segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Por que chorei com Modigliani?

Hemingway confessou, em entrevista à Paris Review, que escrevia melhor quando estava apaixonado. Entre 1914 e 1916, na Primeira Guerra Mundial, Appolinaire inspirou-se em Lou, uma de suas musas, para escrever alguns dos versos mais belos de toda a sua produção literária. As canções de Bob Dylan e o seu engajamento político não seriam os mesmos sem Suze Rotolo – a garota da capa do “Freewheelin”. O amor nunca moveu montanhas, mas sua colaboração à literatura, às artes, é incalculável. E me pego dizendo isso em voz alta, um pouco bêbado, na mesa do Salero, com a mesma fúria que um xiita religioso recita trechos aleatórios da bíblia.

Ela não acredita no amor. Me pergunta sobre as mulheres que naveguei. Quer saber se sou fiel. Quantas vezes traído, essas coisas. Não tenho segredos com ela. Já dediquei alguns poemas de amor a algumas mulheres que amei. Há algumas mulheres que amei, mas que me guardei ao direito de não escrever verso algum. Algumas mulheres levaram mais do que um punhado de versos. Levaram noites de cachaças, cervejas, juras de amor eterno e fidelidade que não se concretizaram. Algumas mulheres quase acabaram com a minha vida. Algumas mulheres desejam a minha morte, comento, enquanto ela exibe aquela covinha do lado esquerdo.

Ela está pedindo uma cachaça da casa, pergunta por que tantas mulheres nos seus poemas? Tudo isso é mesmo verdade? Só respondo que tudo é real no universo da ficção, que o amor não é uma desocupação dos desocupados, mas que estou com Hemingway. Escrevo melhor quando apaixonado. E não só os escritores escrevem melhor - lá estou apontando o copo de cerveja na direção dela.

Tenho certeza que Arvo Pärt compôs Spigel im Spigel completamente apaixonado. Os quadros são mais intensos quando apaixonados. Faço uma pausa. É por isso que chorei durante quarenta e cinco minutos na frente de Modigliani. Já vi Rembrandt, Picasso, Van Gogh, mas nada se compara a Amadeo Modigliani, que me nocauteou com apenas três quadros na parede. Os seguranças me olhavam estranho, as pessoas pareciam preocupadas, e eu permanecia atordoado, chorando na frente de Modigliani no meio do museu. Aquilo, continuo, não era uma obra de arte. Era o amor em forma de obra de arte.

É engraçado. Com ela na minha frente, penso que os quadros de Modigliani não têm importância alguma. São chatos e tediosos, os pescoços de Modigliani. Sinto pena de Modigliani, que não conheceu ela, que não está nessa mesa bebendo com ela. Não consigo pintar um quadro como Modigliani, não componho como Bob Dylan ou Arvo Pärt. Só quero escrever poemas para ela, quero morrer olhando para ela, quero que ela nunca mais desapareça da minha vida.              

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Eu, Ariádiny e João Gilberto

Sou homem de poucos amigos. Feio. Perdi o humor. Me dou bem com algumas mulheres. Não faltam camas para me acolher na madrugada. Não gosto de cachorros nem de gatos. Meu vizinho, homossexual não assumido, largou o emprego para cantar sertanejo universitário em Maringá - não há uma única manhã de paz com esse desgraçado cantando na minha janela.

Tenho 30 anos. Perdi o enterro do meu pai – na verdade, fiz questão de não ir. Quando tento pensar em minha mãe, a imagem que me vem à mente é a de Ariádiny. Acho que é por isso que até hoje não consigo parar de pensar em Ariádiny, no sorriso de Ariádiny, nela recitando Augusto dos Anjos enquanto encosto a cabeça em seu colo e peço a Deus arranque, por favor, meu último segundo de vida ali, deitado, em silêncio.

Estou bebendo cada vez mais. Democrático, Divina Dose, Bar Sem Nome, Salero, estou em todos eles, devendo em todos eles – às vezes Ariádiny está comigo.

Quando ela não está comigo, sinto que algo está errado. Maneta sem Ariádiny, daquele cabelo delicado, daquele humor à queima-roupa que só ela sabe disparar na mesa do bar, daquela vontade de estender as mãos, o peito, de silenciar o trânsito para ouvir Ariádiny.

Quem sabe viajar para Curitiba e ver Chico Buarque com Ariádiny? Tenho pena de quem nunca ouviu a gargalhada de Ariádiny. Estou escrevendo um romance inédito sobre ela. Que ninguém vai ler.

As pessoas gostam do que escrevo. Publiquei meia dúzia de livros, ganhei três Jabutis, e parei de escrever. Não permito ser fotografado, nunca concedi entrevistas, não compareci nos eventos literários em que fui homenageado. Ninguém sabe onde moro.

Às vezes, sou reconhecido em alguma mesa de bar. Culpa de um maldito da Folha de S. Paulo, que há dois anos publicou uma matéria com uma foto minha caminhando pelo centro da cidade. Parei de ler. A literatura engana, sufoca, enlouquece. A literatura não comove tanto quanto o sorriso de Ariádiny.

Estou com ingressos comprados para o show do João Gilberto. Estaremos na quarta fileira, poltronas A6 e A7, em São Paulo, no gargarejo. Eu, Ariádiny e João Gilberto. É quando vou dizer. Vou dizer tudo de uma vez.

Sem pausa, quase gritando para ela entender que isso é sério, para ela decorar como tudo mudou. Não é loucura minha vida, isso precisa sair daqui de dentro das entranhas. Mas se João Gilberto cancelar o show, eu juro que frito o esôfago de João Gilberto numa churrasqueira portátil no meio da Avenida Brasil num sábado talvez por volta das 18h.

Sei onde ele mora (no Leblon General Urquiza, a uma quadra da praia). Então se esperte, meu velho! Atrase quanto quiser mas toque cante volte para o bis e salve minha vida e minha noite com Ariádiny.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

João Gilberto me levou à delegacia

A delegacia de Maringá não é menos caótica do que a Faixa de Gaza. Recebi a carta me convocando nesta quinta-feira. Liguei para Ariádiny. Ela queria ir junto. Chegamos por volta das 10h, demoramos quase cinquenta minutos para a senhora berrar: “Quem é Alexandre Gaioto? Alexandre Gaioto?”

Entrei na sala escura de mãos dadas com Ariádiny. Ela me dá uma estranha sensação de paz. O delegado é um sujeito bigodudo, logo estendeu a mão, mostrou as cadeiras, olhou bem para Ariádiny e disparou. “Realmente. A literatura não comove tanto quanto o sorriso de Ariádiny.”

Ficou em silêncio. Tirou um exemplar do Diário e apontou para a minha foto estampada no jornal. Era a minha primeira crônica. Publiquei na semana passada. “Até gostei do texto, mas você não sabe o inferno que me causou.”

Ainda apontando para o texto, revelou que a mãe da filha caçula de João Gilberto, Cláudia Faissol – responsável pela carreira do cantor -, registrou um B.O. na 14ª DP, no Leblon, na sexta-feira passada.
Na segunda, ele disse, enviaram uma carta precatória para Maringá exigindo que você prestasse esclarecimentos.

“Que papo é esse de fritar o esôfago daquele velho antipático no meio da rua?” No texto, em que eu abria o peito para Ariádiny, dizia que se João Gilberto cancelasse o show, eu fritaria o esôfago dele no meio de uma avenida em Maringá. E fui além. Ameaçando, revelei o endereço onde João Gilberto mora: General Urquiza, no Rio de Janeiro. “Isso foi o fim”, reclamou o delegado bigodudo.

Pressionados lá no Rio, os agentes ligam de meia em meia hora. Querem ver seu eu estou aqui, se já deixei Maringá, qual o endereço da minha casa. Na General Urquiza, três policiais à paisana estão de campana desde sexta-feira, abordando todos os sujeitos munidos de uma churrasqueira portátil.

Não soube responder muito bem. Gago fico quando nervoso. Honrado, sim, em ser convocado pelo João Gilberto. Rasbiquei meu nome no depoimento. A pedido do bigodudo, fiz uma dedicatória ao seu sobrinho. “Adora os seus textos. Quer ser jornalista”, explicou.

Mal deixei a delegacia de mãos dadas com Ariádiny, comecei a chorar. Meu Deus. Fui lido por João Gilberto. Não teremos, eu e Ariádiny, a noite que planejei, vendo o show de João Gilberto no gargarejo. Mas estamos indo para Curitiba. Vamos ver Chico Buarque. Eu, Ariádiny e Chico Buarque. Infelizmente, em poltronas distantes.

Com todos esses textos, Ariádiny já sabe o que penso sobre ela. Que não paro de pensar nela. Que gosto das suas quarenta e quatro estrelas tatuadas no pescoço, dela cantando Beatles enquanto toco violão, que o nascer do sol tem o mesmo amarelo da cor dos cabelos de Ariádiny – e é mais intenso, o nascer do sol, ao lado de Ariádiny, bebendo Santa Helena.

Veremos Chico Buarque. Já tenho antecedentes. Não é boa ideia ameaçar Chico Buarque nos meus textos. “Escreva e te mando em cana”, alertou o bigodudo, depois que terminei a dedicatória ao seu sobrinho, escrita às pressas, enquanto Ariádiny me abraçava forte.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Entende?

Se eu disser a verdade
Tudo isso aqui é verdade
Você ficaria puta comigo?
De verdade mesmo?
Te afastaria para sempre
-ou pelo contrário
Mais próxima ainda debaixo da pele
Sem ter descanso nem como extirpar
É daqui desse silêncio
Dos porres
Não suporto suas ressacas
(você sempre diz)
Das noites
Que afogam o tédio
E dão vida
É esse cheiro
(que seu olfato ignora)
Dói o arrependimento não vivido
Sóbrio no retorno para casa
(não falta alguma coisa?)
No último verbo mais um conhaque
Bob Dylan com Stones
Que tal um baseado?
-por que não?
Porque basta porra
(você sempre diz)
As melhores coisas da vida
(respondo)
Fiz quando estava bêbado
As piores coisas da vida
Fiz quando estava bêbado
Até o momento
(uma pausa)
As melhores coisas da vida
Sem dúvida
Valeram todas as cachaças ainda não bebidas
Valeu acordar de porre no meio da rua no sábado de manhã
Caçar brigas com escrotos em repúblicas
(e não foi divertido?)
Ver seu próprio pau morto na cama sim
(isso me dá raiva)
-das mulheres que o Presidente me abateu
(Camila Angélica Sara e outra que não lembro o nome)
Então
Agora
De ressaca
Estou na sua frente
Você sente esse grito às dez da noite?
Como dizer?
Meu Deus
Entende?
Sou apenas eu

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Jessica

Aquilo que confunde o verbo
Desnorteia o raciocínio
Minha religião sem um Deus
Aquilo que mata
Cala
Enterra
Afoga
E dá vida
O assombro na mesa do Divina Dose
Nó de apertar forte o esôfago e doer
Seu silêncio não convence
Pede algazarra
Pede refrãos de Chico Buarque
Na maratona de porres pela madrugada
Sofro nas suas mãos
Gozo na sua boca
E morro nos seus braços

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Por quê?

Doce às vezes caramelo com hortelã
Do amargo do tomate seco uma lembrança
Menos acentuada que o azedo do maracujá doce
Se passo a língua
- e não é o mistério a preliminar favorita?
Nunca sei o que encontrar
Muda de dia com o humor
Triste tão singelo calado
Alegre meio amarelo
Na semana sente minha falta
Sem quem regue com carinho
Primeiro a língua caminha apreensiva
Pequenos círculos
Lenta sente na ponta quando treme
Desbravando molha com força
Tira e enfia
Te pega no susto encharca de desejo
Você pede
Mete!
Mas não
Ainda não
De costas te viro puxo o cabelo
Uma ou outra sacanagem
(antes meu amor)
Mão cheia um tapa ardido na sua bunda
De quatro
-mando
Você me recebe quente
Arrepia a coxa afogada em suspiros
Seus pelos
Não sabia que tão bom
-você grita
O salgado da cachaça
Esse cheiro de amora no café fresco
Por isso Luana gosto tanto de lamber seu cu

domingo, 2 de outubro de 2011

Borboletas cavalos

Nojo deles tenho sim
Sujos da sujeira da alma
Sabe?
Borboletando de asinhas loucas
Em cada esquina de Maringá
Atrevidos não é que mandam beijos piscadinhas
-enquanto os dedos apertam os seios?
Pra quem reclamar?
IBAMA?
ONU?
Obama?
U.S.A.?
Cavalos de quase dois metros
Metidos em decotes
Metidos em vestidos
Na voz a última lembrança de um machão distante
Meio assim estridente
Fanhosa
Negando a natureza
Nojo deles tenho sim
Que não é na sua loja da avenida Brasil
Todo dia provando salto alto sandália
-bem na hora de fechar
Aquela coisa
Que se esconde de vergonha
Se não tem dinheiro pra tirar
Nunca toquei num dedo de pé jamais daquilo
Aberração
Cuspo no banheiro a saliva sem um volte sempre
Comemoro quando escuto no Pinga Fogo
Quem corta na madrugada as loucas asinhas das borboletas
Com barra de ferro extintor de incêndio ou martelo
No mínimo um mês de repouso no hospital
Sem voltar pra loja e provar salto alto sandália

Crítica da Semana Literária do Sesc de Maringá

Quando o Sesc divulgou a programação da Semana Literária, em junho deste ano, surpreendeu os amantes de literatura em Maringá.

Sete dias intensos com direito a Milton Hatoum, o maior romancista brasileiro vivo, além de mesas com Fabrício Carpinejar, Alice Ruiz e Affonso Romano de Sant’Anna. Baixa, apenas uma: o gaúcho João Gilberto Noll, autor de "Hotel Atlântico", cancelou sua participação na Semana por motivos pessoais.

O público não decepcionou. Marcou presença nas conversas com os autores, que duraram em média 2h. No encontro de Carpinejar com Alice Ruiz, o público se engalfinhou para ouvir a conversa . Mais de duzentas pessoas sentadas - algumas em pé -, davam a ideia de que, talvez, seja a hora de buscar um espaço maior para os próximos debates literários.

Cada mesa redonda contou com um mediador diferente. Isso enriqueceu as conversas. Em diversos momentos, os diálogos foram produtivos. Hatoum, por exemplo, reconheceu a ausência de humor em suas obras, como "Dois Irmãos" e "Cinzas do Norte". "Acho que é porque escrevo meus romances explorando a memória. Não há humor nos meus livros", disse. O escritor respondeu sobre a relação entre literatura e política em sua obra, falou sobre seu fazer literário, anunciou romance inédito, "O Lugar mais Sombrio", e disparou: "Não tenho medo do fracasso".

Quem imaginava um autor sisudo, surpreendeu-se com o bom humor. Criticou o lixo musical norte-americano. "Não dá mais para ouvir boas músicas no rádio". "Lady quem?", respondeu o autor a uma pergunta sobre aquela cantora que se veste de bife.
Nas conversas de Affonso Romano de Sant’Anna, Fabrício Carpinejar e Alice Ruiz, o papo firme rendeu bons momentos, também, com direito a bom humor. Carpinejar, como sempre, metralhou o diálogo com pequenas sutilezas poéticas, paridas ali mesmo, na conversa. E Alice Ruiz, que fica incomodada em responder sobre o seu Paulo Leminski, teve de trazê-lo à tona, indagada por seus leitores.
Tudo acabava na mesa do bar. Público, novos e consagrados escritores em meio a tilápias, cervejas, cachaças e vinhos: a literatura é mais visceral - ou líquida? - na mesa do bar. As perguntas, que haviam sido evitadas em público, ganham respostas inesperadas. E fica, ali, combinado um próximo encontro para o ano que vem.
Ao contrário do ano passado, a Semana Literária do Sesc focou no público adulto, incluiu novos escritores na programação e acertou em cheio: praticamente cinco dias perfeitos.
No entanto, algumas coisas ainda estavam desencontradas. A palestra "Marketing Emocional e a Relação de Consumo", ministrada pela escritora Ivana Martins, soava como uma nota errada num recital de piano: literatura para escanteio.
Altos e baixos
No lançamento do jornalista Wilame Prado, o público deu o ar da graça: mais de cem pessoas e sessenta livros vendidos. Uma marca excelente para um autor estreante.
Para o próximo ano, o Sesc tem a missão de fazer uma Semana ainda mais intensa. Entre os autores brasileiros, bem que poderiam convocar o imortal João Ubaldo Ribeiro, autor de "Sargento Getúlio" e "Viva o Povo Brasileiro". Seria tão antológico como foi receber o amazonense Milton Hatoum. Chama que ele vem.
Outro nome que vem fácil, e acrescentaria ao debate literário, é o quadrinista Lourenço Mutarelli, responsável pelo "O Cheiro do Ralo".
Sérgio Sant’Anna, Marcelo Mirisola, Glauco Mattoso, Alberto Martins, José Eduardo Agualusa e Noll também podem compor uma lista competente.
Matéria publicada no Diário em 20/09/2011, intitulada "Uma Semana Magnética".

Entrevista - Milton Hatoum

"Sou viúva, meu filho mais velho mora em São Paulo, os outros em Maringá. Se eu pudesse, também moraria em São Paulo. Porque gosto muito de dançar. Em Maringá é mais difícil. Não sabe como é uma cidade pequena? Vão me chamar de velha sirigaita, ou de viúva assanhada", escreveu Milton Hatoum, numa deliciosa crônica, publicada no Estado de S. Paulo: lá está Maringá, imortalizada na obra do maior romancista brasileiro vivo.
Aos 59 anos, o amazonense Milton Hatoum chega a Maringá, nesta quarta-feira, na Semana Literária do Sesc, com uma trajetória literária, que é, ao mesmo tempo, gigante e concisa. São apenas quatro romances publicados, "Relato de Um Certo Oriente" (1989), "Dois Irmãos" (2000), "Cinzas do Norte" (2005), "Órfãos do Eldorado" (2008), além de "Cidade Ilhada" (2009), primeira compilação de seus contos.
Dos romances, os três primeiros arrebataram um Jabuti. "Cinzas do Norte" fez a limpa e foi contemplado, também, com os prêmios Bravo!, APCA e Portugal Telecom: não deu para mais ninguém.
Autor tardio, Hatoum publicou "Relato" apenas aos 37 anos. Quando olha para trás, ele não se arrepende nem um pouco de ter demorado tanto para dar seu pontapé inicial na literatura.
"O romance é a arte da paciência. Não me arrependo de não ter publicado um texto antes do ‘Relato’. Seria apenas um ato de vaidade, inconsequente e fútil como todo gesto excessivamente vaidoso", comenta, em entrevista concedida por e-mail.
Suas histórias, vertidas para dez idiomas e publicadas em catorze países, trazem uma prosa poética delicada, com uma verve própria arrebatadora. Embora mitifique Manaus na maioria de suas histórias, Milton Hatoum rechaça veementemente o rótulo de escritor regionalista.
"A cidade de Manaus, a paisagem do rio Negro e certas particularidades regionais têm um papel importante e até decisivo na caracterização dos personagens. Mas isso nada tem a ver com o regionalismo", desconversa.Prestes a lançar um novo livro, com o título provisório de "O Lugar mais Sombrio", o autor quer mesmo encerrar esse papo regionalista.
Desta vez, seu romance será ambientado na Paris do final da década de 1970. "É um livro sobre exílio e paixão em Paris", adiantou, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Ao Diário, Hatoum fala sobre seu fazer literário, seu estilo próprio e aconselha: "Aprender a escrever reside na prática da escrita, na assimilação do que já foi escrito".
Você escreve pelo prazer de escrever?
O desejo de escrever é uma espécie de comoção, de arrebatamento. Esse desejo está intimamente relacionado com a descoberta de um mundo inventado, que é o vetor da prosa de ficção. Há momentos de intuição, ou inspiração, que são compartilhados com a reflexão sobre o ato de escrever. Essa combinação permanece ao longo da narrativa, depois corrijo e reescrevo o texto várias vezes, até a exaustão.
Como se chega à técnica do romance?
A leitura de bons romance antecede a escrita. Escrever significa, antes de mais nada, saber ler. Os grandes romances nos ensinam a lidar com estratégias narrativas que envolvem questões técnicas e fundamentos teóricos sobre a arte da ficção. No ‘Grande Sertão: Veredas’, o narrador Riobaldo diz algo assim: ‘Aprender a viver é que é o viver mesmo’. De um modo análogo, aprender a escrever reside na prática da escrita, na assimilação do que já foi escrito.
Quando se deu conta de que tinha uma voz própria?
Você encontra sua própria voz quando descobre o texto que está escrevendo. Cada romance é uma forma de aprendizagem e de desafio. A voz própria tem muito a ver com a experiência do narrador, que, de algum modo, expressa a inquietação do escritor. Quando comecei a escrever o ‘Relato de um certo Oriente’, percebi que podia inventar um microcosmo, com situações e conflitos que seriam dramatizados por personagens. O mais difícil é encontrar a voz e o tom do narrador, que é uma questão central na prosa de ficção.
Você demorou para publicar seu primeiro romance. Esse tempo foi essencial ou você se arrepende: deveria ter lançado um romance mais cedo?
Demorei porque tudo o que tinha escrito antes do ‘Relato’ era superficial, mal cabia numa crônica. A escrita depende da experiência de vida e de leitura, que são inseparáveis. E há também o tempo de espera, o tempo que filtra essa experiência e dá ânimo aos narradores. O romance é a arte da paciência, da sedimentação de uma longa reflexão sobre questões que nos inquietam. Não me arrependo de não ter publicado um texto antes do ‘Relato’. Seria apenas um ato de vaidade, inconsequente e fútil como todo gesto excessivamente vaidoso. Por isso demorei a escrever o ‘Dois Irmãos’, que é meu romance lido e conhecido. A mesma coisa aconteceu com o ‘Cinzas do Norte’, publicado em 2005, mas cujo esboço data de 1980, quando eu morava na Espanha.
Você sempre renega o rótulo de escritor regionalista. Mas, na sua literatura, você não identifica nada de regionalismo?
Há dezenas de dissertações, teses e ensaios sobre o meu trabalho, mas os poucos que abordam esse tema, expandem o conceito de regionalismo e preferem tratar da relação entre o local e o universal. Ou seja, a partir de uma situação local ou regional, a ficção alcança uma dimensão universal. Meus romances são ambientados na cidade de Manaus, que é quase uma personagem do ‘Dois Irmãos’. Alguns contos de ‘A Cidade Ilhada’ são ambientados em Barcelona, Paris e na California. Mas para um resenhista apressado ou de olhar turvo, um romance ambientado na Amazônia é rotulado de regionalista. Algo do Amazonas está latente nos meus romances, mas o que eles abordam são dramas e conflitos familiares, trajetórias de vida e destinos de personagens. Eu não poderia abstrair Manaus dessas narrativas, pois nasci e passei a infância e uma parte da juventude lá. Acredito que a cidade de Manaus, a paisagem do rio Negro e certas particularidades regionais têm um papel importante e até decisivo na caracterização dos personagens. Mas isso nada tem a ver com o regionalismo ou com o pitoresco, e sim com a composição do romance.
Entrevista publicada no Diário em 13/09/2011.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Infiel

Gosto de comer mulheres. Muito. Desde que minha ex - que fodia mal e tinha uma bunda mole - me meteu um pé na bunda, há uns meses atrás, não tenho do que me queixar. Maringá acolheu um órfão de braços – e pernas – abertos. Amém. Um notívago como eu, míope, exilado de academias, é a prova de que qualquer sujeito escroto pode comer bem nessa cidade.

Quando Caio me ligou no domingo passado, dizendo ter recebido um fora da namorada de quatro anos, tentei acalmá-lo. Caio, vamos pro bar. Vamos nessa, tenho que te contar daquela morena – uma estudante de educação física da UEM que eu havia conhecido e fudido na semana passada.

Chegamos no Democrático, na Zona Sete. Gosto de lá porque toca rock, AC/DC, Metallica, e o litrão é barato. Chegamos sozinhos. Na mesa da esquerda, duas morenas e uma loira bebiam Brahma: uma mesa de futuro.

Para você saber seu efeito sobre as mulheres de Maringá, basta notar os pés debaixo da mesa de plástico. Se começarem a bater logo após você sentar, meu amigo, sua noite está garantida. Notei que uma das garotas tinha um pescoço esbelto, que me lembrou os quadros de Modigliani – além de seios, coxas e decote. Mas eu não cheguei com essa cantada por dois motivos óbvios.

Se ela fosse inteligente – característica extremamente rara em mulheres maringaenses -, talvez ficasse ofendida. Você, me chamando de pescoçuda? Talvez. Mas, como essa garota certamente tinha um nível de estupidez considerável, não seria agradável chegar citando Modigliani. Ninguém quer ser um alienígena munido de pintores numa mesa de bar.

Por isso cheguei na mesa, sentei e disse algo sobre seu pescoço. Como é lindo o seu pescoço. Ela me olhou, assustada. Sei que ninguém nunca elogiou o seu pescoço. No máximo, continuei, você sabe que arrepia e esquenta na língua ou na barba mal feita, algum ex, atual, algum noivo, você não é casada e têm filhos?

Não tenho certeza. Faz tempo que parei de olhar aliança. Já me dei bem com uma casada, e não abordaria a mesa em que ela estava sentada, nem teria fodido ela atrás do Senac, numa rua deserta, se soubesse do seu comprometimento – mas isso eu não falei para a Modigliani.

Na verdade, ela gostou de ter, pela primeira vez na vida, seu pescoço elogiado por um estranho num bar de rock. E logo chamou o Caio para conversar na mesa também - afinal, o que fazer com as outras duas garotas?

O problema é que Caio não fala. Quieto, olha, acompanha, ri e, quando quer, dá o bote, astuto. Caio fala com silêncios. Perguntei, em seguida, no terceiro diálogo da noite, há quanto tempo ela não fudia.

Vermelha, rindo alto, loucamente, bateu os braços na mesa, apoiando os dois cotovelos: taí a resposta, há seis meses, eu disse. Ela ficou ainda mais vermelha, respondeu que era a coisa mais inconveniente que alguém já havia perguntado. Cortei aquela baboseira toda, perguntei se de quatro ou de lado. Ela me encarou. De quatro, claro. As amigas, que até então estavam em silêncio, também disseram suas posições favoritas. E abriram o jogo: Modigliani namorando sério há um ano e meio, e não via seu amado, que infelizmente mora em São Paulo, há cerca de seis meses. Em três perguntas, totalmente exposta.

Ficamos mais meia hora no bar. Fomos para o apartamento da morena – não lembro o nome -, na rua ao lado do Democrático. Caio pegou a garota, logo tocou para o quarto. Eu fui para a cozinha, preparei uma caipirinha, como quem não quer foder, como quem ignora o sexo: foi o bastante para ela ficar puta. Mulher, meu amigo, é extremamente competitiva. Me empurrou para o quarto, arranhou minhas costas, esqueceu de fechar a porta, deu de quatro, de lado, de quatro novamente, deu em pé, apoiada na cômoda, gritou com a janela aberta, gritou me fode, seu animal, me fode, seu escroto, nossa, meu Deus, nunca senti isso antes, que tesão, e eu já estava satisfeito.

Para encerrar o primeiro tempo, ela ainda me puxou, no momento em que eu ia gozar, e gritou dentro não! Goza aqui, na minha boca, seu canalha. Não é assim que o seu amigo te chama, canalha? Gozei primeiro em seu olho. Depois na testa. Em seguida no queixo, gozei nos lábios e no nariz dela. Pegando no meu pau, vencido na batalha dos justos, passou no rosto inteiro, batendo aos poucos, feliz, no sorriso aberto. Nunca fiz isso, ela me disse. Acho que te amo, Alexandre. Segurei a risada, claro. Ela foi para o banho, voltou de toalha, fudemos novamente, ela tomou banho, e dormiu.

Deixei o apartamento no meio da noite - nunca durmo com uma mulher na primeira noite. Antes, notei a foto do corno da Modigliani, pregado na parede do quarto num desses corações que servem de portarretrato. Um corno exemplar. De camiseta xadrez e bermuda. Um desses bombadões de academia. Deve ser publicitário.

Modigliani acordou solitária. Talvez, vá se masturbar durante algumas semanas lembrando a noite passada em que deu para um estranho fascinado em seu pescoço. Talvez ligue para o bombadão só à noite, não no almoço, como sempre faz, dizendo te amo, meu amor, sinto sua falta, me guardando só para você, aliás, quando você vem me visitar, hem? Maringá, túmulo dos infiéis.

sábado, 24 de setembro de 2011

Democrático

Se você pode pegar essa cadeira?
(sorrindo de corpete salto alto saia)
-quinta-feira quase meia-noite
Se você quiser a minha vida ela é sua
(sorrindo bêbado jeans camiseta)
-ala não fumante Democrático
Se você quiser o meu pau ele é seu
Enfia o meu pau na sua goela
Boca nariz ouvido
Mete meu pau dentro do seu umbigo
Entre os dedos dos pés esfrega a frieira
Nos seus olhos mamilos sobrancelhas
Por todo o sol tatuado nas costas
Primeiro no sofá da quitinete
Lambuzando sua barriga perna pescoço
Depois no quarto inquieto da Zona Sete
Duro no queixo testa joelho
Enquanto te rasgo aos poucos
A saia as entranhas o corpete
Bochecha sedenta me arranha
Alto grita goza

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Fode

Fode
(ela grita)
Como quem de uma lâmina
Se apossa trêmula
E no corte do sangue
Descobre o prazer da dor

Enfia
(ela grita)
Feito o sufoco em desespero
Que engole e cospe água
Sentindo a morte descer a goela
Em busca de um aceno

Mete
(ela grita)
Na corda forte amarrado
O pescoço
Ali mesmo no quintal
Não vai haver mais casa na árvore
Não no quintal onde ninguém ri

De quatro
(ela grita)
Vomitando no chão do banheiro feminino
Às quatro da manhã
Com a porta meio aberta
O fígado condenado que arde e arrepia
Não em mim

Mete
(ela grita)
Acidente no olhar do pai
Aos oito anos
Preso na ferragem ainda havia
Dentro do carro
Ainda havia

Goza
(ela grita)
Me recebe de joelhos satisfeita

Mais triste que um pombo

O escritor vive de migalhas
Ciscando espantos em ruas tumultuadas
Feito um pombo da praça Rocha Pombo

Entre putas pés vendedores de vassouras
-Olha a vassoura e alho!
O escritor se aventura
Exposto
Busca refúgio em pânico
Às vezes teme ser pisoteado
Atropelado quem sabe por um ciclista?
Na cabeça tomar a pedrada certeira da criança?

O escritor vive de migalhas alheias
Alheio ao que não constrange nem perturba
Um pouco só
Mais triste que um pombo da praça Rocha Pombo

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Oscar Fussato lança "Nihonjin" em Maringá

Oscar Fussato Nakasato, de 47 anos, colecionou derrotas em sua trajetória literária. Sem nada a perder, enviou os originais de seu primeiro romance, "Nihonjin", em 2007, para as doze principais editoras do País, como Companhia das Letras e Editora Record. Todas elas bateram a porta em sua cara. O escritor, nascido em Maringá, resistiu e manteve as esperanças em sua obra.
Em fevereiro deste ano, o livro foi anunciado como vencedor do Prêmio Benvirá, que contou com 1.932 inscrições. A obra foi contemplada com R$ 30 mil e foi publicada, finalmente, em maio, pelo selo de literatura da editora Saraiva. "Nunca abandonei o meu livro. Sempre acreditei que era uma boa obra", disse Nakassato, que lança seu livro nesta sexta-feira, às 19h, na Livrarias Curitiba, no shopping Catuaí.
Ele diz que nunca soube ao certo exatamente por que seu livro foi ignorado em uníssono pelas editoras. "Não sei bem o que aconteceu. As editoras são empresas. Acharam, talvez, que meu livro não tinha potencial de venda. Mas, na minha opinião, ele tem, sim", avalia.
Segundo a nota divulgada pela comissão organizadora, formada por José Luiz Goldfarb (curador do Prêmio Jabuti) e pelos autores Nelson de Oliveira e Ana Maria Martins, o resultado do prêmio foi unânime.
"Esse romance é, antes de tudo, uma competente reconstrução histórica da imigração japonesa, tema pouco presente em nossa literatura. Sua força literária está não apenas na linguagem direta e sem firulas, nos personagens e nos conflitos marcantes, mas também no poder de comover o leitor", elogiou a comissão.
Doutorado
A ideia de escrever "Nihonjin" surgiu em 2002, quando Oscar terminava sua tese de doutorado em literatura brasileira. No trabalho acadêmico, o pesquisador traçou um panorama de todos os livros de ficção da literatura brasileira que abordavam a questão do mito e resolveu explorar o tema em seu próprio romance.
Narrado em primeira pessoa, "Nihonjin" mostra o painel da imigração japonesa no Brasil, por meio do personagem Hideo Inabata, japonês orgulhoso de sua pátria, que vem ao Brasil na segunda metade do século 20 e enfrenta grandes dificuldades para se adaptar ao "País do Futuro", como definiu o escritor austríaco Stefan Zweig.
No enredo, Hideo se arrepende da dura postura adotada em relação aos seus filhos. O filho assumiu o sentimento brasileiro e morreu após a Segunda Guerra, enquanto a filha trocou um marido japonês por um brasileiro.
A história começa na segunda década do século 20 e termina na década de 1980. Para romancear o cenário nipo-brasileiro, Oscar, que é descendente de japoneses, utilizou livros de história, sociologia e antropologia para embasar seu enredo, como "Estruturas Familiares e Mobilidades Sociais: Estudos Sobre Japoneses para São Paulo", escrito pela socióloga Ruth Cardoso.
Na organização do livro, os capítulos ganharam uma força própria e podem ser lidos como se fossem espécies de contos. "Na história, uso muitas lembranças, mas não chega a ser um livro autobiográfico", comenta.
Leitor de José Saramago, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, Oscar acompanha a produção literária do País. Ele lê o paranaense Cristovão Tezza, o amazonense Milton Hatoum e acompanha os romances de Chico Buarque. "‘Leite Derramado’ é o melhor livro do Chico. ‘Estorvo’ e ‘Budapeste’ também são bons. Dele, só não li ‘Benjamin.’"
"Falta renovação"
Para Nakasato, o cenário da literatura brasileira, no entanto, é previsível e clichê. "Falta uma renovação entre os autores brasileiros. Apenas alguns nomes se destacam e aí permanecem eternamente. Os prêmios literários são recebidos apenas por quem já tem nome, como o Tezza, o Hatoum e o Chico. Precisamos de novos nomes", proclama.
Nascido em Maringá, Oscar cursou Direito na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e, após dois anos debruçado sobre leis, códigos, direitos e deveres, debandou para o curso de Letras, onde concluiu a graduação e pôde mergulhar na sua paixão. "Na UEM, com as aulas da professora Alice Penteado, eu entrei na literatura de um modo geral", recorda.
Sempre professor
Oscar ministra aulas na Universidade Tecnologia Federal do Paraná, em Apucarana. Ele leciona aulas de Língua Portuguesa e Literatura para o Ensino Médio e, nos cursos superiores de Engenharia, Tecnologia e Licenciatura, se dedica às disciplinas de Produção de Texto e Comunicação Linguística. Com os jovens de 18 e 19 anos, o escritor de Apucarana se sente mais à vontade. Até mesmo porque, ele pode discorrer sobre literatura.
"Eu nunca vou deixar de ser professor. É o que mais gosto de fazer. Não sou um escritor que dá aulas para ganhar dinheiro. Sou um professor que escreve", define-se.
Local: Livrarias Curitiba, no shopping Catuaí.
Horário: 9 de setembro, às 19h.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Etapas

Chico Buarque, Modigliani, Woody Allen:
Convidar Fernanda uma segunda vez para beber cervejas no Tribos

Chico Buarque, Modigliani, Woody Allen,
Hatoum, Kafka, Tezza:
Convidar Fernanda uma terceira vez para beber cervejas no Tribos
(notar se ela tem o “silêncio que precede as emboscadas”, que tanto falou Agualusa)

Chico Buarque, Modigliani, Woody Allen,
Hatoum, Kafka, Tezza,
Josué Demarche, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan:
Intimar Fernanda para cantar Lou Reed noite adentro
-e encontrar qualquer defeito em Fernanda
O jeito como pronuncia a letra r
Sua voz impostada nas notas agudas
Não poderia ser mais macio o sorriso de Fernanda?
(Fernanda tem cara de quem come jornalistas no café da manhã)
Se no luau não encontrar nenhum defeito em Fernanda
Evitar na madrugada sem sono escrever um poema para Fernanda
Escondê-lo se já escrito
-e jamais
Em hipótese alguma mostrar os versos para Fernanda

Chico Buarque, Modigliani, Woody Allen,
Hatoum, Kafka, Tezza,
Josué Demarche, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan
Bergman, Elomar, Arvo Part:
Controlar o desespero e a ansiedade
Quem sabe talvez enviar o poema para Fernanda
Abrir uma conta conjugal na segunda-feira
E nunca mais perder Fernanda de vista

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Tobias dos Santos Santos

Covardes
Sinto
-ah se sinto
O calafrio no pé da nuca?
Não sou idiota
Não eu
Eu?
HAHAHA
-idiota nunca não
Sei que tão querendo me matar
No começo até ficava assustado
Com um tempo de polícia nascem culhões que ninguém prevê onde
Deixa só
Como se nada
De noite quem teme é meu salmo bíblico em corpo humano
Cada dia novo susto agarrada em mim
Preocupada mais com a minha morte
Que com a minha vida
Depois do café ela tão meiga
Passa a manteiga beija me benze
Deus na minha testa pelo indicador macio dela
Que o nosso Senhor esteja sempre
Tudo naquela voz desconcerta
Regressam os homens à Igreja
Desistem das guerras e mortes
Em silêncio o teu lado ruim desaparece
Pra onde?
Covardes
Ninguém faz isso à minha cotovia
Carta de ameaça com sangue de galinha?
Azar o deles porque com ela longe de mim
No Borba Gato na casa dos pais
Já tô ouvindo aqui de novo ó
Como eles gritam
Sempre desse lado tá vendo?
HAHAHA
Minha mão Gordão me controla
Se fico dois meses sem dar pipoco em malandro
Tremendo não para quieta
Nunca tomei gota de álcool
Cigarro faz mal pra saúde
Maconha tô fora
Meu único vício
-só falar nisso olha que delícia eles ficam loucos gritando
Mexeram com o infeliz errado
Meu único vício
-e não é gostoso escutar o coral agudo de anjos desconhecidos dentro de você?
Gosto de primeiro quebrar as unhas
Rir a deformação da coragem
Rir dos gritinhos de perdão me deixa ir por favor me deixa vivo
Dá uma coisa boa
Dizer na cara deles é o Magrela
Enquanto se debatem apavorados rangendo dentes
É o capitão Tobias dos Santos Santos
Que o inferno seja tua morada
Ser o último segundo de um filho da puta agonizando
Ó como treme a mão Gordão

terça-feira, 5 de julho de 2011

Mediterrâneo

Na mesa desse restaurante
Tento não entediá-la demais entre
Entradas
Paella
E um Ramón Roqueta branco

Só para ler o silêncio em seu rosto
Busco no baú alguma coisa engraçada
-mas esqueço que há muito tempo deixei de ser engraçado

Falo do Bergman?
Lembro o murro que tomei bêbado num bar recentemente?
Menciono as experiências com heroína na faculdade?
Que traía minha ex-namorada com putas antes de encontrá-la?
Ou prometo um soneto um conto uma caricatura para ela?

Ela fala do cachorro que cava buracos imaginários pela casa
Fala do ex-namorado ciumento paranóico
Fala da mãe com saudades
-não sou filha ausente
Fala de um filme estoniano que me deixou curioso
Diz que vai parar de falar quando vier a paella
-não consigo falar e comer me desculpa?

O frio é covarde
Hesitamos em fumar lá fora
Aceso aqui dentro
Um cigarro queima o meu estômago e esôfago
Quero desembarcar nela
Se ela não perturbar minha solidão

sábado, 25 de junho de 2011

Todos os poemas para Lighia

Lighia me conquistou recitando Baudelaire no original
-nunca gostei dessas atrizes que recitam poemas e choram e interpretam em dramas demais
Mas Lighia recitando no bar entre uma cerveja e outra
-não entendo coisa alguma de francês
Falava do seu pai poeta
-sem citar os versos dele
Da primeira aula de violão com o professor ensinando Paralamas
-embora ela quisesse mesmo era aprender Baden Powell

Quando notei ao meu lado a intensidade de Lighia
-antes do bar num concerto sentindo os acordes do Manuel de Falla
Alma absorta no duo de violões
-eu absorto na sua tristeza
Decidi a partir de hoje escrever todos os poemas para Lighia

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Em você perdido

Não sei responder assim
De veio como quando
De onde surgiu
Aquela vontade de te
Assustou e te parei
No meio do bar tão
Em você perdido
Com o copo na mão
-primeiro a cerveja
Depois o vinho
Bêbado catatônico
Tro-
pe-
çan-
do
Em palavras vomitando
Frases um trecho desordenado da
Divina Comédia
Que você pediu e gostou Alexandre
Me repete essas palavras
Com prazer
Seria capaz de sabia passar uma vida
Na sua frente
Repetindo o mesmo trecho
Da Divina Comédia
Lendo cervejas
Bebendo Dante
Enquanto você fuma um baseado e suave acaricia
Seu cachorro Ringo debaixo de um pôster
Dos Beatles
Num momento estranho
Voltei a viver
-e gostei disso

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Pra Noêmia

Louca de pernas abertas
Bem molhadinha ele me deixou
Começava assim Marta me chamando pelo nome:
Noêmia
Fui despedido e caí na vida
Precisando comprar leite pão pros dois filhos
De costa com a família sem um centavo pra dívida
Enterrado pra sempre na miséria e azar?
Pensei que sim
Deus tinha então me abandonado
Ah cotovia no terror é tão triste lembrar o dia feliz
Na Vila Operária não me olhavam mais
O alvo favorito das mentiras do Tatá
Dedão na minha frente gritando ofensa e palavrão
Logo eu roubando dinheiro do caixa no karaokê?
Jurei em nome da mãe mostrei bolso debaixo do boné
-nem quiseram ver lugares íntimos
Te tiram a honestidade sem prova numa sexta qualquer
E pra sempre traidor até o fim dos dias
Verdade sim cotovia me envolvi em coisa ruim
Arrependido cada vez que deito a cabeça e durmo
Teve mesmo o lance do roubo no velho
Na mansão sem machucar ninguém
Pra pegar só um dinheiro de quem tem muito
Tudo isso com bebida sem dormir e maldito
Longe de ser perfeito
Ao seu lado morro de orgulho
-aqui ó a pontinha de vergonha da tua pureza
Todo meu carinho e agradecimento
Trabalhar no culto me deu uma coisa boa
Dentro fundo sabe como é?
Cotovia
Sou um homem só
Mas sou todo seu
-se quiser claro
Com carinho
Seu devoto
Manolo
Viu só Marta?
Que grandalhão assim te manda flor com carta no sábado?

terça-feira, 31 de maio de 2011

Aos vinte e três

Cansadas depois de acordar
As ramelas dos olhos me levam ao espelho
Tenho vergonha de encarar à frente
-aquilo que nunca fui está ali esperando uma resposta

Meto uma calça jeans
Pego o cinza da camiseta
Calço o velho tênis
Desço do elevador sem cumprimentar o porteiro
-havia mesmo um porteiro?

Na esquina da Avenida Brasil com a São Paulo
Encontro mais ramelas como as minhas
Elas são pesadas
Secas
Amargas
Dirigem carros importados
Seguem a pé rumo ao ponto de ônibus
Correm em silêncio enumerando as tarefas do dia
Entre os disparos de mensagens por celular
E a narração das manchetes dos principais jornais do País no rádio da pastelaria

Entro nesse prédio equilibrando um elefante nas costas
E ainda tenho de sorrir dar um alô perguntar tudo bem e o seu pai
-como vai?
No teclado as letras saem lentas sem estilo nem tesão
Sou um homem morto
-concluo aos vinte e três anos de idade

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Karaokê do Tatá

Falei pra ele
Tua putinha!
Contra a parede sem fuga meu amor
De mim o que bem quer
O tuzinho em coro cotovelo
Na minha boca o mindinho do teu pé
Triste pensando em quem naquelas outras?
Ai Tadeu
Setembro senti que já distante
Suas negras de vastas nádegas
Enchendo tua cabeça na minha frente?
Ódio é não escutar o papo inteiro no karaokê
Sei bem que além do parabéns
No sorriso daquelas promessas de uma cama mais quente talvez
Domingos de fúria e gozo sem pausa?
Invencível no karaokê do Tatá
Da voz profunda sedutora de cadeiras
Em pé quase todos batendo palma
Gente que sai longe até da Vila Operária
Se fala amor aqui bem pertinho capaz de matar
Sozinha já tão achando que eu louca
Ranjando briga errada no Meu Pato
Negando homem machão do teu tamanho sabia?
Perdida quem sabe sem volta pra pinga e cachaça
-nem dó tem aí dentro de mim?
No mar a âncora você me prendendo pra todo sempre?
Choro o sono por ti de raiva e tesão
Enfia a faca em mim mas não me despreza Tadeu

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Me profana diabo!

Na voz vi um sujeito aflito
Tropeçando em palavra e silêncio
Cheio de três pontinhos sabe?
Cinco anos de rua conheço bem o tipo
Combina no Meu Pato e dá balão
Esperando feito trôxa eu sozinha na mesa
Matando o bicho aqui dentro com goles de Presidente
O lugar?
Uma sobreloja na Vila Operária
Pra surpresa não cancela não
Até bonito o apê em cima duma loja de sapato
Toquei o interfone no primeiro andar
Da linha abriu o portão sem dizer oi pode subir vem tesão
Sem elevador parti pra escada
Bem metida num vestido azul curtinho e salto alto
No 101 o olho me espera atrás da porta meio aberta
Salivando me espia de baixo pra cima e empurra a porta
É quatro talvez cinco mãos menor que eu
Tão miúdo capaz de subir nas coxas daqui?
Num risinho digo bem gostoso hem
Se todos fossem assim que nem cê
Ele fica suado acho que sente a mentira
Não insisto
Tinha um sofá laranja no centro da salinha nada demais
Na mesa o retrato derrubado à pressa
-quem abraçado a ele jurando amor eterno?
Peguei pela mão e levei pro sofá
Numa lambidinha na orelha ele todo contorcido
Sete anos sem bimbar?
Louco com as gemidas da leoa em mim ao pé do ouvido
Escancara o tuzinho da tua cotovia faminta
Benze de leite meu rosto minha boca não perdoa nem a covinha
Soca tudo inteiro de uma vez sou tua me profana diabo!
Ele ficou louco ainda mais suado
Lambendo atordoado meu decote até aqui
Daí veio a campainha com alguém batendo na porta
Tão branco tremendo assustado
A voz pela primeira vez respondendo fraquinha calma tô me trocando
Corri pra trás do sofá abaixei muda
Pra minha surpresa ele veio do lado
Levantei achando que tinha outro esconderijo
Nisso a mulher com razão mandando abrir e batendo
Fraco ainda não sei como fez aquilo não
Me erguendo com tudo de uma só vez no colo
Tão rápido não gritei só fechei o olho
Arremessada um andar sem dó pelo escroto
Aqui ó a queda dói como uma faca no tuzinho
Na hora dor alguma
Só a sede de enforcar aquela garganta buscar meu dinheiro bolsa dignidade
Ninguém ali se importou comigo
Nem perguntaram de onde como se eu mesma caí
Enquanto um velho abria o portão aproveitei e corri
Sangue no zóio!
Empurrei a porta num grito alto não lembro o que disse
Quem descia a mão nele era a coitada
Que me jogou vinte pila a bolsa e um olhar de mulher

sábado, 30 de abril de 2011

Domingos Pellegrini - Entrevista

Definido pelo crítico literário Wilson Martins como um "autor de um idioma próprio e de uma não menos própria visão do homem", Domingos Pellegrini não teve dificuldades para encontrar sua própria voz ao publicar seu primeiro livro, "O Homem Vermelho", em 1977.

Em sua estreia, contemplada com um Prêmio Jabuti, o autor londrinense apresentou uma escrita voltada à oralidade e histórias fortemente autobiográficas.

"Meu estilo é meu maior patrimônio. Ninguém escreveu como eu", defende, com razão, em entrevista ao Diário.

O escritor, que participa de debate sobre infância e literatura com a mineira Angela Lago, amanhã, no Sesc, não deixou que a verve de Hemingway e Graciliano Ramos, suas duas maiores influências, transformassem seu fazer literário num pastiche tosco. Deles, Pellegrini bebeu da concisão e da clareza, e parou aí.

Em mais de vinte livros, que incluem contos, poesias, romances e obras voltadas ao público infantil, o londrinense não sabe ao certo como explicar sua peculiaridade. "O jeito de um escritor tratar a língua não tem explicação. O estilo é uma dádiva, é um dom. Gosto de escrever como quem fala, mas isso não é uma tarefa simples. Na minha literatura, não há lugar comum. O leitor sente a narrativa como se ouvisse algo novo."

A dica, aos novos escritores, é inovar. O londrinense lembra que, na década de sessenta, quando houve um boom de contistas surgindo aos borbotões, a maior parte se dedicava à cópia descarada de Guimarães Rosa.

A linguagem sertaneja, contundo, não deu certo às pencas de jovens. "30% dos contistas seguiam Guimarães. Ninguém lembra, hoje, o nome desses caras."

Quem começa influenciado cegamente por um ídolo literário ainda escapar do fracasso. "É como uma banda cover. Dá até para começar tocando músicas de outras pessoas para ganhar coragem e subir ao palco. Mas, se não tiver composições próprias, a banda vai cair no esquecimento", compara.

Diferenças

Para escrever suas histórias, Pellegrini volta no tempo e visita mentalmente lugares que frequentou durante sua vida. Na pensão administrada por seu pai, por exemplo, entre diálogos de peões e mascates, o autor relembra as gírias, as imagens e vai tecendo as redes de suas narrativas.

Nos contos, ele só pôs no papel o que sentiu na pele. "Vivi a maioria das coisas que escrevi. Eu não inventei. Para fazer os contos, é preciso ter uma vida intensa. Por isso eu parei de escrevê-los", avalia.

Das pequenas histórias, surgiram romances quatrocentões, como "No Coração das Perobas" (2002), de 436 páginas, e "Terra Vermelha" (2003), de 472 páginas. Nos enredos mais extensos, ele abre mão da memória e parte para a observação.

"Nos romances, é preciso criar personagens fortes, tecer painéis humanos. Não escrevo tanto das coisas que vivi: aprecio a vivência dos outros", conta.

Vivendo somente de literatura, Pellegrini vê suas obras virarem dissertações acadêmicas, escreve crônicas para dois jornais do Paraná e acompanha, anualmente, seus contos ganharem novas compilações. Morar em Londrina e ambientar suas histórias por lá, longe demais das capitais, não prejudicou em nada sua produção."Faulkner era do interior. Gabriel García Márquez não ia além do interior da Colômbia."

Publicada em O Diário no dia 28 de abril.

quarta-feira, 16 de março de 2011

O carnaval de Júlio

Júlio largou a enxada, pediu descanso no carnaval ao pai, quebrou o porquinho e, pela primeira vez na cidade, foi fundo em tudo. Pinga. Cerveja. Presidente. E uma ou outra dose de uísque. No Bar do Moacir, um cavalheiro de 16 anos. Pagou cerveja, seduziu as mulheres, ficou bem falado. No Meu Pato, tratamento de rei. Se deu bem com a mesa do lado. Tema da conversa, criticou Deus, aquele puto safado, e ganhou inimigos. Jurado de morte por três cristãos, Júlio deixou o bar com um copo no bolso, cuidando atrás que não lhe golpeassem com cadeiras ou garrafas. Dormiu em frente ao inferninho, do outro lado da rua, onde lhe acordaram os carros, as motos e dois policiais. Assustado, de ressaca, perdeu a fala, tirou os documentos e amaldiçoou Deus novamente - a carteira esquecida na mesa dos religiosos. Sem maconha, pedra, nada além de um copo, Júlio partiu rumo à delegacia, antes de levar chutes nas costas, no estômago e receber a dupla enchente de catarradas em seu rosto. Liberado no dia seguinte, após escrever o nome em sete papéis diferentes, Júlio foi largado próximo da UEM, onde pediu dinheiro e desafiou desconhecidos na mesa de sinuca. Derrotados todos os rivais, fez a limpa na grana e torrou quase tudo ali mesmo, em cervejas no Manhattan. Na alta madrugada, desceu a rua em direção ao Bar Sem Nome, onde a noite nunca acaba, alguém prometeu, desafiou desconhecidos, criticou Deus à vontade, aquele puto safado ladrão de carteiras, fez a limpa na grana e torrou tudo em cerveja. Na saída, Júlio ainda conseguiu carona de um dos derrotados até à rodovia, bem próximo da fazenda, onde, no fundo, sua mãe, pai e quatro irmãos seguem a rotina num barraco de madeira. Cantando na rodovia, notou seus passos tortos cada vez mais engraçados. Olhou, como nunca antes, a plantação de soja à luz da lua. Amaldiçoasse mil vezes que fosse, dali o sustento de quantas bocas em Maringá? Abraçado à soja, Júlio dormiu orgulhoso das noitadas. Às sete horas da manhã, Abílio manchou de sangue a plantação dirigindo a colheitadeira.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Nem vaselina?

O primeiro barulho veio no intervalo da novela.
Uma coisa lá no quintal.
Tipo um tropeço.
Estranho, seco.
Depois uma tosse.
Um palavrão no chute da latinha.
Sozinha, aqui, entrei em desespero.
Desde que Jonas morreu não fui mais a mesma.
Roçar o calcanhar de madrugada com quem?
Corri o olho no telefone.
Debaixo do sofá que não tava.
No meu azar, perdido em algum canto da casa.
Me cobri com a cortina ali atrás.
No silêncio do Borba Gato, só os passos do infeliz, meu coração e a propaganda da pasta de dente na TV.
Tão ruim de magrelo, puxou a cortina gozando da minha cara.
Escondendo de mim?
Não conseguia ficar em pé, ele.
Desequilibrado, derrubou tudo sozinho.
A estante, a mesinha e caiu ali, ó, bem em cima do aquário.
Contra ele nem um sopro saiu da minha boca.
De nada adiantou explicar.
Alegar inocência?
Eu era, sim, a culpada do sangue derramado.
Azar o meu.
Que tive a boca fechada com a mão dele.
Talvez até me passou doença de sangue.
AIDS?
Me levou até que com cuidado lá pra cima.
Sempre com o estilete na mão ameaçando por trás.
De uma vez me jogou na cama.
E pimba!
Eu, a última cotovia do Borba Gato.
No meio da novela, mais uma vítima da fome?
Aos oitenta e três, sem piedade?
Nem vaselina?
Só deu pra ver aquelas marcas no corpo todo.
Desenhos de rostos tortos.
Estranhos rostos pretos de diabos.
Sem nariz, olho, cabelo.
Dois grandes na barriga.
E alguns nas costas.
No rastro de sangue minha quase consumação.
Foi ouvir a sirene na rua, não pensou duas vezes.
O telhado do vizinho facilitando a fuga do marginal.
Que agora conhece até o esconderijo atrás da cortina.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Traficante eu?

A perna perdi na linha do trem
A direita
Se dói não sei não
Desmaiei e acordei assim ó
O eterno manquinho do Borba Gato
Respeitador de todos e muito trabalhador
Meu último emprego era na farmácia do bairro
Levando na casa o remédio dos coitados
E não ficava só na rotina
Eu sempre muito humano sabe?
Conversava com os velhinhos
Aceitava o chá das senhoras solitárias
Ria junto com elas
Fazia piada da minha perna
Deixava o dia um pouco feliz
De bicicleta sim das oito às oito
Cruzando a Vila Operária
Rasgando a Cerro Azul de cima pra baixo
Com cuidado maior na Avenida Brasil
-que não sou besta de ser atropelado viu?
Dois meses manco já pegava a prática
Nem sentia mais a falta da ausente pedalando
Acho que até ia mais rápido
Não sei de onde tiraram essa ideia
Traficante eu?
Só de amor seu moço
Nunca nem usei essas coisas aí quando jovem
Nem sei a cor o peso ou como se usa
Na hora ali fiquei é com medo
Cinco carros me encurralando e cantando pneu
Os brutamontes gritando com a cabeça pra fora da janela
O que cê faria?
Me joguei na magrela
Pisei fundo
Na confusão até perdi o chinelo
Cansado de tanto trabalho tive mau desempenho
Na subida da ladeira me alcançaram os trogloditas
Rindo da minha cara
E da falta que a perna me faz
Quem me conhecia chegou junto
Dizendo ele é do bem trabalha na farmácia
De nada adiantou
Deram uns tapas no meu rosto
Ofenderam minha mãe morta ano passado
Chamaram de puta maloqueira daí pra baixo
Zombando disseram que vou traficar agora no xadrez
Sei como é na prisão
Perneta e estuprador os prediletos dos marginais
Tapam a boca
Não tem como gritar
Amarram os braços
Passam gel às vezes perfume
Lambem todas as suas partes
As mil loucuras na sua frente atrás no seu ouvido
Um por um em fila organizada
Todos famintos carentes de amor

Cristovão Tezza - entrevista

Sempre quando entra num sebo, Cristovão Tezza faz questão de comprar o mesmo livro: "A Cidade Inventada" (1980). O objetivo? Tirar todos os exemplares de circulação. A obra, publicada pelo curitibano aos 28 anos, reúne 18 contos e é renegada pelo próprio. Há dois anos, em São Paulo, abordei o escritor, após uma palestra, e pedi uma dedicatória num dos raros exemplares que escaparam de suas mãos.
Primeiro, ele ficou surpreso - não é sempre que a gente dá de frente com um fantasma. Em seguida, abriu um sorriso e não escapou do autógrafo no volume que agora figura entre as minhas raras raridades de colecionador.
Que o autor de "A Cidade Inventada" continuasse a escrever, não era nenhuma grande surpresa. Afinal, embora Tezza discorde, seu livro exibe um jovem com fôlego e sede por literatura.
Mas que o responsável pela pequena obra de contos pudesse se transformar num dos grandes nomes vivos da literatura brasileira, daí já era demais: ninguém poderia prever.
"Literatura é arte de maturação muito lenta", define o escritor, em entrevista concedida por e-mail. Nesta quarta-feira (15), às 20h, no salão social do Sesc, Cristovão Tezza volta a Maringá, dessa vez, com o status de celebridade literária.
Autor de cerca de trinta obras, Tezza se aventurou pelo romance, teatro, em publicações acadêmicas e lançou aquele renegado e único exemplar de contos. Dos gêneros literários, o curitibano só não usou a poesia. Aliás, usou e não gostou. "Nunca fui um bom poeta", diz.
Nessa trajetória, ele conseguiu escrever obras como "Trapo", "Uma Noite em Curitiba" e "O Fotógrafo". Com "O Filho Eterno" (2007), o curitibano fixou seu nome na literatura nacional.
O livro, fortemente baseado em aspectos biográficos, venceu os principais prêmios literários do País. Foi contemplado com o Jabuti, os prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Portugal-Telecom e o prêmio São Paulo de Literatura, o que resultou em R$ 300 mil no bolso do escritor, que deixou de lecionar Linguística na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Sucesso de crítica e público, a obra será transformada em peça teatral e filme, ambos sem previsões de estreia. Ainda neste mês, a editora Record deve, finalmente, publicar "Um Erro Emocional", encerrando o jejum do escritor e saciando a curiosidade dos leitores. Confira a entrevista de Tezza ao Diário.
O DIÁRIO A rotina de palestras mundo afora prejudicou a composição de "Um Erro Emocional"?
Cristóvão Tezza Tinha tudo para prejudicar, mas eu consegui tirar alguns meses para fechar o livro, finalmente, que eu vinha escrevendo há um bom tempo. Assim, escrevi o livro com as mesmas condições de todos os outros. "Um Erro Emocional" é uma história de amor ¿ ou, mais propriamente, a história de uma aproximação amorosa. É um livro bastante concentrado em poucas situações de tempo e espaço, mas todos os meus temas estão ali.
Agora que você virou uma celebridade literária, sentiu um peso ainda maior ao escrever o novo livro?
Não, não senti esse peso. Eu nunca me senti realmente uma celebridade literária. Já estou meio velho. Seria ótimo se essa festa tivesse acontecido há uns 15 anos.
Você já se aventurou em contos e romance. Por que não a poesia?
Fui poeta quando adolescente. Escrevi pilhas de poesias. Em 1975, escrevi alguns poemas quase bons, quando vivia em Portugal. Mas a prosa logo foi tomando conta da minha vida e abandonei o verso. Nunca fui um bom poeta.
Você vem sendo considerado um dos cinco futuros cânones da literatura brasileira. Qual sua opinião sobre a atual produção literária no Brasil?
Acho que a produção literária brasileira está crescendo muito. Toda a geração que se formou na entressafra dos anos 80 e 90, agora começa a produzir literatura mais madura.
Na sua opinião, quem serão os futuros cinco cânones?
Não acredito em cânones criados "em cima do laço". Literatura é arte de maturação muito lenta. Não tenho ideia do que será referência no futuro.
Milton Hatoum costuma desaconselhar os jovens a publicar seus textos em blogs e sair escrevendo livros. Para ele, é preciso que os jovens leiam os clássicos antes de escrever em blogs. O que acha desse conselho hatoumniano?
Que os jovens leiam clássicos, é fundamental. A literatura não é uma arte ingênua nem se faz por geração espontânea. Quanto ao blogs, acho que cada caso é um caso. Não tenho nada contra as novas linguagens criadas pela internet. Na verdade, a internet ajudou muito a literatura brasileira, que passou a contar com uma divulgação e informação que jamais teve antes.
Quais cinco obras você gostaria de indicar aos novos escritores?
Não sei dizer assim - os clássicos, como diria o Hatoum. Quem escreve sabe achar o caminho.

Publicada no jornal O Diário em 15 de setembro de 2010

Entrevista - Cristovão Tezza

Cristovão Tezza é um pé frio. Deve ser alguma macumba das bravas, mandinga de escritores de auto-ajuda, vai saber? É coisa da pesada mesmo. Na semana passada, como convidado da Semana Literária no Sesc, o premiado escritor curitibano deu a palestra, sozinho, sobre criação literária.
Em cima da hora, o gaúcho Moacyr Scliar cancelou sua participação no evento, devido ao delicado estado de saúde de seu sogro. Hoje, Cristovão Tezza retorna à Maringá, desta vez, como parte da programação do projeto "Autores e Ideias", e novamente dará a palestra desfalcado. O jornalista Daniel Piza, ícone do jornalismo cultural brasileiro, cancelou sua participação no debate, aos 45 minutos do segundo tempo, alegando "motivos pessoais".
Ainda bem que durante a palestra da semana passada, Cristovão Tezza seguiu o tema proposto: não há risco dele se repetir ou do público ser tomado pela sensação de déjà vu.. Hoje à noite, o tema será diferente:
"Tecnologia e Leitura no Cotidiano". Bem humorado, o autor encontrou uma sala cheia de universitários, leitores e leitoras quarentões, todos empunhando, no mínimo, uma de suas obras debaixo do braço para serem assinadas após o bate papo.
Mediado pelo professor de literatura da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Milton Hermes Rodrigues, o debate com Cristovão Tezza rendeu boas revelações sobre o processo criativo de seus livros. Sobre seu novo romance, "Um Erro Emocional", que será lançado neste mês pela editora Record, Cristovão Tezza desabafou: "Estou realmente ansioso e inseguro com a publicação".
Criação literária
A ideia de escrever "Trapo" (1988), obra que o projetou o nome de Cristovão Tezza no cenário nacional, surgiu com uma imagem de "Palmeiras Bravas", do estadunidense William Falkner. Tezza, ainda como estudante do curso de Letras, andava escrevendo alguns poemas, intitulados "23 Modos de Assassinar a Poesia".
Seus amigos e colegas de sala sugeriam, em conversas, que ele tranformasse as poesias num livro. Com uma imagem de um excerto de "Palmeiras Bravas" na cabeça, Cristovão Tezza pasou a escrever sobre o universo das décadas de 70 e 80, inserindo no enredo da história personagens reais de Curitiba, pessoas que ele conheceu nas mesas dos bares e outras figuras do meio publicitário da capital paranaense.
Depois disso, ele reuniu os poemas e, na mesma ordem em que foram escritos, organizou os volumes, intercalando-os no romance, compondo um rico jogo de linguagem e revelando sua versatilidade como escritor.
"Num determinado momento, quando eu já estava escrevendo a história, não havia mais ligação entre o 'Trapo' e o livro de Faulkner", observa. "Não há lógica nenhuma na criação literária", conclui o autor, com uma gargalhada. A fórmula alcançada em "Trapo" foi repetida em outra obra bem conhecida de Tezza, "Uma Noite em Curitiba" (1995).
Medo de errar
Durante a palestra, Tezza confessou estar inseguro e ansioso com relação a "Um Erro Emocional", sua nova obra, ainda inédita. A pressão do autor é compreensível. A nova obra sucede sua obra-prima, "O Filho Eterno", responsável por fixar seu nome entre os maiores literatos brasileiros vivos.
"Estou realmente inseguro e ansioso com o lançamento do novo romance. Ninguém, além da minha editora, leu a obra. No entanto, acho difícil eu conseguir escrever um livro ruim a essa altura da vida. Acho que aprendi algumas coisas", disse Tezza.
Imaginando que a obra seja recebida aos tapas e pontapés pela crítica especializada, o escritor arrancou risos da platéia ao sugerir, em tom de piada, um outro título para seu novo romance: "A Explusão do Paraíso".
Segundo Tezza, "Um Erro Emocional" foi composto a partir de alguns dos contos que vem produzindo desde 2007. "Eu criei um passado para os personagens. Os contos foram apenas esboços para este romance", contou.
O punhado de histórias concisas acumuladas nesses anos não será reunido agora, como alguns cogitavam. Ao invés de lançar, concomitantemente, um romance e um livro de contos, Cristovão Tezza vai guardar "Beatriz" para 2011.
Crônica
A definição de Tezza para o gênero literário que imortalizou Rubem Braga arranca mais risadas do público: "Crônica é conversa fiada com estilo". Como cronista, o autor curitibano aceitou o desafio proposto pelo jornal Gazeta do Povo e assumiu uma coluna semanal.
Na rotina de cronista, nada de tranquilidade. O trabalho é duro e Tezza não costuma escrever suas histórias de uma só vez. "Estou sermpre voltando à história para melhorá-la".
Dos temas abordados em sua coluna, alguns provocam a resposta imediata de leitores. "Se escrevo alguma coisa sobre o Atlético Paranaense e sobre as calçadas de Curitiba, como fiz uma vez, dizendo que eram as piores calçadas do mundo, os leitores sempre enviam um e-mail e deixam comentários", conta.
Para o novo encontro de hoje, mais histórias e gargalhadas com Critovão Tezza. Chance única para ficar cara a cara com um gênio da literatura contemporânea.

Publicada em O Diário no dia 23 de setembro de 2010

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A provocação de Mutarelli

Lourenço Mutarelli está surpreso com a reação dos leitores à sua nova obra, "Nada me Faltará". "Tem muita gente com raiva do livro", disse, por telefone, em meio a risos. Em 136 páginas, o autor de "O Cheiro do Ralo" (2002) conseguiu compor um enredo tenso, do início ao fim, sobre o desaparecimento de uma família.

Enquanto sua esposa e filha permanecem desaparecidas, o pai, Paulo Maturello, reaparece na história, vivendo na casa de sua mãe, sem qualquer lembrança do que aconteceu, e passa a ser objeto de investigação. Se ele é o assassino da sua própria família, ou não, cabe ao leitor decidir. "As pessoas querem tudo mastigado. Os leitores não querem participar", reclama o escritor e quadrinista paulistano.

Tal como em "A Arte de Produzir Efeito Sem Causa" (2008) e "Miguel e os Demônios" (2009), Mutarelli recorreu a um clima profundamente misterioso e ao final em aberto – que, segundo ele, não é tão aberto quanto parece. "Deixei pistas sutis para direcionar o leitor ao final da história. O protagonista é o assassino", decreta.


Diálogos

Toda escrita em diálogos, a obra demorou apenas 2 meses para ser composta. "Escrevi imaginando uma história em quadrinhos feita apenas pelos balões das falas das personagens. Foi difícil situar o leitor no tempo e escrever os detalhes das personagens por meio dos diálogos", diz.

A linguagem dos diálogos cortantes permanece seca, concisa. Não há metáforas nem doses de lirismo, como ele fez em "O Natimorto" (2004), sua melhor obra. Nas mãos do escritor, as pequenas paranóias do cotidiano costumam ser transformadas em recursos cômicos.
Desta vez, no entanto, Mutarelli abriu mão do humor minimalista que

marcou sua trajetória literária. "O assunto desse livro é pesado. Suprimi o humor, que havia no começo do livro, porque ele diluía a tensão", diz. "Nada me Faltará" é seu livro menos engraçado, mas ainda há passagens bem humoradas, como uma malfadada sessão de hipnose do protagonista.

Férias

Lançando um livro por ano desde 2008, Mutarelli já sente um peso maior na hora em que vai para frente do notebook ou quando perambula pelo apartamento registrando suas histórias num gravador. "Escrever, hoje, não é tão fácil como era antes. Vou passar um ano sem escrever enquanto aproveito para terminar um livro com meus desenhos. Acho que a distância da literatura vai me ajudar nos próximos livros".

Mutarelli acredita que a profissionalização de um escritor é sempre perigosa. "Estou tomando muito cuidado com ela, afinal, quando passa a ser um trabalho, nada é tão prazeroso", diz.

Mesmo assim, o próximo livro do autor já está pronto e será lançado dentro da série "Amores Expressos", da Companhia das Letras. "Com essa nova história ambientada em Nova York encerro a minha trilogia, iniciada em 'A Arte de Produzir Efeito Sem Causa' e 'Nada me Faltará', com personagens que passam por mudanças em suas vidas e voltam a morar na casa de seus pais", diz.

Na literatura de Mutarelli, as famílias despedaçadas ajudam a compor a profundidade psicológica das personagens envolvidas nas tramas. O clima jamais é ameno. Tudo é soturno, lúgubre, desesperado e as pessoas carregam, em si, um mal que desperta furiosamente sem aviso prévio.

Em "Nada me Faltará", o triunfo literário de Mutarelli é a provocação, envolvendo o leitor numa rede de mistério minuciosamente elaborada, compondo uma obra sem afeto, fria e repleta de angústia.

Para ler

"Nada me Faltará", de Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$37
Avaliação: ótimo

Publicada no jornal O Diário no dia 5 de janeiro de 2011.

Leia o relato do meu encontro com Mutarelli, em São Paulo, no início de 2010.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Os melhores livros de 2010

"Em Alguma Parte Alguma", do Gullar, é o melhor livro do ano

Quem aprecia a boa literatura não tem do que reclamar neste 2010. A produção literária foi extremamente bem produzida nos gêneros conto, romance e poesia. No panorama nacional, os livros mais esperados foram "Um Erro Emocional", do curitibano Cristovão Tezza, e "Em Alguma Parte Alguma", do poeta maranhense Ferreira Gullar.

As duas obras estavam previstas para serem lançadas no final de 2009, mas só chegaram às livrarias no segundo semestre. Alívio para os leitores de Gullar.

O autor de "Poema Sujo" (1976) não publicava um livro de versos inéditos há onze anos. Forte candidato a melhor livro do ano em todos os prêmios literários de 2011, "Em Alguma Parte Alguma" é um livro delicado e mostra o poder das palavras do maior poeta brasileiro vivo, versando sobre morte e o cotidiano. Na obra, Ferreira Gullar faz referências ao escritor austríaco Rainer Marie Rilke e dedica meia dúzia de poemas ao seu gatinho de estimação.

Já o curitibano Cristovão Tezza também saciou a curiosidade de seus leitores que, desde "O Filho Eterno" (2007), estavam curiosos para acompanhar seu próximo romance. Numa história de amor, escrita em linguagem límpida e ritmo narrativo veloz, Cristovão Tezza retomou os temas que marcaram suas obras passadas, como "Uma Noite em Curitiba" (1995) e "O Fotógrafo" (2004), e traz para a ficção as tensões dos relacionamentos conjugais.

De Curitiba, Dalton Trevisan mostrou que não perdeu a forma. Aos 84, continua lançando um livro por ano. Desta vez, o "Vampiro de Curitiba" saiu à tona com "Desgracida", investindo em contos curtíssimos, retratando marginais, ladrões, traficantes e prostitutas. Um dos pontos mais peculiares da obra é a inusitada seção que reúne sua correspondência particular. Nas más traçadas linhas de Dalton Trevisan, ele debocha de Guimarães Rosa e decreta que Machado de Assis é o maior contista brasileiro.

Considerado o melhor contista brasileiro, Dalton Trevisan foi o tema da obra de outro paranaense, o escritor Miguel Sanches Neto, de Ponta Grossa. Em "Chá das Cinco com o Vampiro", Miguel Sanches Neto romanceou sua relação com Dalton Trevisan e o retratou de forma cruel. Na obra, o autor fala mal de Dalton, como sujeito e escritor.

A obra, em si, é ruim. Mas é, de fato, um livro histórico na literatura nacional. Ele conseguiu mostrar, pela primeira vez, detalhes sobre a rotina e a vida pessoal do mais recluso escritor brasileiro de todos os tempos. Em troca, foi chamado de "hiena papuda" pelo curitibano e seu livro foi duramente rechaçado no círculo dos escritores.

Entre os novos poetas, os destaques deste ano são os paulistas Fabrício Corsaletti, com "Esquimó", e Alberto Martins, que publicou "Em Trânsito". Ambos publicados pela Companhia das Letras, comprovam que a poesia contemporânea no Brasil tem voz própria e está sólida, mesmo quando comparada ao universo literário de outros países, como Argentina e Alemanha.

Estrangeiros

Dos nomes internacionais, o ano de 2010 teve boas surpresas. O norte-americano Philip Roth, pela primeira vez em sua trajetória, escreveu sobre a relação de um casal de lésbicas, compondo, em "A Humilhação", personagens perturbadas psicologicamente.

Conterrâneo de Roth, Paul Auster fez bonito em "Invisível". Provocou a sociedade estadunidense com uma relação incestuosa entre irmãos e fez uma bela história de amor, em clima de suspense , numa narrativa ágil.

Com "Verão", o sul-africano J. M. Coetzee mostrou uma verve bem humorada ao romancear sua própria biografia a partir das perspectivas das mulheres com as quais se envolveu.

Confira a lista:

Em Alguma Parte Alguma

Ferreira Gullar

Editora José Olympio
Aos 80 anos, o poeta maranhense compõem poemas viscerais sobre a morte, o cotidiano e o amor

Um Erro Emocional

Cristovão Tezza

Editora Record

Uma narrativa delicada e ágil sobre o envolvimento amoroso de um escritor consagrado com sua leitora

Desgracida

Dalton Trevisan
Editora Record
Em contos pequenos, o "Vampiro de Curitiba" dá espaço a ladrões e prostitutas. Na seção de cartas, critica Guimarães Rosa

Invisível

Paul Auster
Editora Companhia das Letras
Com um enredo provocador, o escritor norte-americano escreve sobre incesto e compõe uma bela história de amor e suspense

O Albatroz Azul

João Ubaldo Ribeiro
Editora Companhia das Letras
Neste romance breve, o escritor baiano volta a mitificar a ilha de Itaparica e escreve uma delicada história sobre a vida e a morte

A Humilhação

Philip Roth
Editora Companhia das Letras
Pela primeira vez, Philip Roth narra o envolvimento de um casal de lésbicas. A obra explora a profundidade psicológica das personagens

Verão

J. M. Coetzee
Editora Companhia das Letras
Num dos livros mais bem humorados do Nbel sul-africano, J. M. Coetzee faz seu autorretrato por meio de olhares de suas mulheres

Esquimó

Fabrício Corsaletti
Editora Companhia das Letras
Com alusões a Bob Dylan e César Vallejo, Corsaletti desponta como um dos principais nomes da poesia contemporânea no Brasil

Chá das Cinco com o Vampiro

Miguel Sanches Neto
Editora Objetiva
Escritor de Ponta Grossa levou Dalton Trevisan ao universo da ficção, criticando-o como autor decadente e um ser humano pérfido

A Morte de Matusalém

Isaac Bashevis Singer
Editora Companhia das Letras
Contos do Nobel de Literatura, morto em 1875, abordam a vida sexual de suas personagens com bom humor e final surpreendente

Em Trânsito

Alberto Martins
Editora Companhia das Letras
O escritor e artista plástico faz de São Paulo sua personagem principal e versa sobre pequenas situações do cotidiano

Nada me Faltará

Lourenço Mutarelli
Editora Companhia das Letras
Numa obra amargurada, o escritor e quadrinista paulistano narra o desaparecimento de uma família

A Arte de Tomar um Café

André Simões
Atrito Art
Com sacadas inteligentes, jornalista londrinense mostra seu ponto de vista ranzinza e, em alguns momentos, saca da manga doses de lirismo

Publicado no jornal O Diario em 1 de janeiro de 2011