segunda-feira, 26 de julho de 2010

Vassoura e alho!

Minha mãe, 87 anos.
Há dois nesse vai não vai.
Quantas vezes no HU?
Comida só de aviãozinho.
Consegui a cadeira emprestada.
Perdi o emprego no supermercado.
Ninguém aguentava eu saindo sempre pro HU.
O gerente chegou a duvidar.
Sua mãe doente de novo?
E lá vou eu com atestado assinado.
Um ano tudo bem.
No outro me botaram na rua.
Eu e minha mãe de 87 anos.
O namorado me deixou.
Baiano, tão bom, queria casamento.
Homem de igreja, sério, trabalhador.
Ou sua mãe ou eu!
O que você faria?

Banho só comigo.
E quando ela começava a brincar?
Me jogar água?
De birra não levantava o braço.
Me chamava de Eugênio.
Se apertava toda contra a parede.
Eu com a esponja na mão, a água escorrendo.
Chorando.
Ela ria.
Parecia coisa do demônio.
A conta sempre infernal no fim do mês.
De vez em quando recusava comida.
Não abria a boca de jeito nenhum.
O mesmo acontecia com o remédio.
Só eu virar as costas.
Que ela cuspia longe.
Tudo isso rindo de mim.
Dois anos essa a minha rotina.
Passear com ela na rua.
Ouvir no rádio a missa do padre Zezinho.
Aviãozinho de comida.
Vendendo vassoura e alho no Borba Gato.
Olha vassoura e alho!
De casa em casa.
E pensando na mãe.
Eu tava na cozinha ouvindo o padre Zezinho.
Ouvi os dentes tremendo.
Os pezinhos bateram na cadeira de rodas.
Menos de trinta segundos.
Desliguei o rádio.
Fui até o quarto.
Sem espiar fechei a porta.
Assoviei a musiquinha da Globo.
Aquela de fim de ano.
Peguei a bolsa e fechei o portão de casa.
Com o cartão quase acabando, liguei da esquina pro Baiano:
Nunca é tarde pra correr atrás do grande amor.

sábado, 10 de julho de 2010

Sou uma putinha difícil

Sou uma putinha difícil
Não entro no carro se eles tão drogados
Desconto não faço se o cara é bonito
Não fico gemendo
Não libero o tuzinho
Não sinto nenhum prazer na bimbada
Quando eu conseguir a grana
Vou embora daqui
Tudo isso por causa da minha mãe
Que tá em casa passando mal
Há um ano passando mal
Nessa coisa do morre ou não morre
Minha mãe matou a minha vida
Não deu pra continuar com meu namorado
Deixei tudo muito claro
Ele me bateu
No meio da rua
Na frente de todo mundo
Cê sempre foi uma puta mesmo
Tão difícil a gente ouvir essas coisas
Ainda bem até agora dei sorte
As histórias das outras meninas não são nada boas
Quando será a minha hora?
A gente nunca sabe quem é o motorista
Tão dizendo agora que tem até um cara aqui na cidade
Que tá espancando geral
Um cara bonitão
Do seu tipo
E como saber que não é você?
Quem me contou foi a Marta
Eles tavam no motel
Diz que o cara foi um anjo
Quando voltavam
Parou o carro
Desce sua puta!
Ela ficou assustada
No meio do nada
Que cê vai fazer comigo?
Fora!
Arrancou a roupa dela
Bateu com uma barra de ferro
Nas coxas
Nas costas
Na cabeça
Ela dormiu
Diz a polícia que o cara abriu a blusa dela
E continuou dando paulada com o ferro
Com tudo ensanguentado
Como ele teve estômago?
Tem maníaco pra tudo em Maringá
Se não fosse um motoqueiro
Ela ainda tava por lá
Sozinha
No meio da plantação de milho
Cheia de porra no rosto
Por isso que eu digo
Quero o meu dinheiro
Só pra pagar o hospital
Vou desparecer para sempre dessa merda de cidade

terça-feira, 6 de julho de 2010

Treze

Se eu tivesse um revólver
Mataria essa voz
Tem uma voz na minha cabeça
Uma voz que me dá ordens
Essa voz não me deixa dormir
Ela ecoa de um lado
Ecoa de outro
E nunca sai lá de dentro
Feito um sonâmbulo
Insone
Rondando

Se eu tivesse uma faca
Eu cortaria meu peito adentro
Depois esfaquearia meu olho
-talvez o direito primeiro
Enquanto o sangue jorra descontrolado córnea afora
Eu não esqueceria o pulso
-só para garantir
Se me restassem forças ainda deceparia meu pau
Mas isso eu não prometo

Se eu tivesse uma chave
-de moto, de carro, de apartamento, de treminhão
Eu a engoliria
E tentaria engasgar
Quantas vezes fosse necessário
Um controle remoto talvez fosse mais eficiente
Mas a voz não quer chave nem controle
Ela quer algo preciso
Eu preciso encontrar algo para a voz
Ela me manda balançar o braço desse jeito
Se eu falo gritando, assim, ó, a culpa é dela
E ela diminui o tom, olha só, da minha voz quando bem quer
E começa a gritar novamente
Que não há nada nem alguém mais triste do que “O Cão” do Goya
-exceto eu
Que nada no mundo soa tão triste quanto os acordes de "Spiegel im Spiegel" do Arvo Part
-exceto eu
Ela não gosta de vocês de branco
Nem do Gordão
Gordão
Aquele cara que agora dorme do meu lado, né?
Dormia?
Que pena
Gostei dele desde o início
-eu
Ela não
Eles não se identificaram
O gordão e a voz
Gordo filha da puta, ela me disse
E ficou zunindo
Zunindo
Zunindo
Até que eu tive de falar por ela
Gordo filho da puta
Gordo filho da puta
Gordo filho da puta
Depois ela mandou eu pular nele
Pular e bater com os punhos fechados
Não vá quebrar seus dedos, Treze
Pule e puxe a barba, Treze
Corte um pouco para mim, Treze
A ideia de furar o olho do gordo com os óculos dele?
Dela
De quem mais seria?
Duvido que ela pedirá desculpas
Não
Ela nunca me chama pelo nome
Nunca quis tomar um chope comigo
Nunca quis ficar de porre comigo
Eu não passo de um número
Treze
Treze
É assim
Treze aquilo
Treze aquilo
Pegue os óculos do Gordo, Treze
Pegue os óculos e mete no olho dele, Treze
Agora
Sabe o que ela diz?
Que vocês são idiotas
Que a roupa de vocês é idiota
Que vocês estão querendo mesmo é ver meu pau, grande, babando, decepado na guilhotina
Ninguém mais aguenta o branco deles, Treze, fala para eles, Treze
-nessa sala, nessas roupas, no corredor, no banheiro
Se eu pudesse deixar a voz
Você não acha que eu já teria saído daqui?
E deixado ela vagando no meu lugar?
Tudo o que eu quero é que ela cale a boca
Quero parar de tomar esses remédios
E parar de usar essa blusa escrota
Que prende minhas mãos
E só livra minhas pernas e cabeça
Aliás, a voz está mandando eu levantar dessa cadeira
Ficar de pé
E saltar no chão de ponta
E que se me mandarem para aquele quarto sozinho
-novamente nessa semana
Ela entra em todos vocês
E faz ainda pior

segunda-feira, 5 de julho de 2010

No Saleiros

Eu estava no bar. Saleiros. Gosto de lá porque não tem ninguém. Gosto porque posso beber minha cerveja e ouvir blues. Eu estava sozinho. Na mesma mesa em que eu sempre sento, do lado da janela. No fundo do bar. Tinha uma cerveja e um bloquinho em cima da mesa, intacto. Penso num romance. Num casal. Ele, um jornalista de vinte e dois anos. Escrevo. Ela é loira e trabalha numa livraria no centro da cidade. Ele frequenta a livraria pelo menos três vezes por semana, apenas para ver os lançamentos, comprar um ou outro livro, e torcer para descobrir um novo autor. Ela sempre o atende. Eles nunca conversaram sobre outros assuntos, a não ser o preço dos livros. Ele sempre foi tímido. Nunca se livraram da barreira que os separava. Ponto. Não sei como passar daqui. Peço outra cerveja. A mais barata. Desculpa, a voz disse. É uma garota, com uns vinte e cinco anos, loira. Você é o Alexandre, não é? Gostei bastante do seu último livro. Respondo que não, não sou o Alexandre. Tenho um rosto muito popular, digo. Ela sorri. Sabia que você diria isso. Eu também sabia que você estaria escondido debaixo desse boné. Só uma coisa: você não parece ter sessenta e cinco anos. Ela sai. Minha cerveja chega. Na mesa dela há mais três garotas com a mesma idade. Devem ser estudantes. Delas, minha leitora é a mais gostosa. Tem uma bela bunda. Recorro ao papel. MInha personagem não é mais uma atendente. Ela é morena, é uma estudante de Psicologia, Júlia, que quer abandonar tudo para ser cantora. Ela canta na noite, canta samba, Chico Buarque, enfim, ela é foda. Ele viu um show dela, recentemente, e ficou encantado. Escreveu um conto, “Júlia, minha artéria e meu esôfago”, sobre ela e publicou no seu blog, um blog ruim, malfadado, que ninguém perde tempo para ler. De contos idiotas. Ela leu. Ela pensa que ele é louco. Um desses maníacos que, se tudo der certo com sua carreira, ela enfrentará semanalmente após os shows, saindo dos camarins, fazendo o check in no hotel. Você é realmente uma pessoa triste, indaga a loira. Paro de escrever. Fecho o bloco de notas. As amigas continuam conversando. Mas ela está parada na minha frente, me dá um sorriso. Você é tão triste mesmo? Eu não a conheço. Ela não pediu para sentar. E recebe o copo vazio das mãos do garçom com naturalidade. Duvido que você não aprecie nem um pouco do Saramago. Concordo que você deve sambar mal. Ela toma um gole da cerveja. Estou sem graça. Preparo algo para dizer. O último conto do seu livro mexeu comigo, sabe? “Sou uma pessoa triste”. Tive pena de você. Porque você escreveu também sobre a minha tristeza. Eu canto Adoniran Barbosa quando fico bêbada. Mas, ao contrário de você, recito Saramago, embriagada, antes de dormir no banheiro. Ah, é, eu digo. É, ela afirma. Acabei de terminar com o meu namorado. Ela enche o copo dela, deixa a cerveja na mesa. Acabei de terminar o relacionamento. Com o meu namorado. Estou grávida. Não sei se o pai é ele. Tínhamos um relacionamento aberto. Mas me apaixonei por outro. E contei para ele. Ele estuda Letras comigo. Contei que estava apaixonada por outro. Ele nem ficou bravo. Sorriu. Me deu parabéns. Sei lá. Não dava mais para viver assim. Daí veio a notícia do filho. Disse que a culpa era minha. Que eu não tomei a pílula de propósito. Que eu fizesse o que eu bem desejasse. Dele, mais nada. É isso. Eu ia te escrever um e-mail, contando. Mas você banca o recluso, não dá entrevistas. Quem sabe você não quer escrever algo sobre a minha história. Dou um sorriso. Não diga que não gostou do nosso monólogo, ela diz. Foi fácil encontrar você por aqui. Talvez, se você não desse tantas dicas nos seus livros. Fala a verdade, você não quer se esconder. Qualquer um que lê o seu livro sabe que você frequenta o bar. Aliás, um belo bar. Saleiros. Minha primeira vez por aqui. Acho que volto. Mas já consegui o que eu queria. Até sábado que vem, ela diz. Deixa o copo ainda cheio na mesa. Chamo o garçom. Pago a conta. Saio olhando para o chão. Nunca mais entro nesse bar.

Sou uma pessoa triste

Sou uma pessoa triste
Que não gosta de Saramago
Que não sabe dançar samba
Que já foi parar no hospital às quatro horas da manhã após uma tentativa frustrada de suicídio
Sou uma pessoa triste
Que não têm histórias empolgantes na mesa do bar
Que não consegue rir da piada mais engraçada
Que não sai de casa há pelo menos seis meses
Que toma sacolas de remédios e antidepressivos
Que perdeu o emprego por causa de um filho da puta
Que possui dois filhos com a Tânia que é uma puta
Que come frequentemente algumas putas
Sou uma pessoa triste
Que precisa beber descontroladamente
Que sempre esteve no fundo do poço
Que não tem amigos mais felizes ou mais sóbrios
Que nunca sabe a hora de ir embora
Que nunca vai embora até ser o último a ir embora
Que dorme no banheiro bêbado de madrugada
Canto Adoniran Barbosa quando fico bêbado
Recito Ferreira Gullar quando fico bêbado
Quando fico bêbado
-sou uma pessoa ainda mais triste

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Mesa 12

Nunca quis saber dos meus dois filhos. Sabia, sim, que eram dois jovens. Jovens desses jovens de verdade, certamente, não desse novo tipo de jovens que saem andando nas ruas abraçados a outros jovens, porque, afinal de contas, eles vieram de mim, dentro daqui, foi com esse sêmen, com o meu espírito, não é mesmo? E jamais uma coisa dessa, uma curva inesperada, abrupta, aconteceria assim sem mais nem menos. Nem mesmo que o pai deles fosse, digamos, meio afeminado, não acredito que uma coisa dessas, a convivência, seja capaz de vencer a força, o poder do sangue meu que corre nas veias deles. Que são homens e de palavra. Veja, eu nunca, jamais, em nenhum momento, deixei de cumprir minha palavra. Talvez, um dos poucos homens, na terra, capaz de morrer com honra. Claro, não conheço você. Nunca falei com você. Não saberia agora dizer a sua voz. Não porque eu não me lembro, mas porque você, para mim, é indiferente e não me importo nem um pouco com o que você está pensando. Claro que aceito. Uma dose de uísque nunca deve ser negada. Mas eu estava falando da palavra. Da importância da palavra. Da necessidade da palavra. Palavra que eu dei desde o início sempre com clareza: não quero saber deles. A mãe me chegou um dia, era uma sexta feira à tarde, lembro do dia e dos sons que o vizinho fazia enquanto martelava algo na parede que ficava ao lado do local onde eu trabalhava. Das seis em diante, quando ele chegava do trabalho, não faço a mínima ideia da profissão, ele começava a martelar aquela porra e, se há alguma curiosidade que eu arrasto comigo nesses setenta e quatro anos é, de longe, que porra ele tanto martelava na parede. Às vezes imagino aquele japonês pequeno, de chinelo de couro, arrebentando a parede com buracos profundos apenas pelo prazer de sentir a parede e seus novos contornos, completamente esburacada, tal como um muro talhado a balas de revólver, canhões, metralhadoras. Enquanto a mãe, uma mulher sem graça, morena, não era feia, mas não era uma dessas mulheres que você, quantos anos você tem, vinte e dois, sei, então, não é uma dessas mulheres que você, com vinte e dois anos, gostaria de se casar e jurar amor eterno em frente ao padre, condenado, na saúde e na doença, a morrer lenta e vertiginosamente no melhor momento do seu sexo, sabe, eu te falo isso porque só era dois anos mais velho que você, sei das suas noites, quer dizer, imagino, afinal, você não é nenhum desses viados do caralho que caminham em Maringá como se aqui fosse um reino homossexual livre e colorido. É seu, ela disse e sorriu, passando a mão no ventre. Saímos de lá, fui puxando o seu braço, o som do martelo do japonês foi ficando mais baixo, quase surdo, enquanto saíamos da loja de estofado de bancos de automóveis do meu irmão, eu não apertava o braço dela, eu acho, só segurava, de leve, porque sabia que o pior seria em seguida, e não queria que ela se machucasse antes de não ouvir minha resposta. Já na calçada ela me olhou fundo. Talvez algum momento, que tal mais uma dose desse uísque, hem, é, como é mesmo o seu nome, então, resumindo não disse nada, sabe. Eu era jovem. Ela era jovem. Eu não queria arruinar a minha vida. Ela não queria ser arruinada, mas fazer o quê? São dois, ela disse. Dois. Meu Deus. Nunca consegui compreender o que veio depois. Sabe, tipo apagão? Os caras da borracharia cuidavam da mulher, que estava em lágrimas, com o vestido de flores rasgado, com o colo praticamente nu, soluçando num choro sem som algum. Como você deixou isso acontecer é a única pergunta do meu irmão que me vem, com força total à cabeça, mas, pensando bem, não sei se ele falou sobre a situação da moça, de algo que muito bem eu poderia ter feito, talvez fosse eu o maldito que a espancou no meio da rua, fazendo com que ela fosse acudida pelos borracheiros da rua, ou talvez, a ele, ela teria confessado o nascimento dos gêmeos. Acho que não, porque dos gêmeos meu irmão nunca tocou no assunto. A mulher foi embora sozinha, passos lentos, acho que sem olhar para trás, seguindo o compasso das marteladas regidas pelo japonês na casa ao lado. Tem mais uísque?

Plano

Caralho, Celso.
Ontem assisti aquela nossa vitória em Floripa sobre os argentinos.
Você jogou mal pra caralho.
Daí hoje sonhei que estávamos, toda aquela cambada, bêbados novamente na praia.
Gordão, Baiano, Tim Maia.
Com aquelas duas gostosas, lembra?
Mariana, a capoeirista bêbada?
Suelen, a maluca do bar, dando em cima do garçom?
Bicho, defini uma coisa esta manhã.
Nunca tive tudo tão claro.
Vou largar tudo.
Emprego.
Família.
Minhas duas pensões.
Não quero,
Nunca quis saber desses meus dois filhos.
- nem sei se são meus filhos -
Dei um jeito com a minha mãe.
Ela fica com a Maria.
Duas vezes por semana vai passar em casa.
Ajudar nas compras.
Limpar, lavar a roupa, essas coisas.
Cancelei a conta no bar do Moacir.
Fechei a do Meu Pato.
Ainda falta arrumar as cordas do violão.
Comprei uma vara de pescar.
Tô indo no sábado pra Floripa.
Viver dos cardumes.
Do mar.
E do amor.