chamá-lo de "poeta medíocre" –, vem compondo, em sua trajetória literária, uma articulação profundamente irônica. Quem diria, virou parnasiano. Danado zombador da enrolação literária. Dalton Trevisan, o famoso recluso contista curitibano, é um tremendo poeta satírico.

NOVOS CONTOS ERÓTICOS
Autor Dalton Trevisan
Editora Record
Preço R$ 30 (206 páginas)