domingo, 17 de maio de 2015

Casais fetichistas, cheiro verde, musa, eu, tu e ele na UEM muda

Desde que iniciou a série de textos dominicais sobre Maringá, o cronista Alexandre Gaioto vem adotando uma postura altamente condenável nesta empresa. Encerra o expediente antes do horário, chega para a labuta visivelmente alcoolizado e, com o bafão de pinga e o vozeirão altissonante, dispara mil e uma ameaças contra as pobres senhoras que preparam o cafezinho de O Diário – ai delas, se acrescentam um tiquinho só de açúcar a mais! Que fique claro, nunca gostei do que ele escreve. Em cada linha do Gaioto, você se depara com um português rasteiro, humor boboca, caldo nauseabundo de pseudo-escritor de autoajuda. Mesmo assim, graças às crônicas malfadadas, as vendas da edição dominical triplicaram e dezenas de cartas e e-mails chegam diariamente ao jornal, em tons que oscilam entre elogios a ameaças de morte (as minhas favoritas). Com a repercussão dos textos, Gaioto se deu ao luxo de fazer uma série de exigências exóticas, todas imediatamente cumpridas pelo alto escalão do jornal: 1) Uma sala de 40 metros quadrados, isolada dos demais repórteres, com jacuzzi para até doze pessoas, sofá-cama amarelo mostarda, escrivaninha Luís XIV e uma máquina de escrever Underwood (igual à do Hemingway), onde passou a redigir seus textos. 2) Aumento de 65% do salário, que, agora, ele recebe não em reais, mas em euros. 3) Um Camaro Amarelo (alugado ou presenteado pela empresa, ninguém sabe ao certo) para se deslocar entre sua casa e o jornal. 4) Duas massagistas chinesas, 24 horas por dia à sua disposição. 5) Uma chefe de cozinha taiwanesa para preparar seus almoços vegetarianos, com produtos orgânicos e alimentos à base de soja, incluindo tofu, tudo especialmente para ele e seus convidados.

Eu que não sou besta, e já andava meio desconfiado desse fanfarrão, resolvi sacaneá-lo. Interfonei à sala onde ele permanece recluso e cheio de regalias, e pedi que fizesse uma incursão pelos cantos silenciosos da UEM. "Afinal", fui dizendo, "a nossa universidade, atualmente paralisada com essa greve aí, precisa ser retratada por algum grande escritor, alguém de peso!". Gorducho e medindo pouco menos de um metro e meio, Gaioto sacou minha ironia. Tanto que nada não respondeu. Dez minutos depois, foi visto saindo do jornal, arrancando em alta velocidade a bordo de seu Camaro Amarelo.

Fui segui-lo. Levei vinte e dois minutos para chegar na Zona 7, pedalando minha magrela. Em vez de preparar a matéria, como eu imaginava, lá estava o bon vivant, regalando-se com cerveja de litrão e espetinhos de carne e frango, no Afonso's Bar. Com o beberrão matando trabalho, resolvi cumprir a missão e toquei para a UEM. Acha que só ele leu meia dúzia de livros? Qualquer Zé ruela, perdido entre o hermetismo, o constrangimento parnasiano e o jogo vocabular, escreve essas picaretagens de ó ninfa dos meus luares!, ó azeite de oliveira puríssimo!, ó arcanjo descido do céu de vestidinho e decotinho! Bobagem. Na esquina da UEM, vou apurando, a venda de cachorrão quente no Lanche do Toninho caiu 30%. "Tô torcendo pra que volte logo, viu?", comenta Andrei Briolli, 27. Por lá, o que mais saía, nos movimentados dias de aula, era o cachorro quente com alcatra (R$ 15), preparado com salsicha, 200 gramas de alcatra, batata palha, tomate e cebola.

Com o sinal fechado, noto algo interessante. Meto um cadeado na minha magrela e vou me aproximando. Elegantemente vestido, de cartola na cabeça, terno preto, gravatinha borboleta e camiseta branca, o casal equilibra bandejas, oferecendo chips, bolachas e barras de cerais lights entre os carros. Ele sorri para a motorista, que rapidinho abaixa o vidro. Ele mostra os produtos, ajeitados numa bandeja cinza, e vende, finalmente, um pacote de chips. O sinal abre. Cavanhaque aparado, fala mansa, bom de prosa: o vendedor é jovem. "Em todas as esquinas da cidade tem gente oferecendo alguma coisa. Estar bem apresentado faz toda a diferença no comércio", admite Iuri Renan, 24, enquanto vai me apresentando à esposa, Dulci Paina, 33, que trabalha com ele. Faz três dias que Iuri pediu as contas de uma famosa loja de sapatados da cidade para voltar a trabalhar nas ruas. "É meio viciante. E, por incrível que pareça, dá mais dinheiro que trabalhar num emprego 'comum'. Não é tão gostoso trabalhar dentro do sistema", avalia. Pergunto ao casal se a paralisação da UEM prejudica as vendas. "Negativo. Não faz nenhuma diferença. Em duas horas de trabalho,vendemos quase todo o estoque."

Amor de cidade
Há cinco meses, o casal resolveu debandar de Campo Grande (MS), onde vendia açaí nas ruas, e tocar para Maringá. Único problema, a filha de 4 anos permanece ao lado dos pais, sentadinha na calçada. "O Conselho Tutelar já ameaçou tirar a guarda da minha filha. Dizem que ela tem que ficar na creche, mas eu já fui atrás de creches e não tem vagas. Parece que essa semana eles vão arranjar uma escolinha." O sinal volta a abrir. "Mesmo assim, moço, nós amamos Maringá". O casal pede desculpas e corre, equilibrando bandejas, entre um veículo e outro.

Quarenta e três anos nas costas, fico feliz com o "moço". Vou entrando na UEM. Há quanto tempo eu não entrava na UEM? Cheguei a cursar Agronomia, isso em 1989, quando o picareta do Gaioto tinha lá um ou dois anos de idade. Mal entro, vou ouvindo o som de batuques ecoando na UEM. Ritmados, agudos e graves: a batucada de tambores infernais. Não são os tais índios kaingangs que o Gaioto tanto fala, em algum ritual a favor das chuvas e xamãs? Apresso o passo, tenho que achar esses índios. No meio do caminho, encontro um casal, conversando numa sombra revigorante, fugere urbem total. Ali, você acompanha o cantiquinho do bem-te-vi, o vento penteando as árvores, ouve todo o silêncio de um campus emudecido. "Esse silêncio só não é gostoso porque é algo imposto. Estamos sendo calados. Essa nossa condição é até ridícula", comenta o estudante de Direito Alvino Nascimento, 20. "Todos nós preferimos o agito das aulas, o agito intelectual", avalia a garota.

Num primeiro olhar, a UEM parece morta. Mas não. Embora os cursos de graduação estejam parados, tem muita gente que ainda continua na labuta. Alunos da graduação, do Mestrado e do Doutorado, todos envolvidos em projetos de pesquisa. Na empresa júnior de Biomedicina, três estudantes cumprem seus turnos. "A gente se programa para não sair depois das 18h. A UEM, principalmente nesses dias, tão vazia, é ainda mais perigosa à noite", diz Izadora Rossi, 19. Na sala ao lado, num laboratório de ecologia de mamíferos, um aluno, com o olho metido no microscópio, vai separando suas sementes de Cecropia. "Se eu não faço isso, as sementes fungam", justifica. Com alunos de Enfermagem, em outra sala, mais reuniões e relatórios, todos tocando adiante um projeto com incentivo federal. Alguém apresenta slides sobre marketing social – deve ser algum Mestrado. Dois homens, em cima da caçamba de um carro, se esforçam para consertar o motor da capela de exaustão, de um dos laboratórios. "Nem todo mundo tá parado por aqui, não é mesmo?", diz um deles, com uma boa risada. É verdade. A UEM não para. E, enquanto vou andando, vou anotando as opiniões dos alunos e funcionários: todos a favor da greve – um e outro mandando mensagens nada alegres para o governador.

Lá pelas tantas, encontro Elton Savi, 27, aluno do Doutorado de Física. Ele mantém a rotina na UEM, continua indo ao campus para frequentar o laboratório de pesquisa, onde testa técnicas alternativas para caracterização de biodiesel. Ele não gosta do vazio da UEM e vai falando de sua rotina numa boa, mas quando descobre que sou jornalista de O Diário, muda abruptamente seu comportamento. "Você não é o tal do Gaioto?!", questiona, a voz raivosa, olhar cheio de ódio. "Não, não, não", vou justificando. Ele só fica à vontade quando vê minha credencial: Rodrigo Parra, pauteiro. "Tá certo, Rodrigo, é que não suporto aquele palhaço. Uns amigos meus moram num condomínio, aqui em Maringá, e tão emputecidos com ele. Planejamos uma sova coletiva, tortura, algo do tipo", anuncia. Gostei do Elton. Parece gente boa. Fã de Paul McCartney e Oasis, ele diz que deveríamos publicar uma matéria criticando o sertanejo "universitário". "Acredita que tem uma dupla sertaneja que agora toma banho de chuveiro, no meio do palco, no meio do show?" Digo que sei. Li em algum lugar isso daí. E, conversando com Elton, lembro das "Notas para uma definição de cultura", que o T. S. Eliot escreveu em 1948: "E não vejo razão alguma pela qual a decadência da cultura não possa continuar e não possamos prever um tempo, de alguma duração, que possa ser considerado desprovido de cultura". Com shows de sertanejos tomando banho em cima do palco e com a UEM fechada, vou dizendo ao Elton, é exatamente o que estamos vivendo: um tempo desprovido de cultura. Ele concorda e vai embora. Antes, anota meu celular para combinarmos a tal sova coletiva.

Estou perto do bloco de Letras e Agronomia. Vejo o mural, com panfletos e avisos. Que eclético! "Rússia restringe importação de carnes de 8 frigoríficos brasileiros."; "Vítima alcoolizada não é desculpa para estupro. Você sabia?"; "Curso teórico-prático de coleta de sêmen e inseminação artificial de equinos. Objetivo: capacitar coleta de sêmen de garanhões utilizando vagina artificial."; Eu, hein. Lugar estranho, procuro outros cantos.

Sem furação
"Tô preocupado com a paralisação. Quando as aulas voltarem, as provas vão vir todas de uma só vez", prevê o aluno de Engenharia de Alimentação Gabriel Rodrigues, 18. Por isso mesmo, ele está aproveitando a tarde para estudar um pouco, além de preparar seus relatórios na cantina. "Ficar em casa é entediante, mas todos nós, alunos, estamos com os professores. O que eles fazem é legítimo", diz. E, por ali, não tem professor fura-greve. "Parece que o único caso é de uma professora de Agronomia, mas não tenho certeza."

Com a paralisação, duas cantinas resistem na UEM: a Central e a próxima ao restaurante universitário. "A gente praticamente está pagando para trabalhar. Abrimos, mesmo assim, em respeito aos funcionários e estudantes que ainda estão aqui", diz Tânia Fávaro. O pai dela começou com a cantina, ao lado do restaurante universitário, há duas décadas. Hoje, é Tânia quem vende os salgados e refrigerantes. "Nossa clientela diminuiu 99,9%. Essa é a segunda pior greve de todos esses anos. A primeira foi em 2000, que fechou por seis meses. Aquilo foi um horror", lembra. Uma das clientes da cantina está cursando Psicologia. Com o notebook aberto numa das mesas, ela aproveita a internet grátis, já que não tem acesso ilimitado na própria casa. "Não é das melhores conexões. Mas, no ponto onde estou, até que é mais ou menos", avalia.

Sexo, não!
"Tem que abrir e fechar porta de sala de aula, acender luz e ficar de olho em quem entra para tentar depredar a UEM", resume o vigilante Joanide Candido. No meio da greve, os três turnos de seguranças continuam firmes e fortes no campus: das 13h às 21h, das 21h às 5h e das 5h às 13h. "Todo mundo sabe que os professores estão certos. Esse governo é uma brincadeira, né?" Além de roubos e de ficarem ligeiros a qualquer cheiro verde, os seguranças estão de olho nos casais metidos a fetichismos, naturalismos e exibicionismos. "Dentro de carro e nos cantos escuros, a gente fica esperto. É só dar uma folgadinha, que o pessoal já quer fazer sexo ao ar livre."

Estou rodando esse campus há cinquenta minutos. Até agora, nada de índios kaingangs (o som dos tambores desapareceu misteriosamente) nem de musas e ninfetas do Olimpo, do Valhala, de sei lá onde. Fácil, o trampo do Gaioto. Fica enchendo a cara nos bares, inventando as tantas histórias, e depois, confortavelmente instalado em sua sala luxuosa, envia as oito páginas datilografadas. Azar o meu, digitar letra por letra daquele bêbado excêntrico para o computador.

Já estou quase debandando da UEM quando vejo, de longe, uma cena paradisíaca. Sentadinha em frente à Biblioteca Central, a estudante de Medicina Maria Fernanda, de 23 aninhos, veio coletar o dinheiro da inscrição da Jornada de Pediatria, programada para o final do mês. Combinou, via Facebook, que os interessados levassem a grana até lá. "A greve atrapalhou um pouco as inscrições, mas todos estamos a favor das paralisações. Os professores têm que reivindicar mesmo." Ela vai ficar na UEM até de noitinha. Digo à Maria que fique esperta, tome cuidado com o dinheiro. "Tudo muito deserto", aconselho. Ruivinha, ela abre um sorrisinho, exibindo belas covinhas. Não é o mesmo olhar da ruiva do Friso de Beethoven, do Klimt? Deus é mais, deus é mais! Bem casado, não posso me dar às estripulias eróticas-textuais em que o Gaioto mete suas personagens dominicais. Abandono a ruiva na UEM – o amor é o grito suicida na goela do gago.
Noite tensa
Não marco bobeira. Lá pelas oito e pouco, a UEM fica meio sinistra. Tudo quieto demais. Escuro demais - onde foi parar a nossa ruivinha do Klimt? Tem, sim, uns jovens jogando basquete e a galera natureba suando a camisa na malhação. Num último canto iluminado, um garoto, com skate, para em frente a um cachorro. Faz carinho no bicho e propõe a brincadeira: "E aí, dog, quer dar um passeio?" Mas a ternura animalesca perde o brilho no breu dos blocos e das árvores. Magrelo e franzino, eu que não me meto nesses cantos, não. Essa é a missão do Gaioto, gorducho e encrenqueiro, para a próxima semana, numa quarta à noite, a partir das 21h – Elton e seus colegas do condomínio já estão a par.


Publicado no Diário (18/5/2015)

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Porres infinitos, guerrilheiros, Beethoven e outros drinques

Não é só disposição. Tem que ter espírito aventureiro, determinação e, principalmente, muita sede para resistir às 24 horas em Maringá. Na terra das 457 duplas sertanejas e dos 17 mil índios kaingangs com balaios coloridos, tem sempre alguma coisa rolando. A minha Maringá, nos finais de semana, é intensa. Acordo cedo, às oito e pouco, nos sábados. Hora de pôr a leitura em dia, atacar Proust, Wilson Martins, Joyce, Roberto Schwarz, devorando quem estiver pela frente. No climão do aniversário da cidade, meto um bolachão na vitrola - o som puríssimo! Frank Sinatra começa a entoar "My Kind of Town", declaração de amor à sua cidade favorita, Chicago. Maringá é minha Chicago, reflito, enquanto vou saindo de casa, assobiando a canção.

Depois da leitura, hora de flanar pelas ruas maringaenses. Longe da Champs-Élysées, o jeito é perambular pela Avenida Brasil. Loja de calçados. Banca de jornal. Tênis em promoção. Guarda-roupa em até dez vezes sem juros. Óculos, milho verde, calcinha, goiaba. No Centro, a parada obrigatória: Sebo Cultura. Pego um banquinho, sento próximo aos LPs. Xuxa. Agnaldo Timóteo. Roberto Nunes. Discos de R$ 5 a R$ 10. Não quero nada disso. Continuo garimpado. Chitãozinho & Xororó. Moacyr Franco. Odair José. E não é que encontro o grande Karajan levantando do monturo, regendo a "Heróica", do Beethoven, por apenas R$ 2? Disco e capa novinhos. Separo. Quinze minutos depois, esbarro em Bernstein, também novinho em folha, assumindo a batuta das Sinfonias 5 e 8, do Beethoven. Desembolsando só R$ 4, deixo o sebo com duas gravações primorosas debaixo do braço. Como não amar Maringá?

Noites infernais
Quase onze da manhã. Depois de garimpar LPs em bons sebos, bate a vontade do café. Numa das mesas do Café da Santa Casa, peço meu espresso (R$ 2,75). O melhor da cidade. Te mantém acordado por sete dias e sete noites. Gosto de ficar ali, ouvindo histórias alheias. O café abre cedo, às 7h30. "O maior desafio é acordar nesse frio", comenta o dono, Itamar de Mendonça, 37, com uma boa risada.

No café, encontro um amigo. Ele está se formando em Medicina, tem os olhos cansados e parece abatido. Desde cedo, quando estudávamos juntos no colégio, ele gostava de assistir a vídeos estranhos. De um macaquinho que tomava porrada na cabeça, com dois ou três martelinhos, até que conseguiam abrir a cabeça dele, explorando o sangue e as entranhas e a meleca que jorrava de lá. Nunca tive estômago para essas coisas. E mesmo esse meu amigo não consegue lidar com a vida e a morte das noites maringaenses. "Eu e o médico plantonista chegamos a atender quase 20 pacientes por noite. Só desgraça. Tem mulher com um câncer incurável, menina com um coágulo profundo no cérebro, caminhoneiro que recaiu nas drogas e até um homem de 50 anos que jogou gasolina no próprio corpo e depois ateou fogo, na frente de um bar. Não estou legal, não", desabafa.

Tento levantar o ânimo do meu amigo. Digo para enchermos a cara. Cansadão, ele recusa. Depois da noite em claro, ele só quer dormir. "O sono é o prenúncio da morte", eu digo a ele, citando Shakespeare. Meu amigo dá uma risada sem graça. Pagamos os espressos. Hora de tocar para o almoço.

Cachaça com Fidel
Há mil e um restaurantes, dos mexicanos aos baianos, passando pelos lusitanos aos italianos, tudo em Maringá: opções gastronômicas não faltam. Mas prefiro me regalar em casa. Forro bem o estômago. Sem comida, você não sobrevive à noite maringaense. Coloco Beethoven na vitrola, leio mais alguma coisa. Lá pelas cinco, é hora de começar a se ajeitar. Tomar banho, encarar o primeiro bar da longa odisseia alcoólica

Começo pontualmente às 17h30. Escolho um lugar aleatório. Onde nunca me aventurei. Sozinho. Um botequinho perto do Parque de Exposições - você vampiriza as melhores histórias nos lugares que não conhece. E lá escuto as aventuras de um velhinho simpático, com sotaque gaúcho. Ao dono do bar, ele fala algo sobre Che Guevara e Fidel Castro. Com o boteco vazio, vai descrevendo a sede do Comitê Central do Partido Comunista, em Havana: lotada de figurões. Peço uma cachacinha e chego perto do balcão. A Revolução Cubana havia sido feita há mais de uma década, vou ouvindo, e Fidel Castro, sentado ao centro da grande mesa, propôs uma discussão sobre os rumos de Cuba. Quando Fidel abriu o microfone aos demais camaradas, ele, o nosso velhinho simpático, membro de confiança do Partido cubano, foi o primeiro a se manifestar. E, na presença de Fidel, criticou duramente a política externa adotada pelo partido.

"Eu era contra a relação de Cuba com a Rússia. Disse para todos, na Plenária, que Cuba deveria romper com a Rússia e deixar de ser um país mercenário da União Soviética", lembra o velhinho, com uns oitenta anos. Revoltados, os camaradas exigiram que ele se retirasse imediatamente da Plenária. Em meio ao bate-boca protagonizado pelos políticos presentes, Fidel Castro, em silêncio, saiu de seu lugar e foi ao encontro do homem que acabara de lhe criticar diante de todos os comunistas. "Ele me pegou pelo braço e disse exatamente assim, para todo mundo ouvir: 'Este, sim, é um verdadeiro comunista. Um homem que defende suas opiniões na frente de quem quer que seja. Vejam: ele não está criticando a revolução, está criticando as formas. É preciso respeitar as opiniões divergentes'", recorda, um bocado emocionado.

Cheio de histórias, o comunista diz ter sido preso em Porto Alegre, em 1964. Permaneceu encarcerado por três anos, acusado de trabalhos clandestinos. Ele estava queimado por participar de ações com o MST e de ser ligado ao partido da Ação Popular. "Eles me enchiam de porrada. Depois, me perguntavam alguma coisa e eu gritava: 'Viva a Revolução cubana!' E lá vinha mais porrada", lembra. O nariz torto é lembrança da pancadaria na cadeia; a cicatriz na cabeça, também. "Eles me algemavam, cruzavam minhas mãos para trás e batiam nos meus testículos com um pedaço de madeira", relata.

Derrubando aviões
Exilado em Cuba, garante ter sido aluno de Che Guevara. "O Che me ensinou tudo sobre a guerra. Se tivéssemos que enfrentar um grupo de 10 mil homens, com um exército pequeno, o que faríamos? Uma das estratégias era jogar cobras, à noite, onde o exército inimigo dormia: no dia seguinte, não estariam nas melhores condições. Quando matávamos um soldado, furávamos a barriga dele com um espeto e deixávamos o corpo à mostra, para que os outros soldados, quando vissem aquilo, enfrentassem uma tensão psicológica", revela.

E já estamos na quarta ou quinta cachaça, no bar vazio, quando ele começa a lembrar dos dias sangrentos da Nicarágua. Em 1979, pondo em prática os ensinamentos de Che, ele ajudou a derrubar o ditador Anastasio Somoza, apoiado, à época, pelo governo estadunidense. "Nossa participação foi muito rápida. Mas derrubei muitos aviões norte-americanos, com metralhadora. Matei vários soldados que tentavam escapar, saltando de paraquedas: tinha que fuzilar antes deles chegarem ao chão", lembra. "Na guerra, não há mocinhos. Todos são bandidos. As únicas diferenças são os ideais."

Pelinhos fosforescentes
Brindamos à Fidel, Che, brindamos à revolução, e vou saindo do bar fascinado com o nosso revolucionário. A noite só está começando. A caminho do Afonso's, na Zona 7, faço uma rápida parada no Stop Bar, da Vila Operária. Às sete da noite, um sujeito de uns setenta anos, com a calça arriada e suja de fezes, sentado no meio fio, tenta balbuciar, em vão, alguma coisa. Olhos melancólicos, a baba escorrendo no canto da boca, velha camisa desabotoada. Quem observa a cena é uma negra muito gorda, de shortinho laranja apertadinho, blusinha decotadinha e cabelinho brilhante. De braços cruzados, na frente do Stop Bar, ela ameaça o sujeito.

"Se você não sair daqui, vou chamar a polícia."
O sujeito volta a resmungar. Vou entrando. Mesas de plástico. Cadeiras de plástico. Jukebox com músicas de Altemar Dutra e Amado Batista. Cada uma por R$ 0,50. Ali, o prazer não tem hora para terminar. "A gente fica até o último cliente", garante a proprietária, de 70 anos. Há mais de três décadas, o mitológico inferninho mantém sua proposta: cervejas de 600 ml (a Brahma custa R$ 8), porção de bisteca (R$ 10) e, para os mais famintos, modeletes oferecendo-se a R$ 45 e R$ 70, dependendo do seu poder de negociação – o quartinho com colchão e pia "é por conta da casa". Ali, sou querido por todas. Uma morena cinquentona, de sainha rosa e decotinho, exibe o sorrisinho banguelão: no canto esquerdo do lábio, a verruga escura com mil pelinhos fosforescentes. Quantos cidadãos beneméritos não se perderam no caminho de casa, numa pausinha casual ali no Stop Bar?

Tomo uma cachacinha. Basta de aventuras. Sete e meia, já estou no Afonso's, na Zona 7. Casa cheia. Famoso pelas cervejas mais baratas da cidade. Lá, encontro Luigi, Baiano, Jackie Chan. Vamos bebendo e falando. Balzac. Jazz. Proust. Hemingway. O último do Dylan, cantando Sinatra. Entre um e outro espetinho, vão chegando Daniel, Nelson, Zal, alguém traz mais cerveja. O tempo passa rápido quando a gente se diverte. E já são meia-noite, o Afonso's fecha daqui a pouco. Hora de tocar para outro bar, o Divina Dose.

Santo pecado
À meia-noite e pouco, o Divina Dose está lotado. Casais apaixonados. Estudantes. Empresários. Musas. Tem de tudo. Seu Valter e Dona Ione, os donos divinos, já vão arrumando uma grande mesa. E mais cerveja. E mais cachaça. E vai chegando mais gente. Gordão, Celso, Lila,Gazolli, Diny, Taisa, e alguém traga mais um copo e mais cadeiras. E na mesa do bar vamos falando sobre Harold Hart Crane. Ele também era chegado em porres homéricos, levava uma rotina rimbaudiana e fumava adoidado. Numa de suas noitadas, bêbado, e talvez um tanto louco e amargurado, Crane se jogou de um navio, em alto-mar, sem mais explicações. Para os críticos, a visão do caos que rondava o espírito do autor, foi o que o consumou, tão cedo, aos 33 anos. Se eu tivesse a intensidade do lirismo do Crane, eu também teria me matado aos 33 anos, talvez até mais cedo. E, ligeiramente alcoolizados, vamos todos erguendo os copos e brindando ao grande Crane.

Mozart ou Bach?
Às três horas da manhã, a sede ainda é grande. Hora do Bar do Jô. O famigerado bar que nunca fecha. É meio longe, lá para os lados do Detran, mas a cerveja é sempre gelada e o rock rola solto. Vamos entrando. Casais, grandes grupos, várias ninfas. Ruivas, loiras, morenas. E lá vem o Jô, recepcionando a galera. Conta que veio de Curitiba. Tratar de um câncer, ou algo assim. Acho que já estou meio bêbado. Alguém traz mais uma cerveja. E, aqui, Jô resolveu ficar. Também uma Água de Valeta. O que ele queria era um bar de rock. E conseguiu. "Eu adoro essa cidade" - quem diz isso, o Jô, alguém da mesa, eu mesmo? Uma banda manda ver no Creedence. "Traz mais uma cerveja?" Rolling Stones. Papos da noite veloz. Daniel insiste que Bach é melhor que Mozart. "Almodóvar é um lixo." Gordão reclama do sertanejo "universitário". " Mozart tem 'A Flauta Mágica'". "Almodóvar é um gênio." "Bach tem os 'Concertos de Brandenburgo'". Bom mesmo é Bohuslav Matinu, eu vou dizendo, que compôs os "Três Cavaleiros" com 12 anos de idade. "Mais uma cerveja, por favor." Uivamos para a lua, todos completamente embriagados às sete horas da manhã. No Bar do Jô, tudo funcionando regularmente.

Do grupo, todos resistem à maratona alcoólica. Tocamos para a feira. Pastel de palmito e sodinha gelada. Gente que saiu de festa de casamento, bar e o diabo. Aposentados que acabam de acordar, gente indo caminhar. Noite e dia se esbarram no tacho da fritura. Que aventura. Guerrilheiro cubano. Sujeito de calça arriada e cheia de fezes, no inferninho do Stop. Quantos papos e musas nos meus bares favoritos: Afonso's, Divina Dose, Bar do Jô. Essa, a minha Maringá: do Beethoven a R$ 2, dos mil e um bares e das tantas noites infinitas.

Publicado no Diário (10/5/15), em comemoração ao aniversário da cidade

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Chegadas, Jesus e índios. Partidas, medos e santos

Vestidinho dourado, saltinho alto, decotinho generoso: todos os homens cobiçavam navegar na imensidão daqueles olhinhos azuis - ou seriam verdinhos? Inteligente, capaz de se virar em qualquer assunto, Maura pedia um drinque ao cliente e pela mão o conduzia a um dos sofás vermelhinhos. Na trilha, bem alto, um bolero de Lucho Gatica, outro de Manolo Otero. Quantos ex-presidentes, jovens endinheirados e figurões da MPB não confessaram suas travessuras, entre fumaça de cigarros e perfume cítrico baratinho, à nossa musa dos lábios de mel? No sofá, há quem amaldiçoasse a ruindade da esposa. Outros lascavam a culpa na tal crise da meia idade. Todos, de peito aberto e língua tremelicante, amaldiçoando o inferno da vida a dois – o casamento é o sepulcro do amor. Coxas macias, pele branquíssima e um pescocinho de enlouquecer Modigliani, Maura oferecia graça infinita. Distribuía risada alegrinha, reinventava suas histórias entre as palmas febris dos corações. Na Avenida Augusta, em São Paulo, arrebatava batalhões de homens boquiabertos, imperando em boates mitológicas, como a Mandala e a Rosa da Noite. "Assim, a minha vida inteira", desabafa, baixando os olhos, sentadinha num dos bancos do Terminal Rodoviário de Maringá.

São nove horas da noite e a rodoviária está cheia de gente. "E vou te contar, viu?", diz ela, cochichando. "Se eu acho alguém para me pagar setenta, oitenta reais, faço programa agora mesmo", sinaliza. Só falta encontrar alguém. Aos 64 anos, aparentando ter pelo menos uns 84, Maura tem a pele enrugadona. Enquanto tira o cobertorzão amarelado de cima do corpo, exibindo o vestidão rosa, observo seus pés agigantados, crosta rochosa amontoando a poeira das mil caminhadas. As imensas unhas dos pés, macilentas e encarquilhadas, em nada lembram os pezinhos cobiçados na Pauliceia Desvairada. O azedão do suor, falta de chuveiro e chuvarada. Últimas lembranças da gloriosa beleza dos tempos d'antanho? Os olhos verdes e azuis perderam a intensidade, seu canto já não seduz o mais surdo dos Ulisses.

"É aqui que eu durmo, por enquanto: no banco da rodoviária. Como não me deixaram entrar no albergue, eu fico aqui." Mãe de sete filhos, todos eles com casa própria, a nossa heroína vive nas ruas há três anos, desde que seu namorado morreu e a família dele vendeu a residência onde o casal morou por dois anos. "Minha filha é dona de duas empresas aqui em Maringá. Tão rica que tem sete carros, sabia?", revela a doce senhora. Mesmo assim, com a filharada endinheirada, ela prefere viver sozinha, dormindo as noites por ali. "Todos os meus filhos me tratam muito mal", reclama. "E moço, por favor, coloque aí na sua TV que eu preciso de uma casa. Que alguém me dê qualquer uma, de preferência, no Parque Grevileas: é meu sonho morar lá de novo. Porque eu não tenho comida nem teto. Tá vendo? Tudo o que me resta é isso", diz, apontando para todo o seu patrimônio: a manta amarelada e dois carrinhos com sacolas plásticas e bolsas surradas.

Bate saudade
De figurões da alta sociedade às ex-musas retrôs da noitada paulistana, a rodoviária maringaense vai recebendo tipos de toda a fauna social. É um cenário tão caótico, com gente correndo e gritando e rindo e carregando tantos trecos que me lembra até um condomínio maringaense, com seus – ah, deixa pra lá. No meio da bagunça de uma sexta-feira à noite, a rodoviária é um porto de saudades. Casais apaixonadíssimos selam os últimos beijos – no ouvido, juras secretas de amor eterno e cama sempre caliente. Adolescentes se despedem dos pais. Crianças acenam da janela. Um velho embarca sozinho - pela última vez? - em sua solidão.

Quem espera encara o tédio com celulares ultramodernos. Vê TV sem som. Livro, que é bom, nem sinal – nem livro ruim surge por lá. "O problema é que são todos caros. Os livros deveriam ser mais baratos, para o povo ler mais", comenta o dono da única banca de revistas da rodoviária, que trabalha há duas décadas no mesmo ponto. Com um punhado de livros em mãos, ele é o maior leitor daquelas bandas. Devorador das próprias estantes, já encarou quase tudo que está à venda: da autoajuda de Augusto Cury aos romancetes fanfarrões de Paulo Coelho e John Green. De todos os autores, Cury é seu favorito. "Gostei tanto do livro que até fui assistir uma palestra dele no Marista. O Cury é um fenômeno, tá sempre no programa da Fátima", indica.

Das 7h às 10h, a banca de revista está de portas abertas. O lucro maior, ele conta, vem dos livros. Mas não é qualquer tipo de literatura. "Quem vende mesmo são os religiosos", diz, apontando para as estantes. Há livros espíritas ("O Morro das Ilusões"), católicos ("Benvindo Espírito-Santo") e adventistas ("Casamento Blindado: O Seu Casamento À Prova de Divórcio"), todos na faixa de R$ 25, exceto os textos espíritas da Zíbia Gasparetto. "Os dela são sempre mais caros porque, como ela tem a própria editora, o preço já vem fixado na capa do livro: R$ 35. É muito caro", reclama.

Na loja ao lado, nada de literatura religiosa. Em vez de livros, desodorantes enfileirados. Guarda-chuva de R$ 13,90. Cachimbos. Carrinhos de plástico. Isqueiros. E, onipresente nas estantes, Ele de novo: Deus, cercado por santinhos e outras figuras do bando celestial. Fitinhas do Senhor do Bonfim. Miniaturas de santos fosforescentes. Desenhos de um santo não identificado, ajoelhado de frente para Jesus – em cima, a inscrição bem grande: "Lembrança de Maringá". Em madeira, dezenas de miniaturas da Catedral. Penca de pôsteres da Catedral. Cartões postais da Catedral. É muita fé para uma só cidade.

Lorota de pescador
Do lado de fora da lojinha de Jesus e outros utensílios indispensáveis, um sujeito magrelo empunha duas varas de pescar – outro pescador de homens, de olho gordo nos fiéis? Sorridente, Anderson Muller, 25, nem parece ter duelado com a morte, há poucos dias. O carro que ele dirigia capotou feio, no meio da estrada, e ele ainda está um bocado machucado. "Sorte que não aconteceu nada demais. Tô todo ferrado. Meu rosto e meus braços tão todos machucados, ó, tá vendo?" Enquanto ele se recupera, aproveita o atestado médico para se dedicar à pesca e à natureza, onde se entrega a pensamentos mais profundos, repensando os rumos - e a velocidade – que sua vida tomou. Da rodoviária, ele seguirá para a casa da irmã. Depois é só pegar as varas e tocar para a ponte do rio Ivaí, em Floresta. "Em uma hora você pega, pelo menos, dois peixes. Semana passada pesquei trinta e oito! Tinha Curimba, Dourado e Piapara", garante. Provando que não é lorota de pescador, exibe no celular as fotos dos peixões abatidos.

Em meio a pescadores sortudos, um cego surge na multidão. Ele acaba de desembarcar, leva uma mochila nas costas. Uma mulher oferece ajuda. O cego aceita, estende o braço. Devagar e em silêncio, segue riscando o chão com a bengala cinza, rumo à saída da rodoviária. Sem avisar, resolvo seguir o cego. Graves e irritantes, quantos motores de ônibus roncando ao mesmo tempo? "Garcia, São Paulo. Vinte e duas horas. Garcia, São Paulo." O som das caixas ecoa, a voz aveludada de um homem anuncia o próximo ônibus. Barulho de malas e rodinhas e de gente levantando do banco, alguns desafinam espreguiçadas. "Vamos, amor, tá na hora." Parece a voz daquele cantor. "Se chover, pegue um táxi e ligue para o seu tio." Aguda e estridente, uma mãe. "Tá, mãe, tá, mãe." Acertei a mãe: agora, respondendo, a adolescente. "Erebango goioxim ti jog. Ti jog!" Êpa, essa língua eu conheço até de olhos fechados: não são os indinhos kaingangs perambulando, certamente com seus balaios coloridos, de um lado para o outro da rodoviária? "Será que tem água lá dentro do ônibus?" Voz rançosa, de velha paulistana: eterna preocupação da falta de água. Conversas diminuem. De longe, impossível identificar qualquer conversa. Cochichos. Alguém ri. Barulho de carros. Motores. Motos. Portas batendo, uma, duas, chave na ignição. Alguma notícia sobre a economia, voz grave e soturna do apresentador de TV. "Táxi? O senhor precisa de um táxi?", indaga a mulher que acompanha o cego até a saída da rodoviária.

Como o cachorro não late nem dá sinal de vida, o cego não descobriu a Nina: uma cadelinha querida por todos, que recebe água, ração e carinho dos funcionários da rodoviária e dos moradores da região. Também não notou a casinha da Nina, confortável e limpinha, logo ali na entrada. Com ajuda do taxista, o cego entra no carro e guarda a bengala.

Rei do camarote
Na rodoviária, dá para esbarrar em todo o tipo de gente. No aeroporto, nem tanto: climão de balada. Moçoilas engalanadas, jovens e adultos metidos em ternos elegantes, senhorinhas com brincões douradões vão encontrando a parentada, distribuindo beijos, afagos, novidades. A catarse beijoqueira é contagiante, e também sinto vontade de arremessar bitocas a queridos desconhecidos. Beijos para Madalena Stocco, leitora danada de boa. Beijos à jovem violinista loirinha da Osesp, que executava Manuel de Falla com a mesma concentração da "Rendeira", do Vermeer, e cujo nome, infelizmente, nunca descobri. Beijos às benditas senhoras que preparam o café do jornal, vou arremessando, mentalmente, enquanto perambulo pelo aeroporto. Nada de cegos. Nada de gritaria nem de correria. Nada de índios kaingangs.

Belchior entende
O melhor do aeroporto não são seus viajantes da alta sociedade, com relatos de um certo oriente e milhares de milhas acumuladas. Vou andando. No segundo andar conheço Hilda Viana, 38. Ela pôs seus pés pela primeira vez num aeroporto há exatamente nove meses, quando aceitou a proposta de emprego num café do aeroporto maringaense. Antes disso, era ela na terra e os aviões no céu. Acompanhando dezenas de pousos e decolagens, diariamente, enquanto serve cafezinhos e salgados, ela agora morre de curiosidades para ver o mundão lá de cima. "Queria viajar para qualquer lugar, sabe? Só pra ver se dá mesmo medo", comenta. Trabalhando ao lado de Hilda, no mesmo café, a maringaense Vilma Lúcia, 42, também nunca viajou de avião. Se precisa correr trecho, ela pega algum ônibus e, na poltrona, mete o fone no ouvido para curtir o rock do Talking Heads, Queen e Guns N' Roses. Se pudesse debandar nesse exato momento, ela, com a imaginação lá nas alturas, tocaria direto para Fortaleza. "Aproveito para andar de avião e conhecer o mar: tudo pela primeira vez", imagina. Menos disposta a dar asas à imaginação, a balconista maringaense Jessica Fernandes, 18, diz que jamais toparia a aventura de um voo. "Nem se eu ganhar uma passagem para a França! Sei que Deus faz milagres e tudo, no caso de um desastre, mas não é bom facilitar."

Bomba a bordo
Os riscos em voar existem sempre. Trabalhando em aeroportos desde os 18 anos de idade, Francisco de Souza lida diariamente com esses riscos. Experiente, passou por quase todos os grandes do País, de Belém a Manaus, São Paulo e Curitiba, até chegar em Maringá. Aos 62 anos, ele divide o espaço com mais três controladores de voos, na torre do aeroporto. "É um clima sempre tenso: estamos preparados para qualquer coisa", comenta. Trancafiado na torre, a maior tensão que ele viveu foi em Campo Grande (MS). "Fomos informados que havia uma bomba a bordo de um avião, em 1984. A companhia aérea que nos avisou, parece que alguém tinha denunciado à administração do aeroporto. Foi o momento mais tenso da minha carreira como controlador. Conseguimos, no final, fazer com que a aeronave pousasse em segurança. Os passageiros desceram, seguidos pelos funcionários. Não passava de alarme falso", lembra.

Entre chegadas e partidas, dois mundões discrepantes. Como escolher entre a hibridação social de um e as aventuras do outro? Saio de cena com índios, violinistas sensuais, Deus e muito medo. Já é tarde. Abandonada num banco da rodoviária, uma doce senhora sonha com sua mansão no Parque Grevilea – o sorriso quase desaparece debaixo do cobertor amarelo.

Publicado no Diário (3/5/15)