tag:blogger.com,1999:blog-76932894221604901232024-03-13T01:57:41.204-07:00Alexandre Gaioto"Você não está me copiando, Alexandre. Seus contos são concisos, enxugados. Você tem voz própria, porra! Você não vai ser jornalista. Você vai ser escritor, porra!" - José Rubem Fonseca, 16 de Janeiro de 2009, Rio de Janeiro.Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.comBlogger172125tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-344791603041474342018-02-28T18:42:00.002-08:002018-02-28T18:45:16.004-08:00Um chope com Rubem Fonseca<div style="text-align: justify;">
Debaixo de um sol escaldante, num Leblon a quase 40 graus, o porteiro pergunta qual o meu nome e já vai ligando para o apartamento indicado. Após um breve interfone, indaga qual o motivo da nossa presença. Estamos, eu e minha namorada, às 13h de uma sexta-feira, na porta do luxuoso prédio de Rubem Fonseca, a poucos metros do mar. Resolvo abrir o jogo: somos leitores do Rubem, queremos pagar um chope para ele. O porteiro fica sem reação. Olha novamente o casal com mochilas nas costas e um isopor nas mãos, e dá um sorriso. Depois de explicar a situação por telefone a alguém do apartamento, ele libera o portão e nos acompanha até o elevador.</div>
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“Estão esperando vocês”, diz o porteiro.</div>
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A recepção surpreende uma carioca cinquentona que entra no elevador no mesmo instante em que a gente.</div>
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“Nossa, vocês estão com sorte, viu? A livraria aqui do Leblon está cansada de</div>
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oferecer coquetel para os lançamentos do Rubem Fonseca, e ele nem responde os convites”, comenta, antes de descer num dos andares do prédio.</div>
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Para a decepção geral, quem está na porta do apartamento de Rubem Fonseca não é ele, mas a funcionária Dalva, uma negra simpática e atenciosa, de uns sessenta anos. Descalça, trajando um vestido azul, ela abre um sorriso e parece um pouco confusa.</div>
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“Vocês trouxeram uma encomenda, é isso?”</div>
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Não, viemos pagar um chope para o Rubem Fonseca, queremos beber com ele, vou dizendo, enquanto espio lá dentro a pilha de livros que ocupa uma parede inteira na espaçosa sala do apartamento.</div>
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“Ah, ele não está aqui no momento. Mas deixe um nome e um telefone. Quem sabe ele não liga?”, aconselha.</div>
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Agradeço a cordialidade e vou saindo, ao lado de minha namorada. Deixo com Dalva o meu nome e o número do celular, com o DDD do Paraná. Ela escreve tudo num bilhete. Já que a ideia amalucada de beber com Rubem Fonseca não deu certo, o jeito é pegar uma praia no Leblon, logo ali na frente. Por desencargo de consciência, coloco créditos no celular. E acho engraçado aquilo tudo: até parece que o Rubem Fonseca vai ligar.</div>
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<br /></div>
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<b>Então, ele liga </b></div>
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Frio para danar, o mar do Leblon congelava qualquer mortal naquela tarde. Por sorte, tínhamos uma garrafa de Mojito, que matamos na areia, rapidamente, em goles desesperados. Meu celular tocou às 14h, interrompendo as doses de Mojito. Mergulhamos num silêncio tenso. Um olhando para o outro, sem reação. Peguei o celular na mochila. Vi, na tela do aparelho, que era o número de um amigo do Paraná. Para assustar a namorada, gritei é ele, é ele, o Rubem está ligando. Atendi eufórico.</div>
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“Alô, Rubem?!”</div>
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Minha namorada arregalou uns olhos espantados.</div>
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“Rubem, é o Alexandre, sim. Tudo bem contigo, bicho?! Estou na praia, vamos encher a cara num bar aqui perto?”</div>
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Caímos na risada: a cena era improvável demais. Uma hora mais tarde, seria a vez do meu pai ligar. Atendi novamente, fingindo conversar com Rubem Fonseca. No diálogo com meu pai, que improvisou surpreendentemente bem o papel do escritor recluso, combinei que deixaríamos nossas respectivas mulheres em casa e, lá pelas 23h, partiríamos para uma noitada de esbórnia na Centaurus, a digníssima boate em Ipanema, famosa por suas acompanhantes de alto nível. Minha namorada já não deu bola para a piada nem para o itinerário noturno.</div>
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A bebida e os acepipes guardados na bolsa já tinham ido goela abaixo quando o celular tocou, novamente, às 16h. Desta vez, com um DDD do Rio de Janeiro. Não podia ser. Não mesmo. Devia ser o efeito alcoólico do Mojito. Conferi o número no painel.</div>
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“É ele, amor, é ele.”</div>
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Fui solenemente ignorado.</div>
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“Alô, é o Alexandre?”, indagou a voz rouca.</div>
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Rubem Fonseca tem uma voz rasgada. Entraria fácil numa banda de rock, blues ou num quarteto de jazz tocando Chet Baker. Também seria legal ouvir Rubem Fonseca cantando Bob Dylan.</div>
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“Olha, Alexandre, estou muito ocupado hoje. Mas se você passar aqui agora, eu posso te receber. Você consegue vir já?”</div>
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Mal tinha desligado o celular, já estava jogando o Mojito e a caixa de isopor no lixo, juntando a bolsa, gritando “é ele, é ele”, e minha namorada só acreditou que era mesmo o Rubem Fonseca quando me viu, atabalhoado, correndo pela areia, pagando pelas cadeiras e pelo guarda-sol alugados na barraca da praia. Deu para tirar a areia do corpo, trocar o chinelão pelo tênis e pegar na bolsa uma edição de “Amálgama”, o último livro de Rubem Fonseca. Por sorte, estávamos a uma quadra de distância.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Conselhos de mestre</b></div>
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Não sabia que Rubem Fonseca recebia os leitores em seu apartamento. Sei, por experiência própria, que ele conversa com todo mundo em suas caminhadas diárias.</div>
<div style="text-align: justify;">
Foi assim, numa dessas caminhadas, que abordei Rubem Fonseca nas ruas do Leblon, há cinco anos. Passei alguns minutos em frente ao seu prédio e, quando ele saiu, ficamos por quase meia hora conversando sobre literatura, reclusão, as perseguições na ditadura e o processo criativo. Aproveitei que o clima estava bacana e mostrei alguns continhos meus ao Rubem Fonseca. Pedi que ele lesse depois, se poderia me dar um retorno por e-mail. Tudo o que eu queria era saber se eu deveria ou não insistir naquele papo de ser escritor. Sei que escritores odeiam esse tipo de coisa, mas, como eu disse, o clima estava bacana. Sentado ao meu lado num banco da avenida Ataulfo de Paiva, Rubem Fonseca fez questão de ler os quatro continhos ali mesmo. Apontou erros que, só ao seu lado, pude ver claramente. Num dos contos, havia a mistura de algumas gírias, inseridas na fala dos personagens, e a gramática normativa dominava o resto da narrativa.</div>
<div style="text-align: justify;">
“O seu texto está todo escrito na norma culta, pode tirar essas gírias aqui. O seu texto não precisa disso”, criticou, rasurando os termos no papel. Aconselhou-me, ainda, a estender as narrativas, todas excessivamente curtas. “Você tem que abrir gavetas no texto. É assim que funciona com o romance”, disse.</div>
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Com os continhos em mãos, incentivou-me a escrever com dedicação, diariamente. “Seus contos são concisos, enxugados. Você tem voz própria, porra! Você não vai ser jornalista. Você vai ser escritor, porra!”, estimulou-me.</div>
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Qual outro grande autor perde tempo lendo coisas inéditas, no meio da rua, redigidas por escritores desconhecidos? E, encorajador, ainda faz apontamentos, dá dicas valiosas, manda seguir em frente? Rubem Fonseca, além de gênio, é um cara generoso.</div>
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Além da dedicação diária e da necessidade de reescrever os textos, quem quiser escrever bem deve, também, ter sua proposta literária definida. “O escritor tem de escrever para provocar. Para escrever o que todos querem ler, existem os jornalistas”, ironiza Rubem Fonseca. Essa é a fórmula do sucesso. Depois disso, é abrir os braços e correr para o reconhecimento, para a fama – ou, no caso dele, de se esconder de tudo isso, quieto no Rio de Janeiro.</div>
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A reclusão, no caso de Rubem Fonseca, não é garantia de anonimato. Enquanto estávamos sentados, ele foi reconhecido por uma moradora do Leblon. Era uma carioca muito branca, de uns sessenta anos. Fogosa, convidou o escritor para um jantar à noite, e ele recusou cordialmente. “Ela é muito velha para mim”, justificou, depois que a leitora saiu de cena.</div>
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Cinco anos depois daquele encontro, Rubem Fonseca está prestes a me receber, agora ao lado de minha namorada, em sua residência. Não pretendo pentelhá-lo, novamente, com um punhado de textos. O que eu quero mesmo é encher a cara com ele. </div>
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<br /></div>
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<b>Fugitivo</b></div>
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“Vamos entrando, vamos entrando”, convida Rubem Fonseca, com um sorriso amigável, abrindo a porta de seu apartamento.</div>
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Ele não é alto, deve ter pouco mais de 1,60 metros. Veste camiseta, calça jeans e, nos pés, sapatos. Caminha devagar, quase mancando, até um dos sofás impecavelmente brancos da sala, repleta de livros. Tudo é bem organizado, privilegiando o espaço dos cômodos. Na sala ao lado, outra penca de livros surge em fartas estantes. </div>
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“Hoje, o meu dia está uma correria. Acabei de voltar de um encontro com meu filho, à noite vou jantar com a minha filha e ainda tenho que encontrar uns documentos e enviá-los para o meu advogado. Ele já está me cobrando”, comenta, em tom de desabafo. </div>
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A gente queria te pagar um chope no bar mais próximo, eu explico. Ele dá uma boa risada. Rubem Fonseca é gente fina à beça.</div>
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“Ah, eu parei de beber há muito tempo. E vocês sabem: eu vivo fugindo das pessoas”, diz, rindo.</div>
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“É mais difícil escrever hoje em dia?”, pergunto ao escritor, estendendo o exemplar de “Amálgama” para ele autografar.</div>
<div style="text-align: justify;">
“Ah, sim. Toda essa correria de advogado e documentos atrapalha a rotina. Não sobra tempo para escrever”, reclama.</div>
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No livro, Rubem Fonseca faz uma dedicatória amigável. E minha namorada diz o quanto gostou do brutalismo e do humor negro do primeiro conto, “O Filho”, uma das melhores histórias do “Amálgama”. No conto, escrito ao seu melhor estilo, Rubem Fonseca aborda o nascimento de uma criança que nasce aleijada, sem um braço.</div>
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“Que dó do bebê, que dó. Coitadinho dele”, responde Rubem Fonseca. O criador, para a nossa surpresa, tem, sim, piedade de suas próprias criaturas. “Mas você tem mais de 18 anos, não tem?”, pergunta Rubem Fonseca à minha namorada. “Este livro é só para maiores de idade”, avisa, rindo, enquanto estende o exemplar autografado.</div>
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Ele se levanta do sofá com um pouco de dificuldade. Justificável, afinal, para um senhor de 88 anos. Mas há uma dor no corpo, ele explica, culpa de um tombo recente.</div>
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“Só posso andar nas ruas com isso aqui”, comenta o escritor, seguindo para a outra sala. No canto da estante, ele pega uma bengala e exibe o seu novo acessório das caminhadas. “Sem ela, posso perder o equilíbrio”, justifica.</div>
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“E você continua charmoso”, elogia minha namorada. Eu engrosso o coro, também digo que ele está charmosão. Ele dá outra risada, abre um sorriso.</div>
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“E quando vem o próximo livro, Rubem?”, indago.</div>
<div style="text-align: justify;">
“Agora, estou trabalhando em um romance. A editora quer soltar só no próximo ano. Por enquanto, tenho só um working title, que pode mudar a qualquer momento”, diz.</div>
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“Quando você começa a escrever, sempre sabe como irá terminar a história?”, questiono.</div>
<div style="text-align: justify;">
“Não, nunca sei como vou terminar. As histórias mudam durante a escrita”, revela.</div>
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Já na porta do apartamento, agradeço a recepção e a rápida conversa. Ele está visivelmente feliz. “Da próxima vez, avisem antes que vocês virão e aí teremos mais tempo para conversar. E, se vocês forem à praia, tomem cuidado. Vão pela manhã, não fiquem lá à tarde. Olha a pele da sua namorada, Alexandre, é tão branquinha. Esse sol é perigoso. Cuide bem dela, viu? Porque ela é muito bonita; e você, muito feio”, aconselha Rubem Fonseca, arrancando uma boa gargalhada nossa.</div>
<div style="text-align: justify;">
Evitamos a praia, seguindo o conselho do escritor, e corremos pelas ruas do Leblon à caça da bodega mais próxima. Na mesa do Jobi, acalmamos os ânimos e tomamos um porre para celebrar o encontro com deus. </div>
<br />
<b>Publicado no site da revista Cult (fevereiro de 2014)</b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-4074435635332559102017-05-15T10:01:00.001-07:002017-05-15T10:01:24.655-07:00Candido, o pugilista<div style="border: none; line-height: 0.79cm; margin-bottom: 0cm; padding: 0cm;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgeDsKAp4ah7vVtfJR1C9QUur_jBUS7jSB85GzMcZGhdmfe32l11Qh_-hZJY6pj5h_mSxvpBSN9NSMAXaYIQbWRC3qA-wbbRsGam7WKTj5CAtQcHen6ldMqywdCMWa4NHqYTsHKWEGM0ttN/s1600/antoniocandido4.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="387" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgeDsKAp4ah7vVtfJR1C9QUur_jBUS7jSB85GzMcZGhdmfe32l11Qh_-hZJY6pj5h_mSxvpBSN9NSMAXaYIQbWRC3qA-wbbRsGam7WKTj5CAtQcHen6ldMqywdCMWa4NHqYTsHKWEGM0ttN/s400/antoniocandido4.jpg" width="400" /></a></div>
<span style="color: #212121;"><span style="font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 13pt;">Antonio
Cândido não foi apenas um professor, foi um pugilista. Deu ganchos
certeiros em Clarice Lispector, mandou cruzados que atordoaram Oswald
de Andrade, emendou jabs desconcertantes em outros figurões
literários. E fez tudo isso com técnica e elegância, justificando,
de uma forma extremamente convincente, as necessidades de seus
golpes.</span></span></span></div>
<div align="center" style="line-height: 0.79cm; margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div style="line-height: 0.79cm; margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #212121;"><span style="font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 13pt;">As
bordoadas eram no calor da hora, com as obras recém-lançadas, e ele
sempre esteve consciente dos riscos que corria — um crítico que
não compreende uma obra é ignorante por desconhecer as inovações
ou alguém com uma leitura tão poderosa, capaz de notar erros que
autores e editores ignoram?</span></span></span><br />
<br /></div>
<br />
<div style="line-height: 0.79cm; margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #212121;"><span style="font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 13pt;">Essa
postura combativa, que ele assumiu tão bem, com coragem,
independência e pulso firme, é o que mais faz falta no cenário
literário atual, com pseudos-críticos frequentemente assumindo uma
postura covarde e submissa diante de obras de qualidade questionável,
arremessando elogios aleatórios em busca de coleguismo e algum
espaço no meio literário. A cada golpe desferido nos erros de uma
obra, Antonio Candido sabia que cumpria um dever cívico: provocava
uma reflexão — dolorosa, para alguns leitores e autores — sobre
a qualidade da escrita produzida no Brasil.</span></span></span><br />
<br />
<span style="color: #212121;"><span style="font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 13pt;">Quando
visitei Antonio Cândido, há dois anos, me surpreendi com seus
passos ágeis, com suas mãos que pareciam pesar mil quilos, com os
olhos enérgicos e tão temidos — olhos que enxergam mais do que
nós —, com sua memória capaz de armazenar mínimas lembranças e
de retomá-las, sem esforço, a qualquer momento.</span></span></span></div>
<div style="line-height: 0.79cm; margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #212121;"><span style="font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 13pt;"><br /></span></span></span></div>
<div style="line-height: 0.79cm; margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #212121;"><span style="font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 13pt;">Lembrava,
de imediato, os detalhes e o ano longínquo de uma palestra concedida
em minha cidade, Maringá (PR), e também recordou, rapidamente, o
momento em que foi apresentado ao Vampiro de Curitiba.</span></span></span><br />
<br />
<span style="color: #212121;"><span style="font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 13pt;">Era
ali, em meio a porteiros e vizinhos, que Antonio Candido recebia seus
leitores e alunos de todo o país. Bastava interfonar. Aos 96 anos,
ele não parecia um professor aposentado da USP, mas, sim, um atleta
em plena forma. “Eu era, sim, um crítico severo. Se achava o
romance ruim, escrevia uma crítica negativa. Um dia, depois que
critiquei um autor, me avisaram que ele havia comprado uma bengala
para me dar uma sova. Fiquei um bom tempo com medo”, comentou, com
uma boa gargalhada, antes de acrescentar: “Mas isso é essencial: o
crítico literário tem, sim, que falar mal”.</span></span></span><br />
<br />
<span style="color: #212121;"><span style="font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 13pt;">Antonio
Cândido publicou ensaios antológicos: Dialética da
malandragem, O poeta itinerante e A educação pela noite são
apenas alguns deles. Ensinou sobre a necessidade de estabelecer
diálogos multidisciplinares, defendeu as proezas das transgressões
— foi o primeiro acadêmico a reconhecer as maravilhas das letras
modernistas — e ainda nos deu preciosas lições de boxe. Mais do
que nunca, Antonio Candido faz falta nos ringues literários.
Agonizando na lona, quem perde a luta é a literatura brasileira.</span></span></span></div>
<div style="line-height: 0.79cm; margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #212121; font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 17.3333px;"><br /></span></span></div>
<div style="line-height: 0.79cm; margin-bottom: 0cm;">
<span style="color: #212121; font-family: "lato" , sans-serif;"><span style="font-size: 17.3333px;"><b>Publicado no Correio Braziliense (13/5/17)</b></span></span>
</div>
Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-91405367474243332622017-03-02T12:50:00.000-08:002017-03-02T12:51:19.652-08:00Um açougueiro na prefeitura<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKJQVvx82q3fUbfsX3cmQNmZ_34hz2Z7mbzII6U9Ix3SwvQhT0j9WlRxFHWSogvNtPurdv7XnmqALy6S2oFeOLjwNX0tIxVvkupXKza37gHwIpxymV7zHx3GCfM7uSLBhS1pM2fCuiXUtT/s1600/a%25C3%25A7ougueiro.JPG" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKJQVvx82q3fUbfsX3cmQNmZ_34hz2Z7mbzII6U9Ix3SwvQhT0j9WlRxFHWSogvNtPurdv7XnmqALy6S2oFeOLjwNX0tIxVvkupXKza37gHwIpxymV7zHx3GCfM7uSLBhS1pM2fCuiXUtT/s640/a%25C3%25A7ougueiro.JPG" width="212" /></a></div>
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">No mercadinho Camarada, a área destinada ao açougue, com suas paredes brancas e facas dispostas em cima das mesas, tinha 30 metros. Dentro daquele espaço, um espaço generoso para apenas um açougueiro desossar carnes durante três horas por dia, era possível contemplar os clientes e as estantes de produtos de limpeza, caixas de leite, sabão em pó, as geladeiras abarrotadas de refrigerantes, os freezers com comidas congeladas. A primeira parte da jornada era ali, trajando galochas, avental, roupas brancas. A segunda, com as carnes já desossadas, era mais prazerosa: no balcão, lidando diretamente com as pessoas, estendendo pacotes de carnes, ouvindo críticas e elogios, conversando sobre as aspirações e frustrações da clientela. Dos 13 aos 18 anos, Rogério Aparecido Bernardo encarnou o açougueiro do mercadinho com paixão. Descobriu, atrás do balcão, que 60% dos moradores de Ângulo gostam de bisteca e 20%, de linguiça. E que mulheres são incumbidas de comprar as carnes de segunda a quinta, enquanto os homens, religiosamente às sextas, vão pessoalmente ao mercado para adquirir as carnes do fim de semana. Mas não eram as estatísticas privilegiadas dos hábitos gastronômicos dos conterrâneos que o fascinavam. Gostava do contato com o público, de ajudar os clientes, de ouvir seus desabafos. Decidiu, no meio do mercado, virar político.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Concomitantemente à jornada no açougue, Rogério graduou-se em Administração e, em seguida, disputou uma cadeira na Câmara dos Vereadores. "Fui o mais votado da história da cidade, com 187 votos, e depois cheguei à vice-prefeito", diz, sentado em um banco na praça da Prefeitura de Ângulo, enquanto acena para o motorista de um Gol branco em resposta à buzinada e ao grito de "Ôôô Rogééério!".</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Aos 34 anos, o prefeito Rogério Aparecido Bernardo conhece todos os 2.969 moradores de Ângulo. A cada três minutos na praça, alguém berra seu nome e, carinhosamente, acena de carros e caminhonetes. É abordado, ainda, por dois sujeitos cheios de papéis que analisam os buracos de algumas ruas do município, e pede que a dupla encaminhe o relatório para seu e-mail, e por uma simpática senhora que o interpela para reclamar de uma árvore no quintal de casa. "Me ajuda, Rogério. Se dá um pé de vento, essa árvore cai pra cima de mim e derruba meu barraco." Cordial e atencioso, ele promete ajudar a moradora. "Vou mandar alguém lá na sua casa, Dona Terezinha. Não se preocupe." E a senhora segue rumo aliviada, não sem antes agradecer a atenção do prefeito que dá expediente no meio da praça, numa quarta-feira à tarde, enquanto posa para o fotógrafo do Diário. "Eu amo essa cidade. Minha vida política pode ir adiante, mas eu nunca sairei daqui. Em cidades grandes, como Maringá, é muito difícil um político ficar em plena praça e conversar com as pessoas", comenta.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Ângulo deixou de ser distrito para virar cidade em 1990. A maioria dos moradores trabalha em Maringá, em supermercados, açougues, escritórios, lojas de roupas e sapatos. E há quem trabalhe, também, em um parque aquático em Iguaraçu, onde cerca de 10% dos 87 funcionários são de Ângulo, sem contabilizar as contratações temporárias nos finais de semana. São poucos os que trabalham e vivem em Ângulo que, com seus 106,21 km, pode até parecer pequena para os motoristas que cruzam a PR-317 e não avistam arranha-céus nem qualquer construção imponente, mas, para orgulho dos moradores, é uma cidade maior, inclusive, do que alguns países, como Nauru (21 km²) e Tuvalu (24 km²), na Oceania, e San Marino (60 km²), na Europa.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Os atrativos da vida noturna de Ângulo são o Espetos Bar, que serve torre de chope, a Lanchonete do Julião, com pizzas e porções, e a Sorveteria da Viviane, com opções de picolés. À noite, moradores de todas as idades se unem na praça da igreja São João Batista. Ali, quando garoto, aproveitando as locuções que o dono de uma lanchonete fazia entre uma canção e outra, Rogério mandava, por escrito, declarações românticas às moçoilas, dedicando-lhes canções de Chitãozinho & Xororó, e esperava, ansioso, a vinda triunfal do carro da "Explosão do Amor", anunciando no microfone suas intenções amorosas. "Eu fui um romântico, né?", lembra, com a risada que só os grandes apaixonados sabem dar.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Romantismo, hoje, só com a esposa, a farmacêutica Terezinha, 30, com quem teve o filho Matheus, 2. Residindo com a família em um sobrado a 150 metros da prefeitura, Rogério vai trabalhar todos os dias com o veículo oficial. Raramente faz o percurso a pé, seguindo o exemplo da maioria de seus conterrâneos, que, em Ângulo, preferem passear em seus próprios meios de transporte. Metade dos moradores, de acordo com o IBGE de 2015, tem veículos próprios: 48% preferem os automóveis; 19%, as motocicletas; 13%, as caminhonetes; e 0,85%, os caminhões trator.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Filho de um mestre de obras e de uma trabalhadora rural, Rogério ainda hoje volta com frequência ao endereço onde atuou como açougueiro. Há três anos, sua família adquiriu o mercadinho e fez uma série de modificações estruturais para que o local se transformasse no mercado Paladar, sob a administração de sua mãe e com o irmão assumindo a desossa das carnes. É de lá que saem os bifes dos churrascos que unem a família e os amigos nos finais de semana. É uma rotina simples e de alegrias genuínas, completada por uma e outra ida à praça da igreja, onde jovens sonham com os dias em que Ângulo terá McDonald's e dezenas de casas noturnas - inclusive de rock. Os mais velhos, na mesma praça, almejam um dia receber ali o show do rei Roberto Carlos, e se isso não acontecer – o rei, realmente, é um tanto complicado –, eles já vão ficar satisfeitos com bailes de gala intermináveis e jantares italianos em trattorias que terão fachadas brilhantes, com detalhes verdes e vermelhos, iluminando a pacata Avenida Brasil.</span><br />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;"><b><br /></b></span>
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;"><b>Publicado no Diário (5/2/17)</b></span>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-2009937747366903122017-01-16T06:00:00.000-08:002017-01-16T06:12:37.083-08:00Lições de Adalberto <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg3q6YqpgLsYLjqN9FVnYVWmoKaMs38CabIYvRT1ox73o9F7MiGnJjw4vyB3_M4PVjMLhaXatzLhXKSjO9-t1kzT04D_lscCu2RWOiTjvanksKUmmbqci2y_KUnJZWedH992vn7MH87ueNY/s1600/Adalberto+3.JPG" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="322" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg3q6YqpgLsYLjqN9FVnYVWmoKaMs38CabIYvRT1ox73o9F7MiGnJjw4vyB3_M4PVjMLhaXatzLhXKSjO9-t1kzT04D_lscCu2RWOiTjvanksKUmmbqci2y_KUnJZWedH992vn7MH87ueNY/s400/Adalberto+3.JPG" width="400" /></a></div>
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">A Real Fábrica de Tabacos, em Sevilha, é um lugar charmoso e trágico. O edifício neoclássico está imortalizado no romance de "Carmen", de Prosper Mérimée, e na ópera homônima composta por Georges Bizet. No mesmo cenário em que Don Juan esfaqueia e assassina Carmen, Adalberto de Oliveira Souza assistia a simpósios de literatura, com trabalhos sobre Proust, Joyce, Cervantes e outros gigantes.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Debaixo do calor insuportável de julho, Adalberto sentiu o corpo entrar em corrosão. Ele ministraria, a convite da Universidade de Sevilha - localizada no mesmo prédio da Real Fábrica -, uma palestra sobre Ronald de Carvalho, que nunca chegou a acontecer. O estômago estava inchado e queimava: era como se o próprio Don Juan enfiasse a faca lentamente em sua barriga, e não em Carmen.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Atendido no pronto-socorro da instituição, Adalberto foi imediatamente conduzido ao hospital Virgem do Rocio, onde foi operado do apêndice. A cirurgia, que em geral leva sessenta minutos, demorou oito horas para ser finalizada. "Ele pode morrer: é bom que você saiba", disse o médico a uma colega que o acompanhava.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Deitado no hospital, Adalberto passava a vida a limpo. Gostava de lembrar os seis anos que morou na França, entre o Mestrado ao Doutorado, especialmente a temporada de um ano num apartamento na Rue Mignet, no oeste de Paris. Para quem gosta de literatura, pintura e música, não há lugar melhor no mundo do que Paris.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">E Adalberto aproveitou como pôde: batia cartão pelo menos uma vez por semana no Centro Georges Pompideu, acompanhando mostras temporárias e revendo Picasso, Van Gogh, Monet e Pollock, seu favorito. Entrou e saiu dezenas de vezes do Louvre - compreensivelmente, perdeu as contas. Levava tela e pincel para as ruas do Quartier Latin, pincelando a arquitetura grandiosa de Paris que, a todo momento, parece lembrar aos homens a sua real insignificância.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Na Radio France, assistia com frequência a orquestras de câmara retomando as estranhezas de Stockhausen e as inovações de Schonberg e Stravinsky, quase sempre nos auditórios menores, porém sempre lotados da emissora, ao lado de outras cinquenta pessoas.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Nos 21 dias em que ficou internado, Adalberto lembrou, também, de São Paulo. Foi bom concluir a graduação em Letras Português-Francês pela USP, onde teve aulas com o mitológico Antonio Candido. "Eram maravilhosas e ele, muito bem-humorado. Só havia uma coisa que Candido não tolerava: qualquer piada ou manifestação racista", refletia.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Algumas cenas da época universitária, em plena ditadura militar, se repetiam. O sujeito moreno, de 1,75 metro, nem gordo e nem magro, que frequentava as aulas de russo. Era um aluno estranho, sem interesse em Tolstói e Dostoiévski, e os rumores o apontavam como sargento infiltrado na sala de aula. "Era mesmo um espião." E achava graça no fato do governo acreditar que, nas turmas de russo, a porcentagem de comunistas era maior do que em outros cursos. Na realidade, quase todos os calouros cursavam Português-Russo porque era mais fácil do que Português-Inglês: não tinha nada a ver com ideologia.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">E as cenas de seu encontro com João Cabral de Melo Neto, no apartamento do bibliófilo José Mindlin, na companhia de uma colega da graduação e do dramaturgo Plínio Marcos, também surgiam à tona. Dois jovens universitários entrevistando um dos maiores poetas brasileiros. "Eu sou um sujeito sem nenhum interesse como pessoa", definiu-se João Cabral, encarando firmemente Adalberto, e a voz do poeta invadia, agora, o leito do hospital espanhol, como se alguém soprasse poesia a seus ouvidos.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">"Uns reagem, outros não", disparou o médico, conferindo os exames na frente de Adalberto. Recebida a alta, ele voltou para Maringá. Nunca esqueceu a quase morte há exatamente uma década, e reagiu. Publicou seu terceiro livro de poesia, o ótimo "Corrosão", aposentou-se há alguns anos da universidade e hoje divide seu tempo entre dois espaçosos apartamentos que tomam um andar inteiro de um edifício na XV de Novembro.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Mora sozinho, na companhia da biblioteca que chegou a três mil obras - hoje ele não tem um número exato -, que tomam as salas do 401, e entre 31 de seus quadros figurativos e abstratos, emoldurados no 402.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">"Eu me sentia muito perdido quando vim para Maringá. Não havia muito o que fazer por aqui. Hoje, tudo mudou. Há eventos importantes, como a Festa Literária Internacional de Maringá, há vida cultural", diz, sentado à mesa, cercado por quadros.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Aos 65 anos, Adalberto quer expor suas pinturas, escrever poemas, pincelar a vida. Fala tudo com muita calma e serenidade. Relembra a mãe, professora do primário, e o pai, boiadeiro que não conheceu, morto quando ele completava um mês. O pai, 36, comunista e alcoólatra, levou um tiro numa briga de bar em Palestina, no interior de São Paulo, a uma quadra de casa. O disparo foi feito por um soldado que, anos depois, dizem, também foi assassinado. Adalberto nunca soube o nome do homem que matou seu pai e o crime nunca foi solucionado. Hoje, depois de tantos anos, não parece ter rancor do assassino que o privou, para sempre, da convivência paterna.</span><br />
<br style="background-color: white; font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;" />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;">Num apartamento calado - os únicos sons vem dos pedreiros gritando na construção ao lado -, ele só se recusa a falar dos amores passados e presentes. "Como nunca deram certo, prefiro o silêncio", responde, pela primeira vez um tanto melancólico, remexendo uma cristaleira para lá e para cá, chacoalhando segredos invisíveis.</span><br />
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;"><br /></span>
<span style="background-color: white; font-family: "verdana" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 12px;"><b>Publicado no Diário (15/1/16)</b></span>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-86149025442363134892017-01-09T05:27:00.001-08:002017-01-09T05:33:43.173-08:00Rebite em branco e preto <div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5dDrH-pdlseS3mxiZNLdkQYRIXWV-1SwW4WUZ016ozWlLV2qcSsmrYrvFALDc6XhstCk0aIm9z3WhGp1GJBSYF8vBB9tM9W1BKBmtSfuVT1Yt0l9Oc4uDhmQLi3nxO57XuAzg_riGg4J8/s1600/rebiteok.JPG" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="332" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5dDrH-pdlseS3mxiZNLdkQYRIXWV-1SwW4WUZ016ozWlLV2qcSsmrYrvFALDc6XhstCk0aIm9z3WhGp1GJBSYF8vBB9tM9W1BKBmtSfuVT1Yt0l9Oc4uDhmQLi3nxO57XuAzg_riGg4J8/s400/rebiteok.JPG" width="400" /></a></div>
A cidade toda parava na quarta-feira. As famílias se reuniam em casa, das 20h à 0h, para ouvir o programa "Noite e Festa", apresentado pelo vozeirão grave de Brasil Filho, semanalmente, na Rádio Cultura. Muitas moças e senhoras e até alguns rapazes não se contentavam com o áudio do programa. E faziam questão de enfrentar a fila para pegar um dos 250 lugares disponíveis no auditório da rádio, localizada na Avenida Herval com a 15 de Novembro. Em 1968, aquele era um dos endereços musicais mais cobiçados pelos instrumentistas da região. Ninguém menos que Erasmo Carlos e os Incríveis chegaram a dar o ar da graça no "Noite e Festa", concedendo entrevistas e entoando seus sucessos. Por isso mesmo, o garoto que acabava de chegar ao centro do palco, escoltado pelo talentoso Geraldinho do Cavaco, estava tão nervoso. As mãos tremiam, o peito batia forte. Sabia que era uma oportunidade única, que deveria fazer bonito. Um erro o condenaria às piadas e à humilhação. Um acerto, talvez, o empurraria para dentro daquele universo misterioso, em que alguns nomes viram estrelas, e outros, de tão grandes, chegam a formar verdadeiras constelações. O garoto abriu o peito e cantou sua própria história: "Eu sou o negro gato de arrepiar /<br />
<br />
E essa minha vida é mesmo de amargar / Só mesmo de um telhado aos outros desacato / Eu sou o negro gato."<br />
<br />
<b>Presente</b></div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
Entoando os versos atrás do balcão da Sapataria, não é difícil imaginar Rebite no palco. A voz ainda está firme, ligeiramente rouca, e mantém algo do grave que o consagrou em 1968, no programa "Noite e Festa", garantindo seu ingresso em três bandas maringaenses: S.O.S (de 69 a 73), Os Cometas (73 a 81) e Escala Company (86 a 96). Mesclando o rock sessentista da Jovem Guarda com veneirão, xote e muito samba de raiz, o garoto finalmente havia entrado no mundo da música. O ápice da carreira foi abrir os shows de Fafá de Belém, Martinho da Vila, Luiz Ayrão, Sandra de Sá e João Bosco no Country Club e na Apoteose. Como crooner, foi responsável pelas canções nas matinadas do Colégio Vital Brasil e nos palcos do Barril (o primeiro bar em Maringá a ter música ao vivo), no Hermácia (onde hoje é o CIQ HM), no Boliche, na Passarela e no Kanequinho (todos os três no mesmo ponto da Paraná) e nos bailes do Vale Azul (hoje abandonado e depredado). "É uma pena: a cidade se transformou, mas não há nada para preservar esses lugares", lamenta Rebite, interrompendo o concerto da sandália marrom para atender o telefone fixo, que acaba de tocar. "Sim, tá falando com ele: Rebite em branco e preto", comenta, rindo, vestindo uma camiseta branca e calça jeans azul.<br />
<br />
A Sapataria tem um longo balcão branco que dá para a Avenida Joubert de Carvalho, 1008. Atrás do balcão, cinco estantes de ferro acumulam sacolas com sapatos e tênis, entre encomendas que já estão prontas e as que ainda serão consertadas. Quatro máquinas de costura, dezenas de cadarços coloridos e cintos em diversas cores, organizados em seus próprios cantos, completam o local de trabalho. Com os olhos no trabalho e os ouvidos na rua, Rebite acompanha a conversa de uma mãe exigindo que o filho termine com a namorada, ouve um homem sussurar pelo celular o horário de um encontro com outro homem, observa o pedinte com um espesso ferro de oitenta centímetros na mão clamando por trocados. Há 45 anos, observa a cidade desse ângulo. Escuta tudo e todos, e frequentemente é cumprimentado pelos amigos, tal como fazem um cego ("Ô, negão!"), um empresário ("Ô, urubu!") e um velho ("Ô, pau de fumo!"), que passam ligeiros demais para uma conversa, estendendo gestos e sorrisos afetuosos. A todos, Rebite responde com acenos e sorrisos. "Eles me tratam com muito carinho: trabalhar assim, sempre conhecido, é uma farra."</div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<br />
<b>Mala de histórias</b></div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<br />
Um sujeito grandalhão, acompanhado pela filha e outras duas mulheres, se aproxima do balcão.<br />
<br />
"Ô, Rebite! Quanto tempo!", diz, estendendo uma mala marrom.<br />
<br />
"Ô, rapaz! Mas que beleza de mala, hein?!"<br />
<br />
Numa rápida avaliação, Rebiote nota que é preciso trocar o tecido revestindo o interior. Quando notou que a mala apodrecia no armário, o advogado Adalberto de Souza, 43, se recusou a mandá-la para alguém consertá-la em São Paulo, onde reside. É uma bela mala, adquirida há quatro anos em Florença. Serviu para trazer parte das roupas usadas na viagem e algumas peças novas, adquiridas na Itália. Esperou chegar o final de ano para vir a Maringá, onde os familiares se reúnem anualmente.<br />
<br />
"Meu pai é cliente do Rebite a vida toda. O trabalho é de muita qualidade", garante o advogado cliente.<br />
<br />
"Vamos jogar couro nela, que tal?", sugere Rebite.<br />
<br />
"Vai ficar caro demais. Vamos de brim mesmo", decide o cliente. "Sabe o que é bacana? Voltar aqui e lembrar de tudo. Ver como a cidade vai mudando aos poucos. O tráfego, que hoje é bem mais intenso. As calçadas, agora cheias de gente para todos os lados. Acho que gostava mais de Maringá quando ela era deserta", diz o cliente, em tom saudosista, olhando para a Joubert de Carvalho.<br />
<br />
O orçamento ficará pronto dali a cinco dias. Rebite anota o número do celular. Não há dúvidas que o cliente autorizará o conserto da sua mala italiana.</div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<br /></div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<b>Pertinho de Pelé</b></div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
O futebol era a casa de Rebite. O pai trabalhava como roupeiro do Grêmio e a mãe lavava as roupas dos jogadores. Ainda garoto, começou a engraxar as chuteiras dos jogadores nos vestiários. Mais tarde, em 1969 e entre 1974 a 76, assumiria o posto de goleiro do Grêmio. No Willie Davids, participou de momentos históricos, como a antológica vitória de 11 a 1 do Santos. Ainda adolescente, Rebite, à beira do gramado, estava a poucos palmos de distância de seus ídolos futebolísticos. Como gandula, lançava, por trás do gol, as bolas direto nas mãos de Gilmar. A mesma bola que segundos depois, estava nos pés de Pelé, Pepe e Coutinho. A gloriosa proximidade, que resultou na humilhante derrota em casa, não incomodava os 20 mil torcedores que berravam o nome de Pelé pelas arquibancadas. Com Rebite, não era diferente. O coração só bateria naquela mesma intensidade, ameaçando pular goela afora, alguns anos mais tarde, quando ele resolveria cantar "Negro Gato", no programa "Noite e Festa", deixando sua marca na música local. O garoto, que queria pertencer apenas ao universo das canções, hoje, aos 64, é um homem de muitos mundos: o mundo do futebol, dos flagras na Joubert de Carvalho, dos sapatos que cruzam calçadas e amam e vivem e morrem.</div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<br /></div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<b>Publicado no Diário (8/1/2017)</b></div>
Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-90237920232608357602016-12-05T05:53:00.001-08:002016-12-05T07:59:36.631-08:00Sempre de portas abertas<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhPSnYzc2EaJjhyphenhyphen9DT-qNW2b-wVhT8amcsDj9t3cvmxI_vUc-lP6Uf1EcELXVP8S0aprOxthyphenhyphen90nNMOxWaarfwIo5Zc4q8FMpYQ0k3mzDX9tTrzLmNhGkUPazInpEv2gI92pRvbyJJeLOLN/s1600/pdf+gullar.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhPSnYzc2EaJjhyphenhyphen9DT-qNW2b-wVhT8amcsDj9t3cvmxI_vUc-lP6Uf1EcELXVP8S0aprOxthyphenhyphen90nNMOxWaarfwIo5Zc4q8FMpYQ0k3mzDX9tTrzLmNhGkUPazInpEv2gI92pRvbyJJeLOLN/s640/pdf+gullar.jpg" width="336" /></a></div>
<div style="background-color: white; box-sizing: border-box; color: #666666; font-family: utopiaregular; font-size: 1.1em; padding: 0px !important;">
Rua Duvivier, Copacabana, a poucos metros do mar. Era ali, no primeiro andar de um prédio antigo, que Ferreira Gullar escancarava seu apartamento para leitores desconhecidos. Ao porteiro, bastava informar o nome e a cidade de onde você vinha. De segunda a segunda, de manhã ou à tarde, o poeta autorizava o acesso para quem quer que fosse, pedindo que a visita subisse. O próprio Gullar, magrelo, alto, sorridente, surgia à porta, cordialmente, já apontando uma longa mesa de madeira. Diante da sala, repleta de quadros, esculturas, colagens e livros, dava conselhos a jovens escritores, criticava as artes plásticas contemporâneas, maldizia meia dúzia de políticos e refletia sobre seu fazer literário, disparando metáforas e sutilezas poéticas.<br />
<br style="box-sizing: border-box;" />
“A vida é pouca”, disse-me Gullar, em um dos nossos dois encontros sem hora marcada. E, na frente dele, emendei o restante dos versos do poema No mundo há muitas armadilhas: “A vida é louca, mas não há senão ela. E não te mataste, essa é a verdade”. Até o maior poeta brasileiro estende o mais longo dos sorrisos quando vê seus versos ganharem vida na trajetória de outra pessoa.<br />
<br style="box-sizing: border-box;" />
<span style="box-sizing: border-box; font-weight: 700;">Contato</span><br />
Nesses encontros improvisados, não havia pressa. Os relógios paravam. As buzinas silenciavam. Os quarenta graus, ali, não te infernizavam. Gullar fazia dedicatórias em quantos livros fossem necessários. Posava para fotos. Até mesmo quando pedi que assinasse meu ukelele, que ele pensou ser um cavaquinho, não recusou o autógrafo. Figura cada vez mais rara em eventos literários, ele tinha consciência do distanciamento de seus leitores. Sabia, sim, de sua importância. Sabia que era preciso, de alguma forma, manter algum contato com seu público. O apartamento da Rua Duvivier era uma ponte, sem mediadores, entre autor e público — jornalistas, estudantes, professores, leitores em geral. E nas vezes em que me recebeu, em 2009 e 2013, despediu-se com o mesmo sorriso gentil, até rejuvenescido pelo encontro.<br />
<br style="box-sizing: border-box;" />
Enquanto poeta, Gullar serviu-se de revoltas e espantos, medos e cenas triviais. Qualquer tema, em suas mãos, rendia grandes versos. O osso da própria perna. O alto preço do feijão — que, ainda hoje, não cabe no poema. Um gato andando pelo apartamento. O desemprego. O número de crianças mortas no Piauí. O branco do açúcar que adoça o café. Um homem — eu?, você? —, à procura do grande amor, olhando para uma vitrine no meio da Avenida Nossa Senhora de Copacabana. A poesia, ensina Gullar, é onipresente.<br />
<br style="box-sizing: border-box;" />
Quanto à morte, deixou belos poemas, como Morrer no Rio de Janeiro, Os mortos e Despedida. Este último, relido agora, arrepia a alma ao traduzir o sentimento do nosso último grande poeta:<br />
<br />
“Eu deixarei o mundo com fúria.<br />
Não importa o que aparentemente aconteça,<br />
se docemente me retiro<br />
(…)<br />
Num alarido de gente e ventania<br />
olhos que amei<br />
rostos amigos tardes e verões vividos<br />
estarão gritando a meus ouvidos<br />
para que eu fique<br />
para que eu fique<br />
Não chorarei.<br />
Não há soluço maior que despedir-se da vida.” </div>
<br />
<div style="background-color: white; box-sizing: border-box; color: #666666; font-family: utopiaregular; font-size: 1.1em; padding: 0px !important;">
Gullar pode até ter sido um homem de carne e de memória, de osso e esquecimento, brasileiro, maior, casado e reservista, mas, definitivamente, não era um homem comum. Homens comuns não deixam legados líricos, nem precisam escancarar suas residências a desconhecidos íntimos. O poeta maranhense, na verdade, jamais morrerá. Uma parte de Gullar estará sempre dentro daquele apartamento, na Rua Duvivier; uma parte de mim, também.</div>
<div style="background-color: white; box-sizing: border-box; color: #666666; font-family: utopiaregular; font-size: 1.1em; padding: 0px !important;">
<br /></div>
<div style="background-color: white; box-sizing: border-box; color: #666666; font-family: utopiaregular; font-size: 1.1em; padding: 0px !important;">
<b>Publicado no Correio Brazilien<span style="font-size: 17.6px;">se (5/12/16)</span></b></div>
Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-26114785555431656222016-11-29T12:29:00.002-08:002016-11-30T07:14:32.528-08:00Raspadinha democrática<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoY1Ck2XV7ISW_1azvFmC9Ujga00XYaI6argxKYeEygjBAVs-nSUnaDLLf-F3aKiH6pWgIl-cJ6MHQ1VYhtkgryNW0CeR6lkhWkEUJv9BKI_9NRA0RhNvR74mKDZVEiIhVO7JizAoKnOv4/s1600/tio+da+raspadinha+recortada.JPG" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="335" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoY1Ck2XV7ISW_1azvFmC9Ujga00XYaI6argxKYeEygjBAVs-nSUnaDLLf-F3aKiH6pWgIl-cJ6MHQ1VYhtkgryNW0CeR6lkhWkEUJv9BKI_9NRA0RhNvR74mKDZVEiIhVO7JizAoKnOv4/s400/tio+da+raspadinha+recortada.JPG" width="400" /></a></div>
Rapazotes com o mesmo cabelo do Xororó e meninas de longos saiotes
cruzam a Avenida Mauá, de olho nas Belinas e Fuscas. A sete passos do
portão do colégio de madeira, outros estudantes se aglomeram em volta de
uma carriola de algodão-doce. A foto, feita em 1982, hoje está
pendurada na secretaria do Colégio Santo Inácio. Quase tudo mudou. A
estrutura do colégio. Os pedregulhos da avenida. As roupas das moças.
Mudaram os carros e os cortes de cabelo. Aparentemente, nada resistiu ao
tempo. Mas basta lançar um olhar mais atento à foto para notar a única
brava resistência: Alair Arengue, hoje com 66 anos, e seu carrinho de
algodão-doce permanecem na mesma calçada do colégio, a exatamente sete
passos da entrada.<br />
<br />
Vestindo uma camisa branca, com três botões
refrescando o calor infernal - o mesmo calor dos tempos d'outrora -, o
ambulante escapa do sol debaixo do boné branco e vermelho. Há 53 anos,
Alair oferece raspadinhas, algodão-doce e chicletes nesse ponto da Mauá,
em frente ao Santo Inácio. "Durante 32 anos, eu ficava aqui pela manhã
e, à tarde, fazia o Marista. Hoje tô velho. Só fico aqui", diz,
sossegadão, encostado em seu carrinho adocicado.<br />
<br />
De raspadinha em
raspadinha, Alair foi esquentando a poupança. Comprou casa própria, há
35 anos, na Vila Operária e, desde que adquiriu um Fusca em 1973, nunca
mais abriu mão de um carro próprio. Hoje, aliás, ele tem dois: um Corsa
1996 e uma Safira 2008.<br />
<br />
Testemunha ocular dos sentimentos
maringaenses, presenciou o amor tomar forma, à sua volta, com os 79.873
casais de adolescentes que, cheios de paixão, engataram namoros
bebericando a mais doce das raspadinhas. Também viu o amor morrer, com
os 79.871 casais de adolescentes que, tempos depois, empunhando a mais amarga das
raspadinhas, terminaram seus relacionamentos. Ao lado do carrinho, Alair
ouviu brigas de mães com seus filhos, brigas de pais com suas esposas e
sustentou conversas com 76.324 crianças esquecidas pelos pais à frente
do colégio, após o término das aulas. Culpa dos tantos atrasos paternos?
Alguma reunião importante? Algum amado secreto? Alguma irrecusável
amante?<br />
<br />
<b>Político, eu?!</b><br />
<br />
Fonte ignorada por historiadores, conhece detalhes que ninguém mais
recorda. "Bem aí onde tá a igreja tem um grande poço de água que atende
tranquilamente toda a cidade. Os maringaenses, isso lá no passado,
formavam filas pra pegar água nesse poço. Depois de um tempão, a igreja
ficou com o terreno. E os padres fizeram questão de arrumar o tal poço. O
tanto de água que os padres daí têm acesso, viu? É coisa de louco",
diz, sentadão na banqueta na calçada, com a mesma tranquilidade de quem
conversa no sofá da própria casa.<br />
<br />
Embora o ponto de Alair seja
fixo, os maringaenses podem encontrá-lo, de tempos em tempos, dentro de
suas próprias residências. Incontáveis candidatos a prefeito já se
apropriaram de seus sorrisos e acenos em propagandas na TV – muitos,
inclusive, fizeram questão de serem filmados abraçando e conversando com
o Tio da Raspadinha. "Acredita que até já me convidaram pra virar
vereador?! Recusei na hora."<br />
<br />
Orgulhoso da clientela, elenca os
nomes que, em tenra idade, já se regalaram com sua raspadinha. "O Silvio
Iwata. O Dr. Sala. O Darlei, do Bom Dia. O Hiran, do Santa Rita. O
Turkinho, do Monte Líbano. Pena que, quando crescem, já não compram
raspadinhas", lamenta. Até mesmo os maiores adversários políticos
encontram, nas raspadinhas de Alair, algo em comum. "O Ulisses Maia foi
meu cliente dos cinco aos nove anos. O Silvio Barros também vinha direto
quando era garotinho. Os dois ainda lembram de mim." A receita para
agradar a gregos e troianos? "Não faço ideia. O que sei é que minha
raspadinha e meu algodão-doce são os mais tradicionais da cidade."<br />
<br />
Circular
por aí com dinheiro no bolso rendeu alguns momentos tensos. Em dois
fins de tarde, Alair tomou voz de assalto. Dois sujeitos trintões,
mal-encarados, sempre na Mauá. "Eram grandalhões desse tamanho, ó. Mas
não contavam com isso", comenta Alair, tirando de um compartimento
secreto, no teto do carrinho de doces, um assustador facão de
açougueiro. "É pra cortar o gelo. E também pra me proteger. Fugiram tudo
em desespero ali pra frente."<br />
<br />
<b>Encontro fatal</b><br />
<br />
"Manhêêê, me dá?", pergunta um garotinho de
cinco anos, que acaba de se aproximar, estendendo os dois braços na
direção das raspadinhas.<br />
<br />
A mãe hesita um instante.<br />
<br />
"Meu filho nunca provou uma raspadinha."<br />
<br />
"Nunca?!", surpreende-se Alair.<br />
<br />
"Quanto custa?"<br />
<br />
"Tem de R$ 3, R$ 4 e R$ 5: cê que manda."<br />
<br />
"Vê a de R$ 5."<br />
<br />
"Seu
filho nunca mais vai ser o mesmo: depois que provar, quando me ver por
aqui, vai ficar louco e chamar pelo Tio da Raspadinha", avisa,
entregando a bebida colorida.<br />
<br />
As duas mãozinhas agarram, firmes, o
copo de plástico. O menino arregala os olhos, surpreso com o azedinho
da menta harmonizando perfeitamente com o doce da groselha. Dito e
feito: quando verá, novamente, o Tio da Raspadinha?<br />
<br />
<i>Perfil publicado no Diário (27/11/2016) </i>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-29415282001373538362016-10-24T12:36:00.001-07:002016-10-24T12:36:37.583-07:00Bafio da fera, Dylan & Raquel no protesto de professores <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEioIgwtl3tAiCu8ZIcvIzkWQSfZo7utg_RYEKJVBVLbEIUzchaghCVzZXuIpUvq61CGWBqJcrbzOWrE1iDWFQ5q3WuE8lAzgaRwU05S3PPqQcAWlk94z2lv658_r87_FNRbfw8j6uY6s0d8/s1600/cronica.JPG" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEioIgwtl3tAiCu8ZIcvIzkWQSfZo7utg_RYEKJVBVLbEIUzchaghCVzZXuIpUvq61CGWBqJcrbzOWrE1iDWFQ5q3WuE8lAzgaRwU05S3PPqQcAWlk94z2lv658_r87_FNRbfw8j6uY6s0d8/s640/cronica.JPG" width="364" /></a></div>
A cidade está mais quente que nunca. Com véspera de segundo turno
beirando os 40° C, maringaenses queimam o verbo em cada esquina,
vociferando a favor de seu candidato preferido. Conversas politizadas,
que começam cordiais e respeitosas nas mesas de bares e cafés, costumam
descambar, rapidinho, para o palavrório de baixos calões, xingamentos,
chutes, pontapés, uma e outra ameaça. Até mesmo sujeitos absolutamente
apolitizados passaram a desfilar longas arengas em defesa de seus ideais
políticos nunca dantes revelados. E, sem um único sopro de vento
geladinho, alunos engajados decidem paralisar escolas públicas,
reivindicando uma série de melhorias. Unidos e organizados, professores
também se lançam em protestos, combinando para bater pernas por seus
direitos numa quarta-feira ensolarada. "O ser humano", já adiantava
Aristóteles, "é um animal político".<br /><br />O calor banha a regata do
gorducho, esgota os palavrões da velha e enriquece vendedor de picolé,
mas não cancela a passeata dos professores. Às duas em ponto - ai, essas
professoras que nunca se atrasam! -, o batalhão de senhoras, rapazotes,
moçoilas e tiozões divide-se na Avenida Carneiro Leão, em frente ao
Núcleo de Educação. Num caminhão de micareta - felizmente, sem os 357
percussionistas -, duas vozes esgoelam palavras de ordem. Entre uma fala
e outra, Raul Seixas canta "Tente Outra Vez". Quem chegou antes cuida
do precioso lugarzinho, debaixo da marquise, na cadeirinha de praia, a
salvo do sol cancerígeno. Três mil manifestantes, dirão, mais tarde,
organizadores? Mil professores, calculará a Polícia? Trezentos e poucos
sujeitos à sua frente? Impossível chegar a um número redondo. Passeata,
assim como a literatura, não é uma arte exata.<br /><br />"Não importa que esteja quente", avisa uma querida professorinha cinquentona, aplaudida pelas três colegas em volta.<br /><br />"Se chovesse pedra, se desse trovão..."<br /><br />"É uma santa provação!"<br /><br />"...nem assim eu ficava em casa."<br /><br />"É como a música, tá ouvindo? Não pode desistir fácil das coisas. Tente sempre, tente outra vez."<br /><br />"Viu só? Até dá mais força, sabe?", comenta a professorinha, que pede mil vezes para não ter o nome revelado.<br /><br />Todas
de roupas confortáveis, guarda-sóis coloridos, tênis ideais para essa
longa estrada da vida. Gentis, falam sobre o desafio de ser professor.
Da necessidade de um ensino de alta qualidade. Revoltam-se contra os
alunos respondões. Como ensinar sobre organelas citoplasmáticas, modelo
do mosaico fluido, proteína alfa-hélice, com moleques vendo nudes? Com
moçoilas mandando nudes? Em tom saudosista, relembram as noites de
graduação, os amores soterrados pelo tempo, a velha canção que sumiu do
rádio, e mais não é possível. Em cima do caminhão, vozes estimulam a
caminhada. Senhoras levantam das cadeirinhas de praia, correm para
guardá-las no carro e invadem o meio da rua.<br /><br />"Olha o sonho! Olha o
sonho!", oferece a ambulante Marily Barbosa, 41. Diante do batalhão de
professores visionários, não é o melhor negócio?<br /><br />Senhoras se
aglomeram em busca do docinho mais que perfeito. "Eu mesma faço e a Benê
me ajuda a vendê", comenta, realizando o sonho dos professores por
apenas R$ 3.<br /><br />Sair da Carneiro Leão, entrando na Joubert de
Carvalho, é adentrar um novo mundo. Maringá Botões. Sajama Tecidos e
Malhas. Mercadinho do Retalho. Sanvest Máquinas. Marinex. Seu Tecido Sua
Moda. Marisol Tecidos. Quantos mais? Na rua que presta homenagem ao
compositor, o comércio é dominado por rolos de tecidos coloridos e
máquinas de costura. Nas empresas, clientes e vendedores esquecem das
compras. Tentam identificar, na multidão, algum rosto conhecido. Dentro
de um hotel, alguém ouve bem alto "Borbulhas de Amor". Na portela da
entrada, uma moça gorducha e de cor vende amor eterno por quinze
minutos. Trinta e poucos anos? Melhor chutar quarenta. Nos grandes
lábios rosados, promessas de êxtases e delírios – qual louca epopeia
você não viveria neste hotel? "Para em teu límpido aquário mergulhar",
grita Fagner num dos quartos. Chinelinho macilento. Shortinho minúsculo
verde-berrante. Celular pendurado na cinturona. Pés escamosos. Unhas
vermelhonas. Blusinha verde-estridente escrita "Beautiful". Barrigona
decorada de fartas veias. Profundas celulites. Teias de estrias. Duas
tatuagens ilegíveis – num quarto escuro, como ler?<br /><br />"Fazer silhuetas de amor à luz da luuua, saciar essa loucuuura", esgoela-se o grande Fagner.<br /><br />"É da polícia, é? Greve da polícia, né?", pergunta a moça, desconfiada, soprando calientes cortinas de fumaça no teu rosto.<br /><br />Do bafio da fera emanam as mil e uma fragrâncias do Rio Bostinha.<br /><br />Já pensou?<br /><br />"Uma noite para unir-nos até o fiiim"?<br /><br />"Cara a caraaa, beijo a beijooo"?<br /><br />"E viveeer para sempreee dentro de tiii"?<br /><br />Ai, não. Melhor não imaginar nada.<br /><br />Os
grevistas já cruzando a Joubert de Carvalho com a Duque de Caxias.
Aqui, nada de tecidos nem máquinas de costuras. Euvany Presentes. JV
Presentes. Gnomos Presentes. Eis a Chinatown maringaense. Nas minúsculas
lojinhas, o punhado de guarda-chuva, relógio, chapéu, carregador de
celular, mochila esverdeada, boneca de olhão esbugalhado. Será tudo
falsificado? Sem clientes - culpa da crise?, do preço?, qualidade do
atendimento?, do sol sacana? -, lojistas correm à porta. Alguns sacam
celulares e enquadram professores em ângulos alternativos. "Acontece
alguma coisa diferente, já sai todo mundo correndo. Acidente de carro,
então?! Tem que ser rápido: todo mundo querendo bater a foto primeiro e
tirar a mais bonita", orgulha-se a vendedora Maria de Fátima, 40.<br /><br />Três
ou quatro quarteirões, e pronto. Tuas panturtilhas começam a protestar.
Como essas senhoras protestantes resistem ao esforço físico?
Alimentam-se da força e do sangue dos jovens alunos? Rejuvenescidas,
sim, muito mais dispostas do que você. O coração dispara rapidinho,
fatigado e farto – será o fatal enfarto?<br /><br />Por sorte, nada de mais.
Ensopado em suor, você é só lamentos. Onde as carrancas lançando nas
praças a água fresquíssima? Onde a Fontana di Trevi para você banhar
pulso, rosto, coração? O diabo arrota lufadas de ar quentíssimo a cada
segundo. Impossível, na passeata, não maldizer mil santos.<br /><br />Um
professor trintão, magrelo e de cabelos desgrenhados, corre para
alcançar os protestantes. Fosse narigudo e judeu, não seria a
reencarnação de Bob Dylan? Uma pena, ninguém cantar Bob Dylan nesta
cidadela infeliz. Por que o maringaense não entoa Bob Dylan? Por que não
existem covers de Bob Dylan? A única brisa geladinha te arrepia a nuca.
A resposta, meu amigo, vem soprada ao vento.<br /><br />"Claro que canto!",
comenta Raquel Costa, com o timbre mais arrebatador que há. "Quer
ouvir?", oferece. Só ela, empunhando um violão, seria digna de
homenagear Bob Dylan. Vinte e poucos anos? Prefere Dylan em folk, rock,
blues? Correndo para protestar? Essas e outras respostas, você nunca
saberá. Improvisado à capella, o canto de Raquel Costa domina as ruas
maringaenses, diminuindo ainda mais Joubert de Carvalho, invadindo os
quartos no hotel, colecionando acenos de trinta e sete motoqueiros,
sendo aplaudido, em pé, por balconistas e gerentes das lojas de tecidos e
presentes paraguaios. O protesto segue, organizado, enchendo a cidade
de canções.<br />
<br />
<b>Publicado em O Diário (23/10/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-28659781259616708942016-09-21T11:20:00.001-07:002016-09-21T11:45:21.455-07:00Famosos & desconhecidos nos corredores da 3ª Flim<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNwjOqpZH7cg6Sj4CYqUavWF-Wovha1E2HabEgQH_aRmdSo9Kjvxeln41BycFnFG1KxLx0XhkTq4JpUDwoh1rjYqrxTBp58kf8G9gAZHLlhZoOz9MBl6BwszLVER0aixu3EBcOrNjGdI0w/s1600/cronicao.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNwjOqpZH7cg6Sj4CYqUavWF-Wovha1E2HabEgQH_aRmdSo9Kjvxeln41BycFnFG1KxLx0XhkTq4JpUDwoh1rjYqrxTBp58kf8G9gAZHLlhZoOz9MBl6BwszLVER0aixu3EBcOrNjGdI0w/s640/cronicao.jpg" width="376" /></a></div>
Toda pessoa esconde um punhado de enredos. Há pessoas que trazem,
dentro de si, romances inteiros compostos por seiscentas e poucas
páginas, repletos de personagens malditos e bondosos zanzando por
diversos cantos do mundo, de São Petersburgo a Manaus, de Marialva a
Madagascar, em enredos dostoievskianos de crimes e castigos, humilhados e
ofendidos, noites brancas, jogadores, idiotas e eternos maridos.
<br />
<br />
Há outras pessoas<br />
que trazem<br />
lirismo na alma<br />
e quando abrem<br />
o verbo<br />
as frases parecem<br />
versos<br />
roubados<br />
de<br />
Manoel<br />
de<br />
Barros.<br />
<br />
Há pessoas com relatos concisos que cabem em mínimas linhas - gente em forma de conto recorre sempre ao silêncio.<br />
<br />
Há
outras pessoas que são, essencialmente, uma novela, e nelas os
microcosmos nunca se estendem demais, nem são excessivamente breves,
compondo um gênero de almas que são um meio-termo literário.<br />
<br />
Na
3ª edição da Festa Literária Internacional de Maringá (Flim), as
histórias não estão apenas nas obras expostas nos estandes: cada alma,
aqui, é um universo literário a ser explorado. Basta observar e ouvir.
Quer ver?<br />
<br />
"A coisa tá tão difícil que até roubaram uma casa na Morangueira, cê viu?"<br />
<br />
"E aquela morte do galã da Globo?! Jesus amado! Logo afogado!"<br />
<br />
"A
casa inteira foi roubada: porta, janela, parede, casinha de cachorro,
teto, só deixaram lá o terreno baldio porque não dava pra levar."<br />
<br />
"Ler é até mais prazeroso do queee... ai, amiga, cê sabe bem do que eu tô falando."<br />
<br />
"Minha
vida tá horrível. Inda bem que tem Tom Zé no sábado. Maior gênio não
há. Tomara que ele toque a serra elétrica e folha de fícus!"<br />
<br />
"Caco quem?! Que nada! Me recuso a ver TV. Rede Vida, Record, SBT?! Eu, hein! Vim mesmo pela Ana Maria Machado."<br />
<br />
"Tomara que cante 'Augusta, Angélica e Consolação': pô, eu também amo o Tom Zé."<br />
<br />
"E o Juarez, que era milionário e agora tá pobre?! Essa Maringá é uma loucura mesmo!"<br />
<br />
"Olha
ele ali, ó, pega a máquina, Fernandaaa, pega a máááquina, mulheeer!
Minha Nossa Senhóóóra, o Caco Barcellos é... do meu tamanho?!"<br />
<br />
O
famoso jornalista da TV Globo cruza a multidão de leitores, escoltado
por seguranças, e, em meio a pedidos de selfies, pedidos de autógrafo,
pedidos de emprego, pedidos de conselhos profissionais, pedidos
amorosos, consegue, enfim, chegar são e salvo, às sete e meia da noite,
ao palco do auditório Flim. No caos que Caco causou, ouço ele dizer em
alto e bom som, coberto de razão:<br />
<br />
"Cada pessoa carrega uma boa história. Todo dia é dia de ir atrás das histórias que estão acontecendo".<br />
<br />
<b>Caçando verbos</b><br />
<br />
Caneca do Mondrian. Tiozões comprando
livros. Tapete do Shakespeare. Kanga do Kafka. Tapete da Clarice
Lispector. Patê de berinjela. Patê de tomate seco. Escultura de algum
objeto não identificado. Senhoras comprando livros. Geleia de mexerica.
Gibi do Batman. Pôster do Homem-Aranha. "Chega de Saudade", do Ruy
Castro. Dois volumes da autobiografia do Fernando Henrique Cardoso.
Pencas de livros redigidos por jovens celebridades do YouTube. Dois
garotos comprando contos. Caça-Palavras nível fácil. Caça-Palavras nível
difícil. Toda sorridente, pôster de Maria. Todo sorridente, pôster de
Jesus. Todo sorridente, pôster do Lucas Lucco – epa, até aqui?! Cantores
sertânicos não te dão descanso nem na Flim.<br />
<br />
"O pôster do Luan
Santana já acabou: esgota sempre rapidinho. Nas capitais, o Justin
Bieber é nosso carro-chefe. No interior, só dá Luan: a meninada adora
ele", comemora, feliz da vida, o vendedor.<br />
<br />
Gente fina, ele parece ter cara de novela e topa interromper as palavras-cruzadas, debruçado ao balcão, para uma breve conversa.<br />
<br />
"Segunda vez que participo dessas feiras literárias. A empresa em que trabalho é grande, tá sempre na Bienal de São Paulo."<br />
<br />
"Entre uma e outra venda, a descoberta da palavra certeira?"<br />
<br />
"Rapaz, isso faz um bem pra mente que nem te conto. Descubro uma nova palavra a cada minuto que passa."<br />
<br />
"E quanto tempo leva para esquecê-la?"<br />
<br />
"Esqueço logo em seguida! É difícil, viu, guardar tanta palavra de uma vez."<br />
<br />
"Algum conselho para iniciantes de palavras-cruzadas?"<br />
<br />
"Vários.
Para fazer bem essa arte, você tem que ter algumas coisas básicas: 1)
Paciência; 2) Trabalhar a memória; 3) Concentração máxima; 4) Paz
interior."<br />
<br />
Chego a segurar uma edição baratinha, em dúvida se
levo ou não. Deixo para lá. Não tenho nenhum requisito básico para caçar
palavras – elas mesmas é que me caçam.<br />
<br />
Mulher de mil livros<br />
<br />
Romance do Mia Couto. Romance do
Faulkner. O consumo não é ruim: ruim, sim, é o consumismo – versão
desenfreada de compras alucinadas. Às cinco da tarde, uma jovem de
dezoito anos, ao lado de uma pilha de livros, te aborda com o sorrisinho
mais generoso.<br />
<br />
"Conhece esse livro?", questiona.<br />
<br />
Capa preta. Desenho de mulher. O nome não te lembra nada.<br />
<br />
"Conhece essa autora?", insiste, apontando o nome Jessica Sanz.<br />
<br />
Jéssica.
Não venceu Jabuti. Nem Prêmio Portugal Telecom. Não foi publicada pela
Patuá. Jéssica, Jéssica. Não está na Record, na Cosac Naify, na
Companhia das Letras. Jéssica.... Não foi tema de resenha. Não virou
matéria. Não saiu em nota. Jéssica Sanz: você força cada centímetro da
memória à caça do nome, mas nada não recorda.<br />
<br />
"Sou eu mesma, muito prazer: sou romancista", apresenta-se a moçoila, estendendo a mão.<br />
<br />
Gentil,
a jovem fala de seu livro com detalhes empolgantes – você, de volta
para casa, entretendo familiares depois da longa viagem. Enredo que
mistura elementos da fantasia. Amigos virtuais que conheceu num jogo
chatíssimo pela internet e inspiraram personagens. Final sempre feliz,
com casais unidos até que a morte os separe – as ilusões da juventude
são sempre maviosas.<br />
<br />
Vinda de Campos dos Goytacazes (RJ), Jéssica
Sanz participa da segunda feira literária de sua vida. A primeira, há
alguns meses, em sua cidade natal, foi um sucesso estrondoso. "Vendi
todos os cem exemplares do meu livro", comenta. Na segunda edição,
custeada pelo pai-mecenas, resolveu aumentar vertiginosamente a tiragem:
"Imprimimos mil livros", detalha.<br />
<br />
Mil edições, ela diz, custaram
a bagatela de R$ 7 mil. Com essa grana, você não passaria uns dias em
Paris, jantando no Le Procope e bebericando na Brasserie Lipp?! Mesmo em
tempos de crise, com investimentos de alto risco na maldita
instabilidade econômica, a jovem está confiante no negócio verbal. "Se
eu vender todos os mil livros, meu lucro chega, em média, a R$ 30 mil".
Com essa grana, quantos dias você não passaria em Paris?<br />
<br />
<b>Mundão marginal</b><br />
<br />
Esbarro em outros desconhecidos autores.
Simpáticos sujeitos com jeito de contos, eles me oferecem espumante em
tacinhas de plástico e tentam me vender seus versos - alguns, melhor
evitar. Noutro canto, quarenta e nove velhos aspirantes a Emiliano
Perneta declamam poeminhas parnasianos sobre tua chatíssima igreja-cone.
Basta ouvir uma única estrofe para ter noção de sua obra completa - não
permita, Deus, que terminemos assim.<br />
<br />
Moçoilas vestidas de
bruxinhas e Branca de Neve fisgam fascinações de dez meninos e meninas,
em meio a contações de histórias - daqui a alguns anos, desse grupo
pequenino não sairá um grande escritor?<br />
<br />
Para onde quer que você
olhe nos corredores da Flim, a literatura está presente. Forçando a
vista, é possível encontrar até detalhes marginais, como no caso da
estudante Heloísa Gomes. Aos dezesseis anos, ela entra na sala de aula e
vai logo escondendo um livro debaixo da mesa. Nas aulas de Geografia,
História, Matemática, Literatura e Física, ela não resiste à tentação. E
na subversão mais poética que há, esperta para jamais ser flagrada por
professoras carrancudas, recorre aos clássicos de Jane Austen. "Ela é
maravilhosa. Já li três romances e me identifico muito", comenta. As
amigas, ela reclama, infelizmente não têm o mesmo hábito. "Mais chegadas
em série de TV, joguinho de celular, bobeira de Facebook."<br />
<br />
<b>Conselhos premiados</b><br />
<br />
Com atrações gringas, nacionais e
novos autores, a Flim sobrou até para mim. Incumbido de fazer uma
mediação, preparei algumas perguntinhas ao grande José Eduardo Agualusa.
O premiado escritor angolano, autor dos romances "O Vendedor de
Passados" e "Teoria Geral do Esquecimento", chega em cima da hora,
precisamente às 19h30. Alunos de Letras, famigerados professores da UEM e
leitores em geral compõem a plateia. Agualusa tinha 27 anos quando
escreveu sua primeira obra, o romance histórico "A Conjura". Uma
estratégia um tanto incomum para quem está iniciando a trajetória
literária. Pergunto a ele sobre essas primeiras linhas incomuns,
arriscadas, e, com um sorriso irônico, o grande Agualusa dispara a
resposta: "Para escrever, é preciso ser um pouco irresponsável".<br />
<br />
Bem-humorado,
fala sobre: 1) o processo de escrita de suas obras ("escrevo para saber
como a história vai terminar"); 2) revela a importância do sono ("chego
a sonhar diálogos inteiros, com personagens e cenários"); 3) indica o
caminho da bonança ("escrever não vai te fazer milionário; para ficar
rico, basta entrar para a política"); 4) lembra a influência das grandes
linhas ("o bom livro é aquele que te dá vontade de escrever"); 5)
comenta a afinação das lagartixas ("infelizmente, as lagartixas nunca
cantaram para mim, só sorriram"); 6) entre outras delicadezas poéticas.
Da plateia surgem leitores angolanos e moçambicanos, todos felizes da
vida em encontrar o nobre escritor africano.<br />
<br />
<b>Fama & glória</b><br />
<br />
Ao descer do palco, Agualusa é abordado
por leitores. Isso é comum nesse tipo de evento. As atrações principais
atendem o público, enquanto os mediadores seguem para casa ou para o
bar. Os leitores pedem fotos, autógrafos, beijos e abraços. Deve ser bom
ser querido pelos leitores, imagino, também descendo do palco. Com pés
no chão, já disposto a correr rumo às mesas do Divina Dose, sou abordado
por um sujeito quarentão.<br />
<br />
"Você, então, é o Gaioto?"<br />
<br />
Sujeito de boina, alguns papéis na mão, olhar vidrado de artista.<br />
<br />
"Gosto bastante dos seus textos. Leio todo domingo."<br />
<br />
Quem diria?! Agradeço o elogio. Maior felicidade não há que encontrar um leitor - esse, por sua vez, é exigente.<br />
<br />
"Acho
que você deveria fazer uma crônica sobre minha vida. Fui artista de rua
na Europa, imitando Chaplin e ganhando 100 euros por dia! Lá fora, sim,
o artista é valorizado. Não aqui, onde tratam a gente feito bicho,
marginal, mendigo."<br />
<br />
Há pessoas que carregam longas epopeias.<br />
<br />
"A
gente poderia sentar num bar, tipo que nem aquele texto com o Demarchi,
e falar sobre mim e sobre a morte, ando pesquisando muito sobre o tema.
Sou judeu, amigo da família Leminski, minha vida dá uma crônica! Você,
por acaso, tem um cigarro?"<br />
<br />
"Sinto muito, não fumo."<br />
<br />
Baixando o tom, olhando para os lados.<br />
<br />
"E uma ervinha, tem?"<br />
<br />
"Puxa vida, não sou chegado."<br />
<br />
"Que tipo de intelectual é você?"<br />
<br />
"Nenhum! Cronista frustrado, poeta medíocre, músico manco, maestro incapaz de ler partituras: esse c ara sou eu."<br />
<br />
Arranco um sorriso do leitor e já sou abordado por um senhor com o mesmo chapeuzinho lusitano de meu avô. Setenta e poucos anos?<br />
<br />
"Sou
amigo do Rui, lá do Diário, e te leio todo domingo. To-do do-min-go!
Não acredita, é?! Um dia, pedi que o Rui falasse pra você do quanto eu
gosto dos seus textos, ele não falou? Vim na Flim só pra te ver."<br />
<br />
Inacreditável.
Eis a tão esperada glória?! Pergunto nome, idade, vou agradecendo os
tantos elogios, embora eu não mereça nenhum deles.<br />
<br />
"Só não gosto quando você fala de... Deus", comenta, com risadinha sacana e me dando um tapinha nas costas.<br />
<br />
Que senhor bacana. Por essa, nunca esperava.<br />
<br />
"Venho lendo suas crônicas todo domingo", revela uma senhora chamada Luzia, "não perdi a oportunidade de vir te ver."<br />
<br />
Pô, melhor que Prêmio Jabuti, Portugal Telecom, Nobel de Literatura.<br />
<br />
"Já fui em outros eventos literários em que você estava. Gosto dessas apimentadas que você dá na conversa", diz a doce senhora.<br />
<br />
Ainda
estupefato, vou cumprimentando outros leitores. Todos muito gentis,
cordiais, bem-humorados: se, com estas crônicas dominicais, você
consegue carregar leitores para um encontro com Agualusa - este, sim, um
escritor de verdade - então tua missão está cumprida.<br />
<br />
<b>Publicado no Diário (18/9/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-73599776578953573962016-09-05T12:24:00.001-07:002016-09-05T12:24:37.187-07:00Na busca de um bom boteco, em busca de Maringá perdida<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh4lEkQewn8We2pkyLHz4FEh9uujc_bhBKZdR_7RE4odEI_IWzHr8pbsTY4p3wrozF4DdIwx7kwR8JlhZCwt-hKKSbBbzeO_SaDWKwQpHQZLh1KpW1-K9uB_vftEsgJ_Woc94ppLpMEq5Io/s1600/demarchi.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh4lEkQewn8We2pkyLHz4FEh9uujc_bhBKZdR_7RE4odEI_IWzHr8pbsTY4p3wrozF4DdIwx7kwR8JlhZCwt-hKKSbBbzeO_SaDWKwQpHQZLh1KpW1-K9uB_vftEsgJ_Woc94ppLpMEq5Io/s400/demarchi.jpg" width="235" /></a></div>
Ademir
Demarchi está confortavelmente sentado numa das mesas do Divina Dose.
Quase não o reconheço: protegido pelo frio, refugiado sob uma dessas
toquinhas bolivianas, preparadas em lã azulíssima. Observo-o de longe,
concentrado em anotações: quieto, escutando anonimamente as histórias
dos clientes em volta, rabiscando frases e expressões numa caderneta.
Cuidado, você, ao confessar teus segredos no bar: escritores podem
surrupiar todos teus detalhes. Encho o copo de Serra Malte geladíssima e
já vamos engatando assunto. Milan Kundera & Mia Couto. Geraldo
Vandré & Woody Allen. Michel Houellebecq & Paolo Sorrentino –
essas duplas, sim, você encara sem medo. "Vir pra cá me deixa um tanto
melancólico", desabafa o grande poeta e cronista do Diário, em passagem
pela cidade para visitar alguns familiares.<br /><br />Eu também ficaria
extremamente melancólico, se estivesse na pele do Demarchi. Não deve ser
fácil abandonar, ainda que por uns dias, a luxuosa cobertura em Santos,
com vista de frente para o mar, e regressar às remotas ruas do passado.
Para alguns autores, a cidade - ou seu distanciamento dela - é
extremamente importante. Impossível ler Kafka sem refletir sobre sua
relação conturbada com Praga. Ninguém fica imune a São Luís versada no
"Poema Sujo", do Ferreira Gullar, nem a Combray mitificada por Proust.
Em busca da Maringá perdida, pergunto ao cronista sobre suas memórias,
caçando resquícios de 1975 a 1985, período em que Demarchi viveu por
aqui.<br /><br />"Infelizmente, algumas coisas não resistiram ao tempo.
Sinto falta de uma portinha, perto da banca do Massao, que vendia uma
porpeta frita muito saborosa, feita lá mesmo. Sinto falta do Cine
Maringá, Cine Plaza, Cine Horizonte, Cine Pedutti. Da Biblioteca
Pública. Do antigo calçadão rústico da praça da Prefeitura, que foi
azulejado por um arquiteto desses aí que azulejam paisagem", lembra,
saudosista, encarando o copo à frente, criando casas, casebres,
casarões, ruas, avenidas e uma imensa Catedral a partir da espuma da
cerveja, que ele faz questão de entornar, sedento, num só gole.<br /><br />Sempre
atencioso, Seu Valter pousa outra Serra Malte e vamos molhando o verbo
na mesa 33. Comento com Demarchi meu sonho recente: eu estava morto,
todo de branco, e bebia com vários amigos (ele, inclusive) naquele
boteco. Se há um único paraíso em Maringá, esse lugar é o Divina Dose.<br /><br />Crítico
severo de bares, Demarchi concorda. "Não me lembro de bares que me
marcaram na minha Maringá de antigamente. Havia uns pontos de encontro,
os bares na Zona 7, insossos, e a Cantina da UEM até o fim das aulas. Na
juventude, a diversão era improvisada nas festinhas de bairro: uma lona
no quintal, muita música de toca-discos embaixo e rock alternado com
música melosa pra se grudar com as moças. Bebida barata, vida simples",
comenta, com um sorriso sacana.<br /><br />"Como eram as belas maringaenses da sua época? Existiam tantas loiras quanto nos dias de hoje?", vou sondando.<br /><br />"Não
é tão diferente de hoje, está aí você casadão em plena juventude se
metendo à besta. Eram todas casadoiras, aliás, como todas as mulheres,
românticas incuráveis nessa Maringá, a sentimental. Muitas, muitas
caipiras. Me apaixonei umas vezes por minhas fantasias, tive uma
primeira namorada vestida de pétalas de rosas e me evadi em busca do
Santo Graal que ressoava na distante voz de uma sereia."<br /><br />"O amor é lindo", digo, tirando uma gargalhada do poeta, que acaba de publicar um livro com esse mesmo título irônico.<br /><br />"No
dia em que impichmaram a Dilma, acho-a uma chata, mas sua cassação foi
uma encenação feita por bandidos, pois bem, o que dizer quando nesse dia
marcante para a história do País abri um jornal e li duas manchetes:
'Homem ateia fogo em carro onde ex estava com namorado em Piracicaba' e
'Separação de William Bonner e Fátima Bernardes causa comoção na
internet'. A notícia mais importante era a liquidação da empresa Bonner
& Bernardes Ltda. O amor é lindo", sacaneia o poeta, esvaziando mais
uma Serra Malte.<br /><br />A Maringá de hoje tem Festa Literária
Internacional. Tem festival em que músicos de outros Estados executam
Shostakovich, Brahms, Chopin. Tem exibições de filmes alternativos. Tem
festival de jazz com big bands. Tudo isso com entrada grátis.<br /><br />"Minha
Maringá não teve nada disso. Minha época exigia atitude, fazer jornais,
fazer teatro e criamos um cineclube, que reunia meia dúzia, pois os
cinemas não davam o que queríamos de cinema europeu, japonês, russo,
italiano, onde pulsava a vida longe do cinema norte-americano."<br /><br />"Difícil acesso a livros, filmes, discos... Como você sobreviveu àquela infernal Maringá?"<br /><br />"O
jeito era viajar atrás da cultura. Fiz muitas viagens, fui parar até
num encontro de cineclubes numa cidade italiana perto de Vitória, no
Espírito Santo, dias de viagem de ônibus, onde me embriaguei com vinho
de jabuticaba, assistindo um gay interpretar ao piano e cantando Lisa
Minelli e seu 'Life is a Cabaret'..."<br /><br />"!?"<br /><br />"...não me
interessei pelo ator-poeta e seus olhares melífluos e conheci uma
húngara que me introduziu nos mistérios gozozos diluindo refinadamente a
embriaguez do vinho de jabuticaba feito pelos monges daquele monastério
em que estávamos hospedados e que depois me acompanhou até São Paulo,
onde nos hospedamos em um hotelzinho perto do Teatro Municipal,
passeamos pelo Anhangabaú e aprendi a amar a cultura húngara e suas
proximidades a um ponto em que tenho praticamente todos os autores
publicados no Brasil, a começar por um 'Tradutor Cleptomaníaco' e acabar
com 'Antologia da Literatura Ucraniana', de Wira Selanski, uma raridade
que teve adaptação poética sabe de quem?"<br /><br />"?"<br /><br />"Nossa Helena Kolody."<br /><br />"!"<br /><br />"Como você pode ver, Maringá, essa sentimental, me fez ir longe para estar sempre de volta."<br /><br />Demarchi
pede umas cachaças para rebatermos a cerveja geladíssima. Dona Ione,
sempre gentil, ajeita os copinhos translúcidos de onde emanam os doces
perfumes dos porres homéricos.<br /><br />"A frase do Dickens 'aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos' se encaixa bem na sua Maringá?"<br /><br />"Perfeitamente.
O lugar da juventude é esse, o melhor e o pior ao mesmo tempo. Se se
consegue um blend perfeito disso, tira-se um ótimo vinho para a
velhice", aconselha.<br /><br />Nosso diálogo é degolado por um jovem
moreno. Um metro e sessenta, bicicleta estropiada, celular hipermoderno,
empilhando três metros de tapetes coloridos.<br /><br />"Vamo comprá tapete hoje?", oferece, gentilmente, Johnny Tapete.<br /><br />Culpa
da crise, recusamos os adornos de chão – na tua casa, os dezoito
tapetes vendidos noutras noites pelo mesmo Johnny Tapete, quando você
estava ligeiramente alcoolizado, já não lotam teus armários? Figura
folclórica da noite maringaense, ele insiste.<br /><br />"Não é um tapete
comum: é um tapete voador", garante, erguendo na altura do rosto uma das
opções de tapetes e deixando cair, de uma vez, rumo ao chão.<br /><br />Propaganda é mesmo a alma do negócio: mais três tapetes, de Johnny Tapete, para tua vasta coleção.<br /><br />"Tua Maringá é muito melhor que a minha. Como pude viver, nesses 56 anos, sem conhecer Johnny Tapete?", questiona-se Demarchi.<br /><br />Seu
Valter traz nova rodada de cachaça e outra Serra Malte com a noitada
avançando é ali que eu pergunto sobre a meretriz septuagenária Tia Maria
"sou virgem disso" & a famigerada Mansão de Pedra "um mito para
mim" e como foi mesmo aquele dia em que ele assistiu Lula discursar na
carroceria de um caminhão em frente à Igreja São José eu estava na
organização mas não me lembro das conversas que tenha tido e das
relações de Kurosawa & Trotski ou de como Beckett & Peppino di
Capri se encontram e se afastam não sei os motivos agora que nos levaram
até o Gógol talvez sejam as descrições do "Almas Mortas" mas não posso
afirmar com veemência daí Demarchi tira o celular do bolso aponto para
ele rindo da touca chilena quer dizer boliviana tá muito estranho mesmo
cara e dou risada quando ele lê um trecho bom à beça do começo de um
conto? romance? nunca ouvi falar desse escritor caramba me envie amanhã
porque eu com certeza claro que mando pode deixar vou esquecer sem falar
na ressaca esse escritor é ótimo o amor Gaioto é um dos maiores FÓUM
FÓUM males contemporâneos eficientemente incorporado FÓUM FÓUM como um
dos mais profícuos meios de alimentação do capitalismo FÓUM FÓUM FÓUM
FÓUM um caminhão de bombeiro cruza a frente do Divina Dose com luzes
faiscantes será incêndio em prédio? na minha casa? gato no alto da
árvore? criança engasgada com comida? e bebericamos a terceira rodada de
cachaça a sociedade das formas econômicas que moldam os afetos e os
transformam em objeto o casamento é uma encenação caríssima feita pra
alegrar mulher e damos risada e brindamos porque é um teatro ele diz
erguendo o copo é uma grande produção é uma relação de contrato
empresarial e Seu Valter atende meu pedido trazendo conta e saideira
quando pagamos no crédito com Demarchi declamando um dos seus novos
poemas "O Amor"<br />
<br />ar aprisionado num vidro <br />com tampa de pedra <br />em forma de pássaro<br />
<br />
<b>Publicada em 4/8/2016 </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-48526095022268798402016-08-16T07:11:00.001-07:002016-08-16T10:04:13.864-07:00Tome muito cuidado ao contemplar o pôr do sol<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjli98GaAM4RiySxWHhNBCMZHt5ucJUlo2c1quS84nI4s1fFJLQvtKG0EPtgQaj6Q6moQA2JkWRtaqxqgIPE7CH5S_8fK_e7G7zPqdlpxr4WmXfcVZr2WJPwQwXeVEGFTwKhI363pYwUEYB/s1600/cronica+gaioto.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjli98GaAM4RiySxWHhNBCMZHt5ucJUlo2c1quS84nI4s1fFJLQvtKG0EPtgQaj6Q6moQA2JkWRtaqxqgIPE7CH5S_8fK_e7G7zPqdlpxr4WmXfcVZr2WJPwQwXeVEGFTwKhI363pYwUEYB/s400/cronica+gaioto.jpg" width="315" /></a></div>
Os dramas urbanos dão vida às cidades. Enchem as esquinas de dúvidas,
refletem o passado no ponto de ônibus, planejam crimes e pecados
enquanto desviam de motoqueiros imprudentes, disparando rajadas de
palavrões. Nos semblantes desarmônicos, um pouco de tudo. Repare em cada
pedestre. Ciúmes. Preguiça. Inveja. Desejo. Tédio. Gula. Paixão.
Rancor. Frustração. Medo. Orgulho. Preconceito. Ódio. Desespero. Pânico.
As calçadas são um safári sentimental. Você, quando caminha, também
ouve os sussurros das ruas? Confissões, desabafos e alguns detalhes
revelam, aos poucos, os enredos das tuas cidades.<br />
<br />
"Mãezinha, a
genti não pódi complá: a gente não tem dinhêlu." <br />
"A vizinha até ligou
pro síndico. Toda semana, me inferniza. Ela é sabe o quê? Uma mal..."
<br />
"Comida. Não aguento mais lanche: hoje, quero feijoada completa."
<br />
"...caráter. Que culpa eu tenho se a vizinha do andar de cima fica
andando de salto?!" <br />
"Um beijão pra senhora, Dona Olga, e um abração pro
Seu Sato!" <br />
FÓÓÓÓÓÓÓÓM – a buzinada de um caminhão esmaga a fala alheia."<br />
"Só
se fala nisso, amiga: no casamento da socialite Camila Costa, em
outubro. Sonho da minha vida é participar da alta sociedade
maringaense." <br />
"Reboco, ó: igual tua casa, tá vendo?!" <br />
"Praia?! Cê tá
louca. Com que dinheiro, amor?!" <br />
"O plano de saúde tá impossível. Tô
tentando operar a mãe no plano de alguém."<br />
"Olha só. Que bonito. Todo
mundo trabalhando!" <br />
"Vô é terminá com aquela safada. Sei que saiu ontem
com o Claudinho, acredita?! O Claudinho!"<br />
<br />
Em cinco minutos, você
testemunha amores e ódios de atores anônimos no trecho interditado da
BR-376. O palco é a passarela recém-construída em Sarandi, num dos
principais acessos à cidade, ligando a Avenida Antonio Volpato à Ademar
Bornia. No processo de construção de dois viadutos, o trânsito foi
desviado pelas marginais da rodovia. Diariamente, cerca de 30 mil
veículos cruzam esse trecho sarandiense, entre buzinadas e xingamentos,
num louvável exercício de paciência. A caminho de casa, pedestres
exaustos fazem uma pausa. Dezenas deles. Rostos calados, ardidos,
sofridos e suados – não são os mesmos rostos da "Manifestação", do
grande Antonio Berni? Debruçados sobre a passarela, mergulham fundo na
solidão e refletem segredos em silêncio - cogitam, eles, desistir da
existência?<br />
<br />
"Nunca! Tava aqui pensando no futuro", explica o
ambulante Moacir Souza, 28, assistindo as três dezenas de operários, lá
embaixo, manchando botas, calças e camisetas com respingos de cimento e
cal. Antes de vender água (R$ 2), suco (R$ 2) e refrigerantes (R$ 2,50)
em cima de uma bicicleta, aproveitando o trânsito da BR-376, Moacir
passava manhãs e tardes construindo residências alheias. "Ganhava diária
de R$ 80. Chapando parede, fazendo requadro: a coisa mais difícil que
tem. Fiz casas e até um prédio em Maringá, na Vila Operária. Hoje, no
trânsito, chego a ganhar R$ 70. Mas quero fazer um curso técnico e
arranjar trabalho decente. A rua é incerta: num dia dá grana, no outro
não dá nada. Há um ano, saí de Dourados, no Mato Grosso do Sul, com
mulher e filho porque lá não tinha emprego. Mas, aqui, a situação também
tá difícil. Se não melhorar, o jeito é voltar pra Dourados e morar
junto com a minha mãe", comenta, escavando a memória, enquanto máquinas
cavocam a terra vermelha.<br />
<br />
A rua é incerta. O trabalho é incerto. A
vida é incerta. Única coisa só é certa: ao lado do Moacir, outros
rostos calados dão seus saltos introspectivos e parecem encontrar, ali,
melhores soluções às tantas divagações. "Ver essa trabalheira faz bem
pra cabeça da gente", garante um. "Ajuda a relaxar depois do trabalho",
comenta outro. "É até bonito, não é, não?", avalia o terceiro.<br />
<br />
Suor
azedo. Terra seca. Pipoca doce. Perfume picante Jequiti. São vários, os
aromas da passarela. Sete tiozões embasbacados não com as moças do
Leblon, não com a maré de Copacabana, não com a vista privilegiada do
Pão de Açúcar numa das mesas do Porcão, mas, sim, com a construção de
Sarandi.
<br />
<br />
<b>Churrasco de um homem só</b><br />
<br />
Do outro lado da passarela, sinto
de longe o cheiro de espetinhos. Na calçada, ao ar livre. Churrasco de
um homem só. Onde os amigões? Onde a lambada e o rala coxa? Onde a
música em alto e bom som? Quase seis da tarde, a fome bate forte e
atravesso em direção aos acepipes na brasa. A dois passos do churrasco,
sou tomado pelo fedor de porcos obesos e fezes amargas – um caminhão de
suínos despeja aromas ácidos nas ruelas de Sarandi. Guiado,
possivelmente, pelo porqueiro Eumeu, o caminhão levanta a poeira
vermelha que ameaça teu chapéu e espirra cinzas e poeiras sobre os
espetinhos de carne e frango, protegidos por uma tampa de metal. A fome -
ela também incerta - passa rapidinho.<br />
<br />
"A crise tirou 30% do meu
movimento. A construção daí da frente, 40%", lamenta o empresário José
Roberto, 55. Proprietário há três anos do restaurante Cabana, que abre
diariamente para almoços, José teve que virar churrasqueiro para
diminuir o prejuízo. Durante a semana, das 16h às 20h, ele oferece carne
e frango aos motoristas, na calçada do restaurante.<br />
<br />
"Vendo
espetinho bem baratinho, a R$ 3. Mesmo assim, o povão não tem dinheiro
pra comprar", lamenta o churrasqueiro da Cabana. Engraçado, esse nome.
Cabana, Cabana... Não soa familiar? "Não era aqui, a única casa noturna
de Sarandi?" "Exatamente: Cabana 40 Graus. Fechou faz tempão", esclarece
o sujeito. A tal Cabana: reduto infernal de funkeiros, cantores
sertânicos e outras pragas sonoras. "Não mataram alguém numa dessas
noites de funk dentro da Cabana?", pergunto.<br />
<br />
"Teve isso, sim.
Realmente. Mas foi fora da casa noturna, que fique claro." Com a morte,
a única casa noturna da cidade fechou as portas. Desde então, a noite
em Sarandi não tem mais teto.<br />
<br />
"O pessoal compra espetinho para apreciar a vista da passarela?"<br />
<br />
"Nem
tanto. Quem compra são os motoristas. Mas o pessoal passa o dia todo aí
na passarela. Olhando o trabalho, passando o tempo. Incrível, né? Virou
ponto turístico da cidade."<br />
<br />
"O que buscam, os tantos turistas?"<br />
<br />
"Parece que é bonito ver máquina cavocando. Dizem até que relaxa."<br />
<br />
"Tipo pescaria?"<br />
<br />
"Nem
se compara! Pescar é muito relaxante. Eu mesmo pesco uma vez por ano no
Pantanal. Os amigos vão junto. A gente pega Dourado, Piapara, Pintado,
um pouco de tudo. E volta sempre mais jovem, com força pra trabalhar
melhor."<br />
<br />
<b>Ruivinha hippie</b><br />
<br />
Hordas de jovens, tiazonas, tiozões e
velhos cruzam o novo ponto turístico. No meio da passarela, empunhando
caneta e bloco de notas, você sinaliza com três braços à ruivinha hippie
de fone nos ouvidos. Claro que ela não compreende o que você diz.
Simpática, vai despindo os fones, e aceita a pausa para ouvir teu verbo.<br />
<br />
"Todo
dia venho notando esse pessoal parando, mas eu mesma nunca parei pra
olhar o que tem lá pra baixo", comenta a ruivinha. <br />Camisa de deus
indiano, pulseiras hippies, colar de filtro dos sonhos.<br /> "A gente acaba
não percebendo os detalhes. Das pessoas trabalhando. Das naturezas. Esse
pôr do sol..." Setenta tons vermelhos misturados ao doce perfume da
ruivinha. <br />"...não é lindo?!" <br />O mestre Monet não seria mais impactante.
De um lado ou de outro, nada de prédios para atrapalhar a obra-prima.
Quatro velhos embasbacados no Louvre logo seguem o rumo, deixando, para
você e sua ruivinha, o bendito espaço na passarela.<br />
<br />
"Ei, moço, só
não olhe demais para o sol, tá?" <br />
"?" <br />
A última máquina vai resfolegando:
fim do expediente dos operários. <br />
"Dizem que o sol tem poderes mágicos:
se você olhar demais, acaba ficando preso no lugar dele, e ele no seu."
<br />
"Não creio nessas crendices." <br />
É doce, o místico riso de uma ruivinha. <br />
"O
que há de bom pra fazer em Sarandi?"<br />
"Nada...." <br />
Olhos melancólicos da
mais profunda tristeza. <br />
"...não tem arte..." "!"<br />
"...não tem um bar de rock..."<br />
"!!"<br />
"...nem balada que toque música eletrônica...."<br />
Não seria, esse, único lado positivo?<br />
"...Sarandi é uma cidade maravilhosa, se você quer morrer de tédio", ela diz.<br />
"Maringá é uma cidade maravilhosa, se você quer ser esfaqueada no meio da rua", devolvo.<br />
<br />
Ela
estende sorrisos, evitando encarar o sol – qual dos dois, mais
vermelhinho? O vermelho do sol soa um tanto assustador. Há algo de
infernal e sedutor no pôr do sol de Sarandi. Lembro as palavras da
ruiva: tome cuidado com o sol. Encaro-o bem, quase sem medo: não parece
enigmático nesse fim de tarde? Fixo os olhos sem piscar. Um tanto
surpreso, vejo meu rosto na passarela, enxergo os detalhes daqui do
alto: o chapéu preto, a camisa florida, o bloco de notas na mão. Faz
calor demais aqui em cima. Nunca senti tanta febre nem cobicei tanta
água. Lá embaixo, uma velha repreende o neto, que desiste de me olhar e
protege a vista com as duas mãos. Quero correr, mas sinto o corpo
pesado. Tento descer de uma vez, mas é impossível. A ruivinha hippie se
despede e vai embora, caminhando em direção à Avenida Londrina. Lá
embaixo, o corpo que me pertencia continua me encarando. Parece dizer
algo, só que é impossível ouvir de tão longe. Será uma despedida? Tento
gritar, mas, que diabos!, não há qualquer voz para gritar. Ele entra no
carro e acelera feito louco. Espero que faça o que eu faria. Que siga
para o jornal e escreva a crônica sobre o novo ponto turístico de
Sarandi, a passarela que eu, agora, ilumino nos fins de tarde. <br />
<br />
<b>Publicado em O Diário (16/8/2016)</b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-45988932984421236162016-08-08T05:09:00.000-07:002016-08-08T05:22:58.361-07:00Dona Idalina, papo com a Morte e quatro saltos fatais<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiDWYUkeQ1RTddi-0HVFCJZouswuxEmMnCxgDMPUdYh4spgutKyXD1227_gf5vUZ2XHyr7Ks7uI9j5QkcZN5BPyURL4TbdBkkGiUtrWV5dhfSBk4VIgDTdhL1G6Ey9rbUftQ2MmvqVlmiy_/s1600/cr%25C3%25B4nica+da+morte1.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiDWYUkeQ1RTddi-0HVFCJZouswuxEmMnCxgDMPUdYh4spgutKyXD1227_gf5vUZ2XHyr7Ks7uI9j5QkcZN5BPyURL4TbdBkkGiUtrWV5dhfSBk4VIgDTdhL1G6Ey9rbUftQ2MmvqVlmiy_/s400/cr%25C3%25B4nica+da+morte1.jpg" width="315" /></a></div>
Por que as pessoas desistem de viver? Única dúvida desperta diversas
perguntas. Falta de dinheiro? Frustração amorosa? Insatisfação com o
Grêmio Maringá? Desolação com a arte pós-Duchamp? Há dezenas de
mistérios envolvendo suicidas, mas uma coisa é certa: na hora da morte,
eles preferem a Avenida Carneiro Leão, mais especificamente dois prédios
de lá. O Centro Empresarial Transamérica e Centro Comercial Europa.
Ambos com 14 andares, separados um do outro por apenas 69 passos - o
número mais sacana da vida! -, os prédios contabilizam quatro suicídios.
"Se alguém se arremessa em um lugar, não há nada incomum. Mas se duas,
três, quatro pessoas, de repente começam a procurar o mesmo canto...
Bom, daí a coisa fica meio esquisita, né?", observa um empresário,
prestes a entrar no Edifício Europa.<br />
<br />
Lá dentro, um silêncio
assustador emana das saletas de advogados, dentistas e escritórios de
contabilidade. Pessoas se cruzam caladas e cabisbaixas, cada uma
compenetrada nos próprios problemas existenciais - pensam elas, será, em
desistir de vez? Desafiando os degraus quase infinitos, chego morto de
cansaço num escritório do primeiro andar. A telefonista simpática me
estende sorrisos e vai logo oferecendo ajuda. Pergunto sobre os tantos
suicidas que se jogaram ali do prédio. "Pelo que eu sei, foram quatro
suicídios. Dois aqui no Europa, com as pessoas caindo na calçada, e
outros dois no Transamérica, no espaço interno do prédio", conta Mari
Segatti, 49. "Parece que um rapaz pulou daqui porque tava endividado. A
moça, desilusão amorosa. Tenho pena deles, viu? Eu mesma nunca pensei em
me matar. Desde cedo, minha mãe, uma guerreira que admiro muito, me
ensinou a encarar os problemas e seguir sempre em frente. Você não sabe o
inferno que passamos. Minha única lembrança do meu pai é dele com foice
na mão pra bater na minha mãe. Viemos fugidas de Paraíso do Norte. Mas,
peraí, essas perguntas são para quê?" Ainda esbaforido e tonto da
caminhada, nem disse nome nem expliquei nada. A revelação ofegante –
ainda hoje morreremos de infarto? - causa assombro à telefonista.<br />
<br />
"NÃO
PODE SER! Minha nossa, minha mãe te ama. ELA TE AMA! Tem 72 anos e pega
o jornal de domingo só pra te ler. E ela morre de dar risada! Você não
imagina, Gaioto, o bem que faz pra minha mãe. Acredita que renovei a
assinatura do jornal só por sua causa? Mas que coisa, hein! Ainda não tô
acreditando. Você... bem aqui! A gente pode tirar uma foto? Quero
mostrar pra ela que você não é um senhorzinho, mas um jovem."<br />
<br />
Tiramos
selfie sorridente. E rabisco carinhos num bilhetinho: "Dona Idalina,
não perca o texto do próximo domingo. Você estará nele. Beijão, Gaioto."<br />
<br />
No
ápice da notoriedade - algo radicalmente diferente da fama, uma versão
vulgar que ilude cantores sertânicos -, deixo o prédio e esbarro em mais
semblantes tristes. Entre lojas de cosméticos, barbearias, colchões e
empresas de crédito no Transamérica, trombo em dezenas de rostos
exaustos – todos cogitando o fim de tudo? O silêncio, no hall do prédio,
é ensurdecedor. O calor lá de fora, por incrível que pareça, aqui não
chega. O ventinho gelado te arrepia a espinha – será o doce sussurro da
morte?<br />
<br />
"O pessoal, quando resolve se jogar, cai exatamente aqui",
diz João Batista Nunes, 61, apontando para a frente dos elevadores. Há
18 anos ceifando cabelos alheios, Nunes acompanhou, de perto, os únicos
dois saltos mortais. "É uma tristeza, viu? Ninguém sabe explicar a vida
deles. Tanto prédio na cidade, logo esses daqui? Felizmente, pararam com
isso. Pelo menos, por enquanto."<br />
<br />
<b>O quinto do pai</b><br />
<br />
No terceiro andar, identifico um conhecido. Sessentão aposentado,
ex-bancário, bochechas coradas.Volta e meia na companhia de moçoilas,
sempre pondo a mão sobre o peito – ameaças do ataque fulminante?<br />
<br />
"Veio se matar, Seu Dorival?"<br />
<br />
"Não tô pensando mais nisso não, mas já pensei muito."<br />
<br />
"Verdade?"<br />
<br />
"Claro. Águas passadas, dureza total."<br />
<br />
"Falta de dinheiro?"<br />
<br />
"Que nada. Uma morena."<br />
<br />
Chapéu marrom-claro na mão, ligeiro abanando o rosto – o amor deixa marcas que não dá para apagar.<br />
<br />
"Deslumbrante, a morena?"<br />
<br />
"E como! Coxão assim, ó. Peitão desse tamanho."<br />
<br />
Cabeça doida, coração na mão, desejo pegando fogo...<br />
<br />
"Ai, só de lembrar."<br />
<br />
...esse Fagner sabe mesmo das coisas.<br />
<br />
"A
gente se conheceu num baile em Marialva. Daí em diante, não
desgrudamos. Era pobrezinha e resolvi pagar a faculdade de Direito, aqui
em Maringá. Ela bem sabia que eu era casado."<br />
<br />
"!"<br />
<br />
"Passei
a bancar o apartamentinho dela. Nosso ninho de amor. Até que se
enroscou com o professor, nove anos mais velho do que eu."<br />
<br />
"!!"<br />
<br />
"Você sabe... Hoje, o Viagra... Não que eu precise disso, graças a Deus!"<br />
<br />
Doce gargalhada de galã, um e outro perdigoto saltando boca afora.<br />
<br />
"Começamos
a sair, nós dois, com a morena. Em dias diferentes, claro. Num sábado,
ele se confundiu e foi bater no nosso ninho de amor. Levava buquê de
rosa e vinho argentino, acredita? Ficou vermelho de raiva e, depois, me
procurou. 'Quanto cê paga pra ela, hein?', ele perguntava. Fiz as
contas: restaurante, aluguel do nosso ninho, aula de inglês e espanhol,
parcela do carrinho, mensalidade da graduação: quatro mil e pouco. 'Pago
o dobro pra ela. E você some, tá certo?' Respondi que sim, mas a morena
continuou me procurando. Assim, por três anos. Até que nasceu o filho
da morena. Um bebezão lindão. E a gente continuou saindo. Ela levando o
filhinho junto nos nossos encontros no Egitu's, no Romanu's ..."<br />
<br />
"!"<br />
<br />
"...já se perguntou por que esses lugares têm essas fixações mesopotâmicas?"<br />
<br />
"?!"<br />
<br />
"Daí não suportei mais aquilo. Terminei. Há dois anos, a morena me procurou. Dizendo que o professor acusa o filho de ser meu."<br />
<br />
"E é?"<br />
<br />
"A prova está nas bochechas coradinhas!", comenta Dorival, orgulhoso da obra-prima.<br />
<br />
"Hoje
encaro numa boa. Mas pensei em me matar. De verdade. Eu, casado a vida
toda, maior exemplo de dignidade... Fazendo filho em outra?! Minha
família não ia suportar."<br />
<br />
"Chegou a pensar no local?"<br />
<br />
"Seria
ou aqui ou no Europa. É o point dos suicidas", diz, alegrinho. "O que
me salvou foi o trabalho. Também arranjei um hobby: natação. Rapidinho,
esqueci os problemas. Já imaginou? Eu, agora, mortinho da Silva? Que
bobagem. Hoje, se ela volta, nem me importo. Assumo a criança de vez. Já
criei quatro filhos. Não me custa criar o quinto."<br />
<br />
<b>Diálogos fatais</b><br />
<br />
No 14º andar do Transamérica, salas
comerciais escancaram serviços num silêncio fúnebre. É aqui que a morte
ronda, sedenta, à espera de novos saltos. No corredor vazio, tomo um
baita susto com a visão: empunhando uma foice na mão direita e vestindo
uma túnica negra, encobrindo toda a cabeça, encontro a Morte caminhando
em minha direção.<br />
<br />
"É você mesma?"<br />
<br />
"Quem mais poderia ser?"<br />
<br />
Vozinha dos diabos, aguda e estridente: a Morte tem os mesmos tons da cantora Joelma.<br />
<br />
"Venho falando sobre você o dia todo."<br />
<br />
"Ouvi o chamado. O que quer de mim?"<br />
<br />
"Por que você costuma agir aqui, entre o Transamérica e o Europa?"<br />
<br />
"É
perto do Terminal Rodoviário, posso vir a pé ou de mototaxi. Além
disso, há bons bares e restaurantes na região para depois do
expediente."<br />
<br />
"Como decide quem vai partir?"<br />
<br />
"Não decido.
Só cumpro meu trabalho. Presto serviço terceirizado, temos sindicato e
tudo. Nosso sistema é organizadíssimo. Pego a alma aqui e despacho do
outro lado da existência. Lá, outro colaborador decide se irá para o
inferno, purgatório ou céu."<br />
<br />
"Como é exatamente o outro lado da existência?"<br />
<br />
"Quer que eu te mostre agora?"<br />
<br />
"Acho melhor não."<br />
<br />
"Certo. Ainda não é sua hora."<br />
<br />
"Quando será?"<br />
<br />
"Tá longe, pelo que ouvi dizer. Ainda tem muitos textos pela frente."<br />
<br />
"Você, também, uma leitora fiel?"<br />
<br />
"Vejo vez ou outra, mas, não me leve a mal, prefiro as crônicas do Demarchi e do Reginaldo."<br />
<br />
"Muitas pessoas pedem pra morrer?"<br />
<br />
"Toda hora. Me acionam e vou até o lugar. No começo, é tudo maravilhoso. Depois, a rotina vira uma chatice."<br />
<br />
"Como assim?"<br />
<br />
"Muita
gente me chama e depois se arrepende no meio do caminho. Ficam de
conversinha e já não querem se matar. Tô velha, sabe? Já não tenho
aquela paciência do início da carreira. Dialogando, pacientemente,
convencendo as pessoas. Pelo amor de Deus, hein, não vai colocar isso no
teu texto!"<br />
<br />
"Pode deixar."<br />
<br />
"Há um bom tempo, já faço tudo
maquinalmente: 'ô fulano, vai logo, se joga daí de uma vez, pô!'. Só
faço uma exigência: não esqueça o bilhete, dobrado dentro da carteira,
em letra legível. É mais fácil pra identificar o corpo."<br />
<br />
"Essas são suas primeiras declarações oficiais à imprensa?"<br />
<br />
"Creio que sim. Quando estive com Hemingway..."<br />
<br />
"Você esteve com Hemingway?!"<br />
<br />
"...sim. Em 2 de julho de 1960. Ou 1961, não me lembro."<br />
<br />
"Caramba!"<br />
<br />
"Era um gênio, né? E vou te confessar uma coisa. Foi a única vez que implorei para que alguém não cometesse suicídio."<br />
<br />
"Você poderia ter evitado o suicídio do Hemingway?!"<br />
<br />
"Tentei
de todas as formas. Mas ele estava muito bêbado e, sobretudo, decidido.
Queria passar de uma vez para o outro lado. Conversamos durante horas.
Ele criticava tudo e todos e tomava um copão inteiro de Mojito. Num
determinado momento, Hemingway me encarou, rindo, e disse bem assim: 'Se
eu não estivesse tão decidido, publicaria nossa conversa na New Yorker,
com o título 'O Velho e a Morte'. Daí pegou a espingarda e deu um tiro
na cabeça."<br />
<br />
Convido a Morte para tomar umas cervejas comigo no Divina Dose, mas ela recusa.<br />
<br />
"Não
bebo no meio do expediente. Além do mais, preciso correr. Outro
roqueiro de 33 anos acaba de solicitar meus serviços urgentemente",
explica, desaparecendo no corredor.<br />
<br />
Na última olhada para o hall
do Transamérica, você pensa na Nona Sinfonia de Dvorák, no "Guerra e
Paz" do Tolstói, no filme do Woody Allen que ainda não estreou, nos
versos do E. E. Cummings, nas obras completas de Dalton Trevisan: há
motivos de sobra para suportar essa vida inautêntica.<br />
<br />
<b>Publicado em O Diário (8/8/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-80193832725014221252016-07-11T07:49:00.001-07:002016-07-11T08:54:16.151-07:00A noite em que Rafael Castro quebrou a guitarra<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhHaZssfXKXp9NYMIwqOzhnAMKxvuUlVXjkklOyRDla-p4nHZjmW3fm7rzjRmqGgYZnvRCtfabhVbmKqZFDDmGOXx9t3Kom7g1-8Qis4eIV_BNn4V7lCT_WpwN8zRXHp3OZ92IwrDJCtg5w/s1600/rafael+castro+no+tribos.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhHaZssfXKXp9NYMIwqOzhnAMKxvuUlVXjkklOyRDla-p4nHZjmW3fm7rzjRmqGgYZnvRCtfabhVbmKqZFDDmGOXx9t3Kom7g1-8Qis4eIV_BNn4V7lCT_WpwN8zRXHp3OZ92IwrDJCtg5w/s640/rafael+castro+no+tribos.jpg" width="372" /></a></div>
Rafael Castro e Os Monumentais tocam hoje no Tribo’s”,
anunciava o panfleto capenga pregado na parede do bar. A entrada custava
R$ 15 ou R$ 20, não lembro exatamente, mas certamente não era mais caro
do que isso. O bar estaria completamente deserto não fosse uma ruiva e
uma morena conversando com um sujeito magricelo e careca. <br />
<br />
Pesadelo
de todo empresário, maravilha de qualquer boêmio. Ali, você poderia
buscar sua bebida no balcão tranquilamente, sem a epopeia cruzando
hordas de sujeitos aleatórios, todos embriagados, em meio a saltos
mortais, desvios bruscos, cotoveladas, empurra-empurra e outras
estratégias recorrentes em aglomerações sonoras, independentemente do
estilo musical, do pagode ao funk, do metal ao gospel.<br />
<br />
“Essa
noite ainda pode ser épica”, comentou, sem qualquer resquício de
empolgação, meu amigo Daniel Orsini. Físico e boêmio, ele insistiu em me
levar para ver o show do tal Rafael Castro - mais para tomar uns
pileques do que para ouvir o som. “Se for um desastre”, disse, “nenhuma
alma vai testemunhar”.<br />
<br />
Essa, a vantagem dos pessimistas.
O otimista sempre levará uma vida pior que o pessimista porque, diante
das inevitáveis frustrações, ele fatalmente se decepcionará. O
pessimista, por outro lado, encara a vida como deve ser: enfadonha e
entediante, e qualquer coisa diferente que apareça já é lucro. Não
conhecia o som do trio paulistano. Dias antes, cheguei a ouvir qualquer
coisa na internet. Lembro da guitarra e das gravações propositalmente
toscas, mas não recordo, hoje, qualquer canção marcante. Não sei
assobiar uma única música do Rafael Castro e os Monumentais - e talvez
fosse uma obrigação moral depois de tudo o que ele nos proporcionou
naquela noitada. <br />
<br />
Falávamos sobre música e provocações. O
rock, afinal, sempre esteve profundamente relacionado com a
transgressão. Transgredir: ultrapassar o limite de algo. Bob Dylan,
quando abandonou o violão no quinto disco e partiu para a guitarra
elétrica, debandando do folk e, produzindo canções mais pesadas, assumiu
um papel inegavelmente transgressor, sendo, inclusive, vaiado, xingado e
amaldiçoado pela audaciosa proposta sonora. Hoje, não há quem negue a
Dylan sua relevância ao rock mundial nem quem condene a mudança de rumo;
aquelas opiniões negativas ficaram eternamente condenadas a sérias
revisões críticas. <br />
<br />
Evidentemente, as transgressões não
são exclusivas de roqueiros. Debussy, ao apresentar “Pelleas Et
Melissande”, foi extremamente criticado e houve quem abandonasse o
teatro antes mesmo do fim da ópera – hoje, um clássico indiscutível. O
compositor francês rompia com os paradigmas musicais da época e fazia de
sua arte um novo caminho para as próximas gerações. Stravinsky, com a
“A Sagração da Primavera”, e Tchaikovsky, com “O Lago dos Cisnes”,
também levaram vaias devido à audácia estética de suas estreias. Nesse
sentido, com provocações e urros de desgosto, os acordes de Debussy,
Tchaikovsky e Stravinsky soam tão rock n’ roll quanto as canções de Bob
Dylan.<br />
<br />
Insistindo na provocação, vamos enumerando outros
rocks e roqueiros injustamente ignorados: 1) a explosão erótica de
Oswald de Andrade; 2) a batida sincopada de João Gilberto; 3) as
reboladas agudas de Ney Matogrosso; 4) as figuras diabólicas de Iberê
Camargo; 5) os versos subversivos de Geraldo Vandré; 6) a psicodelia de
Ronnie Von. E só interrompemos a produção da lista para ouvir a conversa
da mesa ao lado, surpreendente. “O Nasi veio no Tribo’s depois de um
show do Ira!. Daí começou a beber, fumar e ficou tão louco, querendo
fazer outras coisas, que foi expulso pelos seguranças”, disse a ruiva.<br />
“A
Camila Morgado também esteve aqui, tomou caipirinhas e ninguém percebeu
que era ela! Esbarrar na Camila Morgado no Tribo’s deve ser como
encontrar o Lula numa livraria: você até reconhece, mas nunca acredita
que seja o mesmo!”, comentou a morena. <br />
<br />
“E o show do
Ludovic?! Que loucura foi aquilo”, comenta o magrelo. As duas moças
escancaram curiosidade. “Você viu o show do Ludovic?!”<br />
<br />
“Claro!”,
gaba-se o sujeito. “Era uma noite dessas, ó, sossegadona. Mas o bar não
tava tão vazio como hoje”, diz o sujeito, espiando mais duas almas que
acabam de chegar e pegam lugares não distantes dali.<br />
<br />
“No início, achei
que seria uma noite normal. Mas não sabia que seria inesquecível.”<br />
<br />
“E como o grande Jair Naves estava?”<br />
<br />
“Louco.
Muito louco. Sem camisa, ele ficou se debatendo diversas vezes contra o
chão, acho até que arrancou, com a mão, umas lascas do palco. Cuspiu
cerveja na cara do companheiro de banda, o guitarrista ou baixista, e,
em seguida, desceu do palco, alucinadão, caçando alguma cadeira de
plástico.”<br />
<br />
“Uma cadeira de plástico?!’ <br />
<br />
“Quando
achou a bendita cadeira, levou o treco para cima do palco e se enfiou
debaixo dela, agachado, como se estivesse preso, e continuou cantando. O
Jair só saiu lá debaixo depois, bem depois. Largou o microfone num solo
de guitarra, saiu correndo pelo bar e, depois de uns dois minutos,
voltou como se nada houvesse acontecido.”<br />
<br />
O solo de
guitarra, de repente, degolou a conversa. O tal Rafael Castro surgia com
um surrado chapéu de pescador hippie, velha bermuda branca e camiseta
regada verde. Cabelão ensebado nas costas, vasta barbona de profeta,
olhos alucinados de felicidade – imaginaria, ali, um Rock in Rio só para
ele? Não se incomodavam, ele e os Monumentais, de tocar para o mínimo
público de apenas nove desconhecidos? Por que não cancelar? Devolver o
dinheiro? Alegar dor de cabeça e cair na estrada rumo à próxima cidade,
talvez Londrina, com mais fãs? O que, de fato, o motivou? Teria pensado,
o tal Rafael Castro, naqueles poucos coitados que desembolsaram
dinheiro e que talvez muito esperavam pela apresentação? Precisaria,
ele, tanto assim do dinheiro, que, somando toda a portaria, daria uma
média de R$ 135? Nessa tarde saudosista, entre uma e outra pergunta, me
dou conta que já vi, em Maringá, algumas cenas provocantes. Jorge
Mautner, por exemplo, cantando a capella (!), uma música erótica sua e
de Caetano Veloso, “Tarado”, estrategicamente na frente da Catedral, foi
um desses momentos inesquecivelmente transgressores na história do rock
maringaense.<br />
<br />
Gostaria de ter testemunhado, também,
outras cenas. O show do Barão Vermelho no Chico Neto, com Cazuza e
Frejat trocando socos e pontapés nos camarins. Aquela apresentação do
Raul Seixas. O show dos Raimundos, com Rodolfinho Abrantes ainda não
cristanizado, tocando com entrada grátis na UEM. Por mais shows que você
testemunhe, a vida nunca será o bastante. É impossível dar conta de
todas as melodias. <br />
<br />
“Tá tudo bem com vocês, Maringá?!”, pergunta Rafael Castro, escancarando sorrisos de rockstar. <br />
<br />
Havia
um certo constrangimento coletivo. Público e banda não sabiam direito
como se portar. Qual a maneira correta de agir diante do vazio? Na
multidão, você é só mais um. E pouco importa se você cantar um
determinado trecho de música, talvez errado, ou se vai improvisar uns
passos de tango, certamente errados, com sua companhia. <br />
<br />
“Tá tudo bem com vocês, Maringá?!”, insiste o rapaz, empunhando a guitarra.<br />
<br />
É
aí que o climão de constrangimento dá espaço a uma nova sensação. Um
show sem barreiras entre público e artista, com canções servidas à la
carte. Aos nove pagantes, Rafael Castro e os Monumentais fizeram um dos
melhores shows que ninguém viu na história do rock maringaense. Não há
registros fotográficos nem gravações daquela apresentação. Cada solo
escapava da alma. Em que ano estávamos? As músicas eram entoadas com
fervor. 2007? Impiedoso, o baterista descia a mão no surdo, na caixa,
nos pratos. 2006? Quieto e calado, o baixista fazia suas cordas
berrarem. Que memória traidora. Os nove pagantes estávamos todos colados
ao palco. Só a música tinha direito à fala. Ninguém se importava com o
mundo lá fora. Consciente dessa ligação quase sobrenatural, Rafael
Castro tirou a guitarra vermelha do corpo e socou, com ela, o palco do
Tribo’s, surpreendendo o resto da banda, que passou a tocar ainda mais
alto. Você já tentou quebrar uma guitarra, caríssimo leitor? Não é tão
fácil como nos filmes. A primeira batida, na verdade, é só para
desestabilizar. A segunda, com mais força, extirpa alguns detalhes
externos, como captadores, botões de volume, algumas cordas rompem, mas o
corpo da guitarra ainda está ali, resistindo, quase intacto. É só na
oitava batida, depois de jorrar estilhaços pelo palco, que a guitarra
vermelha, finalmente, deita estraçalhada e sem vida. Rafael Castro e os
Monumentais deixam o palco debaixo das palmas febris do coração. Aquelas
nove pessoas nunca pediram um bis com tanta devoção – o que,
evidentemente, seria impossível diante do estado da guitarra. <br />
<br />
Se
pudesse escolher, eu estaria bebendo vinho naquela noite, e não
cerveja. “A embriaguez da cerveja é a mais ruidosa e a mais bonachona do
que a do vinho”, define o mestre Milan Kundera. A culpa dessas noites
maringaenses tão barulhentas, simples e estrondosas, é toda da ausência
do vinho. E me pego pensando nisso exatamente agora à tarde, comemorando
antecipadamente o Dia do Rock, celebrado no dia 13 de julho. Vou
empunhando na sala a taça de um Toro Loco, balançando-a suavemente de um
lado para o outro, enquanto o tom avermelhado do vinho tenta escalar a
taça, em vão, na turbulência que eu mesmo dito e interrompo. Nas
laterais, o vinho que escorre de volta à base da taça deixa vestígios de
imagens de guitarras e baterias, flashes do Terminal Guadalupe mandando
“Pernambuco Chorou”, da Sexta Geração da Família Palim do Norte da
Turquia tocando “O Papa tem Artrite”, do Charme Chulo, do Lobão berrando
“Dilma Bandida!” no MPB Bar, de uma moça morena que exige mais uma
canção do Marcelo Nova, do show do Ecos Falsos com os integrantes da
banda desolados à espera do público, da Relespública fazendo todo mundo
dançar num boteco apertado, da noite em que Rafael Castro quebrou sua
guitarra para nove pessoas em Maringá, do sol que insiste em romper a
escuridão no fim da madrugada quando o segurança do Tribo’s,
cordialmente, escancara a porta, permitindo que você chegue à calçada e
volte para casa cheio de histórias transgressoras e subversivas.<br />
<br />
<b>Publicado no Diário (10/7/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-31295097409430473742016-06-21T07:11:00.002-07:002016-06-21T07:11:38.122-07:00Senhoras serelepes, rosas, risos e lágrimas diante do Rei<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhelqBOmVoppD3D2TGJxaE69AfVH_qK6gRUmgtod7ZjmfkjmAe3TKSo8Zs-LR30I2v9Fen-Ym7qLsWw3bfb8M1g-Zw0Sf3r1tsynxnqVlKEhSjBUry-Dum_OP5LvQOI38ZTqZuVRvuCvm8O/s1600/roberto+carlos+show-page-001.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhelqBOmVoppD3D2TGJxaE69AfVH_qK6gRUmgtod7ZjmfkjmAe3TKSo8Zs-LR30I2v9Fen-Ym7qLsWw3bfb8M1g-Zw0Sf3r1tsynxnqVlKEhSjBUry-Dum_OP5LvQOI38ZTqZuVRvuCvm8O/s640/roberto+carlos+show-page-001.jpg" width="374" /></a></div>
As ruas da Urca surgem praticamente vazias de moradores – fogem para
destinos silenciosos, os cariocas, atordoados com fevereiros de
tamborins, surdos e repiques? Diferentemente da Zona Sul do Rio, aqui
não há engarrafamentos nem caos. Há silêncios de uma província
paranaense. Aos quarenta e dois graus das seis da tarde, o Pão de Açúcar
é uma moçoila melancólica tomando banho de sol. Três únicos turistas se
aventuram nas calçadas, sempre de olho na numeração dos prédios,
alheios aos mosaicos de barcos, nuvens e pássaros jazzistas improvisando
maravilhas sobre as águas. Confiro o rabisco: Avenida Portugal, 818,
edifício Golden Bay. Eu cheguei em frente ao portão. Encaro um ar severo
e aperto o interfone.<br /><br />"Tenho uma carta para o Roberto Carlos", aviso, mostrando o envelope.<br /><br />"Ô,
rapaz, a gêntí não pódi récebê. Deixi lá no estúdiu dêli, fica a umas
seis quádras pra lá, ó", responde o baiano, balançando a cabeça para a
esquerda.<br /><br />Com essa, eu não contava. Há um porteiro no meio do
caminho. Se eu fosse conhecido de algum baiano importante e querido,
tudo não seria diferente? Improviso nova estratégia:<br /><br />"Vim em nome do João Ubaldo Ribeiro."<br /><br />"..."<br /><br />"Ele mandou isso para o Rei", respondo.<br /><br />"Ú grândí João Ubaldo?"<br /><br />"Isso, o grande escritor. Pediu que eu entregasse hoje mesmo."<br /><br />Um sinal estridente destrava meu caminho. Fui abrindo a porta devagar, mas deixei a luz entrar primeiro. Eu cheguei.<br /><br />"Pódi deixar comigo. As cártas de hôji já subiram. Amanhã cédinho essa tará na mão dêli", promete o porteiro.<br /><br />Nunca
conheci João Ubaldo, infelizmente. Nas minhas mal traçadas linhas,
pedia que Roberto autografasse meu CD "Em Ritmo de Aventura" - o melhor
álbum dele - e mais outros dois encartes. Dizia que, dali a dois dias,
eu passaria para retirar os discos, devidamente autografados, na
portaria. Voltei, em vão, e nunca mais recuperei meus três CD's. Fui
furtado pelo Rei.<br />
<br />
<b>Desabafo</b><br />
<br />
Quando descobri que o Rei faria um show em Maringá, corri para
conseguir uma entrevista. A dezenove dias da apresentação, encaminhei
cerca de quinze perguntas para o assessor do cantor (leia nesta página).
Confesso que caprichei: incluí tudo o que eu e você gostaríamos de
saber. O assessor confirmou o recebimento e adiantou que não poderia
garantir que elas fossem respondidas a tempo. Seria preciso esperar.
Enquanto as respostas não surgiam, passava tardes inteiras bolando
planos para que o Rei autografasse meu LP "Em Ritmo de Aventura".<br />
<br />
Algumas ideias – admito, um tanto amalucadas - envolviam perseguições em
alta velocidade – para acompanhar o carro do Rei entre o aeroporto e o
hotel, abordando-o nalgum sinaleiro do meio do trajeto -, outras ideias
contavam com três cachorros, dois gatos e quinze periquitos – tenho
vergonha de detalhar, aqui, como seria exatamente esse plano - e até
cogitei ligar para Juarez Arantes, a fim de que o milionário excêntrico
me escondesse a bordo de seu Del Rey preto, na garagem do Deville – mas
havia uma grande possibilidade de o Rei ficar em outros hotéis, e achei
melhor não arriscar. Confesso que cogitei tudo isso. Fazer o quê? Às
vezes me desabafo, me desespero porque o Rei é mais que um problema, é
uma loucura qualquer.<br />
<br />
<b>Como vai você</b><br /><br />
A quatro dias da apresentação, nada de respostas.
Penso e repenso: é preciso dar um jeito, meu amigo. Ligo para o Rio.
Mauricio, o assessor, me atende. Digo que é uma pena não ter rolado
entrevista. Que tenho uma segunda e última solicitação. Explico toda a
história dos meus CD's surrupiados, com detalhes tão pequenos de nós e
coisas muito grande para esquecer. Gostaria de um minuto ao lado do Rei,
vou dizendo, tempo suficiente para ele fazer uma dedicatória no meu LP.
Sem perguntas. Só um encontro. Faria um ótimo texto sobre a admiração
de um súdito por seu Rei. Gente fina, o assessor me chama de querido.<br /><br />"Só tem um problema, Gaioto: o Roberto não dá autógrafos."<br /><br />"?"<br /><br />"Por
causa do Toc (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), o Roberto leva até
vinte minutos para fazer uma dedicatória, tentando copiar a mesma letra
que tinha no início da carreira."<br /><br />"E se for uma foto depois do show?"<br /><br />"A
questão das fotos é muito complicada. Não é sempre que ele recebe
alguns poucos convidados. Quando faz isso, é sempre, sim, no final do
show. Mas ele precisa estar devidamente maquiado e quem faz as fotos é o
fotógrafo oficial dele. Ainda não sabemos se ele atenderá convidados em
Maringá."<br /><br />"Sem fotos nem autógrafos posso acompanhar a descida do voo, um pouco próximo, só para registrar os primeiros passos do Rei?"<br /><br />"Impossível.
Quando o avião particular dele pousar aí, um automóvel já estará no
meio da pista à espera do Roberto. Ele sai direto do avião, sem ter
contato com ninguém, e entra no carro. Dali, segue para o hotel. Entra
sempre pelo estacionamento e, de lá, escoltado por seguranças, segue
para o elevador que leva à suíte. Nesses deslocamentos, ninguém tem
contato com o Roberto: é pra evitar tumulto."<br /><br />Encaro os fatos: longe dos palcos, impossível abordar o Rei.<br />
<br /><b>Sentado à beira do caminho</b><br /><br />Pelo lugar mais acessível, você
desembolsa R$ 90 (meia-entrada): arquibancada a milhas e milhas
distante do palco. Desisto do plano de abordar o Rei – as dezenas de
sujeitos bombadões e uniformizados certamente me impediriam se eu, num
gesto irresponsável, marginalesco e imoral, tentasse burlar o forte
esquema de segurança, pulando para a arena, onde as cadeiras de
plástico, a quatro passos do palco, foram vendidas a R$ 470,40 (meia) e
R$ 940,80 (inteira).<br /><br />"Olha só essas senhorinhas, cara! É o mesmo
público das leitoras fiéis do Padre Marcelo?", pergunta, rindo, o meu
amigo Jeferson Voss, 28.<br /><br />Lá embaixo, uma senhora setentona
carrega uma embalagem transparente, onde se vê uma felpuda almofada azul
sob uma reluzente coroa dourada – roubada, pois, do grande Napoleão?!
Atrás de você, quarenta cinquentonas vestidinhas de azul e branco
estendem a faixona: "Roberto, essas EX-MOÇAS curtiram muito você e nunca
desistiram de assistir o show DO CARA!" Sujeitos quarentões.
Cinquentões. Sessentões. Debaixo dos doze graus, casais se abraçam na
data mais caliente do ano – é Dia dos Namorados.<br />
<br /><b>Amigo</b><br /><br />
Para matar a fome, entro na fila dos acepipes
gordurosos. Reconheço, ao meu lado, um desses amigos virtuais que você
só conhece pelo computador. Será amigo de meu pai, da minha mãe, algum
vizinho da infância perdida?<br /><br />"Você é o Roberto, né?", vou sondando.<br /><br />Quarentão, coberto de jaqueta, segurando bilhete do pedido dezessete.<br /><br />"Sou, sim. A gente se conhece?"<br /><br />"Acho que somos amigos no Facebook."<br /><br />"Como é o seu nome?", questiona, curioso, um olho grudado no placar eletrônico da senha.<br /><br />"Alexandre Gaioto."<br /><br />"Tá brincando?! Não te reconheci."<br /><br />Gente fina, estende a mão e escancara sorriso.<br /><br />"Gosto muito dos seus textos. Aquelas crônicas de domingo."<br /><br />"Tá brincando?!"<br /><br />"Verdade.
Você e a terra da igreja-cone. Das senhorinhas serelepes. Das duplas
sertânicas. Leio todas. São bem-humoradas, divertidas, continue
escrevendo!"<br /><br />Quase nem acredito: finalmente, encontrei um leitor.<br /><br />"Posso tirar uma foto com você? Meu pai não vai acreditar que encontrei um leitor."<br /><br />"Número dezessete! Dezessete!", esgoela-se alguém.<br /><br />"É a minha senha. Sinto muito", despede-se o sujeito, aflito de fome.<br /><br />Sabe,
você, como é bom encontrar um leitor-amigo? E me pego pensando nos
outros leitores-amigos-virtuais que acumulei com esses textos todos. Na
Aniceia Maia, no João Xavier, na Sonia Maria, na Estter Ribeiro e tantos
outros que me mandaram mensagens gentis e carinhosas nesse tempo que
extirpei a vesícula e, por duas semanas, silenciei o verbo. Para este
pobre cronistinha dominical, maior alegria não há do que esbarrar num
leitor-amigo. "Eu quero ter um milhão de amigos", me pego cantarolando, a
poucos minutos do show, com o lanche em mãos.<br />
<br /><b>Emoções</b><br /><br />Com trinta minutos de atraso, o Rei dá as caras às
oito e meia. A mega-banda puxa uma versão instrumental de "Como é
Grande o Meu Amor por Você", transformando o Parque de Exposições num
karaokê lírico. Em seguida, a banda inicia o clássico arranjo de
"Emoções". Do meio do palco, entre o baterista e os trompetes e
saxofones, ele entra. Alto e magrelo. Vestindo azul, evidentemente, sua
cor predileta. Curioso, ele não manca: a perna mecânica, tão firme
quanto a esquerda. Homens e mulheres berram e acenam. E é só ele começar
o primeiro verso que você, aquele garotinho gorducho de oito anos,
tímido e calado, equilibrando três fatias de Panetone na frente da TV,
assistindo ao especial de fim de ano, começa a chorar compulsivamente.
Minha namorada me olha de uma forma engraçada. "Ué, mas você não prefere
o Erasmo?", parece me perguntar, em silêncio. E só não fico tão
constrangido porque as comportas oculares despejam litros de água dos
rostos de várias dulcíssimas senhoras ao meu lado. A música não é a arte
mais emocionante de todas? O Rei passa pela Bossa Nova, retomando "Além
do Horizonte", mergulha no rock, com "Ilegal, Imoral ou Engorda", "O
Calhambeque" e "Se Você Pensa" - com direito a guitarras distorcidas! -,
mostra uma versão em reggae para "Eu te amo, te Amo, te Amo", e,
generoso, entoa todas as canções de amor que marcaram a tua vida, como
"Proposta" e "Detalhes", provocando mais mil litros de lágrimas na sua
face ensopada. Na arquibancada, você é tomado pela mesma sensação de ter
visto Bob Dylan, Rolling Stones, Paul McCartney, Erasmo Carlos. O
vozeirão firme. Baita som. Banda finíssima. Só faria algumas preciosas
alterações no repertório: "Lady Laura" (cafonérrima) por "Quando".
"Mulher Pequena" (cafonérrima ao cubo) por "Eu Sou Terrível" - esta,
aliás, encerraria a apresentação. "Nossa Senhora" por "As Curvas da
Estrada de Santos". "Jesus Cristo" por "O Portão". Sem coisas cafonas
nem versinhos religiosos, Robertão soaria ainda melhor.<br />
<br /><b>Ilegal, imoral ou engorda</b><br /><br />A cafonice e as letras xiitas
fizeram, sim, com que eu me aproximasse mais do Tremendão. Em meio a
tantas polêmicas em que Roberto se meteu – incontáveis acusações de
plágios, o lance da propaganda da Friboi, a proibição das biografias e a
briga com Paulo Cesar de Araújo, quantas mais? – assumi uma postura
apática em relação a ele: virei homem calado e até desconfiado.
Chamei-o, vez ou outra, de Rei Manco. Agora, esqueço as polêmicas e me
entrego, assombrado, à sua música. Em mi menor, a banda puxa os acordes
iniciais de "Jesus Cristo". É a última. Sempre foi. Sempre será. Olho
para minha namorada, cantando e batendo palmas ao meu lado. No palco, o
Rei beija flor por flor e arremessa aos súditos, que se engalfinham em
busca da rosa mais cobiçada. Em plena Noite dos Namorados, digo à minha
namorada que, por ela, farei uma loucura. Seus olhos, espantados, me
espiam com terror – ela me conhece. E, ligeiro, vou descendo as escadas
da arquibancada. Noto que os seguranças bombadões estão todos atentos ao
show, e não ao público. Aproveito a distração para pular a mureta e
invadir os setores carérrimos. Copio o pulo, os passos silenciosos e a
mesma agilidade de Liam Neeson, numa de suas missões impossíveis. Então
eu corro demais. Vou cruzando velhas que ardem em brasas – só o único
bombeiro é capaz de apagar tanto fogaréu. Quem ganha rosa sai de cena e
libera uma lacuna no meio da multidão. Aproveito um desses corredores
humanos e, quando me dou conta, estou a três cabeças do palco. O Rei se
aproxima para lançar a última rosa. "Robertooo, eu também te amo! Me dá
uma rosa aí, pô!", solto num vozeirão grave, causando gargalhadas
estridentes nas velhas em redor. Acho que ele não ouviu. Sou esmagado
por dezenove velhas. O Rei lança a flor numa parábola de graus
incalculáveis, mais ou menos na minha direção. Estendo os braços, mas
fracasso. A sortuda é uma senhora suada e corpulenta que dá cotoveladas
na de trás, passa a perna na da frente e empurra uma gorducha à esquerda
e uma magricela à direita: para conseguir uma rosa do Rei, é preciso
quebrar algumas leis, invadir setores alheios, apertar e espremer e
empurrar, mas ninguém ali se importa com isso. Se chorei ou se sorri, o
importante é que finalmente vi e ouvi o Rei.<span> </span><br />
<br />
<span><b>O REI NÃO RESPONDEU</b><br /> </span><br />
<span>Qual a sensação de ser o maior cantor brasileiro de todos os tempos?</span><br />
<br />
O senhor não vem a Maringá há 17 anos. Consegue se lembrar de seu show por aqui? O que sabe sobre a cidade?<br />
<br />
Nas horas livres, o senhor gosta de literatura? Poderia citar os cinco livros mais importantes da sua vida?<br />
<br />
O senhor já disse que pretende gravar um disco de inéditas neste ano. Como soará o novo CD?<br />
<br />
Erasmo Carlos fez um excelente álbum apenas com os lados b da
carreira dele. O senhor considera a possibilidade de gravar, algum dia,
um álbum apenas com suas canções menos conhecidas?<br />
<br />
O senhor e Erasmo Carlos compuseram "Maria Joana" como uma homenagem
velada à maconha. Quando questionado, Erasmo costuma dizer que chegou a
provar a maconha, mas não gostou. O senhor chegou a provar maconha ou
algum outro tipo de droga durante a sua trajetória?<br />
<br />
No filme sobre Tim Maia, a cena de um funcionário do senhor
arremessando dinheiro aos pés dele, que estava pobre e no início da
carreira, é muito forte e gerou muitas críticas. Essa cena realmente
aconteceu nos bastidores do seu show?<br />
<br />
Por que o senhor não libera o álbum "Louco Por Você"? Há planos para liberá-lo futuramente?
<br />
<br />
"Em Ritmo de Aventura", para mim, é um dos melhores álbum do senhor,
com aquele rock sessentista. Algumas bandas de rock têm feito shows
reproduzindo álbuns na íntegra. Acha que é possível, algum dia, o senhor
fazer um show especial executando na íntegra esse álbum?<br />
<br />
O senhor acha que a polêmica das biografias prejudicou a sua imagem?<br />
<br />
O que o senhor pode adiantar sobre a autobiografia que está
escrevendo? Quais os maiores desafios durante esse processo de escrita?<br />
<br />
A música "O Careta" foi considerada plágio pela Justiça. Essa e outras acusações de plágio aborrecem o senhor?<br />
<br />
O senhor ficou ofendido por ter sido convidado a se apresentar na
abertura dos jogos paraolímpicos do Rio de Janeiro? Por que recusou o
convite?<br />
<br />
Em fevereiro de 2014, deixei meu CD "Em Ritmo de Aventura" na
portaria do edifício Golden Bay, onde senhor mora, para ser autografado.
No dia seguinte, passei pra pegar o CD autografado, mas, segundo o
porteiro, o CD havia sido entregue em seu apartamento e o senhor ainda
não havia assinado o encarte. Será que o senhor poderia devolver o meu
CD, se possível autografado? Ou, então, eu poderia levar o meu LP do "Em
Ritmo de Aventura" para o senhor assinar antes do show aqui em Maringá,
que tal?<br />
<br />
<b>Publicado no Diário (19/6/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-70241906267616748512016-05-23T14:33:00.000-07:002016-05-23T14:34:18.513-07:00Evangélicos ouvem a voz de Deus na Rua Galáxia, no Jd. Universo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg_Vge1EpQc9Nc15OARO8ArR3gtiJdCjxx-2yd6rqcyam02_4GbbCuD-MQ2sGBoebV8oq0L3Kzja-Jbjiwd39-g8GxnlC8OtjYxBIFE7kxB2VDH30Zr4tMHtNv3eKCgow50F2ah4AmA1Wd1/s1600/rua+gal%25C3%25A1xia+pdf-page-001.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg_Vge1EpQc9Nc15OARO8ArR3gtiJdCjxx-2yd6rqcyam02_4GbbCuD-MQ2sGBoebV8oq0L3Kzja-Jbjiwd39-g8GxnlC8OtjYxBIFE7kxB2VDH30Zr4tMHtNv3eKCgow50F2ah4AmA1Wd1/s640/rua+gal%25C3%25A1xia+pdf-page-001.jpg" width="372" /></a></div>
<span style="font-size: xx-small;"><span style="font-family: "arial";">Depois de passar três dias e três noites debruçado sobre um mapa de Maringá, à caça de coisas inusitadas, esbarro, finalmente, no destino perfeito: Rua Galáxia, no Jardim Universo. Planetas, anéis de Saturno, lixo cósmico, telescópios da Nasa e extraterrestres aterrorizantes não estão todos lá, a exatamente 5,9 km das mesas do Divina Dose, precisamente a 4,6 km da chatíssima igreja-cone? Rua Galáxia, no Jardim Universo: endereço certeiro para enviar as 300 duplas sertânicas desta cidade dos diabos, na esperança que sejam abduzidas e carregadas por OVNI’s a outros planetas distantes? Rua Galáxia, no Jardim Universo: lá, você não encontrará cosmólogos e cientistas comprovando, a partir do Big Ben, a origem de tudo? Rua Galáxia, no Jardim Universo: poetinhas octogenários não rascunham odes e sonetinhos à coincidência feliz da inimaginável junção cósmica?<br /><br />O endereço mais interestelar de Maringá tem apenas dez quadras. Não há botequinhos minúsculos nem lojinhas de roupa nem armazém de secos e molhados: uma rua só de casas e moradores. Quem cobiça alguma dessas coisas, um copo de cerveja, uma camiseta nova, é obrigado a bater pernas até a Rua Universo, logo ao lado. Além do mínimo comércio, na Universo tem também a única igreja das redondezas. Aberta sete dias por semana – o bendito número sagrado! – a Igreja Evangélica Pentecostal Unção de Gileade tem agenda cheia. Sexta, às 20h, é a “campanha de cura e libertação”. Quarta, às 15h, tem “tarde da benção”. Terça, às 20h, é o dia perfeito nesse tempo de crise econômica, com a tal da “campanha da prosperidade”. Essas e outras atividades surgem no cartaz pendurado numa das três portelas da minúscula Igreja. Mas voltemos à nossa Galáxia, com suas dez quadras de espaço. Numa das esquinas, três sujeitos conversam amenidades – debatem, na Rua Galáxia, os aceleradores de partícula, radiação cósmica, a nucleossíntese estelar, a hipótese do átomo primordial?<br />“Na verdade, a gente tava falando sobre o culto”, comenta Leandro Emydio, 37.<br />Ai, não. A fé resiste à ciência até na Rua Galáxia.<br />“Não sei se você sabe, mas Deus me preparou esse ponto”, diz o sujeito, apontando para o terreno vazio de pedregulhos, cercado por uma cerca baixa e acinzentada. “Eu tava devendo, não tinha dinheiro pra abrir um comércio. Todo dia, dobrava os joelhos e chorava. Daí, ouvi a voz de Deus: ‘Trabalha, homem. Faz a sua parte que eu faço a minha’. Sabe o que aconteceu em seguida? O irmão da igreja comprou esse terrenão aqui e fez uma marcenaria. E eu peguei uma parte do terreno pra abrir o lava-jato. Hoje, faz um bom movimento”, garante, à frente do ponto esvaziado. “Quer dizer, não hoje, né? Que com essa crise tá tudo difícil.”<br />Gostei daquela parte da voz de Deus. Pergunto como é.<br />“A voz de Deus tem o mesmo agudo do Xororó ou é mais parecida com o grave do Emílio Santiago?”<br />O sujeito me olha intrigado.<br />“Não dá pra comparar com cantores. A voz Dele é como se fosse um vento.”<br />Já imaginou se Bob Dylan escuta isso?<br />“Mas, às vezes, Deus também fala como se fosse um vendaval”, comenta a esposa do sujeito do lava-jato.<br />Um terceiro crente, mais velho, agora irrompe o silêncio, acrescentando seu próprio testemunho.<br />“Todos nós somos evangélicos e já ouvimos a voz do Senhor”, garante.<br />O papo sobre a fé é quebrado por uma senhora que interrompe diálogos.<br />“Querem comprar um pacote do Prever?”, oferece Elza Correia, 50, empunhando pastinhas cheias de papéis e números. “Hoje, minha estratégia é oferecer contratos em toda essa rua, nas dez quadras”, comenta.<br />“Os moradores da Galáxia estão se preparando para a morte?”, vou sondando.<br />“Felizmente já marquei alguns horários. E vou voltar em breve. A gente planta hoje e colhe amanhã...”<br />Não é a vida que ceifa?<br />“...mas tenho sorte, sabe? Deus guia minhas vendas. Como evangélica, ele me protege e me aconselha.”<br />Ai, não. Mais uma?<br />“Você já ouviu a voz de Deus?”, indago.<br />“Claro que já. Várias vezes”, responde, com os olhos desafiadores.<br />“Poderia detalhar como é a voz de Deus?”<br />“Olha, é uma fala muuuito suave.”<br />“Deus, então, tem a voz do João Gilberto?”<br />“João quem?”<br />Começo a cantarolar “Garota de Ipanema”, separando sílaba por sílaba, imitando a calma e os tantos tons do Pai da Bossa Nova, batucando no corpo os toques sincopados que ele executa no violão. Não adianta.<br />“Não sei quem é esse João.”<br />“Deus tem a voz do Cauby Peixoto?”<br />“Não, não, não. Não tem nada a ver com o Cauby. É diferente.”<br />“Diferente como?”<br />Sem saber como responder, a senhora recorre a detalhes biográficos, lembrando que, há pouco tempo, “era do mundão”, “perdida”, “uma dessas incrédulas”, e que Deus deu a ela “mais paz de espírito e até dinheiro”.<br />“Você me garante que, se eu me converter, também ganharei mais dinheiro?”, vou sondando, prevendo os euros e as libras esterlinas, disposto, finalmente, a encarar a trilha da redenção divina.<br />“Para Deus, tudo é possível. Ele é a salvação”, garante a senhora, antes de se despedir e sair perambulando pela Galáxia, à caça de novos clientes. Despeço-me do trio de evangélicos. Por quanto dinheiro, caríssimo leitor, você se converteria?<br /><br /><b>Planetário adoentado</b><br />No céu, as nuvens ameaçam enxurradas. Infelizmente, nada de discos voadores trocando de cores nem alienígenas zanzando e convivendo harmoniosamente com os seres humanos. Uma rua, assim, com buracos e pedregulhos, com velhos espreguiçando o tédio nos portões, igual a qualquer outra. Numa esquina, avisto ao longe muros altos, brancos, portão de ferro. Deve ser lá. Um planetário na Rua Galáxia?<br />“Não, moço, aqui é o Núcleo Integrado de Saúde Universo”, informa um rapaz, interrompendo a leitura de um livro.<br />Como é bom encontrar um leitor. Nas mãos, um clássico de Machadinho? Vida e obra de Georges Lemaître? “Mecânica Quântica Moderna”, de J. J. Sakurai e Jim Napolitano?<br />“É a Bíblia Sagrada. Sou pastor”, avisa.<br />Um pastor em plena Galáxia. Vou resumindo o encontro com os fiéis. Ele não se surpreende.<br />“Em Maringá, 26% da população é evangélica. Nas outras cidades, o número é bem menor: 17%. É mais fácil você encontrar um fiel aqui do que em qualquer outro lugar do País”, justifica Luis Henrique, 39.<br />Na fila para fazer o exame e compreender a força estranha que atazana seu tornozelo, o pastor concorda em esclarecer as tantas dúvidas sobre as santíssimas cordas vocais.<br />“Muitos me disseram que já ouviram a voz de Deus. Como é essa voz?”<br />“Não sei. Deus nunca falou comigo através da voz.”<br />“Mesmo sendo pastor?”<br />“Deus fala comigo através da leitura.”<br />“Por que ele dirige a voz só a algumas pessoas?”<br />“A função dele é se aproximar e se fazer compreender.”<br />“Seguindo esse raciocínio, se Deus, então, resolvesse se aproximar de um fã de sertanejo universitário, pensemos aqui numa adolescente, ele poderia usar uma voz parecida com a de algum desses cantores famosos?”<br />“Claro que sim.”<br />“Mesmo sendo o Luan Santana?”<br />“Claro que sim. Não existe um mandamento dizendo que Deus não pode imitar o Luan Santana.”<br />E mais não é possível perguntar, porque a enfermeira anuncia o nome de Luis Henrique e ele segue, arrastando o pé, rumo aos mistérios do tornozelo.<br /><br /><b>Aleluia dominante</b><br />A senhora que escancara as janelas, com mais duas crianças, também se revela evangélica. O vendedor de limão, com a carriola já esvaziada, engorda a lista de evangélicos. A auxiliar de dentista que, ligeirinha, passa por mim, é testemunha de Jeová. Na Rua Galáxia, no Jardim Universo, é mais fácil flagrar alienígenas mantendo contatos imediatos de primeiro grau, a bordo de objetos voadores com luzes piscantes, do que esbarrar num único ateu.<br /><br /><b>Publicado no Diário (22/5/2016) </b></span></span>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-20012032181446219782016-05-13T06:44:00.002-07:002016-05-13T06:44:44.783-07:00Odeio te amar, minha Maringá<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7KTWnXdmrsVJk03Nv4UtkBdmHuxdLrojxXGNz-gL8iTBHye0eyrbbru9ZiH3xwXds1WJx8a4Q5_OLDIqHtHvd5-wFmOkfefxQQN8LBrygQAU4Dcpo3ndUZFvNqHoFtKwMoVs3QtU6MpN4/s1600/foto%25283%2529.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="337" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7KTWnXdmrsVJk03Nv4UtkBdmHuxdLrojxXGNz-gL8iTBHye0eyrbbru9ZiH3xwXds1WJx8a4Q5_OLDIqHtHvd5-wFmOkfefxQQN8LBrygQAU4Dcpo3ndUZFvNqHoFtKwMoVs3QtU6MpN4/s400/foto%25283%2529.jpg" width="400" /></a></div>
Querida Maringá, cada cidade tem o mitógrafo que merece. Balzac
mitificou Paris. Dostoiévski imortalizou São Petersburgo. James Joyce
deu vida a Dublin. John dos Passos até passou por você, em 1956,
vivenciando teu calor insuportável e tua poeira de sangue e, nas linhas
que dedicou a você, notou a fertilidade dessa tua terra vermelha: "Nela
cresce qualquer coisa". Mas as poucas linhas de John dos Passos não são o
suficiente para te mitificar. Nessa lacuna, meu fim é te encarar. Sorte
tua ou azar?<br /><br />Não sei se tem me acompanhado, mas, há algum tempo,
venho sendo teu mitógrafo. A cada domingo, navego tuas ruas, percorro
teus personagens, descubro cenários ignorados pelo cotidiano. O calor
dos diabos deve ser o mesmo testemunhado pelo John dos Passos. A poeira
vermelha agora tem setenta tons de cinza, resultado dos prédios
colossais que brotam nas tuas calçadas. Nas tuas curvas, Maringá, vejo
de tudo. O famoso padre-cantor que insiste em te visitar, as velhas que
te dançam com dentaduras vacilantes nos bailes da prefeitura, as
crianças babonas que te descobrem na palma da mão. A cada passo que você
dá, Maringá, eu te acompanho - ou será o contrário?<br /><br />Meu maior
prazer é te percorrer. Tuas ruas são planas, nada de ladeiras e descidas
de tirar o fôlego – de passagem por aqui, os 350 mil moradores de Ponta
Grossa morrem de inveja. Maringá não é menos andável que Paris, Nova
Iorque, Buenos Aires. Você zanza de lá para cá e nunca se cansa. É
caminhando que te curto, Maringá. E também é caminhando, debaixo dos
49ºC do sol sempre impiedoso, que eu te odeio.<br /><br />Na idade mais
sacana da vida - quem detesta completar meia nove? -, você, Maringá, é
uma senhora serelepe maníaca por remédios - qual outra cidade tem tantas
farmácias? Vaidosa, cuida como ninguém da aparência - daí teus milhares
de cirurgiões plásticos engalfinhando-se em tantas clínicas. Quase
setentinha, você é louca por esportes - dez entre dez maringaenses dão
volta no Parque do Ingá, no Willie Davids, no Parque Alfredo Nyffeler ou
em outro dos teus cantos verdes. Festeira e danada, você nunca nega a
saideira – teus bares jamais regulam horário, e a cerveja, como nas
benditas mesas no Divina Dose, surgem sempre geladíssimas. Por isso,
pelos porres infinitos, eu me levanto para você, ligeiramente
alcoolizado, e brindo tua saúde. Mas na ressaca do dia seguinte,
Maringá, os vizinhos me acordam com os berros estridentes das tuas 300
duplas sertânicas – são 312 duplas no País inteiro. Você é sádica,
Maringá.<br /><br />Renego a Maringá da chatíssima igreja-cone, com suas
milhares de beatas xiitas empunhando os livros do famoso padre-cantor.
Não reconheço a Maringá do capenguinha Joubert de Carvalho - eis a
musiquinha mais ordinária e ingênua da história da MPB? Rejeito a
Maringá da sétima divisão com time desfalcado. Do cachorro-quente
recheado de azia em cada esquina. Essa daí não é minha cidade.<br /><br />Minha
Maringá tem moçoilas desfilando diariamente em vestidíssimos floridos –
negras, ruivas, loiras, mestiças, outras magníficas de traços
indígenas. Minha Maringá é do Poty ignorado – há dois grandes murais
dele espalhados por aqui, já reparou? Minha Maringá é dos índios
kaingangs com balaios coloridos. Da mitológica Tia Maria exibindo, na
Pernambucanas, o caminho da perdição. Do Juarez Arantes regalando-se com
bolos de baunilha e acelerando pelas ruas em seu Del Rey preto
antiostentação – quem imagina, ali, um milionário? Das moçoilas
sexagenárias oferecendo cervejinha carérrima no Skolzinho, no Stop e no
Nara's Bar. Dos hippies, cantores satânicos e do Fábio Evans vendendo
poemas na São Paulo. Dos causos caóticos nos corredores do edifício
Mauricio Schulman, na Zona 7. Dos artesãos, bêbados, ciganos, malditos e
foragidos da polícia bebendo a noite no Posto da Paraná. Da velha
freira doidinha que, toda de preto, bate pernas pela cidade e reza em
silêncio – para onde vai, toda noite, a freira doidinha?<br /><br />Minha
relação contigo, Maringá, é de ódio e apego, desespero e serenidade,
sedução e desilusão, berros e silêncios. Intensa e desequilibrada como
toda grande história de amor.<br />
<br />
<b>Publicado no Diário (8/5/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-44671186012486384992016-04-18T04:31:00.002-07:002016-04-18T04:55:42.047-07:00Beatas berrantes à espera do milagre<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjYjrCDNhWB76b1aNvaiqZzIgzIoz5pUdQa3HHontEe1_TxcoDA_n6F7epJFZ5Yoa9b2ht51xqRMi5aKd6vyxG1M8szqb0GLLZGmQswZ_egPd0uWZr6P42UfNai1aZTXNBtoS86dMpMX_92/s1600/beatas-page-001.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjYjrCDNhWB76b1aNvaiqZzIgzIoz5pUdQa3HHontEe1_TxcoDA_n6F7epJFZ5Yoa9b2ht51xqRMi5aKd6vyxG1M8szqb0GLLZGmQswZ_egPd0uWZr6P42UfNai1aZTXNBtoS86dMpMX_92/s640/beatas-page-001.jpg" width="371" /></a></div>
Gritos. Berros. Histeria coletiva. Olhos ensopados de lágrimas. Mãos
e braços tremelicantes. Cantorias e palminhas na fila quilométrica.
Onde você está mesmo? Prestes a entrar no camarim do Paul McCartney?
Não. É um público diferente. Olhe à sua volta. Velhas, muitas velhas.
Velhas rezando terço. Velhas enfrentando filas de até cinco horas.
Velhas desafinando o punhado de canções religiosas. Velhas com tubo de
oxigênio. Velhas zanzando em cadeiras de rodas. Velhas exigindo filas
prioritárias – com qual fim, se são todas velhas?<br />
<br />
Pode a bomba cair duas vezes no mesmo lugar? Sim, ela cai.<br />
<br />
Oito
meses depois, aqui estamos, no shopping Catuaí, novamente à espera do
padre Marcelo Rossi. Da última vez, tentei de todas as formas me
aproximar, sem sucesso, do padre-cantor. Por meio da assessora, descobri
que ele só havia atendido a Globo e o SBT. O jornal impresso não era o
foco dele. Curioso, isso. No início de tudo, não era só o verbo?<br />
<br />
Determinado
a falar com o padre, pedi conselhos ao meu amigo Baiano. Engenheiro
mecânico e, nas horas vagas, ateu por natureza, ele é um grande leitor
de Daniel Dennett, Richard Dawkins e Christopher Hitchens. Por e-mail,
Baiano me encaminhou 39 perguntas que eu deveria fazer ao padre-cantor,
como: 1) Por que Deus abriu o Mar Vermelho para que Moisés tirasse os
judeus do Egito, mas não abriu os portões dos campos de concentração?;
2) Cristãos dizem que se um bebê morrer, ele vai para o céu. Por que,
então, os mesmos cristãos são tão contrários ao aborto, se isso privaria
as crianças de irem para o inferno?; 3) Por que Deus mandou o dilúvio
para eliminar o mal na Terra, se não funcionou, e o mal voltou logo em
seguida? Deus, onipotente e onisciente, já deveria saber que isso
aconteceria. Por que, então, ele se deu ao trabalho?; 4) Cristãos adoram
dizer o quanto Jesus se sacrificou por nós. Mas, se ele era Deus, então
como não sabia que, em três dias, estaria no céu para nos governar? Se
ele está lá vivo, o que exatamente ele sacrificou?; 5) Todos somos,
realmente, filhos de Deus? Até mesmo Charles Manson, Suzane Von
Richthofen, Motoqueiro Atirador de Goiânia, Maníaco da Torre, Luan
Santana?<br />
<br />
Além das questões religiosas do Baiano, também tenho
minha listinha de indagações, mais direcionada às veredas culturais –
que revelam, e muito, as peculiaridades de qualquer sujeito. Prefere, o
padre-cantor, Lennon ou McCartney? Woody Allen ou Pedro Almodóvar? Sasha
Grey ou Sensi Pearl? Essas respostas, infelizmente, você jamais saberá.
Porque o assessor de imprensa das Livrarias Curitiba, mesmo sem saber
quais perguntas levo na manga, já elimina qualquer possibilidade de
diálogo com o padre-cantor. "Infelizmente, o padre Marcelo só vai
atender os veículos de comunicação que agendaram previamente a
entrevista. Sinto muito, Gaioto."
<br />
<b><br /></b>
<b>Churrasqueiro da fé</b><br />
<br />
Sem acesso ao padre, pego minha listinha de perguntas e vou direto ao
povo – não é a tal voz de Deus? Às duas em ponto, quase 800 velhas e
tiazonas enfileiradas. A primeiríssima, Marina David, 57, chegou às duas
da madrugada. Fã do padre-cantor, ela já ganhou a bênção dele no ano
passado. "Mas foi rápido demais, porque já estava muito tarde e o padre
acelerou o atendimento." Dessa vez, Marina não hesitou em perder um dia
de trabalho só para ser a primeirona. "Acho que vou ter mais tempo pra
falar com ele, né? A palavra dele me leva à comoção. Ele é diferente dos
outros padres. Nem se compara ao padre Fábio de Melo, que é só cantor. O
padre Marcelo é mais espiritual: ele acende o fogo da fé."<br />
<br />
Gostei
de Marina. Talvez ela seja a pessoa certa para responder as perguntas
do Baiano. Tiro a listinha do bolso e escolho uma pergunta
aleatoriamente. "Cristãos dizem que se um bebê morrer", vou lendo em voz
alta, "ele vai para o céu. Por que, então, os mesmos cristãos são tão
contrários ao aborto, se isso privaria as crianças de irem para o
inferno?"<br />
<br />
Sem respostas, Marina até esboça alguma coisa, mas
desiste. Acuada, busca ajuda no rosto das amigas. Rapidinho, o batalhão
de velhas fiéis te cerca, metralhando uma porção de respostas para todos
os lados.<br />
<br />
"Porque todos temos direito à vida!"<br />
<br />
"Quem vai parar no inferno são os médicos!"<br />
<br />
"Isso é coisa de assassino."<br />
<br />
"Qual diferença de quem tira a vida de um bebê e de um homem?!"<br />
<br />
"Isso é coisa que se pergunte, moço!?"<br />
<br />
"Quem faz aborto não tem Jesus no coração."<br />
<br />
As respostas são ecléticas, mas sempre fogem à questão. E Marina também sente que são todas insuficientes.<br />
<br />
"Vou
te contar uma coisa", avisa. "Quando tinha 32 anos, fui mãe solteira.
Comi o pão que o Diabo amassou. Tive três filhos. Sem casa, passando
fome, frio, morando sabe onde? Debaixo da ponte. Eu e meus três filhos.
Todo mundo dormindo no piso bruto. Hoje, tá todo mundo aí: casado, bem
de vida. Já pensou se eu tivesse feito aborto? O que seria de mim? E
deles?"<br />
<br />
<b>Reza e tragédia</b><br />
<br />
Sigo pela multidão. Sentada na banquetinha
de plástico, a velha vai despindo, lentamente, o sapatão laranja.
Meiona por meiona, lentamente, até a brisa geladinha refrescar cada
pezão inchado, decorado por escamações, micoses, frieiras, bicho
geográfico e unhas macilentas. Apavorado, você testemunha o silencioso
strip-tease dos pezões octogenários. Por sorte, gritos e assovios
desviam tua atenção. Seis sujeitos passam por uma área isolada, ao lado
da fila. Velhas descalças levitam na pontinha dos pezões. Ainda não é o
padre-cantor. Mas é suficiente para estimular a contagiante cantoria de
dois versos minimalistas:<br />
<br />
"Padre Marcelo, cadê você?<br />
<br />
Eu vim aqui só pra te ver!"<br />
<br />
(repete infinitas vezes, até a exaustão).<br />
<br />
"Quando
olho pro padre Marcelo, vejo Jesus em pessoa", comenta a auxiliar de
administração Cleuza Martins, 56, interrompendo o grito de guerra.
Gozando merecidas férias, ela veio sozinha, na companhia apenas de
familiares emoldurados. "Onde a mãe vai, as fotos também vão. Trouxe uma
foto de cada filho, ó, todas do dia do casamento. É para a bênção do
padre", exibe, toda serelepe.<br />
<br />
Quero saber das histórias
impossíveis. Milagres, mágicas, esse tipo de coisa. "Tá falando com a
pessoa certa. Tenho vários testemunhos. São tantas histórias do Deus do
Impossível que você vai dizer: 'essa mulher é doida!'"<br />
<br />
Abraçando
molduras, ela começa o relato, e, aos poucos, as velhas em volta
escancaram ouvidos à trama. "Há dois anos, meu genro, minha filha e meus
dois netos saíram de carro, enquanto fiquei em casa com meu netinho de
colo. Quando eles viraram a esquina, já senti a voz Dele. Era uma voz
grave, falando direto no meu coração. Como eu sabia que era Deus? Porque
era, ora. Senti uma coisa ruim e fui pro meu quarto. Comecei a rezar,
pedindo misericórdia. E não deu outra. Meu filho tava em alta velocidade
e bateu o carro na Nildo Ribeiro. Deu perca total. Você tinha que ver
como ficou o carro dele e do outro motorista. Uma cena horrorosa.
Felizmente, todos saíram vivinhos."<br />
<br />
Diante dos cochichos
espirituais, não será ela capaz de responder única pergunta da lista do
Baiano? Ela sorri, disposta a esclarecer os mistérios da fé.<br />
<br />
"Por
que Deus abriu o Mar Vermelho para que Moisés tirasse os judeus do
Egito, mas não abriu os portões dos campos de concentração?", questiono.<br />
<br />
Com
todos os seus testemunhos, Cleuza pensa quatro, cinco, seis vezes. A
hesitação é evidente. Talvez, ela lembrasse daquela história do judeu
faminto, pai de família e muito religioso que pediu um pouco de comida a
um soldado alemão no campo de concentração. O soldado, então, pegou um
rato vivo e colocou nas mãos do judeu. Em seguida, apontou uma arma para
o judeu e ordenou que ele comesse, ali mesmo, aquele rato, vivo.<br />
<br />
"Nos
campos de concentração não tinha ninguém de fé! Judeu não tem fé, meu
filho", garante Cleuza, antes de acrescentar: "As coisas às vezes
acontecem porque precisam acontecer. Os mistérios de Deus são grandes."<br />
<br />
<b>Sangue azul</b><br />
Mais atrás, descubro Thereza Iracema dos
Santos, 77. Encarou os 112,6 quilômetros que separam Tapejara de
Maringá. E, nos dias em que permaneceu por aqui, fez questão de
aproveitar a vasta agenda cultural da cidade. "Ontem, fui ver a palestra
do Doutor Bactéria. Hoje, vim no padre Marcelo. Não é uma maravilha?",
comenta, feliz da vida. Boa de prosa, conta detalhes bombásticos de seus
longínquos ancestrais. "Sou de família italiana. Sabia que sou
descendente do Papa Pio 10?" Com as veias cheias de sangue azul, comento
que ela deveria ter direito a algum acesso exclusivo que facilitasse o
encontro com o padre-cantor. Rapidinho, ela escancara o sorrisão – ela
ainda não tinha pensado nisso.<br />
<br />
Enquanto Thereza reflete sobre seus direitos, garantidos pela árvore genealógica, puxo conversa com uma loira de olhos chorosos.<br />
<br />
"Sou
louca pelo padre", desabafa a psicóloga Kelly Moraes, 39. "Já vi ele em
Londrina, em fevereiro deste ano, em Curitiba, em março, e agora aqui
em Maringá. Só falta ele ir pra minha cidade, Cascavel, que eu vou de
novo atrás dele", avisa.<br />
<br />
"Com ele, eu arrepio da cabeça aos pés", revela.<br />
<br />
Na aliança brilhante, a mais óbvia pergunta.<br />
<br />
"O maridão não sente ciúmes?"<br />
<br />
"Olha, vou te contar, viu..."<br />
<br />
Quantas revelações se escondem num sorriso danado?<br />
<br />
"...ele fica um pouco enciumado, sim!"<br />
<br />
Seleciono perguntas aleatórias da listinha do Baiano.<br />
<br />
"Por que Deus é do sexo masculino?"<br />
<br />
"Deus é Deus, ué. Nem homem nem mulher."<br />
<br />
"Se o design de Deus é tão inteligente, por que homens têm mamilos?"<br />
<br />
"Porque seria horrível nada não ter. Já pensou?"<br />
<br />
"Se
o Satanás é o Pai da Mentira, como podemos ter certeza de que ele não
enganou os cristãos e fez com que eles o adorassem como deus e
rejeitassem o legítimo Deus?"<br />
<br />
"Impossível: Deus é mais!"<br />
<br />
Agradeço a conversa, ainda insatisfeito com as respostas.<br />
<br />
<b>Metallica & Jesus</b><br />
<br />
Na fila, uma moçoila chama a
atenção. Rosas negras tatuadas no braço direito, frases agigantadas
marcadas no punho esquerdo e flores coloridas no punho direito.<br />
<br />
"Gosta de rock?", vou sondando.<br />
<br />
"Adoro
Guns, Cash, Bob Dylan e, principalmente, Metallica. Até fui no show
deles ano passado, no Rock in Rio, e fiquei bem pertinho do palco. Gosto
de rock e de Deus. Na verdade, não sei o que seria da minha vida sem
oração", comenta Alessandra Cussolin, 22.<br />
<br />
Diariamente, ela gasta
exatamente dez minutos rezando. Dez minutos: tempo para ler quatro ou
cinco páginas de um romance de Philip Roth; ouvir "Moment's Notice",
executada pelo John Coltrane; ou, ainda, fazer uma torta salgada no
liquidificador. Pergunto a Alessandra se ela já pensou em usar esses dez
minutos diários para fazer outras coisas, em vez de rezar. "De forma
alguma. Eu não tenho outra coisa melhor para fazer nesse tempo",
comenta, no exato momento em que começa o berreiro, despertando palmas
de aleluia. Três horas em ponto. O padre-cantor vai começar a maratona
de autógrafos.<br />
<br />
"Quer dar uma olhada no padre?", oferece o
assessor de imprensa. "Só não pode fazer perguntas, certo?" Certo. Ganho
acesso a uma área lateral, longe das filas congestionadas, que dá
acesso imediato à saleta onde enfiaram o padre-cantor. Durante o
trajeto, minhas velhas amigas me acenam e lançam sorrisos – por dentro
me amaldiçoam e torcem pelo pior.<br />
<br />
<b>Garrancho da fé</b><br />
<br />
Dentro da saleta, dois grandes caixotes
recebem os pedidos de orações dos leitores. É só passar e arremessar lá
dentro. Teoricamente, o padre-cantor vai ler um por um e interceder por
todos. Pego um bilhetinho. Letra tremida, miúda, sem qualquer pontuação,
empanturrada de erros gramaticais:<br />
<br />
"Padre marcelo pelo amor de deus não esqueci di mim minha filha tem muita depreção principalmente no trabalho."<br />
<br />
Epa, quem não tem depressão no meio do trabalho? Pego outro bilhetinho.<br />
<br />
Garrancho quase incompreensível, com letras agigantadas e tremelicantes, em linhas grávidas de novos erros gramaticais.<br />
<br />
"Padre
marcelo estou escrevendo porque fiquei com medo eu já fiz muito medroza
porque vivo sozinha ainda tem este velho Leonildo que vive aqui dentro
da minha casa enfrentando eu tanto tempo que vivemos separados não tem
nada entre nós ele continua aqui brigando entrando no meio esse velho
horrivel o velho Leonildo."<br />
<br />
Nem com santa paciência dá para encarar essas centenas de bilhetes.<br />
<br />
<b>Paraíso</b><br />
<br />
A dez passos de distância, o padre-cantor surge ainda mais
magro do que na outra vez. Grandes orelhas de três palmos abertos. Meio
corcunda. Abatidão. Toma uma bebida amarela-escura. "É Red Bull light",
dedura uma fonte que prefere não se identificar – vai que o padre se
enfeza e exclui seu nome da listinha de benção? Está explicado: vem do
Red Bull a força estranha que mantém o padre-cantor abraçando e sorrindo
para tanta gente. Para comer, a santíssima trindade favorita:
castanhas, nozes e damascos. É tudo muito rápido. Não dá para falar
quase nada. Crianças babonas a tudo olham assustadas, não compreendem o
choro dos pais, a empolgação da avó, o coração disparado saltando goela
afora - estivéssemos diante de Paul McCartney não seria a mesmíssima
coisa? Duas modelos sensuais, moreníssimas, distribuem sorrisos e
indicam a saída aos leitores fiéis. Ao lado das morenas angelicais,
testemunhando cada curva abençoada, estou finalmente no paraíso.<br />
<br />
<b>Publicado no Diário (18/4/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-85731555775573307482016-04-04T11:15:00.000-07:002016-04-04T11:15:32.537-07:00Noitada cercado de bailarinas de toalhas<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiWR8PQ9_gnTjkOcXV4kGWSd95BfCzciWonUqbQLP9DyD5uR6L9nBOQ5vYGwhl0WOgayzqZvnEZYc6RXGxn3g7gNfOBHib7zUqZYu-e_fyapcMAaKhRFiuYTX29VmC9mLFGoZsoQT9wJDNg/s1600/bal%25C3%25A9+ajeitada.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="188" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiWR8PQ9_gnTjkOcXV4kGWSd95BfCzciWonUqbQLP9DyD5uR6L9nBOQ5vYGwhl0WOgayzqZvnEZYc6RXGxn3g7gNfOBHib7zUqZYu-e_fyapcMAaKhRFiuYTX29VmC9mLFGoZsoQT9wJDNg/s640/bal%25C3%25A9+ajeitada.jpg" width="640" /></a></div>
<br />
Crianças e adolescentes aguardam em pé na bilheteria do Teatro Calil
Haddad. Organizados e disciplinados. Sem empurra-empurra. Sem fura-fila.
Conversam entre si em tons amenos, uma e outra risada, sempre de olho
no relógio. Mãos entrelaçam expectativas, pés batucam a espera no chão.
Aguardam o quê, as dezenas de jovens maringaenses, quase todas mocinhas?
Distribuição de sorvete, pipoca e algodão-doce? Ingressos para o show
do Justin Bieber?<br />
<br />
"Que nada! Hoje é noite de dança clássica. É o
Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, fazendo 'Cinderela'", informa a
primeirona da fila, Polyana Mauer, de 13 aninhos. "Todo mundo que já
está na fila faz aulas de balé. Fiz questão de vir bem cedinho. Quero o
melhor lugar, no setor B. É o mais indicado para apreciar não só a
dança, mas, também, os elementos do cenário que vão mudando durante a
apresentação. Em qual setor você vai?"<br />
<br />
Não faço ideia. Nem sei direito o que avaliar. Cenários, coreografias? A mocinha nota minhas interrogações.<br />
<br />
"Só
não demore muito para entrar na fila. Que os ingressos começam a ser
distribuídos uma hora antes do espetáculo. Se você demorar demais, corre
o risco de ficar para fora."<br />
<br />
<b>Dançando direito</b><br />
<br />
Agradeço à instrutora mirim. Vou pensar melhor em qual setor. A fila,
noto agora, vai ficando mais encorpada – serpente rastejando rumo às
escadas que dão no mural do grande Poty. Olhando melhor, não são só
menininhas enfileiradas. No meio delas, um único garoto também à espera.
De blazer e sapato preto, calça jeans escura – eis o único bailarino
maringaense?<br />
<br />
"Quando comecei, há dois anos, alguns tiravam sarro
de mim. Resolvi ignorar os comentários. Quando estou dançando no palco,
com pleno domínio da emoção, sentindo a música e recebendo os aplausos
da plateia, sinto a melhor sensação do mundo", revela Yuri Braguin, 18.<br />
<br />
Estudante
de Direito, o rapaz responde a tudo seriamente. Cerimonioso. "Gosto
dessas formalidades. Das regras, das leis, das regras da dança. Direito e
balé têm suas semelhanças. Um dia, quero chegar ao nível do
Baryshnikov. Seus saltos, giros e interpretações são impecáveis. Ele
nunca dança por dançar: ele é a dança."<br />
<br />
Há um converseiro
generalizado no teatro. Gente que vai chegando e enfileirando
expectativas. Famílias, namorados de mãos dadas. Crianças, várias delas.
De seis, oito, doze e quinze centímetros, correndo e pulando e babando
no saguão. Ai, não. Tudo, menos crianças. Quem, em sã consciência, traz
propagandas ambulantes de vasectomia pra dentro de um teatro?<br />
<br />
Atrás
das crianças, o casal de idosos conversa alegrinho. Trocam impressões,
cochichos, risadinhas. Aos oitenta e poucos anos - há mais de cinquenta
casados? - ainda compartilham curiosidades da vida, um com o outro.<br />
<br />
"Nunca vi um balé. Meu filho, sargento aposentado da polícia, que trouxe a gente. Ó ele chegando aí", avisa o sujeito oitentão.<br />
<br />
Sargento aposentado chegado em balé clássico?<br />
<br />
"E
por que não?", devolve José Mantovani, 53, ao lado da esposa. "A gente
faz dança de salão, uma vez por semana, das oito às dez. Bailamos
bolero, forró, um pouco de tudo. Fiz novas amizades e senti que minha
vida melhorou. Você fica mais saudável, né? Daí o pessoal da escola teve
a ideia de vir pra cá, e não pensei duas vezes: junto trouxe meus pais.
Vai ser uma noite de aprendizado", diz.<br />
<b><br />E dá-lhe bullying!</b><br />
<br />
Vestidos farfalhantes. Saltinhos
marchando em volta. Aromas adocicados, suaves, feromoniosos. Num retrato
em branco e preto, Calil Haddad acompanha cada detalhe. Olhar sisudo e
severo. Cabelo reluzente entupido de gel. No quadrinho do alto da
parede, ele enxerga mais que todos nós. Sente, um por um, os perfumes
das musas, cada uma devorada pelos silenciosos olhares do nosso Calil.
Ele, sim, sabe das coisas.<br />
<br />
É o próprio Calil, com a discrição de
um espião inglês, sinalizando com sobrancelhas tremelicantes, quem me
aponta a loirinha a alguns metros de seu retrato. Perfume levemente
picante - esse, o melhor cheiro da tua vida. Sorridente num
vestidíssimo, ao lado de duas amigas. Vou logo puxando papo.<br />
<br />
"Elas duas dançam, moço. Menos eu", avisa a loirinha.<br />
<br />
"Por que não baila?", questiono.<br />
<br />
"É trauma de criança. Culpa da minha mãe", acusa Fabiana Artuso, 22.<br />
<br />
Em menos de vinte segundos, prontinha para falar de seus dramas mais profundos - não é nosso tipo favorito?<br />
<br />
Como é bom mulher que se abre.<br />
<br />
"Nunca dancei porque minha mãe sempre dizia que eu era gorducha demais."<br />
<br />
Covinhas poliglotas. Ombros tenros. Lábios elegantes.<br />
<br />
"Tem certeza que..."<br />
<br />
Sem jeito, você não começa a gaguejar?<br />
<br />
"...fo-ra de for-ma?"<br />
<br />
"Não foi só minha mãe. Sofri muito bullying também no colégio."<br />
<br />
Nos olhos, a mesma melancolia de Ingrid Thulin.<br />
<br />
"Os garotos me chamavam de gorda-baleia, saco de areia."<br />
<br />
Todos tão míopes?<br />
<br />
"Colavam chicletes na minha cadeira."<br />
<br />
Pobres coitados cegos, malditos astigmatas.<br />
<br />
"Sem falar nos namoricos: garotos por quem eu era apaixonada e se aproximavam de mim..."<br />
<br />
Sempre há alguém de bom senso.<br />
<br />
<br />
"...só pra ficar com minhas melhores amigas."<br />
<br />
"!"<br />
<br />
"Agora,
tudo mudou: emagreci quinze quilos. Sem remédios. Fui no nutricionista
e, seguindo a receita, fechei a boca. Passei a praticar exercícios.
Comecei a caminhar no Parque do Ingá. Hoje, chego a dar três voltas."<br />
<br />
Liberar
endorfinas de roupinha apertadinha e cabelinho preso num rabinho de
cavalo. Trotando e galopando em matas virgens, penetrando cavernas e
abrindo clareiras - empunhando o facão sempre em riste! -, subindo e
descendo montanhas, desbravando territórios nunca d'antes navegados -
ilhas Andamão!, Tristão da Cunha!, Santa Helena! -, decorando sotaques
desconhecidos, aspirando fragrâncias exóticas, mergulhando nas águas
límpidas e cristalinas de sereias – ei, onde estamos indo com tudo isso?
Sente os batimentos? Quase rompendo o peito? Põe a mão aqui, ó. Assim.
Quase enfartando, só de imaginar essa caminhada de três voltas no nosso
Parque do Ingá.<br />
<br />
"Hoje, posso olhar para todos eles de uma forma diferente..."<br />
<br />
Dedinhos serelepes ajeitam o vestidíssimo na cinturinha mais fina.<br />
<br />
"...porque finalmente eu sou..."<br />
<br />
O início, o fim e o meio?<br />
<br />
"...GOS-TO-SO-NA."<br />
<br />
<b>Emerson & Hudson</b><br />
<br />
Usando bonés de hip hop e bermudões
folgadões, a dupla de amigos dá o ar da graça no teatro com a mesma
emoção de quem declara o imposto de renda. Perdidos em cochichos
desconfiados. Reticentes. Sem gestos bruscos.<br />
<br />
"Vieram pro balé?", vou sondando.<br />
<br />
"Balé?!", respondem, surpresos, afinados em uníssono.<br />
<br />
Veja
os rostos espantados. Em silêncio, o laboratorista Emerson Souza, 24, e
o auxiliar de serviços Hudson Marques, 22, imaginam qual melhor
estratégia. Mototáxi? Fugir num zepelim? Carona num disco voador?<br />
<br />
"Vishi, nem tava sabendo", confessa Emerson.<br />
<br />
"A gente veio por causa do colégio. Vale cinco horas. Será que..."<br />
<br />
Quatro olhos acuados, amedrontados.<br />
<br />
"...é legal?", pergunta Hudson, vacilante.<br />
<br />
"Se você gosta de moças sensuais..."<br />
<br />
"!"<br />
<br />
"...coxas à mostra, ombros nus, clavículas tentadoras, aberturas de pernas impressionantes..."<br />
<br />
"!!"<br />
<br />
"...tudo com..."<br />
<br />
Emerson & Hudson desembestam a correr para pegar os ingressos do balé.<br />
<br />
"...boa música."<br />
<br />
<b>Coreografia sacolejante</b><br />
<br />
A estudante Bruna Gomes e outras
dezenas de estudantes da Escola Estadual Erico Verissimo, de Faxinal,
alongam braços e esticam pernas. Visivelmente aliviados. O grupo
sacolejou por duas horas numa viagem de ônibus. O veículo não tem
ar-condicionado – as janelas arregaçam ventos refrescantes –, mas nenhum
dos viajantes estava preocupado com luxos excessivos.<br />
<br />
"O que a gente
quer é curtir a cultura. Tenho 17 anos e ainda não vi um balé. Minha
cidade não tem teatro, dança nem shows. Só esses sertanejos", lamenta a
moça. E mais não dá para descobrir. É preciso apressar o passo, que os
ingressos estão se esvaindo.<br />
<br />
Com entrada liberada, o público vai tomando assento. Na bilheteria, uma voz estridente lamenta as verdades da vida.<br />
<br />
"Ai,
meu Deus, acabou?!", espanta-se Norma Segatti, 61, ao lado de duas
menininhas de dez centímetros. "Pena que minha filha demorou demais para
sair do trabalho e me trazer aqui", lamenta.<br />
<br />
Cerca de cem
pessoas não conseguem ingressos. Minha instrutora-mirim estava certa.
Quem vacila nos ponteiros sempre acaba dançando.<br />
<br />
<b>Bailarinas de toalhas</b><br />
<br />
Chego meio atrasado, o espetáculo já
rolando. Num canto escuro, me acomodo em pé. Três bailarinas
rapidamente somem de cena. E a cortina, então, escancara a primeira
troca de cenários, arrancando suspiros coletivos.<br />
<br />
"Uauuuu!", surpreende-se o público, embasbacado.<br />
<br />
Será
pela rápida mudança de palco? Saem os antigos elementos cênicos e
surgem cadeiras, espelhos, portas gigantes, coisas que – impossível
prestar atenção nos outros trecos.<br />
<br />
Teus olhos só miram as sete
bailarinas – não é o tal número sagrado? Deslizam de um canto para o
outro do palco, com saltinhos e reboladinhas, enroladas apenas em
toalhas brancas. Colos nus. Coxas à mostra. Ombros exibicionistas.
Panturrilhas fluentes. Nas costas de bailarinas curitibanas você
encontra respostas e embasamentos para uma porção de coisas, como:<br />
<br />
1) Resolver os conflitos no Oriente Médio;<br />
<br />
2) Apaziguar as veleidades explosivas de Kim Jong-il;<br />
<br />
3) Solucionar os truques de mágica do Circo Tihany;<br />
<br />
4)
Escrever uma letra para "Valsa (Como São Lindos os Youguis) (Bebel)",
música composta por João Gilberto e entoada apenas pela sequência
enigmática de "nana, nana, nana, nana", durante exatamente três minutos e
trinta e dois segundos.<br />
<br />
No canto esquerdo do palco, uma ruivinha sorridente levanta da
cadeira, depois de abrir e fechar as pernas, com as mãozinhas sobre os
joelhos, e toma a frente do palco. Do alto, não parece ter nove
quilômetros de pernas? Segura na pontinha dos dedos a toalha
branquíssima – cai!, cai!, cai! –, enquanto desce, lentamente, até o
chão. Outras pernas surgem ao lado dela. Coxas morenas, negrinhas,
loirinhas – isso, o velho Degas nunca te mostrou. Na plateia, nenhuma
alma entediada. A garota ciumenta estende a mão para esconder as
delícias do namorado babão – não verás país nenhum. Ninguém fuça
mensagens nem pensa em outras coisas. Todos os pensamentos são para as
bailarinas de coxas brilhantes, ao som de violinos e violoncelos. No
peito bate firme o arrependimento: da próxima vez, será da primeira
fileira.<br />
<br />
<b>Publicado no Diário (3/4/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-31727385850613016492016-03-21T15:00:00.004-07:002016-03-21T20:55:03.608-07:00Turistando Fernando Verissimo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRr4jpsMCjbz-zCmX7Gf7zvBx9NcejD89GbP1diN7oISR20pkDK7_89lKckw5YlHaFKzN4hghXt3AKUqWQGjx4OBhySDK-GNbbM2tSZ2snaOps35cIMYdw2_oSwRQdmrWWqvXVXe0w-RGz/s1600/turistando+Fernando.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRr4jpsMCjbz-zCmX7Gf7zvBx9NcejD89GbP1diN7oISR20pkDK7_89lKckw5YlHaFKzN4hghXt3AKUqWQGjx4OBhySDK-GNbbM2tSZ2snaOps35cIMYdw2_oSwRQdmrWWqvXVXe0w-RGz/s640/turistando+Fernando.jpg" width="337" /></a></div>
Depois de flanar pelo Parque Farroupilha, ainda suado de bater pernas entre árvores – algumas destroçadas pelo recente temporal -, hordas de turistas armados com celulares hipermodernos, crianças e pais entediados no vagão do “Tchezinho”, vendedores de raspadinhas berrando promoções e dezenas de ciclistas, consigo convencer minha namorada a um passeio menos romântico em Porto Alegre: conhecer Luis Fernando Verissimo. <br />
<br />
“É muito longe daqui! E não é meio impossível? Aquela sua conhecida não disse que ele é um chato de galochas e que até negou autógrafo pra ela?”<br />
<br />
Aquela conhecida: ex-colega de classe, louca varrida, fã de Munhoz & Mariano, Luan Santana & Michel Teló e toda a corja de berros sertânicos - eu também negaria um autógrafo pra ela. <br />
<br />
“Disse, disse. Mas era numa feira literária”, vou lembrando, “dessas com filas gigantescas, cheia de crianças e pré-adolescentes babões, e ela, que nem livro tinha, parece que se aproximou e exigiu dedicatória numa agenda qualquer, pô! Se cada leitor chegas- se com agendas, imagina o caos que seria?!”, digo, já fazendo sinal para o ônibus parar, e empurrando minha namorada porta adentro. <br />
<br />
Há quatro anos, Luis Fernando Verissimo passou duas semanas na UTI de um hospital e deu um baita susto em seus leitores. Quase morreu, vítima de uma infecção nos rins que ameaçava ser fatal, e, durante um tempo, manteve-se recluso dos eventos literários. Com a melhora em 2013, foi retomando a antiga rotina. Rumo aos 80 anos, comemorados no dia 26 de setembro deste ano, ele segue publicando crônicas irônicas e inteligentes nos jornais Zero Hora,O Estado de S. Paulo e O Globo. Sua obra mais recente, As mentiras que as mulheres contam saiu no ano passado e pode ser lida como uma continuação do best-seller As mentiras que os homens contam (2000), que vendeu cerca de 500 mil exemplares. <br />
<br />
Se tudo der errado e Luis Fernando Verissimo não nos receber, recusando uma dedicatória na minha edição de Outras do analista de Bagé (1982), pelo menos estaremos na frente da casa onde morou e morreu Erico Verissimo, vou dizendo à namorada. E agora é ela quem me puxa pelo braço, porque segundo o aplicativo do celular é exatamente aqui o ponto onde temos de descer, a duas quadras de distância do destino literário. <br />
<br />
<b>Soldados e pardais </b><br />
<br />
O bairro de Luis Fernando Verissimo parece uma zona de guerra. Soldados do exército, divididos em duplas, zanzam de um lado para o outro, batendo de porta em porta e conversando com moradores, num mutirão contra a dengue. “Podemos ir disfarçados de soldados...”, sugere minha namorada, um tanto ofegante com a subida da ladeira, “quem sabe assim ele não é obrigado a receber a gente?” <br />
<br />
Vencida a subida, somem de cena os recrutas caçando mosquitos. Casas silenciosas. Antigas. Charmosas. Escancaro ouvidos no meio da calçada, na tentativa de escutar algum solo de clarineta, mas tudo o que ouço são os improvisos jazzísticos de um casal de pardais, se engalfinhando numa árvore de esquina. E é daqui, debaixo dos pardais, que vejo, a poucos metros, a casa de Erico e Luis Fernando Verissimo. <br />
<br />
O carro estacionado na garagem e a porta entreaberta indicam que há gente. Azulejos coloridos. Pequeno jardim à frente – epa, não foi bem aqui que Erico tirou aquela foto, sentadão, todo sorridente? <br />
<br />
Uma voz serelepe e gentil atende o interfone. “Então vocês querem conhecer o Luis Fernando?”, pergunta, do outro lado da linha. “Exatamente. Somos seus leitores.” “Esperem um momento. Vou abrir para vocês.” Surpreendente. Menos impossível que o esperado. Minha namorada já saca da bolsa a edição a ser autografada - nada de agendas, evidentemente. <br />
<br />
Gente finíssima, a senhora de cabelos grisalhos surge para abrir o portão. “Muito prazer! Sou a mulher do Luis Fernando. Vocês, então, vieram do Paraná?!” <br />
<br />
Vestidinho cinza, olhos cheios de vida e pés descalços para sentir as verdades do mundo. Sessenta e poucos anos - não aparentam só vinte e nove?! “Entrem, entrem. Só me perdoem, viu? Que isso não é traje de receber visitas. Mas vamos entrando que já vou chamá-lo.” <br />
<br />
Antessala. Sofás para pausas rápidas. Suporte para casacos. Corredor de paredes brancas. Um quarto. Cômodos escuros. Ar condicionado refrescando a alma. “Luis Fer-naaan-dooo!”, grita a mulher, carinhosamente, convocando o marido. <br />
<br />
No final do corredor, que dá para uma grande sala com sofás confortáveis, mesa apinhada de livros e jornais, e paredes lotadas de pinturas de artistas gaúchos, Luis Fernando Veríssimo finalmente surge em cena. Um metro e sessenta e pouco. Camisa branca por baixo da calça bege enlaçada por cinta preta. Sapatos escuros. Roupa de quem está prestes a trabalhar. “Vamos nos sentar, por favor”, convida o autor, estendendo sorrisos. <br />
<br />
Pergunta o meu nome e o de minha namorada. Ao ouvir o nome dela, Ariádiny, lembra que já o usou em uma de suas obras. <br />
<br />
“Foi naquele romance...” <br />
<br />
Olhos vagueiam lembranças nas paredes de telas e aquarelas. <br />
<br />
“...aquele...” <br />
<br />
Sobrancelhas envergadas em busca do título perdido.<br />
<br />
“...‘Os Espiões’”, responde, orgulhoso da própria memória. <br />
<br />
<b>Caminho da crônica </b><br />
<br />
“O que um jovem aspirante a escritor deve ler para poder escrever bem?”, pergunto. Luis Fernando vai respondendo com calma, fazendo algumas pausas entre seus selecionados da sagrada lista. <br />
<br />
“Eu sugiro os cronistas... Fernando Sabino... Paulo Mendes Campos... Sérgio Porto... Rubem Braga... Todos eles. E depois, é só escrever. Não precisa saber como vai terminar a história... É só pensar no início e, em seguida, desenvolver a ideia... Eu mesmo nunca sei como vou terminar uma crônica ou um conto”, revela. <br />
<br />
“E por que essa reclusão do público e dos eventos literários?”<br />
<br />
“Um pouco dessa minha reclusão é porque, como você sabe, sou muito tímido... Esses eventos são muito difíceis pra mim. Mesmo assim, quando sou convidado para ser patrono de festa literária ou coisa do tipo, faço um esforço para ir.” “E o próximo livro, quando vem?” “Já está com a editora. Será uma compilação de crônicas já publicadas. Ainda não tem nenhum título definido”, adianta. <br />
<br />
“Vô, vô, vô!”, grita uma menininha, de uns cinquenta centímetros, invadindo nossa conversa. “A gente já pode ver a experiência?” <br />
<br />
Luis Fernando abre um sorriso carinhoso. <br />
<br />
“Claro, já vamos ver. Será que deu tempo? Gelou tudinho?” <br />
<br />
“Eu tava vendo ali e já deu sim, ó...” <br />
<br />
O dedinho, firme, apontando o relógio de parede. <br />
<br />
“...passaram trinta minutos, tá vendo? A gente pode abrir o freezer?”, indaga a menina, cheia de ansiedade. <br />
<br />
“Só mais um segundinho e o vovô já vai ver a experiência com você, tá?” <br />
<br />
“Tá bom. Brigada, vô!” <br />
<br />
A menina sai em disparada pelo corredor. Não queremos atrapalhar a experiência em família do autor e de sua netinha. <br />
<br />
“Gostaríamos que você assinasse nosso livro, pode ser?” <br />
<br />
“É claro que sim.” <br />
<br />
<b>Iberê particular </b><br />
<br />
Depois da dedicatória, com letra miúda, típica dos tímidos, ele se levanta, pergunta se gostei dos quadros. <br /><br />“São fabulosos. Você tem um verdadeiro museu. Não pensa em abrir sua casa ao público?” <br /><br />“Jamais.” <br /><br />“Só falta um Iberê Camargo”, digo. <br /><br />“Ah, vocês gostam do Iberê?”, devolve o autor. <br /><br />“Iberê é nosso maior pintor. Maior que Portinari. Que Tarsila. Que todos eles juntos. Injustamente esquecido”, respondo. <br /><br />“Querem ver o Iberê que tenho aqui em casa?”, ele pergunta. <br />
<br />
Um Iberê para chamar de seu. Luis Fernando não se surpreende com nossa cara de espanto. <br /><br />“Meu pai ganhou de presente dele.Vamos até lá, na outra sala, que vou mostrar para vocês.” <br /><br />Eu e minha namorada nos damos as mãos. A passos lentos, vamos seguindo o escritor. No meio do corredor, esbarramos com Capitão Rodrigo, as Cobras, Ana Terra, Analista de Bagé, Quitéria Campolargo, Ed Mort, Barcelona, Velhinha de Taubaté, Erotildes e num punhado de homens mentirosos. <br />
<br />
A ficha agora cai: um Iberê sem faixas no chão exigindo distância da pintura. Sem seguranças<br />
uniformizados e entediados te rondando. Quatro palmos de largura e mais duas e pouco de altura? Vermelho. Preto. Cinza. Branco. Pinceladas em relevo exibindo os traços do nosso pintor mais genial, a poucos metros do nosso cronista vivo mais genial. Além de outros quadros, as paredes surgem cheias de livros e CD’s, misturando a história de pai e filho nas estantes. “Aqui ficam as traduções dos livros do meu pai”, comenta Luis Fernando, apontando a longa fileira de livros incompreensíveis. Puxo das estantes uma edição indecifrável, com hieróglifos orientais. “Essa é de O senhor embaixador", avisa. <br />
<br />
Fecho O senhor embaixador e pergunto a Luis Fernando se ele sentiu orgulho da bela crítica que Wilson Martins publicou sobre O Popular, seu livro de estreia, no início dos anos setenta. “Como era mesmo essa crítica?”, ele pergunta. <br /><br />“‘O Popular’ não é um livro importante, mas Luis Fernando Verissimo é, ou será, um escritor importante”, decretava, em tom profético. Destacando a qualidade do autor gaúcho, enquanto jornalista e literato, o severo Wilson Martins ainda rechaçava, nas páginas de O Estado de S. Paulo, quem o tomasse apenas por “simples humorista”, o que seria “não apenas injusto, mas indesculpável erro de julgamento”.<br />
<br />
<b>Recepção gentil</b><br />
<br />
Luis Fernando abre outro sorriso, em meio aos CD’s de Mozart, Beethoven e outros compositores clássicos, ao lado de uma vitrola que não funciona mais. “Ah, sim. Eu me lembro bem desse texto... Essa crítica do Wilson Martins me fez muito bem, na época”, admite o autor. <br /><br />A criança na cozinha volta a gritar pelo avô, curiosa pela tal experiência na geladeira. Eu e minha namorada aproveitamos para agradecer a recepção gentil e carinhosa. E, acompanhados pelo autor e sua neta, vamos deixando os cômodos silenciosos, abandonando Iberê Camargo, cruzando salas de livros e arte. <br />
<br />
Na saída, a mulher de Luis Fernando conversa com um sujeito meio gorducho e uma quarentona. Explica aos convidados que viemos do Paraná e reclama do calor infernal que abafa Porto Alegre naquele sábado. Já estamos nos despedindo do autor e de sua família quando um forte estrondo, de um objeto que acerta o chão e se arrasta até a parede, interrompe bruscamente nossos últimos diálogos. <br />
<br />
“Meu Deus, já é a segunda vez!”, assusta-se a quarentona. <br /><br />“Aqui é sempre assim”, desabafa a esposa de Luis Fernando. <br /><br />Rindo do susto, todos olhamos um tanto surpresos para o jornal que acaba de ser disparado pelo entregador anônimo. <br />
<br />
“Outro dia me acertaram a cabeça, acredita?”, lembra a quarentona, pegando o jornal do chão. <br /><br />“Já entendi tudo”, diz o gorducho, olhando para Luis Fernando. “Esse cara é um leitor que te detesta. E toda vez que passa por aqui, faz questão de arremessar o jornal com raiva e rancor, pensando: ‘Toma aí, seu escritor de merda!’”. <br />
<br />
Todos caímos na risada. O episódio certamente renderia boa crônica e, quem sabe, até algum personagem secundário num romancete. Desconfio que era exatamente nisso que o autor pensava, contemplando, num riso silencioso, o susto e a indignação da família, a fuga do arremessador de notícias, o semblante embasbacado de seus dois leitores paranaenses e a ansiedade da neta pela misteriosa experiência no freezer. Mesmo sem sair de casa, Luis Fernando Verissimo tem todas as histórias e todos os personagens que precisa.<br />
<br />
<b>PUBLICADO NO CORREIO BRAZILIENSE (19/3/2016)</b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-23111457145049356592016-03-21T09:38:00.003-07:002016-03-21T10:46:28.137-07:00Strikes, rancor, musas e conselhos amorosos<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiE_1kdIKxV6eeaeTktVtSHg4-b2SlZJx-CAfHTpr8SQmXKhH7dMLJC-C3XBL2sMmwC0hcuUHHza52Fx0ZgOktRglV6eRszaHpe52_IhKqxTZarLvRPXPvbJusCOp8V_rM6f7HJfP3Irv1J/s1600/boliche+gaioto.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="218" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiE_1kdIKxV6eeaeTktVtSHg4-b2SlZJx-CAfHTpr8SQmXKhH7dMLJC-C3XBL2sMmwC0hcuUHHza52Fx0ZgOktRglV6eRszaHpe52_IhKqxTZarLvRPXPvbJusCOp8V_rM6f7HJfP3Irv1J/s640/boliche+gaioto.jpg" width="640" /></a></div>
<br />
Em Maringá, você conta nos dedos os prazeres da terceira idade: a
cervejinha carérrima no Nara's Bar, as tardes de dama e dominó na praça
da Pernambucanas, o bailão vespertino no Clube do Vovô e os jogos de
malha na Vila Operária. Mas não só desses êxtases vivem os teus velhos.
Exímios jogadores de bocha, possivelmente a mais entediante das
modalidades esportivas - superando o golfe e o rugby -, os velhos
maringaenses também se regozijam com manhãs de boliche.<br />
<br />
Em plena
quarta-feira, às oito da manhã, risinhos e palminhas ecoam entre pinos
derrubados na 9ª edição do Campeonato de Boliche das ATI's (Academia da
Terceira Idade). Todas as pistas tomadas. Os mais preparados, de roupas
leves. A cada jogada, tênis esportivos arranham solas antiderrapantes.
Desconfiados do sistema de contagem eletrônica, alguns velhos fazem
questão de registrar num papelzinho o resultado da pontuação. A cada
strike, berros e comemorações exaltadas.<br />
<br />
Única não-velha sentadinha com os bolicheiros, a menina de doze anos quase não se contém.<br />
<br />
"Vim
pra acompanhar minha vizinha. Será que vão me deixar jogar?", pergunta
Micaela Spagnoli, torcendo mãozinhas e enroscando dedos, acompanhando
pinos que descem e sobem - jamais para ela. Sabe, você, o que é passar
sede diante do mar?<br />
<br />
"Nem um pouquinho?", insiste, preocupada.<br />
<br />
Difícil
responder. Olhe em volta. A dedicação. A curvatura em cada jogada - não
é perigoso depois dos setenta e pouco? Velhos levam a sério o tal
campeonato.<br />
<br />
"Isso aqui é muito melhor que malha e bocha!", garante um setentão.<br />
<br />
Chapéu branco, camiseta regata, peito em mil batimentos cardíacos.<br />
<br />
"Esses
esportes antigos dão muito trabalho. Tem que ir de um lado pro outro,
depois ajeitar as coisas, fica cansativo. Aqui é tudo diferente. Posso
fazer muitos pontos..."<br />
<br />
Dedão apontando o papelzinho rasurado de jogadas - pontuação: 78.<br />
<br />
"...e ficar sentadão, ó, tranquilinho. Que os pinos sobem sozinhos."<br />
<br />
Um olho fala contigo, o outro amaldiçoa as jogadas do adversário.<br />
<br />
<b>Bendito Piauí</b><br />
<br />
Fora da pista, jovens monitores prestam auxílio, cedem conselhos e estímulos aos derrotados.<br />
<br />
Sou atraído por uma voz feminina. Sotaque exótico, com tons ainda mais graves e agudos.<br />
<br />
"Vim dí Terésina, nu Píauí."<br />
<br />
Como é bom mulher bem acentuada.<br />
<br />
"Gostando de Maringá?"<br />
<br />
"Adoréi, víu? Mas é túdu díferêntí."<br />
<br />
"?"<br />
<br />
"Nas festînhás, é tudu múndu convérsándu. I não dánçam cum ninguém!"<br />
<br />
Ai, essas dançarinas de Teresina. Olhos castanhos, boquinha vermelha, um metro e sessenta de altura.<br />
<br />
"Na minha cidádí, a génti dánça mésmu: Wésléy Safádão, Falamansá e Aviões do Fôrró."<br />
<br />
Já pensou? Você, cara, dançando essas coisas? Melhor: nem pense.<br />
<br />
"E os homens maringaenses?"<br />
<br />
Risão descontrolado. O dedinho de lá para cá indicando jamais. Não saberás. Insisto.<br />
<br />
Grandes lábios escancaram sorrisos sacanas.<br />
<br />
"Tu tém cértêêêza?!"<br />
<br />
Pensando melhor...<br />
<br />
"Tu já sábe a réspóóósta, né?"<br />
<br />
<b>Lula lá</b><br />
<br />
Deixo a moçoila do forró, saio coletando resmungos rancorosos.<br />
<br />
"Aquele Lula é um safado."<br />
<br />
"Que nada. Safado é você. Lula mudou nosso País..."<br />
<br />
"Mudou mesmo: pra pior. Olha essa crise."<br />
<br />
"...e ainda vai salvar a gente. Não é José?"<br />
<br />
"Sei não."<br />
<br />
"Ele, Cunha, Dilma: tudo ladrão. Pensa que não roubaram? Cadeia neles. Moral neles. Moro neles."<br />
<br />
"Mesmo votando no Lula, acho que ele deve ser investigado pelo Moro. Isso eu concordo. E você, José?"<br />
<br />
Semblante sem mínimas reações.<br />
<br />
"Meu Deus, José, não tem opinião?"<br />
"Sei não. Ó, Benedito, sua vez de jogar."<br />
<br />
A
vida segue no meio da crise. Sento num canto. Hora de acompanhar o
aquecimento de velhos aglomerados numa sala envidraçada. Alguém chega
com um bambolê azul e anuncia o próximo exercício.<br />
<br />
"Tem que pegar
e passar o corpo inteiro por dentro dele, tão vendo?", explica uma
moçoila, enfiando-se e contorcendo-se diante do círculo de plástico.<br />
<br />
Séria
e sisuda, a velha encara duas vezes o brinquedo em mãos. Não é mais
fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha? E se travar tudo?<br />
<br />
Estimulada
pelos colegas não menos jovens, ela respira fundo, cochicha qualquer
coisa - benção ou palavrão? - e começa a suar frio. Em dez segundos, o
fim da aventura. As palmas febris do coração encorajam o velho ao lado,
que, igualmente apavorado, também recebe o bambolê e parece ter certeza
de seu fim: entrar ali e jamais sair.<br />
<b><br />Musa do bambolê</b><br />
<br />
"Aquele outro senhor é muito competitivo", cochicha uma voz levemente apimentada.<br />
<br />
Loirinha,
vinte e dois aninhos, tênis esportivo de cores berrantes. Você
resistiria? Rápido e ligeiro, eu me levanto. É duro, cara, testemunhar
tantas musas maringaenses. Em pé, vou salivando cada detalhe, um mais
delicioso que o outro. Quer ver, nobre voyeur?<br />
<br />
Nome: Débora
Padilha.<br />
Calça: cinza e coladíssima.<br />
Cabelo: preso num rabo de cavalo.<br />
Altura: 1,70 m.<br />
Olhos: melancólicos.<br />
Pescoços: à Modigliani.<br />
Ombros:
altos.<br />
Pintinhas: não.<br />
Coxas: elegantes.<br />
Risos: autênticos.<br />
Joelhos:
adocicados.<br />
Braços: branquíssimos.<br />
Pés: no chão.<br />
Unhas: cordiais.<br />
Lábios: tenros.<br />
Perfume: mescla de azaleias, lírios, begônias.<br />
Apelido:
Dedé.<br />
Piercing: no nariz.<br />
Hobby: vôlei.<br />
Tatuagem: frase negra no pulso
direito.<br />
O quê: "Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e
nele confiarei".<br />
Fonte: Salmo 91, Bíblia.<br />
<br />
"Aqui, a gente fica com eles durante o tempo ocioso", explica Débora<br />
<br />
"Nessa idade, faz bem ser competitivo?", questiono.<br />
<br />
Lá no meio, mais um velho é desafiado - o bambolê tremelicando pavor ou espasmos musculares?<br />
<br />
"Qualquer coisa que estimule a prática de exercícios já é ótimo."<br />
<br />
E
mais não dá para arrancar da nossa loirinha. Que ela, ligeira, corre em
direção ao bambolê, é hora de guardá-lo, ajeitar uma cadeira ali e aqui
e iniciar nova atividade, desencarrilhando suspense e interrogações -
nessa altura da vida, todo aquecimento é um esporte radical.<br />
<br />
<b>Exercícios casamenteiros</b><br />
<br />
Sentadona à mesa, ao lado de um
japonês quieto e calado, a senhora de 69 anos ignora o aquecimento. Quer
mesmo é se jogar na pista.<br />
<br />
"Não vim pra perder", anuncia, toda serepele.<br />
<br />
Chego
distribuindo gentilezas. Milagre do Santíssimo? Miragem destes olhos
traiçoeiros? Nunca aparentando quase sete décadas de vida.<br />
<br />
A velha se delicia com a risadinha mais graciosa.<br />
<br />
"Pensa que é fácil manter essa forma?"<br />
<br />
Braços, cotovelos, canelas e pescoço enrugando passados.<br />
<br />
"Três
vezes por semana, faço exercícios no salão da igreja. E sem falar na
hidroginástica. Isso me mantém viva. Meus seis irmãos, que nunca
praticaram esporte nem caminhada, já morreram tudo."<br />
<br />
"Solteiríssima?", vou sondando.<br />
<br />
"Que nada. Casada há 52 anos."<br />
<br />
O velho japonês, agora, escancara ouvidos à conversa.<br />
<br />
"Qual receita do casamento perfeito?", questiono.<br />
<br />
"Muita paciência. Porque vou te contar, viu? Não é fácil viver uma vida assim", aconselha.<br />
<br />
Quase em cochichos, o japonês resolve polemizar o diálogo.<br />
<br />
"Sabe qual é o verdadeiro segredo do casamento?"<br />
<br />
A risadinha escapando no canto da boquinha carcomida pelo tempo - dele e dela.<br />
<br />
"O segredo do casamento é ser pobre."<br />
<br />
Aplaudindo
a resposta do japonês, mãos eufóricas e rosto coradinho, a velha vai ao
delírio - a mesma empolgação de assistir, na primeira fileira, os
mágicos e malabaristas do circo Tihany.<br />
<br />
"Vê o meu caso: sou pobre, trabalhei a vida inteira e não tive tempo de ficar brigando."<br />
<br />
"Comigo, minha nossa, a mesma coisa!"<br />
<br />
"Com rico é diferente: com tempo livre, termina o casamento e junta com outra, sempre mais nova."<br />
<br />
"Pra eles, quanto mais nova melhor."<br />
<br />
"Por isso, tô casado há 54 anos."<br />
<br />
"Ainda há romantismo?", pergunto ao japonês.<br />
<br />
A velha escancara risadona estridente - desespero das noites de horror? O japonês lança um olhar distante, cansado e vencido.<br />
<br />
"Olha, tá bem mais ou menos."<br />
<br />
"?"<br />
<br />
"Pra falar a verdade, não tem mais romantismo, não."<br />
<br />
A velha completa os lamentos conformados do último romântico.<br />
<br />
"Nessa nossa idade, é mais a companhia que importa, né?"<br />
<br />
"Exato: um cuidando do outro..."<br />
<br />
"Sei bem como é."<br />
<br />
"...até o fim da vida."<br />
<br />
<b>Lições preciosas</b><br />
<br />
"Como eu pego nas bolas?", questiona-me uma senhora oitentona, cutucando minhas costas com o indicador.<br />
<br />
Reflito um pouco em como ajudá-la. Levanto o indicador, o dedo médio e o pai de todos. E digo que é para colocar nos buracos.<br />
<br />
"E cabem?"<br />
<br />
"Quase inteiros."<br />
<br />
Olhos curiosos desejando novas lições: nunca é tarde para aprender.<br />
<br />
"Só enfiar tudo?"<br />
<br />
"Sem medo."<br />
<br />
"E não machuca?"<br />
<br />
"Dor e prazer muitas vezes se completam..."<br />
<br />
Risinhos descontrolados e frenéticos.<br />
<br />
"...mas não é o caso."<br />
<br />
Bochechas corando interrogações, pelinhos morenos eriçados no braço direito.<br />
<br />
"Alguma outra dica?"<br />
<br />
"Concentre-se nas setas."<br />
<br />
"Que setas?"<br />
<br />
"No chão, ali, enfileiradas."<br />
<br />
"Ah, sim. Agora tô vendo."<br />
<br />
"Mire no centro: você está feita."<br />
<br />
"E pode com qualquer mão?"<br />
<br />
"Prefira a mais firme."<br />
<br />
"Olhos fechados ou bem abertos?"<br />
<br />
"Bem abertos: jamais perder o mínimo detalhe."<br />
<br />
"Do jeito que eu gosto."<br />
<br />
E
lá vai ela. Na pista, lá longe, alegrinha, desajeitada, inexperiente de
quase tudo, não parece sessenta e cinco anos mais nova? Com cuidado,
segura a bola de boliche com as duas mãos. Concentrada na própria
jogada, posiciona-se diante das setas.<br />
<br />
A longa espera da bola
espancando a pista causa aflição nos adversários – velhos lançando
maldições em silêncio, torcendo pelo pior.<br />
<br />
As canaletas eretas, alívio das amadoras, são apenas decorativas para a minha aluna.<br />
<br />
Nove pinos derrubados de uma única vez, numa jogada certeira e sem desvios: não é para qualquer um.<br />
<br />
Ela
comemora, nós comemoramos. Tivesse champagne, ostras, vinho francês,
ali nos serviríamos. Justo e merecido. Velhos batem palmas e distribuem
parabéns à minha estreante - por dentro, disparam mais maldições e
torcem pelo pior.<br />
<br />
<b>PUBLICADO NO DIÁRIO (20/3/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-28569435563298540602016-03-08T11:15:00.001-08:002016-03-08T11:15:40.670-08:00Rumo ao sul, ao sol... 'Recuerdos' das férias<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEisfDQZDBHkE5HF5hJXiZqqNiPZSJgLPGT5X-Knhp8sGCfwxMpqsyt808mmyY1Asw6gSUm11-Bo4rHHY6qXHmITvH2YqCseq1IhwY7s0SFlkmsMwuChYawdVkMC7iS_NgfcXGUGr_h_4-3i/s1600/f%25C3%25A9rias+santo+in%25C3%25A1cio.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEisfDQZDBHkE5HF5hJXiZqqNiPZSJgLPGT5X-Knhp8sGCfwxMpqsyt808mmyY1Asw6gSUm11-Bo4rHHY6qXHmITvH2YqCseq1IhwY7s0SFlkmsMwuChYawdVkMC7iS_NgfcXGUGr_h_4-3i/s640/f%25C3%25A9rias+santo+in%25C3%25A1cio.jpg" width="372" /></a></div>
Escrever a redação das férias era tarefa desesperadora para todos
nós, alunos do Colégio Santo Inácio. Vejo essas mochilas carregando
alunos, no retorno às aulas, e tenho piedade deles todos.<br /><br />Quantas
inúmeras vezes você não saía da sala para ir ao banheiro, mesmo sem
vontade de esvaziar a bexiga, na tentativa de esbarrar em histórias
entre pias e privadas do colégio? Como passar a limpo o que ninguém em
sala, nem alunos nem professora, sabe exatamente o que você fez?<br /><br />Clamando
a Deus e todos os santos, no bendito colégio católico, fui atendido,
certa vez, por um sussurro anônimo, soturno e sereno, porém um bocado
aterrorizante – é a mesma voz, noto agora, depois de tantos anos, que
ecoa na versão dublada de "Marcelino Pão e Vinho": "Gaioto, lembre-se
disso: no início, era o verbo".<br /><br />Foi aí, com esse aviso do além, possivelmente Dele, do tradutor da Herbert Richers, que me dei conta do verbo.<br /><br />Na
escola, obrigado a preencher de 27 a 35 linhas com histórias sobre
minhas férias entediantes em Maringá, aprendi a ser um mentiroso.<br /><br />Não desses mentirosos que derrubam senadores ou desmoronam casamentos de longa data. Um mentiroso mais leve, suave, lírico.<br /><br />Nas
minhas redações, eu namorava todas as garotas do edifício Serra da
Cantareira – inclusive as dulcíssimas irmãs de vinte e poucos anos, do
décimo primeiro andar.<br /><br />Pescava tilápias agigantadas no Pesqueiro do Pacu.<br /><br />Encarava jacarés, onças e rinocerontes no Parque do Ingá.<br /><br />À
noite, pegava baladas na Kalahari, sempre no setor VIP, evidentemente,
sendo muitíssimo bem-sucedido com as musas da alta sociedade.<br /><br />Essas
e outras mentiras costumavam causar inveja e rancor nos outros alunos –
e foi aí que eu descobri, logo cedo, que, ao escrever, você deve estar
sempre disposto a expandir sua lista de inimigos.<br /><br />Se não for para
criar inimigos, então é melhor nem escrever: há outras artes, como o
canto gregoriano ou o balé clássico, mais indicados para quem quer
engatar novas amizades. Mesmo assim, como ninguém tinha férias tão
rocambolescas como as minhas – nem as mocinhas de vozes estridentes que
abraçavam o Pateta na Disney –, a coisa ficava por isso mesmo. Eu, feliz
à beça e de sorriso no rosto, redigindo minhas histórias amalucadas, e o
resto dos alunos tristonhos e altamente depressivos, conscientes do
quão entediante, tosca e mesquinha é a existência de um ser humano.<br /><br />Se
você é desses alunos - pelo que me parece, há escolas exigindo esse
tipo de redação até dos coitados do Ensino Médio -, aqui vão cinco dicas
certeiras:<br />
<br />
1) Capriche nos detalhes: cores, nomes simples e compostos, perfumes e
maus cheiros. Nenhuma verdade é mais real do que sua imaginação é capaz
de inventar.<br />
<br />
2) Esqueça essa bobagem de começo, meio, fim. Comece o fim pelo meio,
termine pelo começo, faça do meio o teu abre: esquemas só servem para
te chicotear o lombo na escravidão.<br />
<br />
3) Não se preocupe com os tais bloqueios criativos: durante a
escrita, use todos os possíveis adjetivos. Na primeira revisão, corte
metade deles. Na segunda leitura, mais uns vinte por cento. Na terceira,
extirpe os que sobraram. Seu texto está pronto.<br /><br />
4) Explore a nudez à
vontade. Da mulher, não hesite as mínimas belezas, cada pecinha de
roupa, se saltinho ou sapatinho, os tamanhos de cada detalhe do
corpinho, com suas curvas, cores, harmonias e relevos próprios. Do
homem, bem, não sei o que dizer.<br />
<br />
5) Ao detalhar suas férias, não espere glória nem aplausos. Allan
Poe, Kafka e Lima Barreto nunca foram reconhecidos em vida. Se o
reconhecimento não vier, decepe uma das orelhas.<br />
<br />
<b>Caminhante</b><br />Quando viajam, sujeitos entediados lutam para não
morrer de tédio. Atazanadas de fúria uterina, moçoilas saciam todos seus
sonhos picantes – impossível detalhá-los por aqui.<br />Endinheirados ostentam camarotes, restaurantes carérrimos e lanchas com DJ's e modelos de passarela.<br />Você,
quando viaja, só quer um canto sossegado, calçadas para flanar e
algumas garrafas de vinho – mesmo nas mais longas viagens, ninguém
escapa de si mesmo.<br /><br />
<b>Uruguai</b><br />Em Montevidéu, morro de amor por
Pocitos, nossa Copacabana dos anos cinquenta. Veja os prédios: todos
pequenos, limpíssimos e acinzentados decorando a orla. Num desses
apartamentos, de frente para o Rio da Prata, certamente empunhando uma
garrafa de uísque, Vinicius de Moraes compôs "A Felicidade". Caminhando pela orla, impossível não cantarolar os versos do Poetinha. Nada daqueles prediões depredados da Copacabana de hoje. Onde os viciados em sexo? Onde os tantos traficantes, drogados, trombadinhas e meretrizes sexagenárias de olhão esbugalhado? Em Montevidéu, a bossa nova ainda faz sentido. Tristeza não tem fim; Copacabana, sim.<br />
<br />
<b>Ser portenho</b><br />Loiras, muitas loiras. Loiras lisas, cacheadas,
naturais, oxigenadas, loiras cheias de luzes. Ombros à mostra, grandes
lábios rosados, lábios pequeninos e vermelhíssimos, bracinhos nus com ou
sem<br />
tatuagem. Loiras de chapéu, de vestidinho florido, shortinhos ofuscantes, calças coladinhas.<br />Gozando merecidas férias, em meio a tantas loiras na Avenida 9 de Julho, Buenos Aires não é o melhor museu do mundo?<br />
<br />
<b>Melhor das piores</b><br />Se você quer morrer de tédio, gaste uma tarde em Colônia do Sacramento.<br />De
que serve seu famoso pôr-do-sol se não para deixar ainda mais
melancólica aquela pocilga de cidade? Ruínas, velharias, ruas em
pé-de-moleque, casarões empedernidos, restaurantes ruins num calor dos
diabos. Turistas ensopados de suor lamentam o azar – qual maldito te aconselhou passar duas noites aqui?<br />Sem
nada para fazer, você planeja os mínimos detalhes da tua vingança. De
volta da viagem – danem-se os tais mandamentos sagrados! –, você, sim,
sacaneará o próximo. Sabatinado pelo vizinho, pelo colega de
departamento e até pelo leitor, você aconselhará não duas, mas quatro,
cinco ou seis noites em Colônia do Sacramento, a melhor cidade da
América do Sul.<br />
<br />
<b>Ah! Buenos Aires!</b><br />Poucos minutos antes do Stravinski ao ar livre,
no Centro de Buenos Aires, pais vão chegando com suas crianças babonas
de cinco e seis anos de idade. Atiçadas, correm de lá para cá. Crônica
do desastre anunciado? Lá, não. Quando os músicos surgem no palco,
elas sossegam. Crianças cordiais e educadas nem lembram as propagandas
ambulantes de vasectomia que esperneiam, em Maringá, em qualquer
concerto. Quer ser pai? Vá pra Argentina.<br />
<br />
<b>Uma vantagem</b><br />Único alívio em Colonia do Sacramento? Lá, pelo
menos, você não escuta os berros estridentes das 300 duplas sertânicas
que infestam tua maldita Maringá.<br />
<br />
<b>Oh! As gaúchas!</b><br />Em Porto Alegre, onde as gaúchinhas de olhos verdíssimos? Azarado que sou, caço à toa e não navego musa alguma. Gorduchas
de varizes azulonas, velhotas leprosas, ciganas de dentes macilentos,
essas, sim, te sorriem a caminho do museu do Iberê Camargo, oferecendo
mil e uma noites de êxtase, em promessas que fariam corar o danado
Bocage.<br />
<br />
<b>No coins</b><br />Na porta central, prestes a entrar numa igreja chatíssima
de Porto Alegre, a mão tremelicante estendida na tua direção é do
aleijado clamando dinheiro. Esperto, na saída, você escolhe uma das
portas laterais. Lá, um bêbado sessentão e uma aidética cinquentona
também exigem moedinhas. Dinheiro não dou nem tenho peso na consciência – benefício de zanzar somente com cartão de crédito.<br />
<br />
<b>Querem meu dinheiro!</b><br />Roupas rasgadas, voz chorosa, fedendo a peixe e cigarro paraguaio.<br />"Alguém me ajuda..."<br />Rosto encardido dos sessenta anos de cachaça.<br />"...pelo amor de Deus..."<br />Mão tremelicando saudades do próximo gole.<br />"...com dez reais?"<br />Mais um deles.<br />Em todo canto de Porto Alegre, um velho cobiça teu dinheiro.<br />No
Mercado Municipal. Na Ladeira. Na Casa de Cultura Mario Quintana. No
Centro Cultural Erico<br />
Verissimo. Pensa, você, que o inferno é Maringá?<br />
<br />
<b>Ô, tchê!</b><br />Você mal sai do hotel, o gaúcho te aborda na calçada.<br />Carros, motos, alguém desafinando o teclado na esquina. Olhar te pedindo – o quê? Suadão, camisa cavada.<br />Ai, não, mais um?!<br />Distraído com a buzinada de algum carro cinza, você nem escuta a pergunta do desconhecido e já dispara resposta pronta:<br />"Não tenho dinheiro!"<br />Confuso e surpreso, o gaúcho te devolve meio constrangido.<br />"Ô, tchê, só tô perguntando as horas!"<br />
Criminalidade<br />Nas areias de Pocitos, gritos de "Deus nos acuda!", "minha nossa!" e "ai, meu Deus!" compõem a trilha da correria no calçadão.<br />"Pega! Pega!"<br />Ladrão?<br />"Pega! Pega!"<br />Tarado?<br />"Pega! Pega!"<br />Até aqui?<br />Assutados, banhistas desembestam de um lado para o outro. Forte dispara o coração.<br />O magrelo branquelo vira refém de um grupo e é surrado no meio da areia por dezessete sujeitos.<br />Com
a sova bem-sucedida, abandonam o corpo e se misturam aos turistas no
calçadão, apressando passos da polícia. Fugir das rodas de pancadaria
nas areias de Pocitos libera mais endorfinas que duas horas de pacíficas
caminhadas.<br />
<br />
<b>Cultura</b><br />A brasileira magrela, de ossos minúsculos e rosto
chupadão, contempla os débeis traços do "Abaporu". Exposto no museu
argentino, o maior quadrinho da pobre Tarsila.<br />"Gente, que vergonha..."<br />Voz grave, mãos masculinazadas, vasta cabeleira nas axilas.<br />"...nossa maior obra-prima..."<br />Da blusinha regata, os tantos pelos não te sorriem?<br />"...tão longe do nosso povo, e não nas paredes do Masp de São Paulo."<br />Pergunto nome, idade e profissão da moça.<br />"Micaele, 25 anos, estudante."<br />"Então, Micaele, o Masp, por outro lado, tem seis Modiglianis, e os argentinos só têm dois."<br />Caçando de perto, onde os resquícios da beleza feminina?<br />"Pouco importa a pintura europeia..."<br />"!"<br />"...o que vale a pena é valorizar o que é nosso!"<br />Sabe ela, realmente, o que é um Modigliani?<br />Não
dá tempo para perguntar. E a moça desembesta a bater pernas entre
outros quadros – todos, evidentemente, melhores que a Tarsilinha.<br />Na
parede argentina, você encara bem, novamente, o pobre "Abaporu":
primitivo, infantiloide, cru, malfeito, amador, rudimentar. Melhor ficar
aqui mesmo.<br />
<br />
<b>Por último, o sol!</b><br />Em Porto Alegre, a gorducha loirona contempla o
sol se espreguiçando às margens do Rio Guaíba: "Tchê, é o pôr-do-sol
mais lindo do mundo!", garante, deslumbrada.<br />Dois dias depois, na
chatíssima Colônia do Sacramento, duas gordas morenonas se espremem
diante do celular, na tentativa do selfie perfeito, diante do Rio da
Prata – mais fácil enquadrar treze luas juntas que aquelas duas
gorduchas: "Esse é o pôr-do-sol mais lindo do mundo!", garantem,
deslumbradas.<br />Em qualquer lugar do mundo, o sol deita catarses de gordas.<br />
<br />
<b>Publicado no Diário (6/3/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-71129719023391611832016-01-18T12:29:00.001-08:002016-01-18T12:29:37.347-08:00Número 2, banho no posto, ranho na parede e muita raiva<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNRhh_HiR-7HQahGdsiC9UK3c4fw3xErMPiMPRenEU3aXjUdtIl-YHOija3l2JkF1rTGyLnnrj5Eq2Al4dqlvibTfCZYixVzHdtrt5jKs5wMGYsjT2XTmDwlR65t1WW7_e162t3cMUdpNW/s1600/cronica+agua-page-001.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNRhh_HiR-7HQahGdsiC9UK3c4fw3xErMPiMPRenEU3aXjUdtIl-YHOija3l2JkF1rTGyLnnrj5Eq2Al4dqlvibTfCZYixVzHdtrt5jKs5wMGYsjT2XTmDwlR65t1WW7_e162t3cMUdpNW/s400/cronica+agua-page-001.jpg" width="233" /></a></div>
Os últimos dias transformaram radicalmente o humor da cidade. Saiu, você, para sentir o climão das ruas sem banho? O trânsito na Avenida Brasil surgia intensificado por palavrões – xingamentos muito além dos clichês cotidianos, mesclando elementos da umbanda com quiromancia, magia negra e maçonaria, alusões a Opus Dei e ao satanismo de Anton Szandor LaVey, tudo bem berrado em cada boca. <br />Motoristas enfezados recusavam ceder passagem diante da faixa de pedestre - não importa se feia ou bonita, moças eternamente à espera. As buzinas - você não ouviu? - soaram ainda mais estridentes. Rostos transbordavam raiva em cada ciclista – todo mundo pedalando bem devagar, suficiente para não suar demais. <br />
De repente, na cidade, sumiram todos os sabiás. Nada de jam session com pássaros trompetistas. O vinho azedou. Crianças envelheceram. Amores amargaram. A água, enfim, acabou.<br />Ironicamente causada pela inundação da chuva nos últimos dias, a escassez de água em Maringá parecia enredo de algum conto fantástico do Cortázar. <br />
Há quem diga que moradores de cidades vizinhas chegaram a escancarar as portas de casa, oferecendo banho e banheiro a suadões desconhecidos - sete minutos por R$ 10. <br />
O desespero da velha, correndo no megamercado, não era de perder o capítulo da novela, mas agarrar o último galão de água cristalina. <br />
Na Igreja Jerusalém de Deus, o Todo-Poderoso não fez milagres e, para a tristeza dos fiéis, as torneiras permaneceram sequinhas. <br />
Nos cantos da cidade, filas quilométricas de distribuição não de comida aos refugiados sírios, mas de água aos maringaenses idôneos - muitos deles, com as contas todas em dia. Climão de quase calamidade e revolta infinita.<br /><br /><b>Filas</b><br /><br />
“Olha só que desgraça, moço: catando água na bica! Quando pensei que fosse fazer isso na vida? Eu, hein?!”, berra a mulher espalhafatosa, mirando o galão vazio diante de uma das duas torneiras jorrantes, no meio da Vila Olímpica.<br />A água geladinha batuca paredes internas do galão e transborda um pouquinho, arrancando riso rejuvenescido da velha – aqui, é permitido ostentar.<br />Na fila d’água, pobres, ricos, velhos e jovens vão surgindo entre garrafas e galões. <br />Desculpa da louça suja. Da ducha sagrada. Chegam acanhados, rostos trancados, e saem aliviados. <br />O casal traz dois galões de cinco litros vazios em cada mão. Sem água em casa na noite passada, os dois apelaram para um posto de gasolina. E ainda levaram a família inteira.<br />“Foi o pior banho da minha vida. Durou dez minutos. Tinha ranho e catarro nas paredes, cabelo entupindo o ralo e forte cheiro de mijo. Mesmo assim, melhor que ficar sem. Acredita que ainda tive que pagar cincão?!”, recorda Tatiane Soares, 24.<br />O maridão, agachado na coleta aquífera, ri do relato dos horrores e diz que não achou tão ruim assim.<br />“Claro que não era como tomar em casa, com conforto e tal, mas o banheiro masculino até que tava limpinho. Você deu azar e usou o banheiro das mulheres podres”, diz, rindo.<br /><br /><b>Cidade horrível</b><br /><br />
Melhor lugar para coletar histórias, na fila da coleta d’água você nem precisa fazer nada. Teu bloco de anotações atrai todo o tipo de detalhe. Padre no confessionário, voyeur dos causos maringaenses, você escuta de tudo.<br />“Também tá faltando água lá no Diário?”<br />“Vou te falar, viu? Ruim é ter que tomar banho na casa da sogra!” <br />“Agora é que a gente aprende a dar valor, né?” <br />“Cê também passou por isso? Cê esquece que acabou. Daí cê vai no banheiro, liga a luz e abre a torneira, mas não sai nada...”<br />“...”<br />“... não dá um nó no coração?”<br />Os detalhes duram o tempo do abastecimento. Cada pessoa leva dois minutos para encher dois galões de água. Com o reabastecimento, é só levar para o carro. E correr para casa.<br />“Vocês da mídia...”<br />O dedão em riste, de olho na tua caligrafia tremida e na foto sorridente do crachá.<br />“...só ficam do lado do poder! Quero que você escreva aí: que isso tudo é uma irresponsabilidade ab-su-rda!”, critica, com razão, a publicitária Suely Vasconcelos, 54.<br />Olhos ardendo ódio, raiva e gastrite – minha ou dela? Ouça a dor de Suely: duas pedras rasgando tua vesícula. Tanta fúria, causa da falta d’água?<br />“Como é que uma empresa desse tipo não tem um plano B? Se eu não pago a conta, eles cortam a minha água. Se eu pago, eles não me mandam. E agora, como é que fica?!”<br />Na fila, a cólera diminui quando os galões vão enchendo. Suadões trocam sorrisos camaradas entre si. “Os que se parecem juntam-se”, escreveu Homero, em algum lugar.<br />“Vou te dizer uma coisa: sou de Curitiba e já tô indo embora desta sua cidade. Um calorão desses, e sem água? Que cidade horrível!”, desabafa a publicitária.<br />“Na firma, tá um clima bem constrangedor. Tá todo mundo com vontade de ir no banheiro, mas ninguém pode”, comenta, rindo, o vendedor Reinold Stein, 24. “Daí sobrou pra mim, né? Como sou recém-contratado, tive que buscar água pra empresa”, completa o sujeito, equilibrando três grandes galões de quantidade indecifrável. “Ele só querem a nossa desgraça!”, grita uma mulher, degolando a nossa conversa.<br /><br /><b>Musa fitness nº 2</b><br /><br />
A fila d’água não é só desgosto e desabafo. Por ali, esbarro em Maria Marta, professora de inglês. <br />Moreninha de luzes loiras. Vinte e três aninhos, blusinha laranja e calça preta coladinha. Nos pés, tênis laranjado fosforescente. Ombros altos e braços brancos, adornos de uma estrutura óssea inigualável. <br />Gentilmente, ofereço toda e qualquer ajuda, seja com os baldes, abrindo e fechando torneiras, abandando leques japoneses ou protagonizando massagens tailandesas, a seu dispor, com todo prazer. Ela é só sorrisos. Narra os tantos perrengues. Mostra a revolta na ponta da língua. Detalha a situação dos familiares, fala da crise em si.<br />“Como faço natação, já aproveitei pra tomar banho na academia. Em casa, sem chance pra qualquer coisa. O xixi fica na patente. E...”<br />“?”<br />“...bom...”<br />“...”<br />“...você sabe...”<br />Sei? Sabemos? <br />De voz firme e respostas diretas, Maria Marta discorre sobre qualquer assunto com sorrisinhos de verão. Sorte a sua, outra mulher que se abre.<br />“...o número dois, né, só pode se for no saquinho!”<br />Tendo dispensado leques japoneses e massagens tailandesas, e levando em conta o atual teor da nossa conversa arenosa, permito que Maria Marta encerre a entrevista. <br />E a professorinha sai de cena, sai ostentando seu galão d’água cheinho, diante da fila cada vez maior.<br />“Ela não vale mais que ouro?”, sussurra um aposentado.<br />Lábios rachados pelo tempo, salivando miseráveis emoções, contemplando o galão cheio d’água.<br /><br /><b>Consciência</b><br /><br />
“Hoje em dia, água vale mais do que ouro!”, observa, emocionado, o aposentado Luis de Carvalho. “É só nessas horas que o povo dá valor. Quando sente falta. Mas, comigo, sempre fui econômico. Tomo banho sempre rapidinho. Lavo tudo o que tenho direito. Pensando, toda hora, no dia de amanhã”, diz o consciente aposentado. <br />
Ouro e água, número dois no saquinho, ranho e catarro na parede: é mesmo um louco conto do Cortázar. <br />Repare nos rostos de derrota. O velho que não vai cantarolar “E Lucevan le Stelle” debaixo do chuveiro, com a água escorrendo geladinha, ininterruptamente, por três minutos e meio. A tristeza da quarentona pela escolha da vida errada - tivesse fugido com o malabarista do circo Maximus, não estaria aqui, sozinha, empunhando três baldes vazios, debaixo de um sol dos diabos, numa maldita cidade sem água.<br />
<b><br /></b>
<b>Publicada no Diário (17/1/2016)</b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-83107197755604265642016-01-04T12:21:00.001-08:002016-01-04T12:21:26.124-08:00Crianças, Juarez e Deus e o Diabo na Terra do Sol<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtjVtk-7k-ieQW3-bC20uMShskRMhskCFOvEOVOg0od5CS_Ox1nrXMCVhFAw7Y03wMt1eg-Q5YVmrQefhh3f1T4y6NV7oNFw4QHCrRI2PxdNa88zdchcUU-g6ZM43wL4I4lnlo0L1Yv5oL/s1600/0001.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtjVtk-7k-ieQW3-bC20uMShskRMhskCFOvEOVOg0od5CS_Ox1nrXMCVhFAw7Y03wMt1eg-Q5YVmrQefhh3f1T4y6NV7oNFw4QHCrRI2PxdNa88zdchcUU-g6ZM43wL4I4lnlo0L1Yv5oL/s400/0001.jpg" width="235" /></a></div>
Os negros dentes tortos da quarentona arregaçam promessas de prazer.<br />"Entra, amor, entra."<br />Sentadona
na banquetinha capenga, na portela do boteco sem fachada. Perfume
azedão. Caatinga de porco. Mescla de cachaça, mofo, cerveja, cigarro
paraguaio – ali, é permitido fumar dentro do estabelecimento. O tapete
do bar, desista: surrado demais, impossível ler.<br />"Me paga uma cervejinha, amor", suplica a quarentona.<br />Em
tempos de crise, resisto ao canto da sereia. A cerveja geladinha, por
lá, custa inacreditáveis R$ 15. Às sete horas, num sol das seis, o bar
estaria vazio, não fosse um cover de Francisco Cuoco. Bom de prosa,
nosso ator narra aventuras para as quatro donzelas da bodega. Além da
negra quarentona, uma gorducha estrábica, uma oxigenada magrela e outra
gorducha morena disputam a atenção do aposentado falante – você, daqui a
alguns anos?<br />
<br />
***<br />
<br />"Mas hoje é só isso mesmo, viu?", avisa o velho.<br />Em uníssono, o quarteto de vozes implorando que fique.<br />"Não, não, hoje é só a cervejinha mesmo. Tó aqui, ó", avisa, arremessando duas notinhas no balcão.<br />"Vai trocá a gente pela casa de massagem, é?", diz, tristonha, uma das moças.<br />O velho sai sem respostas. Na bodega, ele é amado por todas.<br />
<br />
***<br />
<br />
No cômodo do bar - sem janelas, ainda mais quente e encardido de
suor, bueiro, cigarro, peixe morto -, Amado Batista berra as coisas do
coração. Mesas desertas, único casal. Magrelinho de quarenta anos,
macetado na cadeirinha de plástico, nosso herói equilibra no colo a
gorducha negra e de cabelos vermelhos. Nos pés agigantados da moçoila, o
chinelinho não dá conta de tantos dedos.<br />Concentrado na própria
trama, ele fisga a atenção dela com detalhes banhados na cervejinha
carérrima. Arranca suspiros, palminhas empolgadas. Gritinhos estridentes
de surpresa, terror e alívio.<br />Narra detalhes de alguma aventura
rocambolesca, com a mão sinalizando armas de grosso calibre, volantes de
caminhonetes, aviões, corda pendurada no pescoço. Naquela orelhona, ele
não sussurra ser o misterioso milionário maringaense, em carne e osso,
aproveitando anonimamente as coisas boas da vida, depois dos tantos dias
de horror? Cheio de grana, à espera da vida e do grande e verdadeiro
amor? Rapidinho, ela escancara a bocona para um beijo legítimo – das
entranhas da gorda ecoam as mil e uma fragrâncias do Rio Bostinha.<br />
<br />
***<br />
<br />
A morena cinquentona, de saiona rosa e decotão, exibe sorrisinho
banguelão: no canto esquerdo do lábio, a verruga escura com mil pelinhos
dourados. Quantos digníssimos pais de família não se perderam no
caminho de casa, numa pausinha casual ali no boteco?<br />
<br />
***<br />
<br />
Uma velha acena, com cuidado, para alguém: o braço estendido, fixo,
movimenta únicos quatro dedinhos. Um aceno tradicional, efusivo,
balangando o braço veementemente, não denunciaria as gordas pelancas
acumuladas do último reparo plástico?<br />
<br />
***<br />
<br />
"Tudo que faço, ofereço pra Ele..."<br />Outro desses - ai, não! - louvadores da aleluia.<br />"...quem me guia e me rege..."<br />Santa paciência: prepara-te para três horas ininterruptas de conversão religiosa.<br />"...quem me socorre e me protege..."<br />Por que tão onipresente, pô?!<br />"...meu Santo Satanás..."<br />"!!!"<br />"...meu Pai da magia..."<br />"?!?"<br />"...quem sempre tudo dá."<br />Pergunto
ao jovem músico sobre o Diabo. Jair, que interrompe o show na calçada
da Avenida Brasil, responde tudo baixinho - jamais ser descoberto pelos
cristãos maringaenses, ainda mais em climão natalino.<br />"Nossa seita, em Sarandi, conta com vários fiéis, mas eu não posso te dar detalhes. É tudo secreto", adianta.<br />"Não tem filial em Maringá?"<br />"Infelizmente, não."<br />Disso, já suspeitava. Nem o Diabo suporta esta cidade infernal, celeiro das trezentas duplas sertânicas.<br />"Muitas oferendas em Sarandi?", questiono.<br />"Dia desses sacrificamos um bode. Acho que Ele gostou. Mas o comum é oferecer galinha preta e coelho."<br />"Alegres, as celebrações?"<br />"Com muita música, viola, pacto de sangue e bruxaria: tudo com muito respeito e bom gosto."<br />"Quais princípios da turma satânica?"<br />"Liberdade, amor, vida e luta."<br />"Paga pra entrar?"<br />"Tem o cofrinho do dízimo. Quem pode, vai colaborando."<br />"!"<br />"Alguém tem que bancar as velas e o sal grosso."<br />Balaio
do dízimo. Musiquinha fervorosa. Fiéis clamando milagres. Orações e
sacrifícios. Deus & o Diabo não são tão diferentes na terra do sol.<br />
<br />***<br />
<br />Ventos assustadores derrubam o chapéu do velho e arrepiam os
braços nus da moçoila. "Jesus amado, meu filho, vai despencar o mundo!",
berra a mãe aflita. Nuvens negras, cinzas, soturnas e lúgubres
escurecem a noite. O menino gorducho, assustado e babão, finca as duas
mãozinhas num portão de ferro – jamais ser levado pelo vento, muito
menos pela mãe. Crianças excitadas batem palmas – finalmente, o Bom
Velhinho vai descer dos céus, em seu imponente trenó de renas voadoras.<br />
<br />
***<br />
<br />
Como pousarão as renas voadoras, descendo das nuvens e rasgando
estrelas? Qual altura média e idioma dos duendes? Quantos quilos de
presentes cabem no trenó? Será que Papai Noel desconfia, ai, não!, das
tantas artes acumuladas no ano inteiro? Essas e outras questões ensopam
de saliva a roupinha dos minúsculos filósofos babões – crianças pensando
jamais tiram dedos da boca.<br />
<br />
***<br />
<br />
Nove conselhos aos pais: 1) Cuidado ao recolher as roupas sujas:
crianças guardam o tempo no bolso da camisa. 2) Nunca proíba a criança
de cantar pela casa: é no canto que a criança desenha a própria
existência. 3) Repare na melodia: cada canto de criança é composto por
notas quentes e azuis. 4) Desbravadores experientes nunca vão explorar
tantos mundos quanto canelas de criança – a viagem de uma criança só
termina quando o sono pede pra descer. 5) Distribua canetas coloridas e
libere as paredes da casa (ou parte das paredes do apartamento):
rabiscos de criança degolam o tédio em família. 6) Com cuidado, espie
seus diálogos: crianças contam e recontam verdades de mentiras. 7) Nunca
proíba quintal nem sol nem terra nem chuva: criança compreende o mundo
no relevo da mão. 8) Choro de criança tem 14 mil caracteres (incluindo
espaços). 9) Velho, você foi a mesma criança de amanhã – não é
rejuvenescedor?<br />
<br />
***<br />
<br />
No bebedouro, mãos tremelicantes estendem o copo. Ao som da água que
escorre geladinha, o velho lambe os beiços rachados pelo tempo. Mata
tudo numa só golada, olhão escancarado, fio de baba escorrendo pelo
queixo - essa grande sede de viver.<br />
<br />
***<br />
<br />
Cinco perguntas ao milionáriomaringaense Juarez Arantes: 1) Por que
um sujeito como ele, com verba de sobra para morar em qualquer lugar do
planeta (Leblon, Cuba, Hong Kong), faz tanta questão de permanecer,
sozinho e recluso, numa suíte de 28,20 metros quadrados do Deville, com
vista para a Avenida Tiradentes? 2) É fato ou lenda esse papo de que ele
mesmo dirige o próprio carro, um Del Rey preto – já que não faltariam
economias para contratar um talentoso motorista ou adquirir um carrinho
mais moderno? 3) Quais os detalhes da queda do seu avião, quando, em
tenra idade – e pilotando a aeronave! –, teria feito um pouso forçado,
no meio da Amazônia, evitando o desastre aéreo e saindo de lá vivinho da
silva? 4) Qual bebida negra e misteriosa ele carrega na garrafinha de
guaraná Caçulinha, de 237 ml? 5) E, afinal de contas, como ele conseguiu
acumular tanta grana – teria um e outro conselho para o resto do povão,
malditos diabos afaimados que sonham com os dias de fortuna, epifanias e
levitações?<br />
<br />
***<br />
<br />
Durante a ligação, o repórter policial Roberto Silva assume as mesmas
características que o grande Stefan Zweig notou na estátua que Rodin
fez de Balzac: a surpresa de alguém arrancado bruscamente do céu para
cair numa realidade que já havia esquecido. O olhar de uma grandiosidade
aterradora que se assemelha a um grito. Aquela expressão fisionômica de
quem é sacudido em pleno sono. Aquele aspecto de sonâmbulo, junto ao
qual se pronuncia brutalmente o nome. Aperto o cinto, tranco a porta.
Roberto Silva volta a pisar fundo, em busca do próximo corpo.<br />
<br />
***<br />
<br />
Se não estivesse tão quente, Meursault não assassinaria aquele árabe e
você não invejaria os trabalhos forçados do grande Dostoiévski na
Sibéria. Batesse única rajada de vento, você não sequestraria tua irmã
nem ameaçaria teu próprio pai. Se estivesse um pouquinho menos quente,
Juarez Arantes não guiaria seu Del Rey pelas ruas maringaenses com os
vidros escancarados, exposto a trombadinhas, ladrões ou algum parente
querido.<br />
<br />
***<br />
<br />
Poças de água inundam axilas, encharcam a palma da mão, transbordam de palavrões o velho abanando a camisa – é verão.<br />
<br />
***<br />
<br />
Parque Alfredo Nyffeler: sol mergulhando na nascente do Ribeirão
Morangueiro. Setenta tons de verde, dependendo da inclinação dos raios e
das tantas sombras. Verde oliva. Musgo. Esmeralda. Samambaia. Verde
mar, amarelado, lima. O mesmo verde dos lábios de Eva Green. Aqui, o
velho Monet não pintaria novo ciclo de suas ninféias? Você não é menos
elegante que Woody Allen zanzando no Central Park ou Milan Kundera
flanando pelo Jardim de Luxemburgo.<br />
<br />
***<br />
<br />
Andar pelo Parque do Ingá é esbarrar num punhado de macaquinhos - a
glória da criançada. Um deles persegue uma borboleta dourada, sem ser
notado pelo grupo de turistas, todos armados com celulares
hipermodernos. Com desenvoltura, pula os troncos de árvores caídos na
mata, desvia da pedra, tenta em novo pulo abraçar a borboletinha –
brincam, os dois, ou é a fome batendo forte?<br />
<br />
***<br />
<br />
Quinze anos de espinhas e canelas finas. Bonés disfarçando semblantes
salivantes. Debaixo da escada rolante do shopping, gordo e magro
assistem a digníssima mãe trintona subindo em vestidíssimo florido:
panturrilhas torneadas, coxas lisinhas, a polpinha acenando no alto da
escada. Mulher em escada rolante não é melhor que goiabada com queijo?!
Videogame e Coca-cola!? A última camada de açúcar na filhó quentinha!? O
que seriam dos hormônios sem os adolescentes?<br />
<br />
***<br />
<br />
O vento lambe o vestidinho da morena, derruba o chapéu do velho e
empurra a abelha para dentro da tua latinha de Coca-Cola – é verão.<br />
<br />
***<br />
<br />
A sortuda gotícula de suor escorre pela testa da moçoila, raspa na
sobrancelha, percorre o narizinho,contorna lentamente os grandes
lábios, mergulha na profunda covinha de sorrisos e, logo na beirada do
queixo, depois de lamber cada centímetro daquele rostinho, encerra a
jornada com um salto mortal em direção à esteira negra - viver mais pra
quê?!-, onde jaz bravamente, no êxtase da paixão, aplaudida por Goethe e
outros poetinhas fatais.<br />
<br />
***<br />
<br />
Já leu as linhas de umbiguinho tão poético? Dois quartetos e dois
tercetos. Decassílabos platônicos. Dicção severa. Sussurros de
Shakespeare & Camões. A boquinha vermelha acelera teus batimentos
cardíacos – uma escola de samba inteirinha com repiques, surdos,
chocalhos, cuícas e tamborins batucando teu próprio peito.<br />
<br />
***<br />
<br />
No Sebo Cultura, diante da morena de dezoito aninhos, me perco
naqueles contornos. Dela ecoam as seis suítes de violoncelo do Bach,
executadas pelo grande Mstislav Rostropovich. A "Marcha Turca", do
Mozart, surge em cada covinha dela. Se provasse aquele riso, Bruckner
teria composto mais quarenta motetos. De passagem pelo sebo, competentes
críticos musicais falhariam vergonhosamente se tentassem desvendar cada
surpresa harmônica daqueles lábios, perdidos entre oitavas neutras,
tercinas arpejadas, linhas ondulantes e vigorosas oitavas no final.
Ouça: a tensão dramática dela não é aliviada pelo amável tema do rondó?
Ai, que rondó!<br />
<br />
***<br />
<br />
Molhadinha de suor, shortinho rosa coladinho, blusinha preta, cabelo
preso num rabinho de cavalo. Nas panturrilhas à mostra, duas maçãs
vermelhíssimas – só para você morder?<br />
<br />
***<br />
<br />
Seu riso, a última camada de açúcar da filhó quentinha, cheia de canela.<br />
<br />
***<br />
<br />
No adeus daquela boquinha vermelha, você não dá todas as razões ao maldito Humbert Humbert?<br />
<br />
***<br />
<br />
Pouco importam as loiras de Renoir, a ruiva do Klimt, os peitos de
Delacroix: há mais obras-primas circulando pelas calçadas maringaenses
do que expostas nas paredes do Louvre.<br />
<br />
<b>RETROSPECTIVA Publicada no Diário (3/1/2016) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-39670433067889498742015-12-28T08:30:00.001-08:002015-12-28T08:30:46.600-08:00Anão, pastel, musas, suor, cães e Deus<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGZH1Gu6BrCNpyYEtWEqwyeUQPMxyowc001z5Fz4SsJDyr3j5TQ1LvaRtXt3ExNLeJczUd_keapy1X9SRHOQ8Xd-SfCnbjmir2Ym7Vf6LBswuYBCWv9JoyD5xxB5QgmV9k8SgY-uxXcCTF/s1600/page%25289%2529-page-001.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGZH1Gu6BrCNpyYEtWEqwyeUQPMxyowc001z5Fz4SsJDyr3j5TQ1LvaRtXt3ExNLeJczUd_keapy1X9SRHOQ8Xd-SfCnbjmir2Ym7Vf6LBswuYBCWv9JoyD5xxB5QgmV9k8SgY-uxXcCTF/s400/page%25289%2529-page-001.jpg" width="232" /></a></div>
No terminal rodoviário, você reflete a tua Maringá. Não a Maringá dos
pontos turísticos, da chatíssima igreja-cone e das infinitas
fragrâncias do Rio Bostinha. Não a Maringá dos 547 trovadores, dos
vendedores de sorte ou azar e dos incontáveis berros sertânicos – em
cada bar dessa cidade você é refém de alguma dupla sertaneja. Única
maravilha? Suas calçadas cheias de moças, banhando as delícias debaixo
do bendito sol.<br />
<br />
***<br /><br />
Alguns apartamentos do Edifício Maurício Schulman têm cozinhas
e banheiros virados para os corredores. Na porta de um deles, o aviso à
Saramago extermina todas as vírgulas: "Deus está no controle não entre
aqui com raiva mau humor pessimismo intrigas inveja porque acreditamos
na vida que fazemos e principalmente temos fé". Por que exibir sua fé
aos vizinhos? "Ponhando a palavra do Senhor aqui no vidro, quero
impactar um pouco. Muita gente do prédio precisa de Deus", justifica o
sujeito.<br />
<br />
***<br /><br />
Latidos graves e potentes ecoam de um dos apartamentos do
Edifício Maurício Schulman. Quem responde, noutra janela, é um latido
menos encorpado, mas também grave. Dá para ouvir tudo bem nítido: dois
barítonos no primeiro ato da opereta canina. Interrompendo o dueto
masculinizado, um terceiro latido, agudo e estridente - eis a nossa
Maria Callas! -, assume o posto de soprano. Nem o severo Karajan seria
capaz de encerrar a performance do trio.<br />
<br />
***<br /><br />
Encostadinha no muro, uma loirinha transcendental refestela-se
com pastel de queijo e sodinha bem gelada. Shortinho jeans, blusinha
branca, boquinha pintadinha de vermelho – ai, essas moças de lábios
vermelhos. Não tem ela os ombros altos de Liv Ullmann? As coxas
portentosas de Anita Björk? Nos olhos, a mesma melancolia de Ingrid
Thulin? Quem não daria tudo para ouvir os pensamentos da nossa sueca
bergmaniana?<br />
<br />
***<br /><br />
A sexagenária mancando, apoiada numa bengala, carrega duas
sacolas cheias de milhos e verduras. Ela está suando e parece fazer um
esforço tremendo para caminhar – a feira não é sua via crucis?<br />
<br />
***<br /><br />
Na banca de rosas, com flores vermelhas, amarelas e brancas, a
japonesa lamenta a queda nas vendas. "Ninguém quer ser romântico com a
crise. O pessoal quer é comer, né?"<br />
<br />
***<br /><br />
O amor é o grito suicida na goela do gago .<br />
<br />
***<br />O cemitério parece quieto, mas não é. Prestando atenção, você escuta os diálogos dos mortos:<br />"O mausoléu mais bonito, aqui de Maringá, é do João. Parece obra de arte."<br />"Se esse treco é uma obra de arte, o que dizer do 'Último Adeus', do Alfredo Oliani, no Cemitério São Paulo?"<br />"Cala boca, quero dormir!"<br />"Quem consegue dormir nesse calor?"<br />"Fosse vivo beberia todos os vasilhames do Divina Dose."<br />"Venderia fácil minha alma por uma última noitada no Skolzinho."<br />"Alguém aí sabe dizer que horas são?"<br />"Mãezinha! As minhocas tão fazendo cosquinha de novo!"<br /><br />***<br /><br />
Às
cinco da tarde, a praça Raposo Tavares é melancolicamente erótica. A
anã, negra, oferece as perninhas magricelas e as mãozinhas miúdas.
Sentada no banquinho, lançando olhares maliciosos, uma prostituta
sexagenária veste blusona vermelha, chinelão de dedo e saiona jeans. No
sorrisão da doce senhora, o que seduz mais? O dentão amarelo e a
verrugona na bochecha esquerda, ou as pernonas infestadas de longas
varizes azuis? O amor, na praça Raposo Tavares, tem todos os motivos do
mundo.<br />
<br />
***<br /><br />
À mostra, as perninhas macilentas e cheias de varizes
azulonas, que se cruzam e formam cidades com pontes, igrejas, pracinhas,
penitenciárias e estádios de futebol, não são as iscas mais eficientes?<br />
<br />
***<br /><br />
Vinte e poucos anos, loirinha, olhos castanhos, sorrisinho de
sexta-feira: com a professora Polyanna Bavia Capdeboscq, você não
tomaria todas as lições prazerosas da vida? Mão posta à palmatória -
bate!, bate!, bate! - você erra de propósito a tabuada e o bê-à-bá.
Sabatinado em plena saleta, diante da cruz de mármore, você confunde
briófitas com pteridófitas, troca Machadinho por Zé de Alencar, e,
espada em riste!, declara guerra a Oliver Cromwell ou qualquer outro
grande nome que desperte admiração da professorinha, oferecendo o corpo
inteiro aos tapas e beliscões, ansioso pela punição mais dolorosa - o
amor.<br />
<br />
***<br /><br />
Tomasse aulas com essas novas professoras do Santo Inácio, sua
vida seria radicalmente diferente. Você não odiaria Deus, não teria
tanto ranço de duplas sertânicas, não compraria brigas com dramaturgos
medíocres, não seria adepto fervoroso do sedentarismo, e, talvez, em
alguns momentos - além da prosa do Proust, das sonatas do surdo
Beethoven, de dois ou três filmes do Bergman -, você, enfim, apreciasse
viver.<br />
<br />
***<br /><br />
Novos acordes sertânicos dão o tom do baile da melhor idade.
Quem não dança, aguarda. Sapatinho brilhante, dedões pintados de
vermelho, bafão de dezessete maços de cigarro. O olhinho meio torto?
Deve ser felicidade.<br />
<br />
***<br /><br />
Clima de azaração. Troca de olhares. Coxas roçando canelas e
sorrisos na melhor idade. Velhos conversam alegrinhos, mãos danadas
abanando coxas e pescoços. Línguas rugosas encharcam lábios rachados
pelo tempo – a sedução.<br />
<br />
***<br /><br />
Em quarenta e seis anos de prisão, carcereiro e detenta dividindo a mesma cama de casal.<br />"E quantos filhos?", vou sondando.<br />"Tive doze filhos!"<br />"?!"<br />"Daí você me pergunta, né? Imagina, então, se o casamento fosse bom, hein?!"<br />Mais risadas serelepes.<br />"Naquele tempo, meu filho, se a mulher não queria, tinha que querer..."<br />"!"<br />"... sem berro, sem reclamar: na marra."<br />Uma velha afobada, de olho no verbo alheio, invade a conversa.<br />"A gente era estuprada! Es-tu-pra-da!", denuncia, aos berros, a voz esganiçada.<br />
"Isso mesmo. Ai de você, se não quisesse..."<br />"E sempre bêbado, né, Maria?"<br />"Ca-cha-cei-ro! A mesma desgraça toda santa noite."<br />Doce gargalhada das duas velhas, alívio das mil e uma noites de horror.<br />
<br />***<br /><br />
Única entediada, uma velha tolera o show e, esvaindo-se em
suor, encharca o guardanapo de quarenta graus. Sentadinha à mesa,
dedinhos batucam versos sertânicos. Desânimo da música ruim, do calor
castigando ou da garrafa de água?<br />"Bom mesmo seria uma cervejinha, né?", pergunto.<br />Ela escancara dentes branquíssimos – quinze mãos lhe fazendo cócegas, o mesmo êxtase dos dezessete aninhos.<br />"Ai, sim! Cervejinha bem geladinha", responde, remexendo de um lado para o outro a dentadura vacilante.<br />"Em busca do grande amor?", vou sondando.<br />
Inquietos, pré-molares e incisivos requebram na boquinha carcomida.<br />"Deus me livre..."<br />Cai ou não cai?<br />"... nunca mais..."<br />Cai ou não cai?<br />"... disso tô vacinada."<br />Correndinha,
a mão protege a bocona banguela, inteirinha nua - não para você, mas
para pouquíssimos privilegiados. Último ato erótico, arremessado ao lado
da cama, nessa longa estrada da vida.<br />
<br />***<br /><br />
Latidos de bem-te-vi, cantos de cachorros das casas
vizinhas. O solo de nove notas de um pássaro desconhecido te arrebata no
Parque Alfredo Nyffeler – você decide, de uma vez por todas, também
aprender trompete.<br />
<br />
***<br /><br />
Nas paredes da cadeia, o preso aproveita o tédio da prisão
para compor versinhos delicados, em homenagem a um tal Lincon. Valsinha
dois por dois? Pagodinho romântico? Cante como quiser: "Lincon do
universo / só bala pra você / seu frango / desse (sic) na vilinha que vc
vai morrer / seu safado /Vilinha!!!" Fosse o Lincon, evitaria me
embrenhar nalguma Vilinha. Vila Operária. Vila Morangueira. Vila
Esperança. Num show do Martinho da Vila. Toda e qualquer vila - nunca,
jamais.<br />
<br />
***<br /><br />
No meio de milhares de velhos enfileirados à espera do
autógrafo do padre Marcelo Rossi, avisto, ao longe, uma moçoila.
Desconfio do Todo-Poderoso. Não será dessas miragens? Troça celestial
para zanzar à toa na multidão? Loirinha, metro e sessenta de pura
louvação? Obrigado, Senhor! Afoito, vou abrindo caminho no mar de gente –
Moisés, cruzando o mar vermelho, o impávido cajado nas mãos. Depois da
longa caminhada, chego finalmente perto dela. Sorte minha, de carne e
osso - aleluia! O nome do milagre? Fernanda Félix, 19, aluna de
Psicologia da UEM. Simpática, discorre sobre Deus, totens da psicologia,
tempestades, Curitiba. Como é bom mulher que se abre.<br />
<br />
***<br /><br />
A chuva encharca a gripe da criança, inunda o tédio da tarde e
agride a velha imóvel na esquina – outro<br />
maldito motorista explodindo
poças d'água.<br />
<br />
***<br /><br />
Se ela estalasse os dedinhos vermelhos, não moveria o Monte
Sinai e o Monte Sião? A escuridão não encobriria o Sol por três dias ao
seu único pedido? A nuvem de gafanhotos não dominaria a cidade, se ela
ordenasse, cochichando no ouvidinho? Claro que sim: moscas atacariam
homens e animais!, rãs cobririam a terra!, as águas do Nilo
tingir-se-iam de puro sangue!<br />
<br />
***<br /><br />
O pôr-do-sol lambendo o ônibus - quase seis da tarde.<br />
<br />
***<br /><br />
Vou me embrenhando numa Maringá sinistra. De ruas apertadas,
terrenos abandonados. Da Capela Papa João 23. Dos rostos desconfiados no
açougue-boteco. Da Igreja Pentecostal Diante do Trono, com gente de
terno e sorrisão nos grandes lábios – o portão sagrado escancara berros
da louvação. Pó, poeira, cheiro verde. É noite. Quilômetros e
quilômetros mal iluminados apressam o passo da moça, aumentam os
batimentos cardíacos do velho, matam de susto o tiozinho na bicicleta.
Desses becos Moisés avistou a Terra Prometida? Daqui o Senhor
mostrou-lhe toda a terra, de Gileade até Dã? Essa cidade nem de longe
lembra a Maringá dos cartões postais.<br /><br />
***<br /><br />
Na frente do Mercadão,
trânsito infernal. Não é a nossa Julie Manet, caminhando na calçada? Os
mesmos olhos tristes, aquela boquinha vermelha?! De sainha rosa,
blusinha preta, meia rosa erguidinha e cabelinho preso num rabinho de
cavalo - ó hexâmetros órficos da Grécia heroica!, ó margens do rio
Hebro!, ó azeite de oliveira puríssimo! De pé, eu me ergo: levanto
ligeiro, embasbacado pela mirra mais preciosa, arremessando flores e
versinhos líricos.<br />
<br />
***<br /><br />
As bochechas de um Buldogue, no Parque do Ingá, escorrem do
rosto canino – inspiram-se nos relógios<br />
molengões de Dalí ou nas
flácidas bochechas do dono amado?<br />
<br />
***<br /><br />
Na janelinha do Facebook, a morena de vinte aninhos insiste
que o empresário sessentão envie selfies eróticos. Seguindo as
orientações, ele foi compartilhando tudinho - não era a maior provinha
de amor? Orgulhoso de sua torre de Davi!, seu cume de Hermon!, tirou
três selfies, sem aumentar nem diminuir nadinha. "E a minha vida, agora,
como é que fica?"<br />
<br />
***<br /><br />
Naquela orelhinha, você não sussurra os versinhos proibidos do
danado Bocage? Não entoa, suave, a "Tristesse", do Chopin? Feche os
olhos: veja as grinaldas de Hera!, os ramos de videira!, as margens do
rio Hebro! Saciadas, as duas loiras da barraca do pastel encerram suas
respectivas contas e, cada uma para um lado, partem para o cortejo
báquico, ao som dos tamborins dos coribantes. Quem, ali, não ofereceria
bodes, coelhos e pássaros corvídeos à passagem das duas deusas?<br />
<br />
***<br /><br />
Bonfim começou a perder a visão aos 11 anos e ficou
completamente cego aos 23. Às quartas de feira, canta quatro horas
seguidas.Durante o concerto, volta e meia passa a mão na cumbuca à sua
frente – esperto aos larápios sacanas. "Nunca vi alguém me roubando",
garante.<br />
<br />
***<br /><br />
A resposta da moçoila causa cócegas em violinos – já ouviu, assim, tão pertinho, três bailarinas sorrindo?<br />
<br />
***<br /><br />
Debaixo da mesa, na biblioteca Bento Munhoz da Rocha Netto, a
ruivinha vai despindo, lentamente, o All Star colorido. Meinha por
meinha, primeiro o pezinho esquerdo e depois o direito, até a brisa
geladinha do ar-condicionado refrescar cada dedinho nu. Embasbacado,
você testemunha o silencioso strip-tease dos pezinhos da estudante.<br />
<br />
***<br /><br />
No Ceasa, encontro Rita Andrade de Paula, 76. Leitora fiel. Me presenteia com vinho francês e puxa assunto.<br />"Pra quê esses olhos tão grandes?"<br />"Jamais perder o mínimo detalhe."<br />"E esses dedos, por que tantos calos?"<br />"Marcas das tantas escritas."<br />"Por que insiste em usar chapéu?"<br />"Nele cabem todas as minhas mentiras."<br />Olhos trêmulos, voz tremelicante.<br />"E tudo o que você escreve, Gaioto, é mesmo verdade?"<br />"Tudo é real no universo da ficção."<br />"Quais conselhos aos jovens escritores?"<br />"Desista enquanto é tempo."<br />"E uma segunda dica?"<br />"Evite reticências... maldito recurso covarde."<br />
<br />
<b>RETROSPECTIVA Publicada no Diário (29/12/2015) </b>Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7693289422160490123.post-28537816838683211222015-12-16T15:35:00.000-08:002015-12-16T17:14:40.054-08:00Raul Seixas, top model, choro, paraíbas e trenzinho de tédio<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
"Eu não sou besta pra tirar onda de herói. Sou vacinado, eu sou cowboy. Cowboy fora da leeeei!", esgoela-se o rapaz magricelo, empunhando um velho violão, na frente de uma loja. São oito horas da noite e o comércio surge escancarado. Vai e vem de gente, famílias inteiras, uma e outra pessoa com sacola de presente nas mãos. Quinze loiras cruzam a calçada em um minuto e meio de canção – ninguém arremessa moedinhas, nem ao menos acenos e afagos ao jovem cantor. As capengas luzes coloridas, agarradas aos troncos das árvores, deveriam distribuir alegria aos cantos da cidade – as ruas não ficam, no final das contas, mais tristes e melancólicas? No caos da São Paulo, o cantor insiste nos versos ignorados. "Durango Kid só existe no gibiiii." A criança babona tapa com as mãozinhas as duas únicas orelhas, irritadiça de Raul. "E quem quiser, que fique aquiiii." Tivesse outra orelha, não taparia também a terceira? Dois gordos riem deboches do artista – a voz do povo não é a voz de Deus? Uma velha se benze, fazendo sinal da cruz – rock nunca foi coisa do Senhor. "Entrar pra história é com vocêêêês", finaliza o sujeito, berrando ainda mais alto, diante do descaso público.<br />
<br />
Sem única palma, encosta o violão na parede. A pausa do cantor popular não tem pedidos de selfies nem disputa por autógrafos. Onde as tantas groupies insaciáveis? Calça jeans, camiseta preta, chapéu de vaqueiro. O cansaço evidente de quantos concertos?<br />
<br />
"Tô desdas duas. Canto uma hora, uma e pouco. Daí, intervalo. Senão, diretão, ninguém guenta", comenta Jair Moreira, 20, sem estrelismos nem petulantes assessores de imprensa.<br />
<br />
A capa da viola, dormindo no chão, não recebeu notas nem moedas. Mas o público nem sempre é tão muquirana.<br />
<br />
"Já teve dia que tirei R$ 120", gaba-se o cantor, que mora em Sarandi e toca para cá quase diariamente, há seis meses, onde assume a trilha da calçada. De repertório minimalista, dedica-se a retomar canções de apenas três artistas: Raul Seixas, Zé Ramalho e Ventania. Sua Santíssima Trindade. Vez ou outra, sem aviso prévio, chega a executar uma de suas únicas doze músicas próprias.<br />
<br />
"Tudo que faço, ofereço pra Ele..."<br />
<br />
Outro desses - ai, não! - louvadores da aleluia.<br />
<br />
"...quem me guia e me rege..."<br />
<br />
Santa paciência: prepara-te para três horas ininterruptas de conversão religiosa.<br />
<br />
"...quem me socorre e me protege..."<br />
<br />
Por que tão onipresente, pô?!<br />
<br />
"...meu Santo Satanás..."<br />
<br />
"!!!"<br />
<br />
"...meu Pai da magia..."<br />
<br />
"?!?"<br />
<br />
"...quem sempre tudo dá."<br />
<br />
Pergunto sobre o Diabo. Jair responde tudo baixinho - jamais ser descoberto pelos cristãos maringaenses, ainda mais em climão natalino.<br />
<br />
"Nossa seita, em Sarandi, conta com vários fiéis, mas eu não posso te dar detalhes. É tudo secreto", adianta.<br />
<br />
"Não tem filial em Maringá?"<br />
<br />
"Infelizmente, não."<br />
<br />
Disso, já suspeitava. Nem o Diabo suporta esta cidade infernal, terra das trezentas duplas sertânicas.<br />
<br />
"Muitas oferendas em Sarandi?", questiono.<br />
<br />
"Claro. Dia desses sacrificamos um bode. Acho que Ele gostou. Mas o comum é oferecer galinha preta e coelho."<br />
<br />
"São alegres as celebrações?"<br />
<br />
"Com muita música, viola, pacto de sangue e bruxaria: tudo com muito respeito e bom gosto."<br />
<br />
"Quais princípios da turma satânica?"</div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
"Liberdade, amor, vida e luta."<br />
<br />
"Paga pra entrar?"<br />
<br />
"Tem o cofrinho do dízimo. Quem pode, vai colaborando."<br />
<br />
"!"<br />
<br />
"Alguém tem que bancar as velas, o sal grosso... São várias despesas."<br />
<br />
Balaio do dízimo. Musiquinha fervorosa. Fiéis clamando milagres. Orações e sacrifícios. Deus & Diabo não são tão diferentes assim na terra do sol.</div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<br />
<b>Agruras do coração</b></div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<br />
Longe dos seguidores diabólicos, vou flanando pela Brasil anoitecida. Papai Noel sorridente. Árvores enfeitando vitrines. "PROMOÇÃO." "TUDO POR R$ 10,99." "PRESENTE DE NATAL E AMIGO SECRETO É AQUI." Entro. Chinelo verde. Cadeira de praia. Bomba de chimarrão. Boia de jacaré. Copo vermelho. Boia de pato. Puff rosado. Todo mundo espia, mas poucos abrem carteiras. No bocejo da vendedora, o tédio de nada fazer. Animadinha, a senhora serelepe é a única empolgada nas compras.<br />
<br />
"Venha cá, Camila, ponha isso por cima!"<br />
<br />
A garota de cinco aninhos obedece e vai vestindo o vestido branquelo.<br />
<br />
"A Camila é oito, né?"<br />
<br />
"Isso, mãe."<br />
<br />
Decotadíssima e curtíssima, a tal peça infantil.<br />
<br />
"Sei não, hein. Isso aí tá curto demais."<br />
<br />
"Que nada, filha, tá cada vez mais quente!"<br />
<br />
A menina tira o vestido, a vó já enfia outro pela cabeça.<br />
<br />
"Um mais lindo que o outro!"<br />
<br />
Debando da loja. O trenzinho cheio de crianças cruza a Brasil, tocando musiquinha estridente e revelando rostos entediados.</div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<br />
<b>Planalto bombástico</b><br />
<br />
"Ólhaaa rédi!", anuncia o paraibano na calçada.<br />
<br />
"Quanto, amigo?", indaga o pai de família, já prevendo a sesta serena, apreciando a qualidade dos panos na ponta dos dedos.<br />
<br />
"Quarentinha!"<br />
<br />
"Credo, que horror!", diz, imediatamente afastando a mão – o mesmo pavor de tocar num velho leproso.<br />
<br />
As pencas de pano não emplacam. Culpa de quem?<br />
<br />
"Da Dílma. Ela meréce sábi u quê?"<br />
<br />
"?"<br />
<br />
"Qui um cábra ponha dinamíti e exploda túdo áquilo lá."<br />
<br />
"!"<br />
<br />
"Tém que explodí a Dílma!"<br />
<br />
Anti-cristos, crise econômica e paraibanos explosivos. Tem quase de tudo. Menos travestis e garotas de programa. Ninguém quer se exibir com tanta gente zanzando de lá para cá, nas mesmas calçadas natalinas.</div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<br />
<b>Agruras do coração II</b><br />
<br />
Passos adiante, uma pausa. Não para contemplar as chatíssimas árvores de luzinhas tortas. Mas, sim, para aplaudir um vestidíssimo branco. Tatuagem indecifrável no punho. Às nove e pouco, esperando familiares consumistas. Sobrancelhas perdidas na Getúlio Vargas, rosto ensopado de lágrimas.<br />
<br />
"Por que choras, meu bem?"<br />
<br />
Deve ser essa época do ano. Todos, cada vez mais melancólicos.<br />
<br />
"Não, nada disso. Adoro Natal. O problema não é a festa..."<br />
<br />
No cantinho da bochecha, uma lágrima salta ao suicídio.<br />
<br />
"...meu problema é ele."<br />
<br />
Namorado? Ex? Noivo? Maridão louco de amor?<br />
<br />
"Um amigo... meu vizinho. Resolveu infernizar minha vida e fica 'fazendo fusquinha'!"<br />
<br />
"?"<br />
<br />
"Virar a cara, fingir que nem sabe o motivo do choro: isso é 'fazer fusquinha'."<br />
<br />
Entre os grandes lábios, trinta e dois dentes respondem a cócegas imaginárias da gíria automobilística – finalmente, um sorriso.<br />
<br />
"Não admito que pensem isso de mim, sabe?"<br />
<br />
"..."<br />
<br />
"Sou tra-ba-lha-do-ra. Estudo à noite, trampo o dia in-tei-ro, de do-min-go a do-min-go. E agora vem esse i-di-o-ta..."<br />
<br />
Mãos que se coçam não querem esganar o vizinho?<br />
<br />
"...dizer pra toda a minha família que eu sou..."<br />
<br />
"?"<br />
<br />
<br />
"...ga-ro-ta de pro-gra-ma?!"<br />
<br />
Um rapaz moreno invade nosso diálogo. Meio constrangimento de. Teria ele? Achando que ela? Ai, não.<br />
<br />
"Aceitam cone trufado?", questiona o vendedor, fingindo nada ouvir.<br />
<br />
Essa época do ano, todo mundo tem algo a oferecer.<br />
<br />
Educadamente, a moça responde que não. Também dispenso acepipes adocicados.<br />
<br />
"Me desculpe, viu? Sou assim, toda derramada..."<br />
<br />
Braços morenos arrepiadinhos pela lambida do vento.<br />
<br />
"...qualquer coisa, eu choro."<br />
<br />
Quer dizer, chorava. Agora, seu rosto surge livre da tristeza. A mãe, gorducha cheia de compras, surge por trás e diz que é hora de ir embora. Menos tristonha, a moça agradece o dedo de prosa. Você, anônimo psicólogo das ruas maringaenses.</div>
<div style="font-family: Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 12px;">
<br />
<b>Top model</b><br />
<br />
Quando me dou conta, estou sentado num ponto de ônibus da Joubert de Carvalho. Há umas três horas, quando o Sol ainda dava os últimos acenos, foi exatamente aqui. Ainda, no ar, os mesmos tons de begônias e camélias. De início, desconfiei de minha miopia. Forcei a vista. Ombros altos, olhos castanhos, lábios vermelhíssimos. Séria sisuda. Mulheres assim não existem só na ficção? Sainha jeans, um palmo e meio acima dos joelhos - ai, que joelhos. A literatura não surpreende tanto quanto a misteriosa moçoila maringaense. O nó na blusinha jeans exibia o mais lírico dos umbigos – ali se encontram o Bem, a Beleza e a Verdade. Já leu as linhas de umbiguinho tão poético? Dois quartetos e dois tercetos. Decassílabos platônicos. Dicção severa. Sussurros de Shakespeare & Camões. Naquele umbiguinho, razão e emoção te confundem. Catatônico, fui puxando assunto.<br />
<br />
"Aposto que..."<br />
<br />
Um metro e setenta e nove de curvas morenas te encarando sem curiosidade.<br />
<br />
"...modelo?"<br />
<br />
Sinta cada perfume: mescla de lírio do vale, begônias,camélias, gardênias, jasmim-manga e canela.<br />
<br />
"Como adivinhou?", surpreendeu-se Mariana.<br />
<br />
A boquinha vermelha acelera teus batimentos cardíacos – uma escola de samba inteirinha com repiques, surdos, chocalhos, cuícas e tamborins batucando teu próprio peito.<br />
<br />
"Sou modelo formada há muitos anos. Fiz fotos, desfilei em São Paulo, Curitiba, Londrina, Cianorte e até posei para a Vogue brasileira."<br />
<br />
"!"<br />
<br />
"Mas a foto só saiu da cintura pra baixo..."<br />
<br />
"!"<br />
<br />
"...era matéria sobre calça jeans."<br />
<br />
Ai, o tão esperado sorrisinho natalino. Geralmente, essas modelos são todas secas e antipáticas. Tudo diferente com nossa top model. Nas marés de Mariana, você navega o Pacífico, o Atlântico Índico, o Glacial Ártico e o Antártico – cuidado, Gaioto, para nela não se afogar.<br />
<br />
"Tô pensando seriamente em ir embora desta cidade."<br />
<br />
Ai, não. Nunca!<br />
<br />
"Aqui, modelos magrinhas, como eu, não têm muito mercado. Só querem essas do tipo paniquetes, bombadas e tal."<br />
<br />
Maringá, túmulo da beleza feminina.<br />
<br />
"E o tal do book rosa... você já..."<br />
<br />
"Nunca nem ouvi dizer dessas coisas por aqui."<br />
<br />
"E o namorado? Aposto que..."<br />
<br />
"Larguei domingo. Em dúvida se gostava ou não."<br />
<br />
Solteiríssima, ela estende o braço nu de pelinhos dourados. É o ônibus dela. Tua despedida tem gosto amargo - não poderia ser diferente.<br />
<br />
"Última pergunta: qual idade?"<br />
<br />
"Dezesseis anos. Acredita?"<br />
<br />
"!!!"<br />
<br />
"Vou terminar o Ensino Médio e ir embora dessa cidade."<br />
<br />
E me pego salivando detalhes do encontro, ainda em plena Joubert de Carvalho. No adeus daquela boquinha vermelha, você não dá todas as razões ao maldito Humbert Humbert?</div>
<div>
<br /></div>
<div>
<b>Publicado no Diário (13/12/15)</b></div>
Alexandre Gaiotohttp://www.blogger.com/profile/00372891005542072703noreply@blogger.com0