quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Enquanto ela sorria

Alguém pode ser um poeta, ela me encarou, sem escrever ao menos uma linha de poesia? O que seria de Borges, Gullar, Catulo, Augusto dos Anjos sem um poema que seja? Gosto quando ela fala assim, segurando o copo de cerveja com uma mão, apontando o copo em minha direção. Gosto quando ela sorri assim, com os olhos vivos, intensos, ligeiros, apenas para provocar, propor um problema, testar uma saída, soltar um arroubo poético inesperado à queima roupa, uma metáfora, uma piada certeira. A tímida covinha exibida no canto do rosto, a cada segundo matando o seu desespero, e a vontade de pular do outro lado da mesa, a vontade de parar o blues desse lugar, provar que não importam quantas linhas, as metáforas não são importantes, que a vida segue sem as metáforas, as comparações, os anacolutos, a métrica é sempre uma bosta, a cerveja poderia estar mais gelada, enfim, que não importam os poetas nem o que eles escrevem, bebem ou quem fodem quando estão bêbados. Ninguém permanece um dia inteiro com a porra de uma metáfora na cabeça. Ninguém deixa o bar com a maldita metáfora perturbando a alma, a fome, a insônia. Porque a literatura não me comove tanto quanto o sorriso dela. Eu seria capaz de escrever um romance de 800 páginas apenas sobre o sorriso dela. Eu passaria um ano sem dormir, juro, debruçado sobre a composição da biografia dela. Se ela quisesse, eu passaria meses, se ela sorrisse durante todo esse tempo, mapeando todas as pequenas pintinhas que compõem o seu corpo, enquanto ouço os detalhes de suas viagens pelo exterior, juro que tentaria não ter ciúmes dos caras que ela conheceu, beijou, e sorriu, e depois esqueceu em algum canto da memória. Eu prefiro, em silêncio, permanecer surdo, o infeliz que nunca escreveu uma linha sobre o amor, o último contista entre os menos talentosos de Maringá. Quando ela for embora desta cidade, jamais levará algum conto meu. Seria injustiça. Eu com um punhado de sorrisos e ela com algumas linhas? No bolso, talvez ela leve uma ou outra lembrança das nossas conversas noturnas. Na mala, quem sabe, um livro de Dalton com uma dedicatória ilegível, rabiscada às pressas, enquanto ela sorria.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Estrangeiro

Meu pai está em coma
-e não sinto nada

Ela enfia meu pau goela abaixo
Com a cara cheia de porra me sorri
Deita ao meu lado diz tudo vai dar certo
-e não sinto nada

Sou um estrangeiro exilado
Nesse bar às quatro da manhã
Quero um intérprete para gritar o que vejo

Meu pai está em coma
-e não sinto nada

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Agacha e Engole

Depois do cinema me levou pra casa dele.
Descemos perto do Prever ali na Vila Marumby.
Ele sem nenhuma palavra.
Tava agitado.
Manolo?
E nada.
Mal fechou a porta deixou a chave na mesinha.
Acho que tremia.
Agacha e engole.
O quê?
Agacha e engole.
Ham?
Os dedinhos gordinhos abaixando a bermuda florida no meio da sala.
O troço dele ali durinho durinho durinho.
Na hora ri um montão.
Agacha e engole!
Isso?
Rindo apontando já com dor no estômago.
Sua tonta!
Nenhum tapete no chão.
Eu de vestido florido.
Não sabia que era assim:
Todo tortinho pro lado direito.
O troço.
Ele começa reto.
No meio também é reto.
Mas depois vira tudo pra direita sabe?
Tudo muito estranho.
De uma só vez coloquei inteiro na boca.
Ai meu santo Deus quase vomitei!
Sabe esse sininho na garganta aqui no fundo?
Senti o troço do Manolo batendo nele bem forte.
Tossi tossi tossi.
-mas não gorfei.
Impaciente ele não tava gostando é nada.
Sua tonta!
Tentei devagarinho.
Lembrei da minha irmã mais velha contando pra amiga:
Tipo chupar sorvete Maria.
Que sorvete nada!
Aquilo nem gosto de doce tinha.
É o amargo mais horrível tipo peixe fedido encardido sabe?
E tem que esconder o dente que se morder dói.
O do Manolo doeu tanto que ele me afastou na hora.
Mas o pior mesmo é depois.
A coisa.
A meleca.
Aquela gosma branca.
-meio amarela.
Um nojo um nojo um nojo só.
Ninguém sabe quando ela vem.
Pelo menos o Manolo não soube ou não me avisou o panaca.
Assim rápido sem alerta alarme sirene.
Nada.
Vai vai hum vai hum vai!
Não dá pra fechar o olho não.
Eu tava preocupada já.
Tantos vai vai hum vai vai hum.
Vou onde com o troço na boca Jesus?
Quando fui ver já tava em mim.
Toda lambuzada no rosto.
Minha prova de amor?
Levantei.
Os joelhos vermelhos vermelhos.
Abracei o Manolo e pedi um beijo.
Sua tonta!
Assim mesmo me afastou com cara de nojo.
Ele com nojo da coisa dele.
Pode uma coisa dessa?
Subiu a bermudinha florida.
Os dedos gordinhos tremendo.
Rápido sua tonta.
Fui pro banheiro e me lavei.
Como é difícil tirar aquilo do rosto.
Pior que chiclete.
Enroscou no cabelo não saia de jeito nenhum.
Só com sabonete mesmo.
Limpinha pedi outro beijo.
Eu te amo Manolo!
Me beijou rápido na bochecha com cara estranha.
Nunca mais quis sair comigo.
No colégio me excluiu.
Não ligou de volta.
Cuidado com esses garotos de Maringá amiga.
Cidade cheia de tarado.
Sei que gosta dele de verdade.
No primeiro momento sozinha pode esperar.
Fugir da situação rir fingir desmaio morte morrida?
Ligar para quem socorrer resgatar?
Seja adulta.
Na hora mesmo tira o troço da sua frente.
Mira a coisa lá pro outro lado.
Esquece o beijo no final faz só o que ele mandar.
Sem dar risada vá em frente agacha e engole tudo de uma vez.
Depois me diz se o dele também é tortinho pro lado direito.

Declaração

Põe a mão aqui.
Por cima mesmo.
Isso.
Aperta bem.
Assim.
Tá sentindo?
Como é grande meu amor por você?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Décimo andar

Algumas coisas na vida perderam o sentido
Minhas orgias solitárias nas tardes de segunda
Batendo em louvor ao seu corpo ainda frio

Algumas coisas na vida perderam o sentido
Vagar pelas ruas feito um personagem de Noll
E na escuridão foder um desconhecido

Das poucas coisas que ainda fazem sentido
-não a literatura: a literatura engana sufoca enlouquece
Nunca fui apresentado cordialmente a nenhuma delas
-sinto muito
Nem elas me deram um aceno um abraço um beijo fraterno

Há poucas coisas na vida que ainda fazem sentido
E eu tento acreditar nisso a todo custo
É o que me impede de pular agora do seu apartamento

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Boa de morder

O apelido me deram ainda jovem.
Ficou.
Motivo de briga discussão e fim de algumas amizades.
Com o tempo acostumei.
Como tudo na vida.
Fora de peso uns cinquenta quilos.
-cinquenta e seis pra ser exata.
Gordinha sim mas muito tesuda.
Louca de paixão amor carinho pra dar.
Nas minhas coxas homem nenhum jamais minguou.
Quantas noites atravessadas em braços fortes?
Quantos suspiros arrancados pelo meu vestidinho roxo?
-me acabando nas tardes de samba de par em par?
Sei que causei algumas brigas entre famílias.
Que culpa tenho se eles não tiram o olho de eu?
Com o meu corpo negro ardendo nas safadezas da imaginação?
-em todas as posições de quatro meia nove erguendo o vestidinho devagar.
O sonho de todos eles?
Cochichar aqui bem baixinho:
Neguinha minha.
Mas isso não é pra qualquer um não.
Só selecionado.
Difícil sou e faço charminho.
Que eles gostam mesmo é de sedutora.
Mulher fácil tem vida breve.
Basta o decote provocando?
Que nada.
Nos pequenos detalhes o segredo da conquista.
Do perfume no umbigo à vela no quarto.
A voz de mansinho dizendo bimbada.
Pra começar o incêndio a lambidinha na orelha.
E um ou outro truque também pra melhorar.
No pé a unha vermelha esconde a verruga inimiga.
-onde mesmo ela foi se meter?
Comigo homem nenhum sai insatisfeito.
A campeã da chave de coxa.
Macia farta boa de morder.
Nunca me faltam elogios.
Palavras juras de paixão.
Desesperados pra repetir a dose no meu ninho de amor:
Cê mata a gente desse jeito Jabuticaba!

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Pedido

No meu último suspiro
Já sem forças pra me debater
-agonizando no leito da morte
Que você clame baixinho no meu ouvido:
Goza na minha boca amor.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Cadê a grana vacilão?

Quinta-feira.
22h37
Encosto a Pampa na praça da rodoviária velha.
Nenhum pedestre.
Nenhuma pomba.
Apoiado na janela ele me mostra a cruz no braço.
Cadê a grana vacilão?
Mais de vinte dias pra ajeitar a dívida.
Isso por causa de pedra.
Vício maldito.
O punhal prateado brilhando à luz do poste.
Desce da Pampa doidão!
A Pampa.
Presente do meu pai antes de morrer.
Eu vou mas ela fica pra te guiar meu filho.
A Pampa.
Onde comi algumas namoradas.
Desce da Pampa doidão da porra!
O punhal espetando o peito cheira à morte.
-ou ferida das bravas.
Como explicar depois na construção em casa no barbeiro?
Sequestro por engano?
O mistério do roubo da Pampa?
Nem seguro tem.
Fuça dentro do carro.
Confere se algo na carteira.
Apalpa minhas partes bem apalpado.
Rindo.
Meio bêbo chapado.
Sabe que tá fudido né?
Sou só o menor deles vacilão.
Não é mesmo pra ter medo de eu.
Lê alto meu endereço na carteira.
Ainda hoje só mais umas hora seu puto!
Na Pampa entro vou embora e dou a volta no quarteirão. .
Estaciono debaixo da mesma árvore.
Ao lado da banca de jornal.
Ele vem furioso.
Arregaça a manga pra intimidar.
Sabe que sou cagão.
Que tenho família emprego além de tudo boa reputação.
O punhal prateado volta a brilhar sob a luz do poste.
Abre a boca o banguela vem falando merda.
Gritando na praça vazia.
Três disparos no meio da fuça dele.
Impiedosos.
Aos pombos um banquete incomum de carne fresca.

Maníaco da moto

Eu tinha brigado com o Baiano.
Ele já tava bêbado.
De olho na gordinha da mesa ao lado.
Vai saber o que fez com ela depois do Meu Pato.
No meio da briga me chamou de puta.
Gorda baranga do carai.
Com o taco de sinuca ameaçou uma surra.
Ali mesmo no meio do bar.
O Celso e o Bode tavam junto.
Eles pensam que sou trôxa.
Bem sabia o motivo da alegria.
Comemorando mais um assalto.
Pagando cerveja pra todo mundo.
Era só pedir.
Daí na esquina mesmo liguei pro moto taxi.
Esperei dez minutos.
O cara parou na minha frente.
Esticou o capacete.
Corrida pra onde mesmo?
Moro perto dali.
Na rua perto do Bar do Vermelho.
Mas não arrisco voltar andando não.
Terra de maníaco é Maringá.
Rua Vasco da Gama.
A cor?
Preto feito a morte.
Que era bonito era.
Não tava nervoso.
Subimos pra Avenida Cerro Azul.
Ele virou o redondo certinho.
Seguiu.
No meio da Cerro Azul o pedido.
Se eu incomodava de passar num amigo.
Coisa rápida 5 minutos.
Só pegar um boné emprestado.
Não quis não.
Ele disse que não ia cobrar.
Entrou numa vilinha.
Uma coisa esquisita.
Ruas estranhas.
Logo me perdi.
Vi que tinha algo errado.
Parou a moto numa rua deserta deserta.
Na pressa de descer queimei a perna no escapamento.
Neguinha minha!
Todo fogoso veio pra cima de mim.
Musculoso.
Macho pra danar.
Se não gritei?
Não parava de tremer.
E a voz nessas horas desaparece.
Em momento algum tirou o capacete.
Deu uns tapinhas na minha bunda.
Eu desesperada.
Ele me fodeu feito um animal.
Descontrolado.
Viseira aberta.
Acabado.
Um último tapa na bunda.
Com o capacete bati nele.
E corri.
-minha salvação.
Não posso ouvir barulho de moto.
Entro em desespero.
Lembro dos detalhes.
Do Baiano me ameaçando com taco.
Da vilinha.
Dele deitado sobre eu.
A voz desaparece.
Fico muda sem palavras.
Forte dispara o coração.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Vassoura e alho!

Minha mãe, 87 anos.
Há dois nesse vai não vai.
Quantas vezes no HU?
Comida só de aviãozinho.
Consegui a cadeira emprestada.
Perdi o emprego no supermercado.
Ninguém aguentava eu saindo sempre pro HU.
O gerente chegou a duvidar.
Sua mãe doente de novo?
E lá vou eu com atestado assinado.
Um ano tudo bem.
No outro me botaram na rua.
Eu e minha mãe de 87 anos.
O namorado me deixou.
Baiano, tão bom, queria casamento.
Homem de igreja, sério, trabalhador.
Ou sua mãe ou eu!
O que você faria?

Banho só comigo.
E quando ela começava a brincar?
Me jogar água?
De birra não levantava o braço.
Me chamava de Eugênio.
Se apertava toda contra a parede.
Eu com a esponja na mão, a água escorrendo.
Chorando.
Ela ria.
Parecia coisa do demônio.
A conta sempre infernal no fim do mês.
De vez em quando recusava comida.
Não abria a boca de jeito nenhum.
O mesmo acontecia com o remédio.
Só eu virar as costas.
Que ela cuspia longe.
Tudo isso rindo de mim.
Dois anos essa a minha rotina.
Passear com ela na rua.
Ouvir no rádio a missa do padre Zezinho.
Aviãozinho de comida.
Vendendo vassoura e alho no Borba Gato.
Olha vassoura e alho!
De casa em casa.
E pensando na mãe.
Eu tava na cozinha ouvindo o padre Zezinho.
Ouvi os dentes tremendo.
Os pezinhos bateram na cadeira de rodas.
Menos de trinta segundos.
Desliguei o rádio.
Fui até o quarto.
Sem espiar fechei a porta.
Assoviei a musiquinha da Globo.
Aquela de fim de ano.
Peguei a bolsa e fechei o portão de casa.
Com o cartão quase acabando, liguei da esquina pro Baiano:
Nunca é tarde pra correr atrás do grande amor.

sábado, 10 de julho de 2010

Sou uma putinha difícil

Sou uma putinha difícil
Não entro no carro se eles tão drogados
Desconto não faço se o cara é bonito
Não fico gemendo
Não libero o tuzinho
Não sinto nenhum prazer na bimbada
Quando eu conseguir a grana
Vou embora daqui
Tudo isso por causa da minha mãe
Que tá em casa passando mal
Há um ano passando mal
Nessa coisa do morre ou não morre
Minha mãe matou a minha vida
Não deu pra continuar com meu namorado
Deixei tudo muito claro
Ele me bateu
No meio da rua
Na frente de todo mundo
Cê sempre foi uma puta mesmo
Tão difícil a gente ouvir essas coisas
Ainda bem até agora dei sorte
As histórias das outras meninas não são nada boas
Quando será a minha hora?
A gente nunca sabe quem é o motorista
Tão dizendo agora que tem até um cara aqui na cidade
Que tá espancando geral
Um cara bonitão
Do seu tipo
E como saber que não é você?
Quem me contou foi a Marta
Eles tavam no motel
Diz que o cara foi um anjo
Quando voltavam
Parou o carro
Desce sua puta!
Ela ficou assustada
No meio do nada
Que cê vai fazer comigo?
Fora!
Arrancou a roupa dela
Bateu com uma barra de ferro
Nas coxas
Nas costas
Na cabeça
Ela dormiu
Diz a polícia que o cara abriu a blusa dela
E continuou dando paulada com o ferro
Com tudo ensanguentado
Como ele teve estômago?
Tem maníaco pra tudo em Maringá
Se não fosse um motoqueiro
Ela ainda tava por lá
Sozinha
No meio da plantação de milho
Cheia de porra no rosto
Por isso que eu digo
Quero o meu dinheiro
Só pra pagar o hospital
Vou desparecer para sempre dessa merda de cidade

terça-feira, 6 de julho de 2010

Treze

Se eu tivesse um revólver
Mataria essa voz
Tem uma voz na minha cabeça
Uma voz que me dá ordens
Essa voz não me deixa dormir
Ela ecoa de um lado
Ecoa de outro
E nunca sai lá de dentro
Feito um sonâmbulo
Insone
Rondando

Se eu tivesse uma faca
Eu cortaria meu peito adentro
Depois esfaquearia meu olho
-talvez o direito primeiro
Enquanto o sangue jorra descontrolado córnea afora
Eu não esqueceria o pulso
-só para garantir
Se me restassem forças ainda deceparia meu pau
Mas isso eu não prometo

Se eu tivesse uma chave
-de moto, de carro, de apartamento, de treminhão
Eu a engoliria
E tentaria engasgar
Quantas vezes fosse necessário
Um controle remoto talvez fosse mais eficiente
Mas a voz não quer chave nem controle
Ela quer algo preciso
Eu preciso encontrar algo para a voz
Ela me manda balançar o braço desse jeito
Se eu falo gritando, assim, ó, a culpa é dela
E ela diminui o tom, olha só, da minha voz quando bem quer
E começa a gritar novamente
Que não há nada nem alguém mais triste do que “O Cão” do Goya
-exceto eu
Que nada no mundo soa tão triste quanto os acordes de "Spiegel im Spiegel" do Arvo Part
-exceto eu
Ela não gosta de vocês de branco
Nem do Gordão
Gordão
Aquele cara que agora dorme do meu lado, né?
Dormia?
Que pena
Gostei dele desde o início
-eu
Ela não
Eles não se identificaram
O gordão e a voz
Gordo filha da puta, ela me disse
E ficou zunindo
Zunindo
Zunindo
Até que eu tive de falar por ela
Gordo filho da puta
Gordo filho da puta
Gordo filho da puta
Depois ela mandou eu pular nele
Pular e bater com os punhos fechados
Não vá quebrar seus dedos, Treze
Pule e puxe a barba, Treze
Corte um pouco para mim, Treze
A ideia de furar o olho do gordo com os óculos dele?
Dela
De quem mais seria?
Duvido que ela pedirá desculpas
Não
Ela nunca me chama pelo nome
Nunca quis tomar um chope comigo
Nunca quis ficar de porre comigo
Eu não passo de um número
Treze
Treze
É assim
Treze aquilo
Treze aquilo
Pegue os óculos do Gordo, Treze
Pegue os óculos e mete no olho dele, Treze
Agora
Sabe o que ela diz?
Que vocês são idiotas
Que a roupa de vocês é idiota
Que vocês estão querendo mesmo é ver meu pau, grande, babando, decepado na guilhotina
Ninguém mais aguenta o branco deles, Treze, fala para eles, Treze
-nessa sala, nessas roupas, no corredor, no banheiro
Se eu pudesse deixar a voz
Você não acha que eu já teria saído daqui?
E deixado ela vagando no meu lugar?
Tudo o que eu quero é que ela cale a boca
Quero parar de tomar esses remédios
E parar de usar essa blusa escrota
Que prende minhas mãos
E só livra minhas pernas e cabeça
Aliás, a voz está mandando eu levantar dessa cadeira
Ficar de pé
E saltar no chão de ponta
E que se me mandarem para aquele quarto sozinho
-novamente nessa semana
Ela entra em todos vocês
E faz ainda pior

segunda-feira, 5 de julho de 2010

No Saleiros

Eu estava no bar. Saleiros. Gosto de lá porque não tem ninguém. Gosto porque posso beber minha cerveja e ouvir blues. Eu estava sozinho. Na mesma mesa em que eu sempre sento, do lado da janela. No fundo do bar. Tinha uma cerveja e um bloquinho em cima da mesa, intacto. Penso num romance. Num casal. Ele, um jornalista de vinte e dois anos. Escrevo. Ela é loira e trabalha numa livraria no centro da cidade. Ele frequenta a livraria pelo menos três vezes por semana, apenas para ver os lançamentos, comprar um ou outro livro, e torcer para descobrir um novo autor. Ela sempre o atende. Eles nunca conversaram sobre outros assuntos, a não ser o preço dos livros. Ele sempre foi tímido. Nunca se livraram da barreira que os separava. Ponto. Não sei como passar daqui. Peço outra cerveja. A mais barata. Desculpa, a voz disse. É uma garota, com uns vinte e cinco anos, loira. Você é o Alexandre, não é? Gostei bastante do seu último livro. Respondo que não, não sou o Alexandre. Tenho um rosto muito popular, digo. Ela sorri. Sabia que você diria isso. Eu também sabia que você estaria escondido debaixo desse boné. Só uma coisa: você não parece ter sessenta e cinco anos. Ela sai. Minha cerveja chega. Na mesa dela há mais três garotas com a mesma idade. Devem ser estudantes. Delas, minha leitora é a mais gostosa. Tem uma bela bunda. Recorro ao papel. MInha personagem não é mais uma atendente. Ela é morena, é uma estudante de Psicologia, Júlia, que quer abandonar tudo para ser cantora. Ela canta na noite, canta samba, Chico Buarque, enfim, ela é foda. Ele viu um show dela, recentemente, e ficou encantado. Escreveu um conto, “Júlia, minha artéria e meu esôfago”, sobre ela e publicou no seu blog, um blog ruim, malfadado, que ninguém perde tempo para ler. De contos idiotas. Ela leu. Ela pensa que ele é louco. Um desses maníacos que, se tudo der certo com sua carreira, ela enfrentará semanalmente após os shows, saindo dos camarins, fazendo o check in no hotel. Você é realmente uma pessoa triste, indaga a loira. Paro de escrever. Fecho o bloco de notas. As amigas continuam conversando. Mas ela está parada na minha frente, me dá um sorriso. Você é tão triste mesmo? Eu não a conheço. Ela não pediu para sentar. E recebe o copo vazio das mãos do garçom com naturalidade. Duvido que você não aprecie nem um pouco do Saramago. Concordo que você deve sambar mal. Ela toma um gole da cerveja. Estou sem graça. Preparo algo para dizer. O último conto do seu livro mexeu comigo, sabe? “Sou uma pessoa triste”. Tive pena de você. Porque você escreveu também sobre a minha tristeza. Eu canto Adoniran Barbosa quando fico bêbada. Mas, ao contrário de você, recito Saramago, embriagada, antes de dormir no banheiro. Ah, é, eu digo. É, ela afirma. Acabei de terminar com o meu namorado. Ela enche o copo dela, deixa a cerveja na mesa. Acabei de terminar o relacionamento. Com o meu namorado. Estou grávida. Não sei se o pai é ele. Tínhamos um relacionamento aberto. Mas me apaixonei por outro. E contei para ele. Ele estuda Letras comigo. Contei que estava apaixonada por outro. Ele nem ficou bravo. Sorriu. Me deu parabéns. Sei lá. Não dava mais para viver assim. Daí veio a notícia do filho. Disse que a culpa era minha. Que eu não tomei a pílula de propósito. Que eu fizesse o que eu bem desejasse. Dele, mais nada. É isso. Eu ia te escrever um e-mail, contando. Mas você banca o recluso, não dá entrevistas. Quem sabe você não quer escrever algo sobre a minha história. Dou um sorriso. Não diga que não gostou do nosso monólogo, ela diz. Foi fácil encontrar você por aqui. Talvez, se você não desse tantas dicas nos seus livros. Fala a verdade, você não quer se esconder. Qualquer um que lê o seu livro sabe que você frequenta o bar. Aliás, um belo bar. Saleiros. Minha primeira vez por aqui. Acho que volto. Mas já consegui o que eu queria. Até sábado que vem, ela diz. Deixa o copo ainda cheio na mesa. Chamo o garçom. Pago a conta. Saio olhando para o chão. Nunca mais entro nesse bar.

Sou uma pessoa triste

Sou uma pessoa triste
Que não gosta de Saramago
Que não sabe dançar samba
Que já foi parar no hospital às quatro horas da manhã após uma tentativa frustrada de suicídio
Sou uma pessoa triste
Que não têm histórias empolgantes na mesa do bar
Que não consegue rir da piada mais engraçada
Que não sai de casa há pelo menos seis meses
Que toma sacolas de remédios e antidepressivos
Que perdeu o emprego por causa de um filho da puta
Que possui dois filhos com a Tânia que é uma puta
Que come frequentemente algumas putas
Sou uma pessoa triste
Que precisa beber descontroladamente
Que sempre esteve no fundo do poço
Que não tem amigos mais felizes ou mais sóbrios
Que nunca sabe a hora de ir embora
Que nunca vai embora até ser o último a ir embora
Que dorme no banheiro bêbado de madrugada
Canto Adoniran Barbosa quando fico bêbado
Recito Ferreira Gullar quando fico bêbado
Quando fico bêbado
-sou uma pessoa ainda mais triste

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Mesa 12

Nunca quis saber dos meus dois filhos. Sabia, sim, que eram dois jovens. Jovens desses jovens de verdade, certamente, não desse novo tipo de jovens que saem andando nas ruas abraçados a outros jovens, porque, afinal de contas, eles vieram de mim, dentro daqui, foi com esse sêmen, com o meu espírito, não é mesmo? E jamais uma coisa dessa, uma curva inesperada, abrupta, aconteceria assim sem mais nem menos. Nem mesmo que o pai deles fosse, digamos, meio afeminado, não acredito que uma coisa dessas, a convivência, seja capaz de vencer a força, o poder do sangue meu que corre nas veias deles. Que são homens e de palavra. Veja, eu nunca, jamais, em nenhum momento, deixei de cumprir minha palavra. Talvez, um dos poucos homens, na terra, capaz de morrer com honra. Claro, não conheço você. Nunca falei com você. Não saberia agora dizer a sua voz. Não porque eu não me lembro, mas porque você, para mim, é indiferente e não me importo nem um pouco com o que você está pensando. Claro que aceito. Uma dose de uísque nunca deve ser negada. Mas eu estava falando da palavra. Da importância da palavra. Da necessidade da palavra. Palavra que eu dei desde o início sempre com clareza: não quero saber deles. A mãe me chegou um dia, era uma sexta feira à tarde, lembro do dia e dos sons que o vizinho fazia enquanto martelava algo na parede que ficava ao lado do local onde eu trabalhava. Das seis em diante, quando ele chegava do trabalho, não faço a mínima ideia da profissão, ele começava a martelar aquela porra e, se há alguma curiosidade que eu arrasto comigo nesses setenta e quatro anos é, de longe, que porra ele tanto martelava na parede. Às vezes imagino aquele japonês pequeno, de chinelo de couro, arrebentando a parede com buracos profundos apenas pelo prazer de sentir a parede e seus novos contornos, completamente esburacada, tal como um muro talhado a balas de revólver, canhões, metralhadoras. Enquanto a mãe, uma mulher sem graça, morena, não era feia, mas não era uma dessas mulheres que você, quantos anos você tem, vinte e dois, sei, então, não é uma dessas mulheres que você, com vinte e dois anos, gostaria de se casar e jurar amor eterno em frente ao padre, condenado, na saúde e na doença, a morrer lenta e vertiginosamente no melhor momento do seu sexo, sabe, eu te falo isso porque só era dois anos mais velho que você, sei das suas noites, quer dizer, imagino, afinal, você não é nenhum desses viados do caralho que caminham em Maringá como se aqui fosse um reino homossexual livre e colorido. É seu, ela disse e sorriu, passando a mão no ventre. Saímos de lá, fui puxando o seu braço, o som do martelo do japonês foi ficando mais baixo, quase surdo, enquanto saíamos da loja de estofado de bancos de automóveis do meu irmão, eu não apertava o braço dela, eu acho, só segurava, de leve, porque sabia que o pior seria em seguida, e não queria que ela se machucasse antes de não ouvir minha resposta. Já na calçada ela me olhou fundo. Talvez algum momento, que tal mais uma dose desse uísque, hem, é, como é mesmo o seu nome, então, resumindo não disse nada, sabe. Eu era jovem. Ela era jovem. Eu não queria arruinar a minha vida. Ela não queria ser arruinada, mas fazer o quê? São dois, ela disse. Dois. Meu Deus. Nunca consegui compreender o que veio depois. Sabe, tipo apagão? Os caras da borracharia cuidavam da mulher, que estava em lágrimas, com o vestido de flores rasgado, com o colo praticamente nu, soluçando num choro sem som algum. Como você deixou isso acontecer é a única pergunta do meu irmão que me vem, com força total à cabeça, mas, pensando bem, não sei se ele falou sobre a situação da moça, de algo que muito bem eu poderia ter feito, talvez fosse eu o maldito que a espancou no meio da rua, fazendo com que ela fosse acudida pelos borracheiros da rua, ou talvez, a ele, ela teria confessado o nascimento dos gêmeos. Acho que não, porque dos gêmeos meu irmão nunca tocou no assunto. A mulher foi embora sozinha, passos lentos, acho que sem olhar para trás, seguindo o compasso das marteladas regidas pelo japonês na casa ao lado. Tem mais uísque?

Plano

Caralho, Celso.
Ontem assisti aquela nossa vitória em Floripa sobre os argentinos.
Você jogou mal pra caralho.
Daí hoje sonhei que estávamos, toda aquela cambada, bêbados novamente na praia.
Gordão, Baiano, Tim Maia.
Com aquelas duas gostosas, lembra?
Mariana, a capoeirista bêbada?
Suelen, a maluca do bar, dando em cima do garçom?
Bicho, defini uma coisa esta manhã.
Nunca tive tudo tão claro.
Vou largar tudo.
Emprego.
Família.
Minhas duas pensões.
Não quero,
Nunca quis saber desses meus dois filhos.
- nem sei se são meus filhos -
Dei um jeito com a minha mãe.
Ela fica com a Maria.
Duas vezes por semana vai passar em casa.
Ajudar nas compras.
Limpar, lavar a roupa, essas coisas.
Cancelei a conta no bar do Moacir.
Fechei a do Meu Pato.
Ainda falta arrumar as cordas do violão.
Comprei uma vara de pescar.
Tô indo no sábado pra Floripa.
Viver dos cardumes.
Do mar.
E do amor.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Júlia, minha artéria e meu esôfago

Do repertório não lembro, como não lembro da voz, nem da coreografia, do arranjo da banda ou da quantidade de músicos espalhados pelo palco do bar em que fui me meter por acaso numa sexta feira em companhia de um amigo. Nós não sabíamos onde morrer em Maringá: aquele nos pareceu um bom local. Dúvida tenho se aqueles olhos, dela, são castanhos claros ou escuros ou azuis ou até, quem sabe, meio esverdeados de acordo com o humor ou o dia da semana. Laranjas? Não lembro se demonstrou antipatia, se incorporou João Gilberto e reclamou do ar condicionado, se atrasou demais o início da apresentação, em aquecimentos vocais delicados, se o público que acompanhava cantando algumas estrofes – acompanhava? – a irritou com uma marcação descontroladamente fora do compasso. Posso imaginar mas não me atrevo, aliás, gostaria de não me atrever mas não consigo. Imagino que no meio do repertório deve ter cantado alguma canção das baianas que se apresentam em trios elétricos, com a multidão engalfinhando-se em volta e gritando – no trio elétrico não no bar –, ou, talvez, que ela estivesse entoando hinos religiosos de seitas xiitas, que na verdade não estivesse cantando, pelo contrário, gritava tresloucadamente em cima do palco recitando excertos bíblicos em meio a uma dessas fogueiras santas com todo mundo depositando dinheiro e fé e cheque e cartão de crédito e vale refeição. Por um momento, uma garota chegou na minha frente, ela dizia alguma coisa, perguntava alguma coisa, não conseguia escutar o que aquela garota tentava me dizer, então o meu amigo colocou a mão no meu ombro esquerdo, eu vi seu sorriso, e vi que ele falava sobre mim, porque ele continuou sorrindo e me balançando, enquanto conversava com as duas garotas e eu permanecia calado, inexpressivo, assim, um desses rostos que a gente não costuma ver de noite de pessoas que praticam o bem, você sabe, está tudo certo, o que está acontecendo, bicho, você nem deu bola para aquela morena, ele disse, ele estava visivelmente irritado, porque você deveria ter dito alguma coisa, como é que você ficou mudo do nada, vem, vamos, vem, ele foi me puxando uns oito passos para trás. Foi quando ele, pela primeira vez, começou a notar algo estranho comigo porque eu já não andava, não ouvia e não queria sair, aproveitei que me soltou para dar oito passos pra frente novamente. Havia uma mesa vazia, no meu lado esquerdo, onde depositei a cerveja, praticamente cheia, e algum outro aproveitou para bebê-la – meu amigo? – porque eu nunca mais encontrei a garrafa, desde que voltei a tentar me concentrar no palco, onde o vestido branco da Júlia – era esse o nome dela, era esse o nome que eu ouvi dizer na mesa, que agora não estava mais vazia – movia-se como num dos versos de Bandeira. Lentamente, recuperei o fôlego a fala o paladar e o silêncio, por sua vez, desapareceu como um desertor cubano em desespero. Voltei a ouvir. Era Júlia junto do palco, dançando, sem errar a letra, com boas melodias, assegurou-me o meu amigo, era Júlia quem te paralisou o esôfago, a artéria, o coração, ele disse, zombando-me, era Júlia quem te deixou fora de si, foi o sorriso ensurdecedor, foi aquele olhar, não foi, pega essa caneta, toma aqui, ó, pega a caneta que eu estou te dando e escreve um dos seus poeminhas nesse guardanapo e entrega pra ela, vai. Vá pro inferno, retruquei. Fui pegar minha cerveja.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Lourenço Mutarelli - Entrevista

14:50 horas. Desço do metrô na estação Ana Rosa. É sábado, não há trânsito nas ruas nem tumulto nas escadas rolantes: São Paulo não se parece com São Paulo. A passos céleres, caminho alguns quarteirões rumo ao apartamento do cartunista, escritor e agora também ator Lourenço Mutarelli, 46, um dos meus autores brasileiros prediletos.
O primeiro desafio? Preparar-me para conviver, por alguns instantes, com seus cinco gatos - nutro um ódio descomunal, no meu interior, por esses animais. O segundo desafio? Não atrasar. Mutarelli tem o costume de ser pontual em seus encontros. Como marquei a entrevista para as 15 horas, ainda tenho 10 minutos.
Entre o metrô e a residência de Lourenço Mutarelli existem duas boas livrarias. Não resisto. Entro na primeira. Procuro. Olho. Não encontro. Chamo o atendente.
Quero uma edição de “O Cheiro do Ralo”. Ele me diz que está esgotada, não tem um exemplar há muito tempo. Saio decepcionado. Estou com os quatro livros de Mutarelli na bolsa, menos “O Cheiro do Ralo”.
Na segunda livraria, minha esperança novamente é despertada. Uma mulher responde que sim, tem a obra para me vender. E vai procurar. E volta de mãos vazias. Desisto. Saio da livraria. Caminho mais um pouco. Paro na frente do prédio, cujo número consigo lembrar muito vagamente.
Mas não é necessário conferir o papel que levo no bolso. No segundo andar do edifício, a prova de que o autor reside ali: um gato descansa na janela, como um suicida hesitando se arremessar. Entro no prédio ao som de fortes trovões. Olho para o céu. Nem havia reparado: é o começo da chuva.
Mutarelli abre a porta, estende a mão, me dá um sorriso. Com os pés, segura um dos gatos que tenta desertar corredor afora. Entro. Desvio de um outro gato. A sala é dominada pelos felinos e por uma absurda quantidade de livros. Sentamos. Ele, no sofá encostado na janela; eu, no outro sofá.
Tiro da bolsa meus livros, um bloco de notas e duas canetas. Antes que eu dispare a primeira pergunta, Mutarelli sugere um café. Vamos para cozinha, dois viciados em cafeína.
Infelizmente, eu digo, tive um problema com meu gravador e não vou registrar a nossa conversa. Eu gostaria tanto de guardar um registro, confesso. “Pôxa, que pena”, ele lamenta, enquanto prepara a bebida. Para o escritor, o gravador tem sido um recurso de extrema importância ultimamente.
“Minha memória é muito ruim. Esses dias, eu estava no carro e surgiu uma ideia muito boa. Mas esqueci. Lembro, apenas, que era muito boa. Agora, sempre saio de casa com o gravador”, diz, explicando a diferença existente entre o tradicional bloquinho de notas: “Quando eu gravo os textos, eles ficam mais espontâneos”. A outra função do gravador é auxiliá-lo a decorar as falas das peças teatrais que encena. Em cartaz com “Música para ninar dinossauros”, escrita e dirigida por Mário Bortolotto, Mutarelli teve apenas dois meses para decorar suas falas. Nesse período, quem foi seu maior companheiro? O gravador.
Além dos gatos, Mutarelli divide seu apartamento com a mulher – com quem está casado há 17 anos – e seu filho. A vida conjugal modificou a organização de sua produção artística. Ele adaptou sua rotina à de sua mulher e, enquanto ela saía de casa para o trabalho, Mutarelli retomava seus textos e desenhos.
Compartilhando a mesma opinião de Jorge Amado, o período matutino é o mais produtivo para o autor de “O Cheiro do Ralo”. Curiosamente, Lourenço Mutarelli não lê nenhum dos jornais espalhados na mesa da sala de jantar. À sua disposição, os exemplares da Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo permanecem intocados. “Minha mulher é assinante e separa os meus assuntos prediletos: medicina e página policial”.
A crítica

Quanto aos textos publicados sobre suas obras, o escritor enfatiza: “Não leio as críticas sobre meus livros”. Esse afastamento da produção crítica, segundo ele, deve-se ao fato de ser constantemente atacado pelos jornalistas e especialistas em literatura.
“É burrice achar que eu sempre vou fazer um livro melhor do que o outro. A Folha de S. Paulo, desde que recusei um trabalho que a empresa me ofereceu, sempre me ironiza, me ataca e desvaloriza a influência dos quadrinhos que eu levo para os livros”, diz.
E a Folha pegou pesado mesmo. Lembro Mutarelli da forte crítica publicada pelo jornal no lançamento de “A Arte de Produzir Efeito sem Causa”, publicado em 2008 e que venceria o 3º lugar do Prêmio Portugal Telecom no ano seguinte.
Na resenha veiculada, Alcir Pécora, professor de literatura da Unicamp, considerava o livro como “um gibi sem desenho”, classificou o enredo como “bobo” e ainda afirmou compreender a situação do leitor que, impaciente, “deixasse de lado o livro”. “Aquela crítica me travou. Eu estava no meu primeiro bloqueio criativo quando li, e não consegui escrever mais nada por um tempo”, lembra Mutarelli.
O primeiro bloqueio criativo aconteceu em 2008, durante o período de um mês que passou nos Estados Unidos, a convite da Companhia das Letras, para escrever uma história de amor que se passa na cidade. “O livro que eu fiz para a série ‘Amores Expressos’ é um livro de muitas divergências. Os editores acharam a obra muito confusa, me pediram para mexer no original e eu aceitei. Sinto, no entanto, que as mudanças prejudicaram a história. Eu não gosto desse livro”, diz, ressaltando que, no ano que vem, quando a editora pretende lançá-lo, voltará ao texto para modificá-lo. O motivo da crise?
“Acho que a falta de grana me tirou do foco do livro”, arrisca. No difícil mercado editorial brasileiro, mesmo já sendo um autor respeitado, Mutarelli não consegue viver apenas de literatura. “Com a grana que eu ganho vendendo livros, daria apenas para eu e minha família vivermos um mês”.
Ao mesmo tempo em que ignora as críticas negativas, Mutarelli também não se sente confortável ao ler os comentários que enaltecem suas obras: “Eu me sinto supervalorizado quando falam bem sobre meus livros”, conta. Na última edição da Festa Literária de Parati, a Flip, em 2009, o cantor, compositor e também escritor Chico Buarque elogiou, durante sua palestra, o estilo narrativo de Mutarelli, que carrega a influência dos quadrinhos para a literatura.
O escritor paulistano já sabia que Chico havia lido “O Cheiro do Ralo”. Um amigo em comum dos dois, que trabalha com produção de shows, apresentou os textos de Mutarelli ao escritor e mito vivo da MPB. “Foi bacana saber a opinião do Chico. Ele é um cara que eu respeito muito, mas isso não me deixou mais seguro no que faço”.
O escritor

O texto de Mutarelli é conciso, veloz, desesperado. Em diversos momentos, o autor escreve apenas uma palavra em uma linha, o que dá uma dinâmica bem mais rápida na condução da história. “Eu escrevo de ouvido. É um ritmo. Gosto de como a imagem se transforma no texto, mas quero fugir disso”.
Concernente à própria escrita, algumas coisas mudaram para Mutarelli entre 2004 e hoje. “Escrever era fácil. Agora, não é mais”, revela. Felizmente, para nós, leitores, não é uma crise de criatividade ou algo do gênero. Seguindo as manias e as neuroses incomuns de seus personagens, o escritor revela ter dificuldades em escrever, simplesmente, porque o teclado de seu novo laptop é irritante. “O teclado é pequeno, sempre erro ao digitar o texto, tudo isso me incomoda muito”.
Observando sua escrita de seu último livro, “Miguel e os Demônios” (2009) e “O Cheiro do Ralo” (2004), há algumas diferenças. Nas suas primeiras obras, “O Cheiro do Ralo” e “Jesus Kid” (2004), o autor usa, por exemplo, a expressão “viado”. Em outras obras recentes, publicadas pela Companhia das Letras, a expressão está de acordo com a norma culta da língua portuguesa: “veado”. Pergunto a Mutarelli sobre a mudança e ele fica surpreso. “Nunca prestei atenção nisso!”, diz. Sobre a troca realizada pela editora, ele afirma não se importar, embora considere “veado” uma expressão muito “afrescalhada”.
Outra mudança pode ser percebida na prosa poética apropriada pelo autor. “No começo, meu texto era muito mais poético”, reconhece. Em “O Natimorto” (2004), por exemplo, há passagens compostas basicamente por poesia, e é um romance. “Hoje, estou buscando uma escrita sem efeito”, diz.
Pergunto, então, para Mutarelli, a razão de nunca ter escrito um poema. A resposta do escritor revela o cuidado com sua proposta artística inovadora. “A poesia está tão desgastada, saturada, que é difícil dizer algo que já não foi dito. É difícil trazer algo novo”. Curiosamente, ele não se considera um escritor: “Acho que eu preciso me profissionalizar, ter uma rotina para escrever, publicar um livro por ano”, diz.
O Cheiro

Quando recebeu a proposta para vender os direitos de “O Cheiro do Ralo” para o cinema, Mutarelli nunca imaginou que a versão das telonas pudesse arrebanhar uma nova legião de fãs interessados por suas histórias e pela própria obra: “Achei que ninguém mais fosse atrás do livro”, confessa.
Nesse momento da conversa, ele sugere que peguemos mais um café. Vamos para a cozinha. Enquanto ele se dedica ao preparo, digo ao escritor que ler suas obras é observar, em cada enredo, a repetição constante da rotina de seus personagens.
Por quê? “A rotina é importante para mim. Ela é ruim, ela escraviza e mostra o quanto somos ridículos”, diz. A repetição das atividades diárias de seus personagens funciona, nos livros, como um recurso cômico muito peculiar de Mutarelli. Para o leitor, é impossível não contemplar as irascíveis ações do dia a dia sem esboçar um sorriso. “É um humor meio negro. Quando escrevo, também dou risadas”, confessa.
Outro tema recorrente em seus livros é o relacionamento familiar conturbado vivido pelos personagens. Com exceção de Jesus Kid, todas as histórias revelam as brigas, os desentendimentos e o desgaste da relação familiar. A estrutura da família, conturbada, foi, curiosamente, vivida pelo narrador, durante a infância.
“Hoje, com a minha nova família, nossa relação é muito melhor”. Então, é recorrendo a alguns aspectos autobiográficos que Mutarelli consegue retratar os problemas conjugais que, por sua vez, justificam a profundidade psicológica dos personagens de seus enredos, geralmente rocambolescos. O café já está quente. Ele serve a bebida na minha xícara. Mutarelli caminha equilibrando sua caneca nas mãos. Eu ando com o bloco de notas, a caneta e a xícara. Quem se dá mal no trajeto entre a cozinha e a sala é um de seus gatos, que acaba tingido por um tanto de café derramado. Mutarelli pede perdão ao felino.
Tomo o último gole da minha bebida. O café acabou. Encerro a entrevista. Pego os quatro volumes que trouxe, entrego a Mutarelli e “exijo” que sejam assinados. Na dedicatória, ele faz um autorretrato na minha dedicatória: raridade de colecionador. Enquanto Mutarelli assina os livros, lembro de uma questão importante, que quase esqueço num canto isolado da minha fraca memória. Você acha que sua obra vai resistir ao tempo? Lourenço Mutarelli para.
“Nunca tinha pensado nisso”, responde. Olha para São Paulo, talvez à procura de mais uma resposta, com a serenidade de um monge tibetano. Noto, pela primeira vez, a semelhança dele com o “homem da propaganda do Bom Bril”, como ele mesmo descreve o protagonista de “O Cheiro do Ralo”.
Para Mutarelli, que há poucos minutos atrás afirmou jamais ter tido “a pretensão de escrever uma obra de arte”, a resposta é sim, sua arte resistirá ao tempo: “‘Transubstanciação’ foi relançado em 2004, uma década depois da primeira edição e fez mais sentido na época”, recorda.

Mutarelli encerra a sessão de autógrafos e me entrega os volumes. Coloco tudo na bolsa. Agradeço. Agradeço o café. Agradeço a entrevista. Agradeço os livros escritos e as boas horas de literatura que ele me proporcionou. Já estou em frente ao elevador. Agradeço novamente. Volto para apertar sua mão. Deixo o edifício com alguns pingos de chuva molhando-me a cabeça. Caminho. Paro um instante. Volto para a frente do prédio: o gato branco, gordo, continua contemplando São Paulo do 2º andar.
Publicada em O Diário do Norte do Paraná.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dedé

Bem moço eu era.
Assim, lembro quase de tudo.
Da cara dele com todos os detalhes:
Com espinhas, feio, orelhas de abano.
O amigo do papai mais presente que o papai.
No domingo quem fazia o churrasco?
Temperando a carne?
Suando na churrasqueira sem camisa?
Nunca entendi direito como entrou lá em casa.
Se pela minha mãe.
Se pelo meu pai.
Gostava de me pegar no colo.
De fazer cosquinha na minha barriga.
E assoprar com tudo no meu umbigo enquanto eu me debatia.
Mamãe sempre sorrindo, dizendo: “Para, Baiano!”
Eu já era moço.
O último a ser pego no esconde-esconde.
O rei dos esconderijos inusitados.
Vencendo a brincadeira na vizinhança.
Sei que um dia.
Numa tarde, aliás.
Era tarde e papai não estava.
Era tarde e mamãe dormia.
Baiano apareceu no meu quarto e mostrou uma galinha.
“Conhece a Dedé?”
Bem moço eu era.
Mas gostava de galinha.
Baiano olhava pra mim e sorria.
Peraí.
Ou sou eu que to imaginando ele sorrir?
“Qué brincar com a Dedé?”
Deixei o carrinho na cama e corri atrás da galinha.
Acho que gritava.
Gritava como criança feliz.
“Dedé! Dedé! Dedé!”
O Baiano sempre afastava a galinha.
Quando eu chegava mais perto dela, ele aparecia.
Pegava ela no colo e levava pra mais longe.
Foi assim que acabamos no banheiro da empregada.
Era um lugar pequeno com pia e vaso sanitário.
Só a empregada usava.
Atrás do vaso, a galinha me olhava.
Assustada.
Onde tava o Baiano?
Bem atrás de mim.
Parou do meu lado e disse:
“Vem”.
Entramos.
Ele fechou a porta.
Apagou a luz.
E só deixou eu brincar com a Dedé, depois de brincar com o troço dele.

sábado, 1 de maio de 2010

Maxwell, antes tarde do que nunca


Cuidado ao se aventurar na leitura de “Até mais, vejo você amanhã”. Por mais que a linguagem e a história sejam simples, o romance do jornalista norte-americano William Maxwell é uma boa armadilha. Basta notar o elogio incomum que John Updike, um dos mais relevantes escritores da língua inglesa contemporânea, fez à obra: “Um livro encantador, completamente distinto, em sua forma, de qualquer outro que eu tenha lido.”
William Maxwell, morto em 2000, publicou, ao todo, doze livros: seis romances, três volumes de contos, um de memórias, um de literatura infantil e outro reunindo seus melhores artigos. Durante quatro décadas, ele trabalhou como editor da prestigiosa revista New Yorker, dedicada à literatura, música, teatro e artes plásticas.
No cargo, mantinha contato constante com críticos de arte e literatos, e veiculou, na revista, textos escritos por J. D. Salinger e Vladimir Nabokov. Talvez por influência do jornalismo, William Maxwell absorveu a concisão e a clareza em sua escrita. Em “Até mais, vejo você amanhã”, o autor explora a narrativa límpida, rápida, descrevendo as cenas com detalhes essenciais.
Publicado originalmente em 1980, o livro venceu o National Book Award e a Howells Medal da Academia Americana de Artes e Letras. A história se passa na década de 1920, na zona rural de Lincoln, no Estado de Illinois, num ambiente extremamente pacato. E, mesmo com a ausência de violência no local, o meeiro Lloyd Wilson é assassinado com um tiro de pistola.
Maxwell, felizmente, não investe no enredo policial. Sua proposta é mais elaborada. Cinquenta anos depois do crime, um homem passa a reconstituir o enredo, os personagens e o espaço daquele momento. Esse homem – o narrador –, na época do crime, era um amigo muito próximo do filho do assassino. Mas, depois da tragédia, os dois se separaram e nunca mais trocaram palavras entre si.
A reconstituição dos ambientes familiares, das residências e das tensões nas famílias do assassino e do assassinado, dois vizinhos de fazenda, se dá por meio da criatividade no narrador, que não teve acesso aos mínimos detalhes ou às conversas entre os personagens.
Ele recompõe, então, sobre o motivo da tragédia, que seria o caso extraconjugal da mulher do assassino com Lloyd Wilson, o meeiro assassinado. Após observar seu casamento ir por água abaixo, o assassino entra num estado de loucura e dispara contra o seu vizinho, amigo e traidor.
Da ignorância ao domínioQuando John Updike escreve que nunca leu algo semelhante, no que concerne à forma, podemos confirmar a novidade da proposta de William Maxwell: conduzir seu narrador da ignorância ao pleno domínio da situação e dos envolvidos, direta ou indiretamente, no assassinato. Como jornalista, Maxwell utiliza o narrador partindo de informações reais, no universo da ficção, sobre o assassinato.
E, como escritor, se apropria dos recursos artísticos, em que tudo é possível, para soltar a imaginação sobre o crime. Nessa investida, em que o narrador reconstitui as cenas de sua memória, o autor nos dá alguns conselhos para não confiar, integralmente, no relato, pois “ao falar do passado, mentimos a cada respiração”.
Na mistura de realidade e imaginação, Maxwell abre o jogo com o leitor: “Se alguma parte da mescla de verdade e ficção que virá a seguir parecer pouco convincente ao leitor, ele tem minha permissão para desconsiderá-la”. Ignorando ou não o convite do literato, “Até mais, vejo você amanhã” é uma saborosa leitura.
Publicada em O Diário.

Ubaldo entre a vida e a morte

Novo livro do escritor baiano, “O albatroz azul” remete ao seu clássico “Sargento Getúlio” e traz boas doses de humor e lirismo

Enquanto todos acreditam no nascimento de mais uma mulher, Tertuliano Jaburu está convencido: será um homem, será o seu primeiro neto. Em sigilo, providencia roupas azuis para vestir, com dignidade, o novo integrante da família. Afinal, macho que é macho não pode, jamais, nascer de roupa rosa, pois “sempre estarão sujeitos a ouvir dos desafetos a frase acabrunhante: ‘tu nasceste de cor-de-rosa, infeliz, cala tua boca’”.

É com o nascimento de Raymundo Penaforte, nome cuidadosamente providenciado pelo avô, Tertuliano, que João Ubaldo Ribeiro inicia seu novo romance, “O albatroz azul”. Nas 236 páginas, o baiano compõe sobre os personagens da Ilha de Itaparica, local onde o escritor nasceu e escolheu para eternizar em algumas de suas obras, como “Viva o povo brasileiro”.

A vida, em “O albatroz azul”, é o tema inicial. A morte, porém, logo aparece na história. Além de estar certo sobre o sexo da criança, o personagem Tertuliano Jaburu tem a certeza de que vai morrer em pouco tempo. Assim, aproveita para providenciar os detalhes do batizado de seu neto e trocar as últimas palavras com os amigos e algumas pessoas que admira, mas nunca teve oportunidade de conhecer pessoalmente.

Ao leitor de João Ubaldo é praticamente impossível não aproximar “O albatroz azul” de “Sargento Getúlio”, livro que já é considerado um clássico da literatura brasileira contemporânea. Escrito em 1971, quando o escritor baiano tinha apenas 30 anos, “Sargento Getúlio” reflete a lealdade e a determinação do anti-herói Getúlio Santos Bezerra, que trabalha como capanga de um influente coronel. Na história, Getúlio cumpre a ordem de transportar um prisioneiro político entre duas cidades, mas, durante o trajeto, a situação muda: se entregar o preso, conforme o combinado, seu chefe não assumirá a responsabilidade pelo sequestro e ordenará que seu capanga seja morto. Mesmo sendo avisado por outras pessoas de que será assassinado caso consiga cumprir a missão, o leal sargento Getúlio não abandona seus planos. A morte? Não importa. Ele insiste em honrar a promessa feita ao chefe.

Dessa forma, tanto em “Sargento Getúlio” quanto em “O albatroz azul”, o personagem principal segue em direção à morte, sem medo, desespero ou agonia. É possível comparar o enredo dos dois livros, mas não a linguagem de João Ubaldo. Enquanto a escrita do clássico é intensa e caótica, em sua nova obra a opção é por uma narrativa serena, pausada, mas jamais entediante.
As variações linguísticas, apropriadas pelo autor baiano, permeiam as páginas de “O albatroz azul”. Na fala dos personagens da Ilha de Itaparica, o escritor retoma sua característica mais forte: o bom humor. Seja nos divertidos ditados populares, construídos sempre com rimas interessantes e nas situações peculiares vividas pelos personagens, o livro garante sorrisos ao leitor.

E arrancar sorrisos inesperados é um dos maiores talentos de João Ubaldo. Claro que ele não é sempre bem sucedido. Em seu último livro de crônicas, “O rei da noite”, cinco ou quatro histórias são realmente boas, entre elas “Alpiste para as rolinhas” – que mostra um inusitado costume do vizinho de João Ubaldo, o recluso escritor Rubem Fonseca . As outras três dezenas de histórias são indiferentes, com sátiras e enredos fracos.

Felizmente, esse não é o caso de “O albatroz azul”. Aqui, o escritor baiano aponta para os mistérios e as questões da vida e da morte, sem perder o lirismo e o humor.
Publicada em O Diário.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

No tuzinho não

Com 14 anos já era assim.
Ele assanhado com as mãos em cada parte da minha perna.
Joelho.
Beijinhos na orelha.
Lambidinhas na orelha.
Na pontinha, sabe?
Ele vinte e cinco anos mais velho.
Perdido no crime desde aquele tempo.
Bem rapidinho colocava lá dentro.
Na minha pititita.
Pra onde o pulso dele ia?
Todinho enfiado em mim?
Ai, que deu medo.
Um pulso grosso.
Me chamava de amor.
Tirava aquela coisa grande e gosmenta.
Não o pulso.
Aquela outra coisa.
Batia de leve na minha cabeça enquanto eu abocanhava.
E me colocava no colo.
Pocotó.
Pocotó.
Pocotó.
Vem, meu amor.
Como eu ia.
Tudo isso pra eu ficar de cachorrinho no final, sabe?
Pocotó.
Pocotó.
Pocotó.
Eu até que gostava.
Fazia um pouco de cosquinha.
Mas de repente ele entrou no buraco.
Na coisa.
Lá, apertado.
Minha vida ali em desespero.
Sangrei toda a alma.
Quase dois meses sentindo aquela coisa dentro de mim.
Dentro do buraco que até então eu só usava para despejar.
Nunca para entrar nada.
A porta de trás sempre só pra saída.
E pocotó.
Pocotó.
Pocotó.
Com meu segundo namorado deixei tudo muito claro.
Não na portinha de trás.
Jamais.
De nada adiantou.
Se eu bobeava, lá vinha ele.
Com tudo.
De uma só vez.
E como reclamar na hora do amor?
Sorrindo alucinado olhando pra mim.
Eu, a mulher da vida dele.
Durante 4 semanas.
No terceiro namorado bem claro deixei.
Sexo sim.
No tuzinho não.
Bem respeitoso o Manolo.
Mais jovem.
Tímido.
Um pouco gordo é verdade.
Mas de grande coração.
Eu que mexia nele.
Colocava a mão dele em mim.
Eu contei do dia no Parque do Ingá?
Ai, que coisa de criança.
Tava tudo bem.
O trauma passado.
Ficamos dois anos.
Depois não deu mais.
Ele sempre com sangue no zóio.
Sexo, sexo, sexo.
Viciou, coitado.
Tô viciado no cê, ele dizia.
Na hora da bimbada sempre fogoso.
Tava lá normal.
Sem avisar escapou pro buraco de cima.
No tuzinho não, gritei.
Aí ele não me largou.
Pegou com mais força.
Me segurava pelo ombro.
E ia com tudo.
Três vezes sem parar.
Pocotó.
Pocotó.
Pocotó.
Três vezes no tuzinho.
Por Deus.
Então acho que é por isso.
Quer dizer.
Acho, né?
Eles, os homens, nunca vão entender.
Cê nunca me fez esse tipo de proposta.
Ou coisa parecida.
Desisti deles pra sempre, sabe?

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Tchau bebê

O nome?
Confesso que nem tinha escolhido.
Eu tão moça.
Não saberia cuidar de criança nenhuma.
Cê imagina?
Como tratar com carinho?
E a escola?
Com que dinheiro comprar fralda leite roupinha?
Tava apavorada.
Quem me conhece viu.
A barriga crescendo.
O medo.
O desespero.
Tudo piorou quando fiquei sozinha.
Assim.
Nunca soube quem era o pai.
Podia ser o Baiano.
Podia ser o Antônio.
Podia ser o Bode.
Nunca fui mulher de um homem só.
Sempre tinha mais de um ovo na minha cestinha.
Não gosto de ficar sozinha.
Aí perdi o emprego.
Me despediram das Lojas Americanas.
Entrei fundo na bebida.
Era cachaça todo o santo dia.
Cachaça no Bar do Moacir.
Cerveja no Bar do Moacir.
E torcida de pimenta e queijo.
A primeira a chegar bem cedo.
Seis da tarde.
A última a sair.
E depois não acabava.
Ia direto pro Meu Pato.
Já ia meio bêba.
Sempre saindo do Meu Pato às quatro ou cinco da manhã.
Carregada.
Por quem?
Baiano.
Bode.
Antônio.
Daí cê já viu né?
Depois do bar nada recordo.
Liguei uma vez pro Baiano.
Tô vomitando demais eu disse.
Acho que tô grávida.
Sabe o que ele fez?
Desligou na minha cara.
Fiz o teste.
Positivo.
Eu grávida e desempregada.
Comprei umas pílulas pra abortar.
De nada funcionou.
Um enfermeiro dum hospital de Sarandi que me vendeu.
Amigo de amiga.
Tomei chá de canela quase todo dia.
Enfiei o controle remoto inteiro dentro de mim.
Com medo coloquei o salto da sandália.
Ô criança mais difícil de sair.
Tudo isso e eu tava sem emprego.
Ninguém quer uma grávida no trabalho.
O jeito foi esperar.
Não fui no médico.
Ninguém veio me visitar.
Ajuda recebi do vizinho.
Nos últimos dias me trouxe umas compras.
Disse que não preciso pagar.
No meio da noite senti aquela dor.
Eu sabia que era a criança.
Foi coisa de desespero.
Abri as pernas com tudo.
De uma vez só.
No lençol mesmo ele surgiu.
Ele.
Puxei o moleque com força.
Sem choro.
Achei que fosse desmaiar.
Nunca mais quero passar a dor de novo.
Que horrível.
Sangue pra todo o lado.
No lençol no rosto e nas pernas do bebê.
Sangue na minha mão.
Deixei o corpo na cama.
Dormi acho que por uma hora.
Acordei.
Peguei o corpinho no colo.
Ele não tinha a minha cara.
Não parecia nenhum dos possíveis pais.
Não tinha rosto de nada.
Fui pra cozinha meio mancando.
Deixei o corpo na mesa de madeira.
Alcancei a faca e cortei o cordão fedido.
Peguei o bebê pela perninha.
Levei para o quintal.
Com a pá cavei um buraco na grama.
Ajoelhei.
Rezei um pai nosso.
Depois uma salve rainha.
E joguei ele dentro da cova.
De costa.
Tchau bebê.
Pensei que todos os meus problemas tavam enterrados.
Mas não.
Começou a doer muito.
Dor de todo o tipo.
De toda a forma.
Facas espetadas em cada parte do meu corpo.
Não aguentei.
E vim pra cá.
Já tô cansada de ficar deitada.
Da comida sem gosto.
Só esperando cêis me darem alta.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Não demora?

21:08.
Tão tarde da UEM.
Ai, que ainda bem não tem aula.
E se?
Quem sabe.
Uma só?
Avenida Brasil.
Só espiar.
Loira, morena e ruiva.
Saem do bar.
Todas de mini shorts.
Como adoro as pernas.
E se?
Qual delas?
Hum.
Dou a volta no quarteirão.
Merda.
Bem na hora que tem carro passando.
Não paro.
Dou outra volta no quarteirão.
Viro à direita.
Que azar.
Agora tem um Palio na frente e essa caminhonete atrás.
Eles me conhecem?
Anotaram minha placa?
Outra volta no quarteirão.
Ah, é agora.
Ninguém atrás de mim.
Nem do outro lado da rua.
Dedo em riste, vidro fechado, eu aponto.
A loira olha pra mim.
Eu?
Aponto para a do lado.
Quero a ruiva.
A ruiva parece confusa.
A loira me aponta a ruiva.
Olho para a morena e ela aponta para si mesma.
É, você mesma, eu balanço a cabeça.
Pode ser.
As três são gostosas. E já tem carro vindo atrás de mim.
Ela me encara com um sorriso.
Ai, adoro esse shorts jeans curto.
Tenta me enxergar melhor.
Eu uso óculos.
E boné encobrindo minha testa e sobrancelha grossa.
Quanto é o programa?
É cinquenta o completo.
Ela sorri.
Gostosa.
Hum.
E a chupetinha?
A chupetinha é vinte e cinco, e com camisinha.
Hum.
Dá pra fazer só por quinze?
Ham? Fala um pouco mais alto?
Tô ouvindo Oasis bem alto.
Dá pra fazer a chupetinha por quinze? Eu tenho camisinha.
Ela me olha.
Quer ver se sou feio.
Minha última namorada me achava feio.
Minha professora do jardim de infância me achava feio.
Meu irmão, esses dias, disse que sou feio.
É rápido?
Como assim, eu pergunto.
É rápido? Não demora?
Acho que ela gostou de mim.
Não, acho que não demoro.
Sorriu, abriu a porta e disse então vamo.
Onde a gente vai?
Vamo na rua de trás.
Tá.
Por que você perguntou se eu demoro?
Ah, tem gente que demora demais, né?
Ah, é? Muito?
Demoram tanto que dá cãimbra de ficar batendo, e cãimbra na boca.
Cãimbra na boca? Pôxa!
Na maioria das vezes eles tão bêbados.
É, né? O álcool dá uma atrasada.
Atrasa demais!
Por isso é bom ficar na rua até meia noite, né?
Meia noite só tem bêbado e tranquêra.
Ah, é?
É.
Assim, todo mundo que procura a gente tem alguma coisa.
...
Você sabe.
...
Tem alguma coisa.
...
Mas todos, cê imagina, não sei qual é a profissão, e entro no carro.
Hum.
Não quero saber, mas vai que o cara é traficante?
E você já se envolveu com gente barra pesada?
Já.
Como foi?
Assim. Não é preconceito.
...
Tenho amigos pretos.
Ham.
Mas só preto me sacaneou.
É?
É. Um dia um me deixou no contorno sul e tive que voltar andando.
Caralho.
É. Outro me levou pro meio do mato. Dois meses atrás.
...
Sujeito estranho, jeito de drogado.
Hum.
Me levou pro meio do mato. Disse que era fetiche.
...
E pimba!
Caralho.
Depois me deixou sozinha. Nem me pagou.
Por sorte a polícia me buscou.
E não me abusaram.
A polícia abusa de você?
Sempre querem alguma coisa, né?
Ou noite completa pro cara que tá casando.
Ou chupetinha pra fazer a ronda mais segura.
Cê já viu, né? Se não fizer? Eles te marcam.
Aqui é Maringá.
A polícia é treta.
Direitos humanos aqui não existem.
Estaciona ali atrás da Saveiro.
Atrás, não. Na frente.
Ela já está com a camisinha nas mãos.
Assoprou a pontinha.
Com a mão esquerda pega em mim.
Sorri.
Tenta me enxergar por trás do astigmatismo e da minha forte miopia.
Me chama de amor.
Engole com força.
15 minutos depois diz que deu câimbra. No braço.
Prometo ser rápido.
Passo a mão nas costas dela.
Na bunda.
Mas gosto mesmo é da perna.
Da perna naquele shorts curto jeans.
Gostosa.
Que delícia.
Dou um tapinha na bunda.
Ai, que gostosa.
Ai.
Ai.
Dou outro tapinha.
Delícia.
Gostosa.
E pimba!
Enrolo a camisinha usada.
Jogo fora da janela numa árvore.
Subo a bermuda azul.
Minhas bermudas são sempre azuis.
Ela pergunta minha idade.
Eu minto.
Não digo que tenho 22.
Ou que sou jornalista.
E que sou formado em Letras.
Respondo a questão: 20.
Por isso essa cara de novo.
Você acha?
Eu acho.
Qual o seu nome?
Marta.
Você mora aqui?
Perto de Sarandi.
Hum.
Gostei da chupetinha, Marta.
Acho que volto para a gente fazer um completo, que tal?
Volta sim, amor.
Posso te deixar aqui?
Claro.
Deixo Marta na rua de trás.
É menos movimentada.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Tormento do Abílio

Seu padre eu vim aqui pra me confessar.
Não sou dessa paróquia.
Frequento a do Jardim dos Pássaros.
Conhece o Padre Janílson?
Não consegui confessar com ele.
Nem com os amigos.
Não tenho dormido direito.
O tormento diário da minha existência.
O que eu falo só o senhor me ouve né?
Sem Maria anjinhos ninguém vai nunca saber né?
É assim.
Direto.
Vou falar de uma vez.
Deus tem aparecido nos meus sonhos.
O próprio.
Eu sei que é ele porque ele me diz.
Vem cercado por um monte de anjinhos.
Falando Aqui em cima na terra prometida não tem lugar pra você Abílio.
O que eu fiz ele diz não tem perdão.
Quando minha mulher saiu de casa logo arranjei outra.
Nem uma semana.
Amor com amor se cura.
Senão vira doença.
Apaixonada bem bonita dizia que me amava.
Junto com ela veio a garota.
Doze aninhos.
Loira como a mãe pele clarinha.
Sempre no banho esquecia a toalha.
Eu levava porque a mãe não desgrudava do fogão.
Mas daí fui notando algumas coisas.
Tem um espelho na frente da pia.
Se a porta fica um pouco aberta dá pra ver lá dentro.
E só espiei porque ouvi os gemidinhos.
Cada vez que eu entregava a toalha ela estendia a mão direita pra mim.
Enquanto a esquerda ia lá pra pititita dela.
Tudo acabava com o risinho abafado pela porta que batia com força.
Isso uma vez.
Isso duas três vezes.
Isso vinte vezes.
Olha.
Tô até suando de nervoso.
Em seis meses eu já tinha sonhos com ela.
Sonhava mas claro pensava nunca jamais tô fora.
Sabia do pecado.
É crime de polícia e cadeia né?
Num dia lá a menina tava doente.
Não levantava pra ir na escola.
Era bem quarta feira.
No dia em que não trabalho.
Fiquei de cuidar da menina.
Bem carente não conheceu o pai.
Um desses maloqueiros aí perdido no crack e coca.
A mãe a deixou no sofá.
Com os pés no meu colo.
E ligou a TV num programa lá.
Um beijo em cada um de nós.
Te amo Abílio paixão eterna minha vida meu suspiro!
Nem bem saiu a garota levantou saltitante.
Minha vida meu suspiro?
Deu uma reboladinha na minha frente.
De saia curta calcinha azul e blusinha branca.
Parou.
Desligou a TV.
Lambeu o controle bem devagar me encarando.
Jogou ele no tapete.
Vinte minutos pra encontrar as pilhas depois!
Agachou.
Ficou de joelho no chão.
Passando a mão na minha coxa.
Com as duas mãos abriu minha calça jeans.
Mais rápida do que a mãe.
Riu quando viu o tamanho da coisa.
Como é grande não dói?
Enquanto ia com a boca lá gemia gostoso e mandava:
Goza seu puto goza!
Na presença da mãe uma santa.
Minha pequena devassa do Jardim dos Pássaros.
Lábio molhadinho.
Língua geladinha.
Cabelos dourados.
Sorriso de anjo.
Ai aqueles pelinhos dos braços todos arrepiados.
Ai que falta me faz puxar aquele cabelo por trás.
Eu vou trazer ela aqui pra confessar que me ama.
A Igreja tá do meu lado?
Meu coração não suporta.
Vou pedir o casamento.
Se não der vou casar assim mesmo.
Assumo o filho que tá na barriga.
Mudo de cidade de país se necessário.
Tenho economias vou pro Paraguai.
Ou Argentina.
E se Deus não estiver de acordo e se Deus me abandonar por aqui.
Eu deixo a Igreja a hóstia as cerimônias a caridade.
Entrego minha alma de bandeja pro Diabo.
Mas não abandono o amor da minha vida.

domingo, 14 de março de 2010

Traidor

Aqui é o fim da linha.
Ninguém mais vai adiante.
Pelo menos que eu saiba não.
Isso é pra não fuder mulher de malandro.
Pra nunca nem olhar quando tiver passando na rua.
Nem na Praça da Catedral.
Cê deu muito azar mesmo.
Na frente de todo mundo?
Isso não ia ficar assim pra sempre né?
Não chora não bicho.
Cê tem família é?
Pior ainda.
Cê vai morrer como traidor.
Eu mesmo vou levar essas fotos aqui.
Vou mostrar essas no bar do Moacir.
Essa uma que ficou boa no Estância Gaúcha.
E com chave de ouro eu tiro essa aqui do motel.
Que fotos hem?
Que sua mulher vai achar?
Ninguém chorando no teu velório.
Só dois coveiros jogando terra no seu corpo.
Sem reza cê vai cruzar pro lado mais sombrio da vida.
Sozinho.
Agora diz aí vai.
Quantas vezes cê saiu com ela?
Se o cê me disser quem sabe não te deixo de boa?
Daí se vai pra casa só com esses roxo nas costa.
Só duas?
Fala alto.
Com essa fita na tua boca eu não escuto.
Baiano traz o fogo!
Vamo mutilar esse filho da puta agora mesmo.
Cê sabe o que é engraçado?
Que cê paga de machão.
Mas aqui não tô vendo nada.
O chefe mandou assim.
Primeiro as porradas.
Depois mutila ele.
Queima o mamilo a sola do pé menos o pau.
O pau coloca dentro aqui do vidro.
Tá vendo esse pacote da maionese?
É pra cá que vem o seu pau.
O mais divertido?
É que cê vai sentir seu pau sendo cortado.
Vai chorando enquanto pode.
Baiano que demora porra!
Vê se ta lá dentro da Kombi então.
Ela rebolava no seu pau?
Te pegava pra dançar no Estância Gaúcha só pra esfregar aquela bunda bem gostoso?
Te chupava bem?
Pode falar pra mim ela era uma puta né?
Dava pra ver de longe.
Aquela saia curtinha.
Unha sempre pintada de vermelho.
No salão de beleza toda semana.
Chupava bem afinal?
Deixava gozar na cara dentro da boca na bochecha?
E as bolas ela mandava bem?
Engolia com carinho?
Sorria quando metia seu pau goela abaixo?
Que demora Baiano.
Cê não quer responder nada é?
Mas eu vô te dar uma resposta.
Cê amava ela?
Ah amava?
Que bonito.
Olha só apaixonado:
O chefe resolveu que não vai matar ela não.
Ela vai ficar presa na chácara.
Tipo cárcere privado.
Acho que um mês todo sem bimbar com ninguém.
O pior castigo pra ela.
Luva fogo protetor tudo certo Baiano.
Só tem mais uma pergunta antes da gente começar:
Ela fez anal também?

Anúncio da desgraça

Avenida Cerro Azul.
Meia noite.
Voltando pra casa cansado depois de sair com os amigos.
Todos queriam ver meu novo carrão.
Quase três anos economizando.
Rebaixado neon DVD som no porta malas calota zerada.
Tinha deixado minha mina na casa dela do lado do cemitério.
Na Cerro Azul nunca tem puta.
Pelo menos nunca vi.
Ninguém ali anda de boa.
Não de noite.
É tenso.
Achei estranho quando vi a garota na calçada.
Se fosse noutro lugar eu não parava.
Mas quem acudiria se fosse algo sério?
Com tanto tarado nas ruas à toa?
Ela chorava como se tivesse morrido alguém.
Toda suja de maquiagem.
Vestido de noitada sabe?
Decotado curtinho bem caro.
Coisa de burguês.
Não sou virjão.
Um cão como eu sei farejar.
Aquilo tinha pedigri.
Encostei o carro sem desligar.
Sempre é preciso ficar esperto.
Baixei meio vidro e fiquei com um olho no retrovisor.
Perguntei o que tinha acontecido.
Ela se jogou na porta chorando ainda mais e disse que tinha brigado com o namorado.
Uma carona?
Eu já tava abrindo a porta.
Quem não faria isso?
Eu tinha só boas intenções.
Disse que morava perto da UEM.
Ainda tinha um pouco de gasolina.
Quase quinze litros.
Quando eu me preparava para abrir avistei o primeiro negão lá atrás.
O cara era grande tava sem camisa e tinha um bastão na mão.
Ele surgiu da esquina mesmo.
O bastão rodava no seu corpo.
Ia pro lado esquerdo.
Depois pro direito.
Do meu lado outro figura já vinha cruzando a Cerro Azul.
Um anão preto.
O mais assustador deles.
Sem nenhuma arma.
Mas vinha decidido ao meu encontro.
Talvez o chefe da gangue?
Pra fechar veio o outro.
Saído do terreno baldio quase cinquenta metros à minha frente.
Sorrindo alucinado.
Barbudão.
Obeso.
Gordo.
O pior sorriso que alguém te pode dar.
Todos os dentes brilhando:
O anúncio da tua desgraça.
Me dei conta que a puta já tava tentando abrir a porta por dentro.
Cê tá fudido mermão!
Deus eu pensei.
No desespero fui ligar o carro mas ele já tava ligado.
Dei um soco na piranha e mordi a mão dela.
O do bastão conseguiu acertar a minha traseira.
Acelerei como nunca.
Quase dá tempo pro anão também se jogar no carro.
Eu vou pro inferno com o cê desgraçado!
Não vai não!
Pisei no freio firme.
Ela não caía de jeito nenhum.
Ali no redondo lá embaixo mordi a mão dela pra valer até sangrar.
Só depois disso ela soltou.
E caiu na rua abraçando a mão.
Acelerei.
Que caralho.
Que caralho.
Quando terminei o redondo olhei pra trás.
O preto me apontava o bastão.
A puta chorava com a mão no peito.
E o anão me encarava de um jeito estranho.
Como se soubesse que nos encontraríamos em breve pelas ruas de Maringá.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Dois encontros com Dalton Trevisan, autor de "Cemitério de Elefantes"

Pulicada no Jornal do Brasil (20/02/10).
Ele repudia o culto à celebridade. Apressa o passo de suas caminhadas matinais quando é perseguido por fotógrafos. Xinga os repórteres que, sedentos, se aproximam em busca de uma entrevista. E jamais, de forma alguma, comparece aos eventos nos quais é homenageado. Hoje aos 84 anos, o escritor Dalton Trevisan escolheu viver nas sombras, no silêncio que somente o anonimato pode propiciar.
O sonho de qualquer jornalista? Uma entrevista exclusiva. Quando isso vai acontecer? Nunca. Então, para arrancar algumas palavras do Vampiro de Curitiba – apelido devido ao seu livro homônimo, lançado em 1965 – traço a estratégia: encarar os 428 quilômetros que separam minha cidade, Maringá (PR), de Curitiba, omitir ser estudante de jornalismo e torcer para o contista sair de casa. Se chover, o plano vai por água abaixo: como armar a tocaia em frente à casa do enigmático Trevisan?
Às 8h entro, pontualmente, no táxi que me levará ao bairro Alto da Glória – um nome digno para acomodar o maior contista brasileiro vivo. No curto caminho que separa a casa de Dalton da rodoviária, pergunto ao taxista se é verdade que o famoso escritor reside por ali.
– Dizem que mora sim, mas ninguém nunca o viu – responde o curitibano, seco, sem tirar os olhos do volante.
Chamando à porta de casa
Uma leve garoa atinge os transeuntes que atravessam a movimentada esquina onde reside o escritor. Para quem escreve sobre violência, assassinatos, drogas, prostituição, pedofilia e fetiches sexuais, Dalton Trevisan escolheu um lar ideal: grande e antigo, totalmente cinza, cercado por árvores que funcionam como barreiras aos curiosos que se penduram no muro, a fim de tentar espiar o tão misterioso autor. Estranhices à parte, não há barulho algum dentro da casa. Uma única luz acesa, no corredor, indica que ela não está abandonada.
Com um olhar mais atento sobre o puxadinho de trás, é possível observar que as janelas estão, desde cedo, escancaradas. Em julho do ano passado, quando passava, descompromissadamente, perto da residência do escritor, resolvi mudar meu roteiro e chamar ao portão. Sem campainha, tive de bater palmas e gritar seu nome. Para minha surpresa, o Vampiro abriu uma fresta da porta, deixando o rosto parcialmente escondido, protegido de algum flash que eu, rapidamente, poderia disparar. Mostrei três livros para que ele viesse ao meu encontro: “Deixe na livraria do Chain!”, gritou, antes de bater a porta na cara do petulante.
Agora a situação é diferente. Permaneço em silêncio, atento a cada movimento. Sorte minha: não chove. Precisamente às 10h50, Dalton Trevisan abre a porta de sua casa. Debaixo do braço, ele carrega alguns livros. Com passos rápidos, o ágil senhor de 84 anos caminha em direção à Livraria do Chain, local em que troca mensagens com sua editora e autografa os livros deixados por seus leitores.
Cinco minutos é o tempo que o Vampiro permanece na livraria, observando os lançamentos e deixando as edições que trazia de sua casa. Ele sai, agora, sempre taciturno; caminha geralmente olhando para baixo, e nunca se distrai com as belas curitibanas que passam ao seu lado ou cruzam sua frente.
É assim que observa os detalhes de Curitiba, cidade mitificada em suas obras: quieto, sem gestos bruscos, imperceptível. Passa pelo Teatro Guaíra e dá uma volta e meia na praça em frente à Universidade Federal, num cenário em que namorados, mendigos, hippies, empresários e turistas convivem em harmonia.
Quando passa por alguma banca de revista, para por cerca de dois ou três minutos, contemplando as notícias dos exemplares à mostra. Misturado aos curitibanos, o Vampiro escuta camuflado as novelas nada exemplares da vida urbana, como um anônimo ladrão de histórias. E volta a caminhar. Cruza semáforos, em meio a um trânsito caótico, driblando barracas de camelôs, passando por botecos, padarias, pontos de ônibus, deficientes físicos, filas de aposentados e indivíduos suspeitos.
Estou preparado para ficar cara a cara com o Vampiro. O local da abordagem? Uma esquina bem no Centro da cidade. No meu primeiro encontro, em janeiro de 2009, identifiquei-me como aspirante a escritor e revelei estudar letras (omiti estudar também jornalismo). Se ele sente qualquer intenção jornalística, foge como se lhe exibissem uma cruz. Trevisan, há um ano, na esquina de sua residência, me convidou a ir até à livraria, pois compraria alguns livros para mim. Antes, porém, perguntei como ele gostaria de ser lembrado daqui a 40 anos. A resposta, que arrancou uma boa gargalhada minha, foi surpreendente:
– Daqui a 40 anos, ninguém se lembrará de mim.
Eu o contestei imediatamente. Não adiantou nada:
– Essa sua opinião é uma opinião isolada.
No rápido trajeto, o contista revelou uma listinha com seus livros prediletos e fez críticas concisas às obras.
O poeta alemão Rainer Maria Rilke, com Cartas a um jovem poeta, foi o primeiro a ser citado:
– Nas cartas dedicadas ao jovem poeta, ali está tudo o que você pode aprender sobre inspiração, escrita e linguagem – afirma Trevisan.
A metamorfose, do também alemão Franz Kafka, foi considerada como “uma história incrível” e A morte de Ivan Ilitch, do russo Liev Tolstói, “a melhor novela já feita”, na opinião do contista.
Dentro da livraria, Trevisan elogiou outro contista:
– Leia tudo o que puder do russo Anton Tchecov. Aliás, existem boas coletâneas de suas obras.
No campo da poesia, o Vampiro indicou o pernambucano Manuel Bandeira, um dos seus prediletos:
– O estilo e a linguagem dele são maravilhosos. As crônicas também são boas. Leia Crônicas da província do Brasil e Os reis vagabundos.
E para o Vampiro, quem é o maior contista brasileiro?
– Machado de Assis. Além dos contos, leia Quincas Borba, Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro.
Depois de Machado, indagou-me se eu gostava de Rubem Braga. A última obra citada , classificada como “maravilhosa”, foi Madame Bovary, de Gustave Flaubert.
Em meio a tantos clássicos, o Vampiro seria capaz de reescrever as histórias melhor do que os próprios autores? A resposta é negativa:
– Ninguém pode reescrever A metamorfose melhor do que Kafka. Ninguém vai reescrever A morte de Ivan Ilitch melhor do que Tolstói.
Naquela manhã, ganhei dois presentes de Dalton Trevisan: duas edições pockets das obras citadas de Tolstói e Rilke. Outros livros, solicitados pelo contista, estavam fora do catálogo. Na frente do Vampiro, a atendente se comprometeu a conseguir os livros para eu buscá-los no dia seguinte. Ao encerrar o encontro, o contista estendeu a mão e abriu um sorriso. Semanas depois, entrei em contato com a livraria, passei meu endereço em Maringá e recebi, em minha casa, outras quatro edições de bolso enviadas pelo contista: Kafka, Tchecov, Machado e Dalton.
Jamais imaginaria que eu teria a chance de encontrá-lo novamente. Ele deve ter se irritado. A reportagem relatando nosso encontro foi publicada em um jornal do Paraná. Depois da publicação, enviei um outro livro para ele autografar, alguns contos de minha autoria e uma carta agradecendo pelas edições enviadas e também por sua produção literária. Todo o material foi reenviado para mim. No livro, nenhum autógrafo. Da mesma forma que foi, voltou. Era a primeira vez, em três décadas, que o contista concedia alguma declaração à imprensa.
Agora, quase um ano depois do primeiro encontro, eu me aproximo com três livros para serem assinados. Estamos em uma movimentada esquina. O sinal fecha.
– Dalton? – eu pergunto. Ele vira e me olha desconfiado. Peço um autógrafo nos três livros que retiro de dentro de uma sacola plástica.
Ao se deparar com uma rara primeira edição de Cemitério de elefantes, publicada em 1964, o contista reclama:
– Mas esta edição eu renego! Já reescrevi diversas vezes!
A curiosa cena protagonizada pelo autor, fanático por recompor suas obras em novas edições, extirpando uma ou outra conjunção, sempre reduzindo o tamanho dos contos, arranca uma risada minha. Peço que ele autografe mesmo assim. Dalton olha para trás, onde há uma pequena padaria, e indica o balcão:
– Vamos ali, para firmar os livros.
Na dedicatória, ele pede meu sobrenome, mas me recuso a dizer.
– Basta só Alexandre? – indaga o mestre da concisão e, diante da minha afirmativa, diz sorrindo:
– Então tá, só Alexandre.
Com o tempo, Trevisan padronizou seus autógrafos: “Ao (nome), cordialmente, D. Trevisan”. Agora, se há uma intimidade, o Vampiro muda: “Ao (nome), com um abraço do D. Trevisan”. E ele só rabisca a dedicatória em um dos livros. Nos seguintes, deixa apenas a assinatura. Na década de 60, quando iniciou sua trajetória literária, era diferente. Ele sempre era afetuoso na dedicatória e não assinava seu sobrenome, apenas Dalton.
Antes de encerrar o encontro, o contista indaga:
– Como você me achou aqui no Centro?
É claro que não digo que estou perseguindo-o há cerca de meia hora. Sem desviar o olhar, relembro um trecho de uma entrevista concedida nos anos 60, em que o próprio Trevisan contestava a fama de recluso. Cara a cara com o Vampiro, parafraseio sua declaração: “É possível encontrar Dalton Trevisan em cada esquina de Curitiba”. Ponto para mim. Arranco outro sorriso do autor, que observa:
– E você confirmou isso mesmo!.
Na padaria, ele estende a mão, compassadamente, e sorri:
– É sempre bom encontrar um leitor .
O escritor retoma a caminhada sem olhar para trás. Dalton Trevisan nunca olha para trás. Volto a segui-lo. Ele entra em um restaurante vegetariano. Sozinho. É muita ironia: um vampiro que se abstém de carne. Na volta para casa, meia hora depois, ele escolhe o mesmo trajeto e circula pelas mesmas praças, até enfrentar a íngreme rua que o leva à sua residência. Deixo o Alto da Glória com os livros assinados e algumas imagens do recluso contista. Curiosamente, não são as palavras do nosso encontro que ecoam na minha cabeça. Mas, sim, um excerto de sua nova obra, Violetas e pavões: “O senhor esconde o rosto desta cidade, mas não de mim”.
Alexandre Gaioto é jornalista freelancer e já colaborou com os jornais Diário do Norte do Paraná, Folha de Londrina, O Estado do Paraná, Gazeta do Povo e Zero Hora.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A Manaus de Hatoum


Em "A cidade ilhada", livro de contos do amazonense Milton Hatoum, Manaus é o centro de suas tramas delicadas, poéticas e surpreendentes

É comum um escritor iniciar sua trajetória literária publicando contos. E, depois, com a experiência adquirida nas histórias curtas, partir para a composição de narrativas mais longas, dedicando-se à novela ou ao romance. Com o amazonense Milton Hatoum, autor do aclamado “Dois irmãos”, o trâmite foi diferente.
Seu primeiro livro publicado, o romance “Relato de um certo oriente” (1989), foi bem acolhido pela crítica especializada, venceu o prêmio Jabuti e, desde aquela época, já mostrava algumas características literárias que reapareceriam em suas obras, como o regionalismo, a prosa poética e o objetivo de imortalizar Manaus.
Depois de três Jabutis seguidos – além de “Relato de um certo oriente”, os romances “Dois irmãos” (2000) e “Cinzas do Norte” (2005) também foram contemplados com o prêmio –, o escritor apostou no diferente.
No ano passado, a Companhia das Letras lançou “A cidade ilhada”, volume reunindo alguns de seus contos publicados em jornais e revistas, no período de 1990 e 2008, além das histórias inéditas. Tanto na novela “Órfãos do Eldorado”, publicada há dois anos, quanto nos contos, Milton Hatoum revela-se um autor saboroso em suas concisões. Seu ritmo de narrativa delicado conduz, sempre com belas imagens, as 14 histórias de “A cidade ilhada”.
No primeiro conto, Hatoum regressa à Manaus de sua infância para compor, com pureza e inocência, sobre a primeira noite de um grupo de jovens amigos no prostíbulo “Varandas da Eva”. Tal como o grupo de amigos que vai ao balneário das mulheres, praticamente todos os personagens do livro estão em Manaus.
Em “Dois poetas da província”, Hatoum resgata a passagem do filósofo Jean-Paul Sarte por Manaus; “Um oriental na vastidão” mostra a bonita história de um cientista japonês que viaja à Manaus apenas para conhecer as águas do rio Negro – local onde, futuramente, ele escolherá para morrer; um jornalista indiano, disfarçado de almirante, faz uma visita a um escritor de Manaus – Milton Hatoum? – a fim de publicar, na Índia, um perfil sobre autor.
Na cidade de Hatoum, os homens defendem sua honra com vingança e cabeça em pé. Nos contos “O adeus do comandante” e “A casa ilhada”, o escritor traça dois perfis completamente diferentes para dois homens traídos por suas respectivas mulheres. No primeiro, um simples barqueiro, numa lúgubre viagem de barco, assassina o próprio irmão após descobrir os casos de infidelidade envolvendo sua esposa: “Salvei minhas honras e tirei a vergonha dos meus três filhos”, explica o personagem. Já em “A casa ilhada”, um renomado biólogo retorna à Manaus para matar o homem que seduziu sua mulher e arruinou o início do seu casamento. Assim, o contista une, no mesmo nível, o intelectual ao homem simples: ambos traídos à beira do rio Amazonas.
Tal como Dalton Trevisan mitificou Curitiba e João Ubaldo Ribeiro, a ilha de Itaparica, o escritor amazonense se dedica às peripécias de sua região, com os seus costumes, tradições, gírias, pratos típicos e lendas: é o comportamento subversivo do jovem artista Mundo, do romance “Cinzas do Norte”; são as brigas constantes dos gêmeos Yaqub e Omar, em “Dois Irmãos”; é o retrato da decadência na vida de Arminto Cordovil, em “Órfãos do Eldorado”.
As delicadas histórias de Milton Hatoum, em “A cidade ilhada”, poderiam acontecer em qualquer lugar do mundo. Mas o contista não abre mão de sua terra. É em Manaus - ou numa pequena cidade à beira do rio Amazonas – que suas tramas são ambientadas e desenvolvidas.
Milton Hatoum segue o conselho do autor russo Leon Tolstoi: “Cante a tua aldeia e serás imortal”.
Publicado em O Diário do Norte do Paraná, no dia 27 de janeiro de 2010.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sussurros e gemidos

Minha cabeça ainda estava doendo quando desci as escadas do hotel e peguei o embrulho sem nada dizer ao atendente. Cruzei a Herval apertando a encomenda debaixo do braço e entrei na camionete marrom que me esperava do outro lado da rua, no local combinado, em frente à panificadora.
“Pensei que você fosse mais alto”, disse o gordo ruivo de chapéu panamá.
Ele sorriu, estendeu a mão, perguntou algo sobre o hotel, se eu havia gostado, e saímos em direção à casa do primeiro da lista: um traficante que morava sozinho no Jardim Tabaetê.
A casa era grande, tinha um alto muro protegido com cerca elétrica e três cachorros exibiam suas arcadas dentárias assassinas ao notar minha presença como transeunte. Esperei o sujeito chegar, a casa da frente estava vazia, era uma chance de entrar tranquilamente. Ele parou o carro por volta das cinco da tarde, o portão abriu lentamente e fechou como se sofresse mal de Parkinson. Mas ele não estava sozinho. Chegou acompanhado por uma loira, provavelmente do seu tamanho, o que não era muito: era um nanico. O casal desceu e, dentro da garagem, demoraram no beijo que indicava o início de uma noitada entre sussurros e gemidos. Só um erro de minha parte: era um travesti. Hoje em dia, está cada vez mais difícil identificar esses viados, travestis, essa corja toda.
O gordo dormiu no banco do motorista a tarde toda. Antes de sair, tirei o chapéu panamá da cabeça dele e o acomodei na minha cabeça. Ficou um pouco largo, mas tinha estilo próprio. No começo, há uns quinze anos, eu só fazia meu trabalho com um chapéu panamá. Era a última visão que muitas pessoas tinham dessa vida: minha Colt Special 12 milímetros e meu chapéu panamá.
Na intensidade do amor, ainda na garagem, o nanico se esqueceu de disparar o alarme. Joguei três fartos pedaços de carne envenenada para os cachorros. Em dez minutos, todos derrubados. Entrei pelo lado esquerdo, onde havia uma árvore que quase encostava no muro. Andei pelo telhado e pulei no quintal. Fui tranquilo, sabia que eles estavam no quarto. Na cozinha, os gritos dos amantes se tornam compreensíveis, e era possível ouvir os palavrões, o barulho dos tapas arrebentando, amorosamente, as ancas de alguém no segundo andar.
Abri a porta lentamente. Os dois caras estavam abraçados, em pleno coito, quando dei uma grava no travesti e apontei o revólver para o nanico. Ele ficou pálido; o travesti, mudo. Meteu a mão, bruscamente, debaixo do travesseiro. Sempre a ideia da arma debaixo do travesseiro. Dei um tiro no peito dele que fez o travesti gritar. Meti uma coronhada no traveco.
“Baiano manda lembranças”, eu disse.
Mais um que atravessa para o outro lado da vida contemplando minha Colt 12 milímetros e meu chapéu panamá. O covarde estava de costas, tentando se proteger com um cobertor de lã. A bala estraçalhou seu crânio e espalhou pedaços do seu cérebro na coberta.
O travesti estava roendo as unhas. Tinha urinado no carpete. Tremia. Cobria seu pinto, frouxo, com as mãos. Ainda bem que não é uma garota. Nessas horas, eu chego a hesitar. Mas com o travesti, fui sem dó: um na cabeça. Era o puto errado, com o freguês errado, na hora errada.
Liguei para o gordo.
“Pode vir”, mandei.
Juntos, reviramos a casa. Tiramos todas as gavetas, pegamos carteira, documentos, drogas, dois passaportes e cinco revólveres. Saímos pelo portão da frente, recolhi a carne envenenada e entramos na camionete.
Em frente ao hotel, o gordo me deu um envelope amarelo. Deixei o papel que envolvia a minha pistola no carro dele, cruzei o escuro saguão do hotel sem nada dizer ao atendente e subi as escadas até o terceiro andar. Amanhã será divertido: não gosto de pretos.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Na estrada do terror, com Cormac McCarthy


Nas tradicionais listinhas de fim de ano, o jornal britânico “The Times” resolveu elencar os cem melhores livros da década. Nada muito fora do comum: Phillip Roth, Ian McEwan, Salman Rushdie e J. M. Coetzee. Estranho foi contemplar, na terceira posição, o best-seller “O Código da Vinci”, de Dan Brown. Irônico é que o mesmo livro foi vencedor em outra categoria: os cinco piores livros da década.

No primeiro lugar, o “The Times” fez justiça apontando “A Estrada”, do norte-americano Cormac McCarthy. Frequentemente comparado a Herman Melville e William Faulkner, McCarthy escreveu uma dezena de romances, entre eles “Onde os velhos não têm vez” (2005), “Todos os belos cavalos” (1992) e “Meridiano sangrento” (1985) – considerado um dos melhores romances do século 20, na opinião do crítico literário Harold Bloom.

Publicado em 2006, vencedor do Prêmio Pulitzer de 2007, “A estrada” é aterrorizante. Não é possível saber em que ano, exatamente, a história se passa. Algumas pequenas marcas de tempo, como uma garrafa de Coca-Cola, indicam que a história não está situada em um passado longínquo. É uma América pós-apocalíptica, em que já não resta quase nada no mundo. Todas as casas e prédios estão abandonados, destruídos. Os supermercados foram saqueados e os poucos vivos que circulam, costumam se alimentar de seres humanos, andando em bandos à procura de carne fresca.

O livro, narrado em terceira pessoa, traz basicamente dois personagens, o pai e seu jovem filho – eles não têm nomes. Cormac McCarthy abriu mão de nomeá-los, para que a situação vivida pela dupla seja ainda mais universal. Devido ao intenso frio em que estão vivendo, resolvem seguir a estrada, rumo ao sul, a pé, em busca de uma chance de sobrevivência.

O que vão encontrar por lá? Gangues, assassinos ou pessoas que, assim como eles, são do bem? Eles não sabem. A dupla carrega um carrinho de compras e duas mochilas com alguns produtos essenciais para garantir, temporariamente, suas vidas. Nas mãos do pai, um revólver com apenas duas balas: uma possível solução para o drama da dupla.

Como a proposta do autor é narrar, em 234 páginas, os meses do percurso dos personagens, McCarthy optou por separar a narrativa em pequenos e médios blocos de texto. Assim, o narrador coordena os momentos em que o tempo avança ou permanece estagnado na história.
Em cada momento em que a dupla identifica uma casa – ou o que sobrou dela –, o clima de suspense desperta. Não é possível continuar seguindo o caminho, sem antes tentar encontrar na residência algo para comer ou algum objeto que possa servir para alguma finalidade. Se a casa ainda estará habitada ou não, é um risco que eles correm.

No primeiro encontro com outro personagem, um integrante de uma gangue canibal, a vida do garoto é posta em risco e o pai faz um disparo contra o inimigo. Resta, então, a partir daí, apenas uma bala para aliviar o sofrimento dos dois, um sofrimento que ainda não chegou no limite.
O desejo pela morte é levado ao extremo em apenas uma cena. Num dos momentos em que vasculham uma casa, pai e filho descobrem uma horripilante prisão de humanos. No mesmo instante, os responsáveis pela casa chegam e os dois fogem sem conseguir salvar os encarcerados. Enquanto permanecem escondidos, o pai pede ao filho que, se forem capturados, ele seja capaz de cometer o suicídio, utilizando a única bala que resta na arma:

“Você consegue fazer isto? Quando o momento chegar? Quando o momento chegar não vai haver tempo. O momento é agora. Amaldiçoe Deus e morra. E se não disparar? Você poderia esmagar esse crânio adorado com uma pedra? Há um ser dentro de você sobre o qual você não sabe nada? Será possível? Segure-o nos braços. Assim mesmo. A alma é rápida. Puxe-o na sua direção. Beije-o. Rápido.”

Na estrada de McCarthy, mesmo caminhando no clima de suspense, suportando um frio de congelar a espinha do leitor, os dois personagens conseguem construir uma relação de amor e amizade entre si: é isso o que faz de “A Estrada”, uma obra-prima.

“A Estrada”, de Cormac McCarthy (Alfaguara, 234 págs, 36,90). Tradução de Adriana Lisboa.
Avaliação: excelente.
Publicado em O Diário no dia 16 de janeiro.