terça-feira, 13 de outubro de 2015

Berros, bombas, Batman, canto, terroristas, Polyanna & Maysa

A trintona de olhos claros invade a recepção do colégio e deixa com a secretária um boneco de super-herói. Explica que é para o filho dela, do tal ano, dá um sorriso sem graça e, de olho no celular, sai rapidinho de cena. Tudo muito ligeiro. Outros dois pais imitam o itinerário da mulher. Um deixa helicóptero de guerra. Outro estende boneca de braços abertos. "Você veio no dia certo", comenta uma das orientadoras do colégio, notando que observo o entra e sai de pais apressados. "Estamos na Semana da Criança e hoje é o Dia do Brinquedo: cada uma traz alguma coisa e todo mundo se diverte", diz, escancarando a porta que leva à criançada.

De volta aos corredores da infância perdida - aqui você correu, caiu, berrou e amou 78 garotas diferentes -, vou me embrenhando no Colégio Santo Inácio. A temida sala da orientação, vazia às dez da manhã, ainda te dá um frio na espinha – entrar ali é amargar sete dias sem presentes novos. Gritaria, cavalos galopantes, gargalhadas estridentes, explosões de bombas nucleares, tiros de submetralhadoras norte-americanas e berros de tortura ecoam de uma das salas. "Que tal essa? Aqui, os alunos têm só quatro anos. Qualquer coisa, me chama. Boa sorte", sinaliza a coordenadora, me jogando no meio de três dezenas de pequenos terroristas do Estado Islâmico.

Meninos e meninas abandonam os enredos rocambolescos. E, surpresos, te encaram no campo de batalha: curiosos rostos interrogativos. De bermuda e camisa florida, você é menos exótico que um alien de sete cabeças. Que idioma falará? Como se comunicar? Com mãos ou basta o verbo? A que distância se aproximar? Crianças te sondam e você traça estratégias. Melhor, talvez, ficar do mesmo tamanho. Sento na minúscula cadeira. Agora, sim, de igual para igual. Uma menina espevitada rompe a barreira da timidez. E, sem aviso prévio, enfia dois dedinhos no meio dos teus tortos cabelos – que azar, nessa manhã, esquecer o chapéu. Inesperado, você sorri. E começa o ataque.

Trinta (ou seriam sessenta?) miniaturas de gente te cercam no canto da Faixa de Gaza, entre mesinhas e o quadro branquíssimo, empunhando bonecos do Capitão América, do Homem-Aranha, das Tartarugas Ninjas, boneca de olhão esbugalhado, aviões, tanques e soldados. Frases altissonantes. Tudo bem berrado.

"Minha barba também já tá grande, ó."

Olhando para você, um menino passa a mão no próprio queixo. Despenteado de suor. Bochechas vermelhas.

"Quando a gente crescer também vai ter barba?"

Cabelos espetados de gel, um garoto de quinze centímetros força a miopia.

"Sabia que meu pai faz a barba, toda manhã, bem cedinho?"

Só duas semanas sem se barbear. Você nem está, assim, tão barbudão.

"Minha mãe não gosta do meu pai barbudo."

Ou está?

"Meu pai faz o meu topete todo dia."

Dar atenção ao garoto loiro que te cutuca a barriga com o caminhão de bombeiros.

"Sabia que eu quero ser médico?"

A garota tropeça e bate a cabeça na mesa, escancarando de berro as cordas vocais – fôlego de promissora soprano.

"Olha meu Batman, ó!"

Cuidado com o pé do.

"Gosto muito de cantar (trecho incompreensível). Posso?"

Protetores auriculares: não esquecer na próxima vez.

"Eu-tro-pe-cei-sem-que-rer, pro-fes-so-ra."

A professora abraça a menina e silencia o choro. Quem é mesmo o cantor? Loiro, moreno, meio japonês?

"Ai, não, ele vai cantar de novo?"

Duas mãozinhas puxando a barra da tua camisa. Confusão danada.

"Anota meu nome na TV, anota!"

Garotos engolindo as próprias mãos. Crianças correndo de um lado para o outro.

"Eu gosto de brincar com a Risadinha, é minha boneca: ela dá risada e dorme."

"Se eu parar de fazer bagunça, meu pai vai me dar uma guitarra."

"O meu cachorro voa de abas abertas!"

"Queria que (trecho incompreensível) até (trecho incompreensível)."

Jesus, quantas vozes ao mesmo tempo?

"Também vou ficar barbudo. Que nem você!"

Meninos curiosos se avaliam – qual deles, a maior barba?

Hora do show

A professora quarentona me apresenta o jovem talento. Magrelinho de cabelo lambido. Dedinhos entrelaçados de vergonha – ou parte essencial do aquecimento vocal?

"É um grande artista: voz que é uma belezura", adianta a professora. Dona da ordem, só ela estabelece a paz. E na sala, milagrosamente, você escuta um único segundo de silêncio. Seguro de si, o artista assume o centro dos olhares. Postura ereta, peito estufado, rosto ligeiramente beijando o céu: não é o grande José Carreras, dignamente diante da plateia no Palácio Garnier? O mesmo olhar determinado. A mesma serenidade. O cuidado de sustentar a nota precisa – jamais vacilante.

"Livre estou, livre estou", entoa o fiozinho de voz, amontoando suspiros das mocinhas.

"É a trilha do 'Frozen'", cochicha, orgulhosa e serelepe, a assessora de imprensa quarentona.

Tecnicamente impecável, a performance não agrada todo mundo.

"Ai, não! É a música do filme da princesa!", reclama um garotinho, tapando os ouvidos com as mãozinhas e torcendo olhos, nariz, boca e sobrancelhas – no som, o mesmo arrepio do limão azedinho.

"Livre estou, livre estou", insiste o fio de voz.

"Vamos respeitar o colega!", exige a professora, em tom ameaçador, silenciando críticas negativas.

"Adoro essa música", elogia, da plateia, a moçoila com tiara de florzinha vermelha.

Sorriso satisfeito de quem arrebata multidões. Curvado diante da ovação, o cantor recebe as palmas febris do coração.

"Viu só? Não disse?!", gaba-se a professora.

Polyanna & Maysa


Ainda vivo, sou resgatado do meio das crianças pela coordenadora. "Vamos para uma turma mais madura", ela anuncia, já me desovando na sala ao lado, composta por crianças de cinco anos. A cena é semelhante: os mesmos brinquedos, as mesmas bochechas vermelhas. Todo mundo correndo de um lado para o outro. Quer dizer, quase todo mundo. Um japonesinho, entediado de caos, vai colorindo um desenho de silêncios, sentadinho na mesa minúscula. Alheio às brincadeiras coletivas, ele não aparenta ter mais de 38 anos?

"Sonha ser pintor?", vou sondando, de olho nos rabiscos surrealistas.

"Claro que não!", responde, sem tirar os olhos do papel, talvez consciente dos pífios salários dos artistas contemporâneos.

"Quando crescer, vou trabalhar em escritório químico..."

"!"

"...já tenho dois tablets e dois PCs."

"!"

"Ô, professora! Olha ali, ele tá mexendo no meu Batman!", reclama o japonesinho, apontando com o lápis um menino sorridente e babão.

"É um desafio constante cuidar dessas crianças todas", desabafa a professora Polyanna Bavia Capdeboscq. Vinte e poucos anos, loirinha, olhos castanhos, sorrisinho de sexta-feira: com ela você não tomaria todas as lições prazerosas da vida? Mão posta à palmatória - bate!, bate!, bate! - você erra de propósito a tabuada e o bê-à-bá. Sabatinado em plena saleta, diante da cruz de mármore, você confunde briófitas com pteridófitas, troca Machadinho por Zé de Alencar, e, espada em riste!, declara guerra a Oliver Cromwell ou qualquer outro grande nome que desperte admiração da professorinha, oferecendo o corpo inteiro aos tapas e beliscões, ansioso pela punição mais dolorosa- o amor.

As professoras - aleluia, Senhor! - já não são aquelas velhas rancorosas, mas, sim, moçoilas melífluas e maviosas. Já pensou? A cada ano de estudo, um novo grande amor escrevendo e apagando palavras, desenhos, mensagens no quadro-negro? Ai, como é bom estudar, estudar, estudar, e reprovar de ano, reaprendendo tudinho.

No pátio do colégio, exércitos de crianças correm, pulam, rastejam, sobem no trepa-trepa e, velozes, giram no carrossel: treinando para a grande batalha da vida. Atenta a cada detalhe, outra professorinha feérica: Maysa Buzzo. Ombros altos, vinte e seis aninhos, longas argolas de brincos, loirinha de unhas pintadas de vermelho - ai, essas moças pintadas de vermelho. Como resistir? "Depois do trabalho, preciso de pelo menos meia no hora no sofá, pra me recuperar. É uma loucura, né?", comenta, em meio à gritaria.

Com professoras assim, sua vida seria radicalmente diferente. Você não odiaria Deus, não teria tanto ranço de duplas sertânicas, não compraria brigas com dramaturgos medíocres, não seria adepto fervoroso do sedentarismo, e, talvez, em alguns momentos - além da prosa do Proust, das sonatas do surdo Beethoven, de dois ou três filmes do Bergman -, você, enfim, apreciasse viver.

"Professora, amarra meu tênis, por favor?", pede o garoto, trepando na nossa conversa.

Você também não pediria?

Conselhos aos velhos

Esbarro em mim mesmo no pátio do colégio – algumas partes de mim, na verdade, nunca saíram daqui. Um garoto pede que coloque seu nome no papel. Pergunto se já tem um grande amor. Ele se espanta.

"Que nada! Ainda sou criança!"

Mas é só puxar conversa que você escuta detalhes dos tantos desejos.

"Tem mesmo uma menina. Também de cinco anos, da minha sala. Até já fui na casa dela; ela, na minha. Acho que gosto dela. Mas, por favor, não coloca isso aí, hein!"

Pode deixar, pode deixar, vou dizendo aos primeiros passos das agruras da paixão. E, enquanto distribuo acenos aos meus novos amigos, vou elencando, mentalmente, dez conselhos aos velhos: 1) Cuidado ao recolher as roupas sujas: crianças guardam o tempo no bolso da camisa. 2) Nunca proíba a criança de cantar pela casa: é no canto que a criança desenha a própria existência. 3) Repare na melodia: cada canto de criança é composto por notas quentes e azuis. 4) Desbravadores experientes nunca vão explorar tantos mundos quanto canelas de criança – a viagem de uma criança só termina quando o sono pede pra descer. 5) A única criança preguiçosa é aquela que você não mais verá. 6) Distribua canetas coloridas e libere as paredes da casa (ou parte das paredes do apartamento): rabiscos de criança degolam o tédio em família. 7) Com cuidado, espie seus diálogos: crianças contam e recontam verdades de mentiras. 8) Nunca proíba quintal nem sol nem terra nem chuva: criança compreende o mundo no relevo da mão. 9) Choro de criança tem 14 mil caracteres (incluindo espaços). 10) Velho, você foi a mesma criança de amanhã – não é rejuvenescedor?

Publicado no Diário (11/10/15)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Dentadura, clássicos sertânicos, enfarto, sedução e cárcere privado

Duas velhas ensopadas de chuva dão graças a Deus quando alcançam a área coberta do Parque de Exposições. A água encharca o vão dos dedos dos pés, inunda decote, orelha, sovaco, e despenteia o que resta da cabeleira: fios esparsos tingidos de vaidade. Velhas molhadinhas vão se enturmando. É dia de festa. No palco, a bandinha de integrantes sexagenários inicia a execução de "Nessa Longa Estrada da Vida", clássico sertânico dos tempos d'antanho. A sanfona da memória vem a calhar. Incontáveis senhoras serelepes saltam das capengas cadeiras de plástico rumo à pista, engalfinhando-se ao lado de outras dezenas de viúvas que cantam, caçam e dançam. Duas horas da tarde de uma terça-feira. Aqui, ninguém se importa com o horário – o tempo passa sempre lento, indiferente aos anseios do Baile do Idoso.

Clima de azaração. Troca de olhares. Coxas roçando canelas e sorrisos na melhor idade. Casais conversam alegrinhos, mãos danadas abanando coxas e pescoços. Línguas rugosas encharcam lábios rachados pelo tempo – a sedução. Atenta, a doce estudante de Educação Física da UEM não desgruda os olhos da pista, animada pelos dançarinos idosos. "Quem me dera essa empolgação toda", surpreende-se Erica Leme, 22. No meio da velha guarda, uma única garota encarna o sertanejão, descalça, formando par com a própria mãe. "Venho pra acompanhar mesmo. Dançar é uma das minhas paixões", comenta Virginia Pereira, 16. De vestidinho em branco e preto, segurando o saltinho alto com a mão direita, ela está visivelmente exausta: não é fácil acompanhar o ritmo dos tantos anos.

Prisão de amores

A música termina sem as palmas febris do coração. Os artistas, aqui, são os próprios dançarinos. Chego junto. Maquiagem desbotada no toró. Vestidão florido, decotão generoso, cabelo preto lambido na testa. Setenta e sete anos aparentando uns 98.

"Meu tempo de casada foi um inferno. Única bênção da minha vida, quando ele foi embora. Há quinze anos."

Olhinhos faiscantes metralhando cada dançarino.

"Meu marido me atazanava. Me chamava de tudo quanto era nome. Aquilo era o diabo em pessoa. Me trancava em casa. Nunca me levou pro baile. Dançar assim? Nunquinha."

Em quarenta e seis anos de prisão, carcereiro e detenta dividindo a mesma cama de casal. Todas as noites.

"E quantos filhos?", vou perguntando.

"Tive doze filhos!"

"?!"

"Daí você me pergunta, né? Imagina, então, se o casamento fosse bom, hein?!"

Mais risadas serelepes.

"Naquele tempo, meu filho, se a mulher não queria, tinha que querer..."

"!"

"... sem berro, sem reclamar, na marra."

Uma velha afobada, de olho no verbo alheio, invade a conversa.

"A gente era estuprada! Es-tu-pra-da!", denuncia, aos berros, a voz esganiçada.

"Isso mesmo. Era estupro toda noite. Ai de você, se não quisesse..."

Doce gargalhada das duas velhas, alívio das mil e uma noites de horror.

"E sempre bêbado, né, Maria?"

"Ca-cha-cei-ro! A mesma desgraça toda santa noite."

Risos centenários concluem no bailão: o casamento é o sepulcro do amor.

Às senhoras, pergunto sobre a paixão. Dessa louca mania de casar cedo, morar junto para todo o sempre, amém. Quase todos os seus amigos, na casa dos vinte e poucos anos, não estão se metendo em frutíferas famílias? Em uníssono, a rápida resposta da dupla:

"Deus me livre!"

Olhar de nojo, asco, contorcendo todos os músculos do rosto – você, criança, deliciado com o azedinho do limão.

Descompasso do gordo

Novos acordes sertânicos dão o tom do baile. Quem não dança, aguarda. Sapatinho brilhante, dedões pintados de vermelho, bafão de dezessete maços de cigarro. O olhinho meio torto? Deve ser felicidade. Sentadona de frente para a pista, ela acompanha corpos sacolejando – cada partido solteiro, novo sonho da velha.

"Solteiríssima?", indago.

"Vim solteira. E tô pescando", sinaliza, serelepe.

À mostra, as perninhas macilentas e cheias de varizes azulonas, que se cruzam e formam cidades com pontes, igrejas, pracinhas, penitenciárias e estádios de futebol, não são as iscas mais eficientes?

"Fiquei viúva e minha mãe, de 79 anos, também enviuvou. Viemos juntas. Olha ela lá, bailando."

Apontando a senhora de longe – epa!, não é a mãe mais nova que a própria filha?

"Só acho que podiam tocar música mais antiga."

"!"

"Por que não cantam 'Saudade do Matão'?"

"?!"

"As músicas de hoje são tudo ruim. Cê não quer dançar comigo?"

Doce risada, a da liberdade.

"Ah, não dança? Que pena. Sabe que não tenho tipo favorito?! Pode ser qualquer um. Desde que dance bem. Olha esse, ó, que tá passando."

Gorducho arrastando passos em sapatos marrons. Boca aberta, olhos confusos com tantos braços e movimentos, camisa azul por baixo da calça jeans surrada.

"Ô, dança comigo aê!"

A ordem de berros surpreende o sujeito. Intimado de supetão.

"Dança comigo, vem!"

Passivo e submisso, ele acata. Ombro com ombro. Mãozinha vacilante na cintura – dele e dela. Discrepância evidente dos dançarinos. Passos frenéticos de garça magrela, lentidão de elefante obeso. Dois pra lá, dois pra cá. Canhestros sem clima. Ela sussurra no ouvido dele uma série de palavras - impublicáveis? O grupo entoa "Ainda Ontem Chorei de Saudade", recebida pelas experientes dançarinas com gritinhos de delírio – beatlemania do sertão. Trilha ideal. Mas há certo descompasso. Não vai dar certo. Não por muito tempo. Menos de dois minutos de dança, ela volta à cadeira um bocado frustrada. E o sujeito, como se nada, segue caminho.

"Acredita que pisou no meu pé? Meu Deus, como dança mal", critica, compenetrada no criterioso processo seletivo.

Morte e vida londrina

Para não morrer de fome, doze velhos aguardam enfileirados no quiosque – ali, não existe atendimento preferencial. O dinheirinho bem guardado na mão firme é para água (R$ 2), refrigerante (R$ 3) ou porção de frango (R$ 10). Cardápio minimalista. Cadê a cerveja geladinha? Caipirinha de limão? Onde a sobremesa? Doce de goiaba com creme de leite? "Aqui não tem nada disso. A maioria da velharada é diabética ou hipertensa. Cervejinha ou vinho, meu filho, só de vez em nunca", explica a senhorinha de 68 anos. Mas cerveja e acepipes adocicados são o que menos fazem falta.

"Ruim é essa falta de homem, né?" Sobre a ausência, ela tem razão. Onde os grandes varões? Herói de Tirso de Molina? Insuperável dançarino de tangos e boleros? Eterno rei das trovas, exibindo canetinha no bolso da camisa – prestes a rabiscar versinhos de amor à musa da tarde? "Tão tudo enfiado no boteco. Enchendo a cara, jogando bocha, berrando no baralho. Homem quando fica velho se aposenta de tudo. Até disso que cê tá pensando! Daí pro enfarto é um passo só. E a gente fica aqui, que nem besta, caçando homem pra bailar", reclama. Vaidosa, ajeita o cabelinho a todo segundo. Dedões enrugados volta e meia tocam o brincão balangando na orelha – quantos já perdidos nessa vida inteira? Rapidinho, pouco tempo de conversa te escancara a morte: o marido, falecido há muitos anos. Ela tinha acabado de chegar em Londres, onde a filha entrava em processo de parto. Quatro dias depois do desembarque, a mensagem. "Enfarto fulminante. Caiu durinho." A morte não atrapalhou a vida. "Nem voltei pro enterro no Brasil. Fazer o quê?! Morreu, morreu, ué", comenta a velhinha, já abraçando as amigas que acabam de chegar ao baile. "De Londres, acompanhei o nascimento do meu neto. Desde então, tô na ativa. Danço um pouco de sertanejo, só me falta valsa e bolero."

Dentes vacilantes

"Mas o tempo cercou minha estrada e o cansaço me dominou. Minhas vistas se escureceram e o final da corrida chegou", esgoela-se o cantor sexagenário, amontoando suspiros no formoso topete de laquê. Nos olhares lançados pelas senhoras, promessas secretas de noites em claro e cama quente. Única entediada, uma velha tolera o show e, esvaindo-se em suor, encharca o guardanapo de quarenta graus. Sentadinha à mesa, dedinhos batucam versos sertânicos. Desânimo da música ruim, do calor castigando ou da garrafa de água?

"Bom mesmo seria uma cervejinha, né?", pergunto.

Ela escancara dentes branquíssimos – quinze mãos lhe fazendo cócegas, o mesmo êxtase dos dezessete aninhos.

"Ai, sim! Cervejinha bem geladinha", responde, remexendo de um lado para o outro a dentadura vacilante.

"Em busca do grande amor?", vou sondando.

Inquietos, pré-molares e incisivos requebram na boquinha carcomida.

"Deus me livre..."

Cai ou não cai?

"... nunca mais..."

Cai ou não cai?

"... disso tô vacinada."

Correndinha, a mão protege a bocona banguela, inteirinha nua - não para você, mas para pouquíssimos privilegiados. Último ato erótico, arremessado ao lado da cama, nessa longa estrada da vida.

Publicado no Diário (4/10/15)