terça-feira, 21 de junho de 2016

Senhoras serelepes, rosas, risos e lágrimas diante do Rei

As ruas da Urca surgem praticamente vazias de moradores – fogem para destinos silenciosos, os cariocas, atordoados com fevereiros de tamborins, surdos e repiques? Diferentemente da Zona Sul do Rio, aqui não há engarrafamentos nem caos. Há silêncios de uma província paranaense. Aos quarenta e dois graus das seis da tarde, o Pão de Açúcar é uma moçoila melancólica tomando banho de sol. Três únicos turistas se aventuram nas calçadas, sempre de olho na numeração dos prédios, alheios aos mosaicos de barcos, nuvens e pássaros jazzistas improvisando maravilhas sobre as águas. Confiro o rabisco: Avenida Portugal, 818, edifício Golden Bay. Eu cheguei em frente ao portão. Encaro um ar severo e aperto o interfone.

"Tenho uma carta para o Roberto Carlos", aviso, mostrando o envelope.

"Ô, rapaz, a gêntí não pódi récebê. Deixi lá no estúdiu dêli, fica a umas seis quádras pra lá, ó", responde o baiano, balançando a cabeça para a esquerda.

Com essa, eu não contava. Há um porteiro no meio do caminho. Se eu fosse conhecido de algum baiano importante e querido, tudo não seria diferente? Improviso nova estratégia:

"Vim em nome do João Ubaldo Ribeiro."

"..."

"Ele mandou isso para o Rei", respondo.

"Ú grândí João Ubaldo?"

"Isso, o grande escritor. Pediu que eu entregasse hoje mesmo."

Um sinal estridente destrava meu caminho. Fui abrindo a porta devagar, mas deixei a luz entrar primeiro. Eu cheguei.

"Pódi deixar comigo. As cártas de hôji já subiram. Amanhã cédinho essa tará na mão dêli", promete o porteiro.

Nunca conheci João Ubaldo, infelizmente. Nas minhas mal traçadas linhas, pedia que Roberto autografasse meu CD "Em Ritmo de Aventura" - o melhor álbum dele - e mais outros dois encartes. Dizia que, dali a dois dias, eu passaria para retirar os discos, devidamente autografados, na portaria. Voltei, em vão, e nunca mais recuperei meus três CD's. Fui furtado pelo Rei.

Desabafo

Quando descobri que o Rei faria um show em Maringá, corri para conseguir uma entrevista. A dezenove dias da apresentação, encaminhei cerca de quinze perguntas para o assessor do cantor (leia nesta página). Confesso que caprichei: incluí tudo o que eu e você gostaríamos de saber. O assessor confirmou o recebimento e adiantou que não poderia garantir que elas fossem respondidas a tempo. Seria preciso esperar. Enquanto as respostas não surgiam, passava tardes inteiras bolando planos para que o Rei autografasse meu LP "Em Ritmo de Aventura".

Algumas ideias – admito, um tanto amalucadas - envolviam perseguições em alta velocidade – para acompanhar o carro do Rei entre o aeroporto e o hotel, abordando-o nalgum sinaleiro do meio do trajeto -, outras ideias contavam com três cachorros, dois gatos e quinze periquitos – tenho vergonha de detalhar, aqui, como seria exatamente esse plano - e até cogitei ligar para Juarez Arantes, a fim de que o milionário excêntrico me escondesse a bordo de seu Del Rey preto, na garagem do Deville – mas havia uma grande possibilidade de o Rei ficar em outros hotéis, e achei melhor não arriscar. Confesso que cogitei tudo isso. Fazer o quê? Às vezes me desabafo, me desespero porque o Rei é mais que um problema, é uma loucura qualquer.

Como vai você

A quatro dias da apresentação, nada de respostas. Penso e repenso: é preciso dar um jeito, meu amigo. Ligo para o Rio. Mauricio, o assessor, me atende. Digo que é uma pena não ter rolado entrevista. Que tenho uma segunda e última solicitação. Explico toda a história dos meus CD's surrupiados, com detalhes tão pequenos de nós e coisas muito grande para esquecer. Gostaria de um minuto ao lado do Rei, vou dizendo, tempo suficiente para ele fazer uma dedicatória no meu LP. Sem perguntas. Só um encontro. Faria um ótimo texto sobre a admiração de um súdito por seu Rei. Gente fina, o assessor me chama de querido.

"Só tem um problema, Gaioto: o Roberto não dá autógrafos."

"?"

"Por causa do Toc (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), o Roberto leva até vinte minutos para fazer uma dedicatória, tentando copiar a mesma letra que tinha no início da carreira."

"E se for uma foto depois do show?"

"A questão das fotos é muito complicada. Não é sempre que ele recebe alguns poucos convidados. Quando faz isso, é sempre, sim, no final do show. Mas ele precisa estar devidamente maquiado e quem faz as fotos é o fotógrafo oficial dele. Ainda não sabemos se ele atenderá convidados em Maringá."

"Sem fotos nem autógrafos posso acompanhar a descida do voo, um pouco próximo, só para registrar os primeiros passos do Rei?"

"Impossível. Quando o avião particular dele pousar aí, um automóvel já estará no meio da pista à espera do Roberto. Ele sai direto do avião, sem ter contato com ninguém, e entra no carro. Dali, segue para o hotel. Entra sempre pelo estacionamento e, de lá, escoltado por seguranças, segue para o elevador que leva à suíte. Nesses deslocamentos, ninguém tem contato com o Roberto: é pra evitar tumulto."

Encaro os fatos: longe dos palcos, impossível abordar o Rei.

Sentado à beira do caminho

Pelo lugar mais acessível, você desembolsa R$ 90 (meia-entrada): arquibancada a milhas e milhas distante do palco. Desisto do plano de abordar o Rei – as dezenas de sujeitos bombadões e uniformizados certamente me impediriam se eu, num gesto irresponsável, marginalesco e imoral, tentasse burlar o forte esquema de segurança, pulando para a arena, onde as cadeiras de plástico, a quatro passos do palco, foram vendidas a R$ 470,40 (meia) e R$ 940,80 (inteira).

"Olha só essas senhorinhas, cara! É o mesmo público das leitoras fiéis do Padre Marcelo?", pergunta, rindo, o meu amigo Jeferson Voss, 28.

Lá embaixo, uma senhora setentona carrega uma embalagem transparente, onde se vê uma felpuda almofada azul sob uma reluzente coroa dourada – roubada, pois, do grande Napoleão?! Atrás de você, quarenta cinquentonas vestidinhas de azul e branco estendem a faixona: "Roberto, essas EX-MOÇAS curtiram muito você e nunca desistiram de assistir o show DO CARA!" Sujeitos quarentões. Cinquentões. Sessentões. Debaixo dos doze graus, casais se abraçam na data mais caliente do ano – é Dia dos Namorados.

Amigo

Para matar a fome, entro na fila dos acepipes gordurosos. Reconheço, ao meu lado, um desses amigos virtuais que você só conhece pelo computador. Será amigo de meu pai, da minha mãe, algum vizinho da infância perdida?

"Você é o Roberto, né?", vou sondando.

Quarentão, coberto de jaqueta, segurando bilhete do pedido dezessete.

"Sou, sim. A gente se conhece?"

"Acho que somos amigos no Facebook."

"Como é o seu nome?", questiona, curioso, um olho grudado no placar eletrônico da senha.

"Alexandre Gaioto."

"Tá brincando?! Não te reconheci."

Gente fina, estende a mão e escancara sorriso.

"Gosto muito dos seus textos. Aquelas crônicas de domingo."

"Tá brincando?!"

"Verdade. Você e a terra da igreja-cone. Das senhorinhas serelepes. Das duplas sertânicas. Leio todas. São bem-humoradas, divertidas, continue escrevendo!"

Quase nem acredito: finalmente, encontrei um leitor.

"Posso tirar uma foto com você? Meu pai não vai acreditar que encontrei um leitor."

"Número dezessete! Dezessete!", esgoela-se alguém.

"É a minha senha. Sinto muito", despede-se o sujeito, aflito de fome.

Sabe, você, como é bom encontrar um leitor-amigo? E me pego pensando nos outros leitores-amigos-virtuais que acumulei com esses textos todos. Na Aniceia Maia, no João Xavier, na Sonia Maria, na Estter Ribeiro e tantos outros que me mandaram mensagens gentis e carinhosas nesse tempo que extirpei a vesícula e, por duas semanas, silenciei o verbo. Para este pobre cronistinha dominical, maior alegria não há do que esbarrar num leitor-amigo. "Eu quero ter um milhão de amigos", me pego cantarolando, a poucos minutos do show, com o lanche em mãos.

Emoções

Com trinta minutos de atraso, o Rei dá as caras às oito e meia. A mega-banda puxa uma versão instrumental de "Como é Grande o Meu Amor por Você", transformando o Parque de Exposições num karaokê lírico. Em seguida, a banda inicia o clássico arranjo de "Emoções". Do meio do palco, entre o baterista e os trompetes e saxofones, ele entra. Alto e magrelo. Vestindo azul, evidentemente, sua cor predileta. Curioso, ele não manca: a perna mecânica, tão firme quanto a esquerda. Homens e mulheres berram e acenam. E é só ele começar o primeiro verso que você, aquele garotinho gorducho de oito anos, tímido e calado, equilibrando três fatias de Panetone na frente da TV, assistindo ao especial de fim de ano, começa a chorar compulsivamente. Minha namorada me olha de uma forma engraçada. "Ué, mas você não prefere o Erasmo?", parece me perguntar, em silêncio. E só não fico tão constrangido porque as comportas oculares despejam litros de água dos rostos de várias dulcíssimas senhoras ao meu lado. A música não é a arte mais emocionante de todas? O Rei passa pela Bossa Nova, retomando "Além do Horizonte", mergulha no rock, com "Ilegal, Imoral ou Engorda", "O Calhambeque" e "Se Você Pensa" - com direito a guitarras distorcidas! -, mostra uma versão em reggae para "Eu te amo, te Amo, te Amo", e, generoso, entoa todas as canções de amor que marcaram a tua vida, como "Proposta" e "Detalhes", provocando mais mil litros de lágrimas na sua face ensopada. Na arquibancada, você é tomado pela mesma sensação de ter visto Bob Dylan, Rolling Stones, Paul McCartney, Erasmo Carlos. O vozeirão firme. Baita som. Banda finíssima. Só faria algumas preciosas alterações no repertório: "Lady Laura" (cafonérrima) por "Quando". "Mulher Pequena" (cafonérrima ao cubo) por "Eu Sou Terrível" - esta, aliás, encerraria a apresentação. "Nossa Senhora" por "As Curvas da Estrada de Santos". "Jesus Cristo" por "O Portão". Sem coisas cafonas nem versinhos religiosos, Robertão soaria ainda melhor.

Ilegal, imoral ou engorda

A cafonice e as letras xiitas fizeram, sim, com que eu me aproximasse mais do Tremendão. Em meio a tantas polêmicas em que Roberto se meteu – incontáveis acusações de plágios, o lance da propaganda da Friboi, a proibição das biografias e a briga com Paulo Cesar de Araújo, quantas mais? – assumi uma postura apática em relação a ele: virei homem calado e até desconfiado. Chamei-o, vez ou outra, de Rei Manco. Agora, esqueço as polêmicas e me entrego, assombrado, à sua música. Em mi menor, a banda puxa os acordes iniciais de "Jesus Cristo". É a última. Sempre foi. Sempre será. Olho para minha namorada, cantando e batendo palmas ao meu lado. No palco, o Rei beija flor por flor e arremessa aos súditos, que se engalfinham em busca da rosa mais cobiçada. Em plena Noite dos Namorados, digo à minha namorada que, por ela, farei uma loucura. Seus olhos, espantados, me espiam com terror – ela me conhece. E, ligeiro, vou descendo as escadas da arquibancada. Noto que os seguranças bombadões estão todos atentos ao show, e não ao público. Aproveito a distração para pular a mureta e invadir os setores carérrimos. Copio o pulo, os passos silenciosos e a mesma agilidade de Liam Neeson, numa de suas missões impossíveis. Então eu corro demais. Vou cruzando velhas que ardem em brasas – só o único bombeiro é capaz de apagar tanto fogaréu. Quem ganha rosa sai de cena e libera uma lacuna no meio da multidão. Aproveito um desses corredores humanos e, quando me dou conta, estou a três cabeças do palco. O Rei se aproxima para lançar a última rosa. "Robertooo, eu também te amo! Me dá uma rosa aí, pô!", solto num vozeirão grave, causando gargalhadas estridentes nas velhas em redor. Acho que ele não ouviu. Sou esmagado por dezenove velhas. O Rei lança a flor numa parábola de graus incalculáveis, mais ou menos na minha direção. Estendo os braços, mas fracasso. A sortuda é uma senhora suada e corpulenta que dá cotoveladas na de trás, passa a perna na da frente e empurra uma gorducha à esquerda e uma magricela à direita: para conseguir uma rosa do Rei, é preciso quebrar algumas leis, invadir setores alheios, apertar e espremer e empurrar, mas ninguém ali se importa com isso. Se chorei ou se sorri, o importante é que finalmente vi e ouvi o Rei.

O REI NÃO RESPONDEU
 

Qual a sensação de ser o maior cantor brasileiro de todos os tempos?

O senhor não vem a Maringá há 17 anos. Consegue se lembrar de seu show por aqui? O que sabe sobre a cidade?

Nas horas livres, o senhor gosta de literatura? Poderia citar os cinco livros mais importantes da sua vida?

O senhor já disse que pretende gravar um disco de inéditas neste ano. Como soará o novo CD?

Erasmo Carlos fez um excelente álbum apenas com os lados b da carreira dele. O senhor considera a possibilidade de gravar, algum dia, um álbum apenas com suas canções menos conhecidas?

O senhor e Erasmo Carlos compuseram "Maria Joana" como uma homenagem velada à maconha. Quando questionado, Erasmo costuma dizer que chegou a provar a maconha, mas não gostou. O senhor chegou a provar maconha ou algum outro tipo de droga durante a sua trajetória?

No filme sobre Tim Maia, a cena de um funcionário do senhor arremessando dinheiro aos pés dele, que estava pobre e no início da carreira, é muito forte e gerou muitas críticas. Essa cena realmente aconteceu nos bastidores do seu show?

Por que o senhor não libera o álbum "Louco Por Você"? Há planos para liberá-lo futuramente?

"Em Ritmo de Aventura", para mim, é um dos melhores álbum do senhor, com aquele rock sessentista. Algumas bandas de rock têm feito shows reproduzindo álbuns na íntegra. Acha que é possível, algum dia, o senhor fazer um show especial executando na íntegra esse álbum?

O senhor acha que a polêmica das biografias prejudicou a sua imagem?

O que o senhor pode adiantar sobre a autobiografia que está escrevendo? Quais os maiores desafios durante esse processo de escrita?

A música "O Careta" foi considerada plágio pela Justiça. Essa e outras acusações de plágio aborrecem o senhor?

O senhor ficou ofendido por ter sido convidado a se apresentar na abertura dos jogos paraolímpicos do Rio de Janeiro? Por que recusou o convite?

Em fevereiro de 2014, deixei meu CD "Em Ritmo de Aventura" na portaria do edifício Golden Bay, onde senhor mora, para ser autografado. No dia seguinte, passei pra pegar o CD autografado, mas, segundo o porteiro, o CD havia sido entregue em seu apartamento e o senhor ainda não havia assinado o encarte. Será que o senhor poderia devolver o meu CD, se possível autografado? Ou, então, eu poderia levar o meu LP do "Em Ritmo de Aventura" para o senhor assinar antes do show aqui em Maringá, que tal?

Publicado no Diário (19/6/2016)