segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Lições de Adalberto

A Real Fábrica de Tabacos, em Sevilha, é um lugar charmoso e trágico. O edifício neoclássico está imortalizado no romance de "Carmen", de Prosper Mérimée, e na ópera homônima composta por Georges Bizet. No mesmo cenário em que Don Juan esfaqueia e assassina Carmen, Adalberto de Oliveira Souza assistia a simpósios de literatura, com trabalhos sobre Proust, Joyce, Cervantes e outros gigantes.

Debaixo do calor insuportável de julho, Adalberto sentiu o corpo entrar em corrosão. Ele ministraria, a convite da Universidade de Sevilha - localizada no mesmo prédio da Real Fábrica -, uma palestra sobre Ronald de Carvalho, que nunca chegou a acontecer. O estômago estava inchado e queimava: era como se o próprio Don Juan enfiasse a faca lentamente em sua barriga, e não em Carmen.

Atendido no pronto-socorro da instituição, Adalberto foi imediatamente conduzido ao hospital Virgem do Rocio, onde foi operado do apêndice. A cirurgia, que em geral leva sessenta minutos, demorou oito horas para ser finalizada. "Ele pode morrer: é bom que você saiba", disse o médico a uma colega que o acompanhava.

Deitado no hospital, Adalberto passava a vida a limpo. Gostava de lembrar os seis anos que morou na França, entre o Mestrado ao Doutorado, especialmente a temporada de um ano num apartamento na Rue Mignet, no oeste de Paris. Para quem gosta de literatura, pintura e música, não há lugar melhor no mundo do que Paris.

E Adalberto aproveitou como pôde: batia cartão pelo menos uma vez por semana no Centro Georges Pompideu, acompanhando mostras temporárias e revendo Picasso, Van Gogh, Monet e Pollock, seu favorito. Entrou e saiu dezenas de vezes do Louvre - compreensivelmente, perdeu as contas. Levava tela e pincel para as ruas do Quartier Latin, pincelando a arquitetura grandiosa de Paris que, a todo momento, parece lembrar aos homens a sua real insignificância.

Na Radio France, assistia com frequência a orquestras de câmara retomando as estranhezas de Stockhausen e as inovações de Schonberg e Stravinsky, quase sempre nos auditórios menores, porém sempre lotados da emissora, ao lado de outras cinquenta pessoas.

Nos 21 dias em que ficou internado, Adalberto lembrou, também, de São Paulo. Foi bom concluir a graduação em Letras Português-Francês pela USP, onde teve aulas com o mitológico Antonio Candido. "Eram maravilhosas e ele, muito bem-humorado. Só havia uma coisa que Candido não tolerava: qualquer piada ou manifestação racista", refletia.

Algumas cenas da época universitária, em plena ditadura militar, se repetiam. O sujeito moreno, de 1,75 metro, nem gordo e nem magro, que frequentava as aulas de russo. Era um aluno estranho, sem interesse em Tolstói e Dostoiévski, e os rumores o apontavam como sargento infiltrado na sala de aula. "Era mesmo um espião." E achava graça no fato do governo acreditar que, nas turmas de russo, a porcentagem de comunistas era maior do que em outros cursos. Na realidade, quase todos os calouros cursavam Português-Russo porque era mais fácil do que Português-Inglês: não tinha nada a ver com ideologia.

E as cenas de seu encontro com João Cabral de Melo Neto, no apartamento do bibliófilo José Mindlin, na companhia de uma colega da graduação e do dramaturgo Plínio Marcos, também surgiam à tona. Dois jovens universitários entrevistando um dos maiores poetas brasileiros. "Eu sou um sujeito sem nenhum interesse como pessoa", definiu-se João Cabral, encarando firmemente Adalberto, e a voz do poeta invadia, agora, o leito do hospital espanhol, como se alguém soprasse poesia a seus ouvidos.

"Uns reagem, outros não", disparou o médico, conferindo os exames na frente de Adalberto. Recebida a alta, ele voltou para Maringá. Nunca esqueceu a quase morte há exatamente uma década, e reagiu. Publicou seu terceiro livro de poesia, o ótimo "Corrosão", aposentou-se há alguns anos da universidade e hoje divide seu tempo entre dois espaçosos apartamentos que tomam um andar inteiro de um edifício na XV de Novembro.

Mora sozinho, na companhia da biblioteca que chegou a três mil obras - hoje ele não tem um número exato -, que tomam as salas do 401, e entre 31 de seus quadros figurativos e abstratos, emoldurados no 402.

"Eu me sentia muito perdido quando vim para Maringá. Não havia muito o que fazer por aqui. Hoje, tudo mudou. Há eventos importantes, como a Festa Literária Internacional de Maringá, há vida cultural", diz, sentado à mesa, cercado por quadros.

Aos 65 anos, Adalberto quer expor suas pinturas, escrever poemas, pincelar a vida. Fala tudo com muita calma e serenidade. Relembra a mãe, professora do primário, e o pai, boiadeiro que não conheceu, morto quando ele completava um mês. O pai, 36, comunista e alcoólatra, levou um tiro numa briga de bar em Palestina, no interior de São Paulo, a uma quadra de casa. O disparo foi feito por um soldado que, anos depois, dizem, também foi assassinado. Adalberto nunca soube o nome do homem que matou seu pai e o crime nunca foi solucionado. Hoje, depois de tantos anos, não parece ter rancor do assassino que o privou, para sempre, da convivência paterna.

Num apartamento calado - os únicos sons vem dos pedreiros gritando na construção ao lado -, ele só se recusa a falar dos amores passados e presentes. "Como nunca deram certo, prefiro o silêncio", responde, pela primeira vez um tanto melancólico, remexendo uma cristaleira para lá e para cá, chacoalhando segredos invisíveis.

Publicado no Diário (15/1/16)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Rebite em branco e preto

A cidade toda parava na quarta-feira. As famílias se reuniam em casa, das 20h à 0h, para ouvir o programa "Noite e Festa", apresentado pelo vozeirão grave de Brasil Filho, semanalmente, na Rádio Cultura. Muitas moças e senhoras e até alguns rapazes não se contentavam com o áudio do programa. E faziam questão de enfrentar a fila para pegar um dos 250 lugares disponíveis no auditório da rádio, localizada na Avenida Herval com a 15 de Novembro. Em 1968, aquele era um dos endereços musicais mais cobiçados pelos instrumentistas da região. Ninguém menos que Erasmo Carlos e os Incríveis chegaram a dar o ar da graça no "Noite e Festa", concedendo entrevistas e entoando seus sucessos. Por isso mesmo, o garoto que acabava de chegar ao centro do palco, escoltado pelo talentoso Geraldinho do Cavaco, estava tão nervoso. As mãos tremiam, o peito batia forte. Sabia que era uma oportunidade única, que deveria fazer bonito. Um erro o condenaria às piadas e à humilhação. Um acerto, talvez, o empurraria para dentro daquele universo misterioso, em que alguns nomes viram estrelas, e outros, de tão grandes, chegam a formar verdadeiras constelações. O garoto abriu o peito e cantou sua própria história: "Eu sou o negro gato de arrepiar /

E essa minha vida é mesmo de amargar / Só mesmo de um telhado aos outros desacato / Eu sou o negro gato."

Presente
Entoando os versos atrás do balcão da Sapataria, não é difícil imaginar Rebite no palco. A voz ainda está firme, ligeiramente rouca, e mantém algo do grave que o consagrou em 1968, no programa "Noite e Festa", garantindo seu ingresso em três bandas maringaenses: S.O.S (de 69 a 73), Os Cometas (73 a 81) e Escala Company (86 a 96). Mesclando o rock sessentista da Jovem Guarda com veneirão, xote e muito samba de raiz, o garoto finalmente havia entrado no mundo da música. O ápice da carreira foi abrir os shows de Fafá de Belém, Martinho da Vila, Luiz Ayrão, Sandra de Sá e João Bosco no Country Club e na Apoteose. Como crooner, foi responsável pelas canções nas matinadas do Colégio Vital Brasil e nos palcos do Barril (o primeiro bar em Maringá a ter música ao vivo), no Hermácia (onde hoje é o CIQ HM), no Boliche, na Passarela e no Kanequinho (todos os três no mesmo ponto da Paraná) e nos bailes do Vale Azul (hoje abandonado e depredado). "É uma pena: a cidade se transformou, mas não há nada para preservar esses lugares", lamenta Rebite, interrompendo o concerto da sandália marrom para atender o telefone fixo, que acaba de tocar. "Sim, tá falando com ele: Rebite em branco e preto", comenta, rindo, vestindo uma camiseta branca e calça jeans azul.

A Sapataria tem um longo balcão branco que dá para a Avenida Joubert de Carvalho, 1008. Atrás do balcão, cinco estantes de ferro acumulam sacolas com sapatos e tênis, entre encomendas que já estão prontas e as que ainda serão consertadas. Quatro máquinas de costura, dezenas de cadarços coloridos e cintos em diversas cores, organizados em seus próprios cantos, completam o local de trabalho. Com os olhos no trabalho e os ouvidos na rua, Rebite acompanha a conversa de uma mãe exigindo que o filho termine com a namorada, ouve um homem sussurar pelo celular o horário de um encontro com outro homem, observa o pedinte com um espesso ferro de oitenta centímetros na mão clamando por trocados. Há 45 anos, observa a cidade desse ângulo. Escuta tudo e todos, e frequentemente é cumprimentado pelos amigos, tal como fazem um cego ("Ô, negão!"), um empresário ("Ô, urubu!") e um velho ("Ô, pau de fumo!"), que passam ligeiros demais para uma conversa, estendendo gestos e sorrisos afetuosos. A todos, Rebite responde com acenos e sorrisos. "Eles me tratam com muito carinho: trabalhar assim, sempre conhecido, é uma farra."

Mala de histórias

Um sujeito grandalhão, acompanhado pela filha e outras duas mulheres, se aproxima do balcão.

"Ô, Rebite! Quanto tempo!", diz, estendendo uma mala marrom.

"Ô, rapaz! Mas que beleza de mala, hein?!"

Numa rápida avaliação, Rebiote nota que é preciso trocar o tecido revestindo o interior. Quando notou que a mala apodrecia no armário, o advogado Adalberto de Souza, 43, se recusou a mandá-la para alguém consertá-la em São Paulo, onde reside. É uma bela mala, adquirida há quatro anos em Florença. Serviu para trazer parte das roupas usadas na viagem e algumas peças novas, adquiridas na Itália. Esperou chegar o final de ano para vir a Maringá, onde os familiares se reúnem anualmente.

"Meu pai é cliente do Rebite a vida toda. O trabalho é de muita qualidade", garante o advogado cliente.

"Vamos jogar couro nela, que tal?", sugere Rebite.

"Vai ficar caro demais. Vamos de brim mesmo", decide o cliente. "Sabe o que é bacana? Voltar aqui e lembrar de tudo. Ver como a cidade vai mudando aos poucos. O tráfego, que hoje é bem mais intenso. As calçadas, agora cheias de gente para todos os lados. Acho que gostava mais de Maringá quando ela era deserta", diz o cliente, em tom saudosista, olhando para a Joubert de Carvalho.

O orçamento ficará pronto dali a cinco dias. Rebite anota o número do celular. Não há dúvidas que o cliente autorizará o conserto da sua mala italiana.

Pertinho de Pelé
O futebol era a casa de Rebite. O pai trabalhava como roupeiro do Grêmio e a mãe lavava as roupas dos jogadores. Ainda garoto, começou a engraxar as chuteiras dos jogadores nos vestiários. Mais tarde, em 1969 e entre 1974 a 76, assumiria o posto de goleiro do Grêmio. No Willie Davids, participou de momentos históricos, como a antológica vitória de 11 a 1 do Santos. Ainda adolescente, Rebite, à beira do gramado, estava a poucos palmos de distância de seus ídolos futebolísticos. Como gandula, lançava, por trás do gol, as bolas direto nas mãos de Gilmar. A mesma bola que segundos depois, estava nos pés de Pelé, Pepe e Coutinho. A gloriosa proximidade, que resultou na humilhante derrota em casa, não incomodava os 20 mil torcedores que berravam o nome de Pelé pelas arquibancadas. Com Rebite, não era diferente. O coração só bateria naquela mesma intensidade, ameaçando pular goela afora, alguns anos mais tarde, quando ele resolveria cantar "Negro Gato", no programa "Noite e Festa", deixando sua marca na música local. O garoto, que queria pertencer apenas ao universo das canções, hoje, aos 64, é um homem de muitos mundos: o mundo do futebol, dos flagras na Joubert de Carvalho, dos sapatos que cruzam calçadas e amam e vivem e morrem.

Publicado no Diário (8/1/2017)