quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Enquanto ela sorria

Alguém pode ser um poeta, ela me encarou, sem escrever ao menos uma linha de poesia? O que seria de Borges, Gullar, Catulo, Augusto dos Anjos sem um poema que seja? Gosto quando ela fala assim, segurando o copo de cerveja com uma mão, apontando o copo em minha direção. Gosto quando ela sorri assim, com os olhos vivos, intensos, ligeiros, apenas para provocar, propor um problema, testar uma saída, soltar um arroubo poético inesperado à queima roupa, uma metáfora, uma piada certeira. A tímida covinha exibida no canto do rosto, a cada segundo matando o seu desespero, e a vontade de pular do outro lado da mesa, a vontade de parar o blues desse lugar, provar que não importam quantas linhas, as metáforas não são importantes, que a vida segue sem as metáforas, as comparações, os anacolutos, a métrica é sempre uma bosta, a cerveja poderia estar mais gelada, enfim, que não importam os poetas nem o que eles escrevem, bebem ou quem fodem quando estão bêbados. Ninguém permanece um dia inteiro com a porra de uma metáfora na cabeça. Ninguém deixa o bar com a maldita metáfora perturbando a alma, a fome, a insônia. Porque a literatura não me comove tanto quanto o sorriso dela. Eu seria capaz de escrever um romance de 800 páginas apenas sobre o sorriso dela. Eu passaria um ano sem dormir, juro, debruçado sobre a composição da biografia dela. Se ela quisesse, eu passaria meses, se ela sorrisse durante todo esse tempo, mapeando todas as pequenas pintinhas que compõem o seu corpo, enquanto ouço os detalhes de suas viagens pelo exterior, juro que tentaria não ter ciúmes dos caras que ela conheceu, beijou, e sorriu, e depois esqueceu em algum canto da memória. Eu prefiro, em silêncio, permanecer surdo, o infeliz que nunca escreveu uma linha sobre o amor, o último contista entre os menos talentosos de Maringá. Quando ela for embora desta cidade, jamais levará algum conto meu. Seria injustiça. Eu com um punhado de sorrisos e ela com algumas linhas? No bolso, talvez ela leve uma ou outra lembrança das nossas conversas noturnas. Na mala, quem sabe, um livro de Dalton com uma dedicatória ilegível, rabiscada às pressas, enquanto ela sorria.