quarta-feira, 18 de junho de 2014

Verdades do Cogumelo

Publicado no Correio Braziliense (17/6/2014)

“Tem um cara muito estranho querendo falar com você”, avisa a secretária, discretamente apontando para a sala ao lado. Curiosa, ela indaga quem é o sujeito. Digo o nome dele e de sua banda: Blanch Van Gogh, cantor e letrista do Cogumelo Plutão. Não adianta nada. Tento cantarolar, em vão, os versos de “Esperando na janela”, o maior – e único – hit da banda brasiliense. A secretária sai de cena um pouco desapontada e sigo ao encontro de Blanch. 

Mesmo que ela se lembrasse da fisionomia do cantor, seria impossível reconhecê-lo, ali, sentado à mesa: acima do peso, rosto inchado, o cabelo todo ensebado e desgrenhado, não dá para imaginá-lo rolando no chão e entoando o tal hit da janela, como ele fez no clipe da música em 2000.

Gente boa, Blanch estende a mão e vai direto ao assunto: 14 anos depois dos poucos minutos de fama e do misterioso desparecimento de sua banda – que sumiu do mapa sem qualquer aviso oficial –, ele está retomando, finalmente, o Cogumelo Plutão. “Quero começar pelo Paraná porque nosso último show foi aqui no estado. Precisamos fechar esse ciclo e iniciar um novo”, justifica. Empolgado, ele adianta que, em julho, sai o álbum de músicas inéditas (“Amor à Primeira Vista”) e que a turnê, composta por 40 shows, começa em agosto. Ainda não há datas confirmadas.

O sumiço do Cogumelo Plutão, ele conta, foi culpa de um aneurisma. Por causa disso, Blanch foi se tratar nos Estados Unidos, onde teria passado dois anos “entre a vida e a morte”. Enquanto ele vai explicando sua epopeia, a voz sempre calma e serena, algumas histórias inacreditáveis surgem nos relatos. “Nos EUA, fiquei muito tempo numa cadeira de rodas e escrevi um livro que se tornou best-seller lá. Desde então, sou citado em todos os lugares por intelectuais e artistas europeus”, garante, já emendando outro detalhe surreal de sua biografia: “Não sei se você sabe, mas, na Europa, sou considerado um dos maiores artistas plásticos contemporâneos”, avisa, com um generoso sorriso.

Com o hit da janela, vertido a diversos estilos musicais por uma penca de artistas, do sertanejo “universitário” de Cesar Menotti & Fabiano à balada soporífera de Angélica, Blanch diz ter embolsado “bem mais do que R$ 2 milhões” com os direitos autorais. São dele, também, as músicas “Beijar na boca” e “Uma vez mais”, que explodiram, respectivamente, com Claudia Leitte e Ivo Pessoa. “Sou o décimo maior arrecadador de direitos autorais do país”, gaba-se, do outro lado da mesa.

Só grandes amigos

Aproveitando tantas notícias bombásticas, resolvo perguntar sobre o seu amigão Renato Russo. “É verdade que você era namorado dele?”, questiono. Blanch abre um sorrisão malicioso. “Plantaram essa notícia de que eu era namorado do Renato em 1992. Fomos grandes amigos, mas não namorei o Renato. Mesmo porque o Renato não namorava ninguém, não era fiel a ninguém. Se eu tivesse namorado ele, não teria vergonha em dizer”, revela.

A vivência com Renato Russo foi fundamental para que Blanch se dedicasse, de corpo e alma, ao seu Cogumelo Plutão. “Ele me enchia para fazer a banda. No nosso primeiro show, em São Paulo, o Renato estava lá com a gente, cantando e me incentivando. Conheci um Renato diferente, sabe? Não esse aí, o estereotipado do cinema. Cheio de necrófilos em volta... Sabe uma coisa que ele sempre me dizia? ‘Acredite em si mesmo’”, recorda-se. Tão próximo do líder da Legião Urbana, Blanch afirma que acabou servindo de inspiração para algumas canções, como “Vento no litoral".

“Lembro-me que, um dia, eu ia encontrar o Renato no apartamento dele, mas ele simplesmente ficou trancado lá com um namorado. Depois, quando foi à minha casa, eu não o recebi e fiquei com a minha namorada. Quando nos encontramos, ele olhou para mim e começou a dizer: ‘Já que você não está aqui’. E isso, como a gente sabe, virou um clássico. Eu o influenciava e ele me influenciava também. Pense em nós como dois grandes artistas, que se influenciaram mutuamente, tal como os pintores expressionistas”, compara, modestamente.

16 inéditas

“Agora, vou te contar uma coisa”, ele avisa. E faz uma pausa abrupta, forçando um tom dramático à fala. Ele não parece um cara ansioso, nervoso. Mas as unhas roídas, acumulando uma fina camada negra de sujeira, parecem denunciar o contrário.

O que pode ser mais surpreendente do que ele ser um dos maiores artistas plásticos contemporâneos na Europa? Ou, então, ter escrito um best-seller nos EUA, que lhe garantiu a glória e o reconhecimento de artistas e intelectuais europeus? Com Blanch, tudo é possível. “Tenho 16 músicas inéditas, gravadas, do Renato Russo. Oito são músicas só dele e as outras oito são composições nossas”, revela, citando, como exemplo, duas canções: “Camisinha Amarela” e “Plus-Ultra”.

Pouco caso

Em 2006, Blanch diz ter avisado a gravadora EMI da existência do material inédito e, em seguida, teria entrado em contato com o escritório que administra o legado de Renato Russo. A tentativa de aproximação, ele vai resumindo, foi frustrante. “Fui destratado por uma das funcionárias e nunca quiseram saber de mim. Então, por lei, não posso mexer nesse material. Imagino que isso não tenha chegado ao conhecimento do Giuliano Manfredini, que é filho do Renato e é um garoto que eu respeito muito”, reclama.

“Tudo o que eu queria era que o Giuliano tomasse conhecimento dessa situação e me autorizasse a usar o material”, sinaliza o cantor. Pergunto, então, sobre a qualidade do material. O amigão de Renato Russo se aproxima da mesa, finca os cotovelos (eis a cartada matadora de Johnny Moss!? a mão danada de Doyle Brunson!?), e responde calmo, porém firme: “Posso te afirmar que são as melhores músicas que o Renato compôs”, anuncia.

Quando Blanch vai embora, penso no espanto da secretária (“tem um cara muito estranho querendo falar com você”), imagino o concorrido vernissage de Blanch Van Gogh no Museu de Arte Moderna de Paris – boa parte do público, basicamente formado por empresários do sertanejo “universitário”, levando o best-seller dele a tiracolo – e acompanho uma centena de intelectuais europeus rolando no chão e entoando as 16 músicas inéditas de Renato Russo – infelizmente, todas elas são executadas ao mesmo tempo, sendo impossível discernir uma de outra. É um enredo rocambolesco e aloprado de um filme surrealista. Na última cena, o vento, em zoom, vai levando tudo embora.