segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Anão, pastel, musas, suor, cães e Deus

No terminal rodoviário, você reflete a tua Maringá. Não a Maringá dos pontos turísticos, da chatíssima igreja-cone e das infinitas fragrâncias do Rio Bostinha. Não a Maringá dos 547 trovadores, dos vendedores de sorte ou azar e dos incontáveis berros sertânicos – em cada bar dessa cidade você é refém de alguma dupla sertaneja. Única maravilha? Suas calçadas cheias de moças, banhando as delícias debaixo do bendito sol.

***

Alguns apartamentos do Edifício Maurício Schulman têm cozinhas e banheiros virados para os corredores. Na porta de um deles, o aviso à Saramago extermina todas as vírgulas: "Deus está no controle não entre aqui com raiva mau humor pessimismo intrigas inveja porque acreditamos na vida que fazemos e principalmente temos fé". Por que exibir sua fé aos vizinhos? "Ponhando a palavra do Senhor aqui no vidro, quero impactar um pouco. Muita gente do prédio precisa de Deus", justifica o sujeito.

***

Latidos graves e potentes ecoam de um dos apartamentos do Edifício Maurício Schulman. Quem responde, noutra janela, é um latido menos encorpado, mas também grave. Dá para ouvir tudo bem nítido: dois barítonos no primeiro ato da opereta canina. Interrompendo o dueto masculinizado, um terceiro latido, agudo e estridente - eis a nossa Maria Callas! -, assume o posto de soprano. Nem o severo Karajan seria capaz de encerrar a performance do trio.

***

Encostadinha no muro, uma loirinha transcendental refestela-se com pastel de queijo e sodinha bem gelada. Shortinho jeans, blusinha branca, boquinha pintadinha de vermelho – ai, essas moças de lábios vermelhos. Não tem ela os ombros altos de Liv Ullmann? As coxas portentosas de Anita Björk? Nos olhos, a mesma melancolia de Ingrid Thulin? Quem não daria tudo para ouvir os pensamentos da nossa sueca bergmaniana?

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A sexagenária mancando, apoiada numa bengala, carrega duas sacolas cheias de milhos e verduras. Ela está suando e parece fazer um esforço tremendo para caminhar – a feira não é sua via crucis?

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Na banca de rosas, com flores vermelhas, amarelas e brancas, a japonesa lamenta a queda nas vendas. "Ninguém quer ser romântico com a crise. O pessoal quer é comer, né?"

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O amor é o grito suicida na goela do gago .

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O cemitério parece quieto, mas não é. Prestando atenção, você escuta os diálogos dos mortos:
"O mausoléu mais bonito, aqui de Maringá, é do João. Parece obra de arte."
"Se esse treco é uma obra de arte, o que dizer do 'Último Adeus', do Alfredo Oliani, no Cemitério São Paulo?"
"Cala boca, quero dormir!"
"Quem consegue dormir nesse calor?"
"Fosse vivo beberia todos os vasilhames do Divina Dose."
"Venderia fácil minha alma por uma última noitada no Skolzinho."
"Alguém aí sabe dizer que horas são?"
"Mãezinha! As minhocas tão fazendo cosquinha de novo!"

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Às cinco da tarde, a praça Raposo Tavares é melancolicamente erótica. A anã, negra, oferece as perninhas magricelas e as mãozinhas miúdas. Sentada no banquinho, lançando olhares maliciosos, uma prostituta sexagenária veste blusona vermelha, chinelão de dedo e saiona jeans. No sorrisão da doce senhora, o que seduz mais? O dentão amarelo e a verrugona na bochecha esquerda, ou as pernonas infestadas de longas varizes azuis? O amor, na praça Raposo Tavares, tem todos os motivos do mundo.

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À mostra, as perninhas macilentas e cheias de varizes azulonas, que se cruzam e formam cidades com pontes, igrejas, pracinhas, penitenciárias e estádios de futebol, não são as iscas mais eficientes?

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Vinte e poucos anos, loirinha, olhos castanhos, sorrisinho de sexta-feira: com a professora Polyanna Bavia Capdeboscq, você não tomaria todas as lições prazerosas da vida? Mão posta à palmatória - bate!, bate!, bate! - você erra de propósito a tabuada e o bê-à-bá. Sabatinado em plena saleta, diante da cruz de mármore, você confunde briófitas com pteridófitas, troca Machadinho por Zé de Alencar, e, espada em riste!, declara guerra a Oliver Cromwell ou qualquer outro grande nome que desperte admiração da professorinha, oferecendo o corpo inteiro aos tapas e beliscões, ansioso pela punição mais dolorosa - o amor.

***

Tomasse aulas com essas novas professoras do Santo Inácio, sua vida seria radicalmente diferente. Você não odiaria Deus, não teria tanto ranço de duplas sertânicas, não compraria brigas com dramaturgos medíocres, não seria adepto fervoroso do sedentarismo, e, talvez, em alguns momentos - além da prosa do Proust, das sonatas do surdo Beethoven, de dois ou três filmes do Bergman -, você, enfim, apreciasse viver.

***

Novos acordes sertânicos dão o tom do baile da melhor idade. Quem não dança, aguarda. Sapatinho brilhante, dedões pintados de vermelho, bafão de dezessete maços de cigarro. O olhinho meio torto? Deve ser felicidade.

***

Clima de azaração. Troca de olhares. Coxas roçando canelas e sorrisos na melhor idade. Velhos conversam alegrinhos, mãos danadas abanando coxas e pescoços. Línguas rugosas encharcam lábios rachados pelo tempo – a sedução.

***

Em quarenta e seis anos de prisão, carcereiro e detenta dividindo a mesma cama de casal.
"E quantos filhos?", vou sondando.
"Tive doze filhos!"
"?!"
"Daí você me pergunta, né? Imagina, então, se o casamento fosse bom, hein?!"
Mais risadas serelepes.
"Naquele tempo, meu filho, se a mulher não queria, tinha que querer..."
"!"
"... sem berro, sem reclamar: na marra."
Uma velha afobada, de olho no verbo alheio, invade a conversa.
"A gente era estuprada! Es-tu-pra-da!", denuncia, aos berros, a voz esganiçada.
"Isso mesmo. Ai de você, se não quisesse..."
"E sempre bêbado, né, Maria?"
"Ca-cha-cei-ro! A mesma desgraça toda santa noite."
Doce gargalhada das duas velhas, alívio das mil e uma noites de horror.

***

Única entediada, uma velha tolera o show e, esvaindo-se em suor, encharca o guardanapo de quarenta graus. Sentadinha à mesa, dedinhos batucam versos sertânicos. Desânimo da música ruim, do calor castigando ou da garrafa de água?
"Bom mesmo seria uma cervejinha, né?", pergunto.
Ela escancara dentes branquíssimos – quinze mãos lhe fazendo cócegas, o mesmo êxtase dos dezessete aninhos.
"Ai, sim! Cervejinha bem geladinha", responde, remexendo de um lado para o outro a dentadura vacilante.
"Em busca do grande amor?", vou sondando.
Inquietos, pré-molares e incisivos requebram na boquinha carcomida.
"Deus me livre..."
Cai ou não cai?
"... nunca mais..."
Cai ou não cai?
"... disso tô vacinada."
Correndinha, a mão protege a bocona banguela, inteirinha nua - não para você, mas para pouquíssimos privilegiados. Último ato erótico, arremessado ao lado da cama, nessa longa estrada da vida.

***

Latidos de bem-te-vi, cantos de cachorros das casas vizinhas. O solo de nove notas de um pássaro desconhecido te arrebata no Parque Alfredo Nyffeler – você decide, de uma vez por todas, também aprender trompete.

***

Nas paredes da cadeia, o preso aproveita o tédio da prisão para compor versinhos delicados, em homenagem a um tal Lincon. Valsinha dois por dois? Pagodinho romântico? Cante como quiser: "Lincon do universo / só bala pra você / seu frango / desse (sic) na vilinha que vc vai morrer / seu safado /Vilinha!!!" Fosse o Lincon, evitaria me embrenhar nalguma Vilinha. Vila Operária. Vila Morangueira. Vila Esperança. Num show do Martinho da Vila. Toda e qualquer vila - nunca, jamais.

***

No meio de milhares de velhos enfileirados à espera do autógrafo do padre Marcelo Rossi, avisto, ao longe, uma moçoila. Desconfio do Todo-Poderoso. Não será dessas miragens? Troça celestial para zanzar à toa na multidão? Loirinha, metro e sessenta de pura louvação? Obrigado, Senhor! Afoito, vou abrindo caminho no mar de gente – Moisés, cruzando o mar vermelho, o impávido cajado nas mãos. Depois da longa caminhada, chego finalmente perto dela. Sorte minha, de carne e osso - aleluia! O nome do milagre? Fernanda Félix, 19, aluna de Psicologia da UEM. Simpática, discorre sobre Deus, totens da psicologia, tempestades, Curitiba. Como é bom mulher que se abre.

***

A chuva encharca a gripe da criança, inunda o tédio da tarde e agride a velha imóvel na esquina – outro
maldito motorista explodindo poças d'água.

***

Se ela estalasse os dedinhos vermelhos, não moveria o Monte Sinai e o Monte Sião? A escuridão não encobriria o Sol por três dias ao seu único pedido? A nuvem de gafanhotos não dominaria a cidade, se ela ordenasse, cochichando no ouvidinho? Claro que sim: moscas atacariam homens e animais!, rãs cobririam a terra!, as águas do Nilo tingir-se-iam de puro sangue!

***

O pôr-do-sol lambendo o ônibus - quase seis da tarde.

***

Vou me embrenhando numa Maringá sinistra. De ruas apertadas, terrenos abandonados. Da Capela Papa João 23. Dos rostos desconfiados no açougue-boteco. Da Igreja Pentecostal Diante do Trono, com gente de terno e sorrisão nos grandes lábios – o portão sagrado escancara berros da louvação. Pó, poeira, cheiro verde. É noite. Quilômetros e quilômetros mal iluminados apressam o passo da moça, aumentam os batimentos cardíacos do velho, matam de susto o tiozinho na bicicleta. Desses becos Moisés avistou a Terra Prometida? Daqui o Senhor mostrou-lhe toda a terra, de Gileade até Dã? Essa cidade nem de longe lembra a Maringá dos cartões postais.

***

Na frente do Mercadão, trânsito infernal. Não é a nossa Julie Manet, caminhando na calçada? Os mesmos olhos tristes, aquela boquinha vermelha?! De sainha rosa, blusinha preta, meia rosa erguidinha e cabelinho preso num rabinho de cavalo - ó hexâmetros órficos da Grécia heroica!, ó margens do rio Hebro!, ó azeite de oliveira puríssimo! De pé, eu me ergo: levanto ligeiro, embasbacado pela mirra mais preciosa, arremessando flores e versinhos líricos.

***

As bochechas de um Buldogue, no Parque do Ingá, escorrem do rosto canino – inspiram-se nos relógios
molengões de Dalí ou nas flácidas bochechas do dono amado?

***

Na janelinha do Facebook, a morena de vinte aninhos insiste que o empresário sessentão envie selfies eróticos. Seguindo as orientações, ele foi compartilhando tudinho - não era a maior provinha de amor? Orgulhoso de sua torre de Davi!, seu cume de Hermon!, tirou três selfies, sem aumentar nem diminuir nadinha. "E a minha vida, agora, como é que fica?"

***

Naquela orelhinha, você não sussurra os versinhos proibidos do danado Bocage? Não entoa, suave, a "Tristesse", do Chopin? Feche os olhos: veja as grinaldas de Hera!, os ramos de videira!, as margens do rio Hebro! Saciadas, as duas loiras da barraca do pastel encerram suas respectivas contas e, cada uma para um lado, partem para o cortejo báquico, ao som dos tamborins dos coribantes. Quem, ali, não ofereceria bodes, coelhos e pássaros corvídeos à passagem das duas deusas?

***

Bonfim começou a perder a visão aos 11 anos e ficou completamente cego aos 23. Às quartas de feira, canta quatro horas seguidas.Durante o concerto, volta e meia passa a mão na cumbuca à sua frente – esperto aos larápios sacanas. "Nunca vi alguém me roubando", garante.

***

A resposta da moçoila causa cócegas em violinos – já ouviu, assim, tão pertinho, três bailarinas sorrindo?

***

Debaixo da mesa, na biblioteca Bento Munhoz da Rocha Netto, a ruivinha vai despindo, lentamente, o All Star colorido. Meinha por meinha, primeiro o pezinho esquerdo e depois o direito, até a brisa geladinha do ar-condicionado refrescar cada dedinho nu. Embasbacado, você testemunha o silencioso strip-tease dos pezinhos da estudante.

***

No Ceasa, encontro Rita Andrade de Paula, 76. Leitora fiel. Me presenteia com vinho francês e puxa assunto.
"Pra quê esses olhos tão grandes?"
"Jamais perder o mínimo detalhe."
"E esses dedos, por que tantos calos?"
"Marcas das tantas escritas."
"Por que insiste em usar chapéu?"
"Nele cabem todas as minhas mentiras."
Olhos trêmulos, voz tremelicante.
"E tudo o que você escreve, Gaioto, é mesmo verdade?"
"Tudo é real no universo da ficção."
"Quais conselhos aos jovens escritores?"
"Desista enquanto é tempo."
"E uma segunda dica?"
"Evite reticências... maldito recurso covarde."

RETROSPECTIVA Publicada no Diário (29/12/2015)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Raul Seixas, top model, choro, paraíbas e trenzinho de tédio

"Eu não sou besta pra tirar onda de herói. Sou vacinado, eu sou cowboy. Cowboy fora da leeeei!", esgoela-se o rapaz magricelo, empunhando um velho violão, na frente de uma loja. São oito horas da noite e o comércio surge escancarado. Vai e vem de gente, famílias inteiras, uma e outra pessoa com sacola de presente nas mãos. Quinze loiras cruzam a calçada em um minuto e meio de canção – ninguém arremessa moedinhas, nem ao menos acenos e afagos ao jovem cantor. As capengas luzes coloridas, agarradas aos troncos das árvores, deveriam distribuir alegria aos cantos da cidade – as ruas não ficam, no final das contas, mais tristes e melancólicas? No caos da São Paulo, o cantor insiste nos versos ignorados. "Durango Kid só existe no gibiiii." A criança babona tapa com as mãozinhas as duas únicas orelhas, irritadiça de Raul. "E quem quiser, que fique aquiiii." Tivesse outra orelha, não taparia também a terceira? Dois gordos riem deboches do artista – a voz do povo não é a voz de Deus? Uma velha se benze, fazendo sinal da cruz – rock nunca foi coisa do Senhor. "Entrar pra história é com vocêêêês", finaliza o sujeito, berrando ainda mais alto, diante do descaso público.

Sem única palma, encosta o violão na parede. A pausa do cantor popular não tem pedidos de selfies nem disputa por autógrafos. Onde as tantas groupies insaciáveis? Calça jeans, camiseta preta, chapéu de vaqueiro. O cansaço evidente de quantos concertos?

"Tô desdas duas. Canto uma hora, uma e pouco. Daí, intervalo. Senão, diretão, ninguém guenta", comenta Jair Moreira, 20, sem estrelismos nem petulantes assessores de imprensa.

A capa da viola, dormindo no chão, não recebeu notas nem moedas. Mas o público nem sempre é tão muquirana.

"Já teve dia que tirei R$ 120", gaba-se o cantor, que mora em Sarandi e toca para cá quase diariamente, há seis meses, onde assume a trilha da calçada. De repertório minimalista, dedica-se a retomar canções de apenas três artistas: Raul Seixas, Zé Ramalho e Ventania. Sua Santíssima Trindade. Vez ou outra, sem aviso prévio, chega a executar uma de suas únicas doze músicas próprias.

"Tudo que faço, ofereço pra Ele..."

Outro desses - ai, não! - louvadores da aleluia.

"...quem me guia e me rege..."

Santa paciência: prepara-te para três horas ininterruptas de conversão religiosa.

"...quem me socorre e me protege..."

Por que tão onipresente, pô?!

"...meu Santo Satanás..."

"!!!"

"...meu Pai da magia..."

"?!?"

"...quem sempre tudo dá."

Pergunto sobre o Diabo. Jair responde tudo baixinho - jamais ser descoberto pelos cristãos maringaenses, ainda mais em climão natalino.

"Nossa seita, em Sarandi, conta com vários fiéis, mas eu não posso te dar detalhes. É tudo secreto", adianta.

"Não tem filial em Maringá?"

"Infelizmente, não."

Disso, já suspeitava. Nem o Diabo suporta esta cidade infernal, terra das trezentas duplas sertânicas.

"Muitas oferendas em Sarandi?", questiono.

"Claro. Dia desses sacrificamos um bode. Acho que Ele gostou. Mas o comum é oferecer galinha preta e coelho."

"São alegres as celebrações?"

"Com muita música, viola, pacto de sangue e bruxaria: tudo com muito respeito e bom gosto."

"Quais princípios da turma satânica?"
"Liberdade, amor, vida e luta."

"Paga pra entrar?"

"Tem o cofrinho do dízimo. Quem pode, vai colaborando."

"!"

"Alguém tem que bancar as velas, o sal grosso... São várias despesas."

Balaio do dízimo. Musiquinha fervorosa. Fiéis clamando milagres. Orações e sacrifícios. Deus & Diabo não são tão diferentes assim na terra do sol.

Agruras do coração

Longe dos seguidores diabólicos, vou flanando pela Brasil anoitecida. Papai Noel sorridente. Árvores enfeitando vitrines. "PROMOÇÃO." "TUDO POR R$ 10,99." "PRESENTE DE NATAL E AMIGO SECRETO É AQUI." Entro. Chinelo verde. Cadeira de praia. Bomba de chimarrão. Boia de jacaré. Copo vermelho. Boia de pato. Puff rosado. Todo mundo espia, mas poucos abrem carteiras. No bocejo da vendedora, o tédio de nada fazer. Animadinha, a senhora serelepe é a única empolgada nas compras.

"Venha cá, Camila, ponha isso por cima!"

A garota de cinco aninhos obedece e vai vestindo o vestido branquelo.

"A Camila é oito, né?"

"Isso, mãe."

Decotadíssima e curtíssima, a tal peça infantil.

"Sei não, hein. Isso aí tá curto demais."

"Que nada, filha, tá cada vez mais quente!"

A menina tira o vestido, a vó já enfia outro pela cabeça.

"Um mais lindo que o outro!"

Debando da loja. O trenzinho cheio de crianças cruza a Brasil, tocando musiquinha estridente e revelando rostos entediados.

Planalto bombástico

"Ólhaaa rédi!", anuncia o paraibano na calçada.

"Quanto, amigo?", indaga o pai de família, já prevendo a sesta serena, apreciando a qualidade dos panos na ponta dos dedos.

"Quarentinha!"

"Credo, que horror!", diz, imediatamente afastando a mão – o mesmo pavor de tocar num velho leproso.

As pencas de pano não emplacam. Culpa de quem?

"Da Dílma. Ela meréce sábi u quê?"

"?"

"Qui um cábra ponha dinamíti e exploda túdo áquilo lá."

"!"

"Tém que explodí a Dílma!"

Anti-cristos, crise econômica e paraibanos explosivos. Tem quase de tudo. Menos travestis e garotas de programa. Ninguém quer se exibir com tanta gente zanzando de lá para cá, nas mesmas calçadas natalinas.

Agruras do coração II

Passos adiante, uma pausa. Não para contemplar as chatíssimas árvores de luzinhas tortas. Mas, sim, para aplaudir um vestidíssimo branco. Tatuagem indecifrável no punho. Às nove e pouco, esperando familiares consumistas. Sobrancelhas perdidas na Getúlio Vargas, rosto ensopado de lágrimas.

"Por que choras, meu bem?"

Deve ser essa época do ano. Todos, cada vez mais melancólicos.

"Não, nada disso. Adoro Natal. O problema não é a festa..."

No cantinho da bochecha, uma lágrima salta ao suicídio.

"...meu problema é ele."

Namorado? Ex? Noivo? Maridão louco de amor?

"Um amigo... meu vizinho. Resolveu infernizar minha vida e fica 'fazendo fusquinha'!"

"?"

"Virar a cara, fingir que nem sabe o motivo do choro: isso é 'fazer fusquinha'."

Entre os grandes lábios, trinta e dois dentes respondem a cócegas imaginárias da gíria automobilística – finalmente, um sorriso.

"Não admito que pensem isso de mim, sabe?"

"..."

"Sou tra-ba-lha-do-ra. Estudo à noite, trampo o dia in-tei-ro, de do-min-go a do-min-go. E agora vem esse i-di-o-ta..."

Mãos que se coçam não querem esganar o vizinho?

"...dizer pra toda a minha família que eu sou..."

"?"


"...ga-ro-ta de pro-gra-ma?!"

Um rapaz moreno invade nosso diálogo. Meio constrangimento de. Teria ele? Achando que ela? Ai, não.

"Aceitam cone trufado?", questiona o vendedor, fingindo nada ouvir.

Essa época do ano, todo mundo tem algo a oferecer.

Educadamente, a moça responde que não. Também dispenso acepipes adocicados.

"Me desculpe, viu? Sou assim, toda derramada..."

Braços morenos arrepiadinhos pela lambida do vento.

"...qualquer coisa, eu choro."

Quer dizer, chorava. Agora, seu rosto surge livre da tristeza. A mãe, gorducha cheia de compras, surge por trás e diz que é hora de ir embora. Menos tristonha, a moça agradece o dedo de prosa. Você, anônimo psicólogo das ruas maringaenses.

Top model

Quando me dou conta, estou sentado num ponto de ônibus da Joubert de Carvalho. Há umas três horas, quando o Sol ainda dava os últimos acenos, foi exatamente aqui. Ainda, no ar, os mesmos tons de begônias e camélias. De início, desconfiei de minha miopia. Forcei a vista. Ombros altos, olhos castanhos, lábios vermelhíssimos. Séria sisuda. Mulheres assim não existem só na ficção? Sainha jeans, um palmo e meio acima dos joelhos - ai, que joelhos. A literatura não surpreende tanto quanto a misteriosa moçoila maringaense. O nó na blusinha jeans exibia o mais lírico dos umbigos – ali se encontram o Bem, a Beleza e a Verdade. Já leu as linhas de umbiguinho tão poético? Dois quartetos e dois tercetos. Decassílabos platônicos. Dicção severa. Sussurros de Shakespeare & Camões. Naquele umbiguinho, razão e emoção te confundem. Catatônico, fui puxando assunto.

"Aposto que..."

Um metro e setenta e nove de curvas morenas te encarando sem curiosidade.

"...modelo?"

Sinta cada perfume: mescla de lírio do vale, begônias,camélias, gardênias, jasmim-manga e canela.

"Como adivinhou?", surpreendeu-se Mariana.

A boquinha vermelha acelera teus batimentos cardíacos – uma escola de samba inteirinha com repiques, surdos, chocalhos, cuícas e tamborins batucando teu próprio peito.

"Sou modelo formada há muitos anos. Fiz fotos, desfilei em São Paulo, Curitiba, Londrina, Cianorte e até posei para a Vogue brasileira."

"!"

"Mas a foto só saiu da cintura pra baixo..."

"!"

"...era matéria sobre calça jeans."

Ai, o tão esperado sorrisinho natalino. Geralmente, essas modelos são todas secas e antipáticas. Tudo diferente com nossa top model. Nas marés de Mariana, você navega o Pacífico, o Atlântico Índico, o Glacial Ártico e o Antártico – cuidado, Gaioto, para nela não se afogar.

"Tô pensando seriamente em ir embora desta cidade."

Ai, não. Nunca!

"Aqui, modelos magrinhas, como eu, não têm muito mercado. Só querem essas do tipo paniquetes, bombadas e tal."

Maringá, túmulo da beleza feminina.

"E o tal do book rosa... você já..."

"Nunca nem ouvi dizer dessas coisas por aqui."

"E o namorado? Aposto que..."

"Larguei domingo. Em dúvida se gostava ou não."

Solteiríssima, ela estende o braço nu de pelinhos dourados. É o ônibus dela. Tua despedida tem gosto amargo - não poderia ser diferente.

"Última pergunta: qual idade?"

"Dezesseis anos. Acredita?"

"!!!"

"Vou terminar o Ensino Médio e ir embora dessa cidade."

E me pego salivando detalhes do encontro, ainda em plena Joubert de Carvalho. No adeus daquela boquinha vermelha, você não dá todas as razões ao maldito Humbert Humbert?

Publicado no Diário (13/12/15)

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Berros, bombas, Batman, canto, terroristas, Polyanna & Maysa

A trintona de olhos claros invade a recepção do colégio e deixa com a secretária um boneco de super-herói. Explica que é para o filho dela, do tal ano, dá um sorriso sem graça e, de olho no celular, sai rapidinho de cena. Tudo muito ligeiro. Outros dois pais imitam o itinerário da mulher. Um deixa helicóptero de guerra. Outro estende boneca de braços abertos. "Você veio no dia certo", comenta uma das orientadoras do colégio, notando que observo o entra e sai de pais apressados. "Estamos na Semana da Criança e hoje é o Dia do Brinquedo: cada uma traz alguma coisa e todo mundo se diverte", diz, escancarando a porta que leva à criançada.

De volta aos corredores da infância perdida - aqui você correu, caiu, berrou e amou 78 garotas diferentes -, vou me embrenhando no Colégio Santo Inácio. A temida sala da orientação, vazia às dez da manhã, ainda te dá um frio na espinha – entrar ali é amargar sete dias sem presentes novos. Gritaria, cavalos galopantes, gargalhadas estridentes, explosões de bombas nucleares, tiros de submetralhadoras norte-americanas e berros de tortura ecoam de uma das salas. "Que tal essa? Aqui, os alunos têm só quatro anos. Qualquer coisa, me chama. Boa sorte", sinaliza a coordenadora, me jogando no meio de três dezenas de pequenos terroristas do Estado Islâmico.

Meninos e meninas abandonam os enredos rocambolescos. E, surpresos, te encaram no campo de batalha: curiosos rostos interrogativos. De bermuda e camisa florida, você é menos exótico que um alien de sete cabeças. Que idioma falará? Como se comunicar? Com mãos ou basta o verbo? A que distância se aproximar? Crianças te sondam e você traça estratégias. Melhor, talvez, ficar do mesmo tamanho. Sento na minúscula cadeira. Agora, sim, de igual para igual. Uma menina espevitada rompe a barreira da timidez. E, sem aviso prévio, enfia dois dedinhos no meio dos teus tortos cabelos – que azar, nessa manhã, esquecer o chapéu. Inesperado, você sorri. E começa o ataque.

Trinta (ou seriam sessenta?) miniaturas de gente te cercam no canto da Faixa de Gaza, entre mesinhas e o quadro branquíssimo, empunhando bonecos do Capitão América, do Homem-Aranha, das Tartarugas Ninjas, boneca de olhão esbugalhado, aviões, tanques e soldados. Frases altissonantes. Tudo bem berrado.

"Minha barba também já tá grande, ó."

Olhando para você, um menino passa a mão no próprio queixo. Despenteado de suor. Bochechas vermelhas.

"Quando a gente crescer também vai ter barba?"

Cabelos espetados de gel, um garoto de quinze centímetros força a miopia.

"Sabia que meu pai faz a barba, toda manhã, bem cedinho?"

Só duas semanas sem se barbear. Você nem está, assim, tão barbudão.

"Minha mãe não gosta do meu pai barbudo."

Ou está?

"Meu pai faz o meu topete todo dia."

Dar atenção ao garoto loiro que te cutuca a barriga com o caminhão de bombeiros.

"Sabia que eu quero ser médico?"

A garota tropeça e bate a cabeça na mesa, escancarando de berro as cordas vocais – fôlego de promissora soprano.

"Olha meu Batman, ó!"

Cuidado com o pé do.

"Gosto muito de cantar (trecho incompreensível). Posso?"

Protetores auriculares: não esquecer na próxima vez.

"Eu-tro-pe-cei-sem-que-rer, pro-fes-so-ra."

A professora abraça a menina e silencia o choro. Quem é mesmo o cantor? Loiro, moreno, meio japonês?

"Ai, não, ele vai cantar de novo?"

Duas mãozinhas puxando a barra da tua camisa. Confusão danada.

"Anota meu nome na TV, anota!"

Garotos engolindo as próprias mãos. Crianças correndo de um lado para o outro.

"Eu gosto de brincar com a Risadinha, é minha boneca: ela dá risada e dorme."

"Se eu parar de fazer bagunça, meu pai vai me dar uma guitarra."

"O meu cachorro voa de abas abertas!"

"Queria que (trecho incompreensível) até (trecho incompreensível)."

Jesus, quantas vozes ao mesmo tempo?

"Também vou ficar barbudo. Que nem você!"

Meninos curiosos se avaliam – qual deles, a maior barba?

Hora do show

A professora quarentona me apresenta o jovem talento. Magrelinho de cabelo lambido. Dedinhos entrelaçados de vergonha – ou parte essencial do aquecimento vocal?

"É um grande artista: voz que é uma belezura", adianta a professora. Dona da ordem, só ela estabelece a paz. E na sala, milagrosamente, você escuta um único segundo de silêncio. Seguro de si, o artista assume o centro dos olhares. Postura ereta, peito estufado, rosto ligeiramente beijando o céu: não é o grande José Carreras, dignamente diante da plateia no Palácio Garnier? O mesmo olhar determinado. A mesma serenidade. O cuidado de sustentar a nota precisa – jamais vacilante.

"Livre estou, livre estou", entoa o fiozinho de voz, amontoando suspiros das mocinhas.

"É a trilha do 'Frozen'", cochicha, orgulhosa e serelepe, a assessora de imprensa quarentona.

Tecnicamente impecável, a performance não agrada todo mundo.

"Ai, não! É a música do filme da princesa!", reclama um garotinho, tapando os ouvidos com as mãozinhas e torcendo olhos, nariz, boca e sobrancelhas – no som, o mesmo arrepio do limão azedinho.

"Livre estou, livre estou", insiste o fio de voz.

"Vamos respeitar o colega!", exige a professora, em tom ameaçador, silenciando críticas negativas.

"Adoro essa música", elogia, da plateia, a moçoila com tiara de florzinha vermelha.

Sorriso satisfeito de quem arrebata multidões. Curvado diante da ovação, o cantor recebe as palmas febris do coração.

"Viu só? Não disse?!", gaba-se a professora.

Polyanna & Maysa


Ainda vivo, sou resgatado do meio das crianças pela coordenadora. "Vamos para uma turma mais madura", ela anuncia, já me desovando na sala ao lado, composta por crianças de cinco anos. A cena é semelhante: os mesmos brinquedos, as mesmas bochechas vermelhas. Todo mundo correndo de um lado para o outro. Quer dizer, quase todo mundo. Um japonesinho, entediado de caos, vai colorindo um desenho de silêncios, sentadinho na mesa minúscula. Alheio às brincadeiras coletivas, ele não aparenta ter mais de 38 anos?

"Sonha ser pintor?", vou sondando, de olho nos rabiscos surrealistas.

"Claro que não!", responde, sem tirar os olhos do papel, talvez consciente dos pífios salários dos artistas contemporâneos.

"Quando crescer, vou trabalhar em escritório químico..."

"!"

"...já tenho dois tablets e dois PCs."

"!"

"Ô, professora! Olha ali, ele tá mexendo no meu Batman!", reclama o japonesinho, apontando com o lápis um menino sorridente e babão.

"É um desafio constante cuidar dessas crianças todas", desabafa a professora Polyanna Bavia Capdeboscq. Vinte e poucos anos, loirinha, olhos castanhos, sorrisinho de sexta-feira: com ela você não tomaria todas as lições prazerosas da vida? Mão posta à palmatória - bate!, bate!, bate! - você erra de propósito a tabuada e o bê-à-bá. Sabatinado em plena saleta, diante da cruz de mármore, você confunde briófitas com pteridófitas, troca Machadinho por Zé de Alencar, e, espada em riste!, declara guerra a Oliver Cromwell ou qualquer outro grande nome que desperte admiração da professorinha, oferecendo o corpo inteiro aos tapas e beliscões, ansioso pela punição mais dolorosa- o amor.

As professoras - aleluia, Senhor! - já não são aquelas velhas rancorosas, mas, sim, moçoilas melífluas e maviosas. Já pensou? A cada ano de estudo, um novo grande amor escrevendo e apagando palavras, desenhos, mensagens no quadro-negro? Ai, como é bom estudar, estudar, estudar, e reprovar de ano, reaprendendo tudinho.

No pátio do colégio, exércitos de crianças correm, pulam, rastejam, sobem no trepa-trepa e, velozes, giram no carrossel: treinando para a grande batalha da vida. Atenta a cada detalhe, outra professorinha feérica: Maysa Buzzo. Ombros altos, vinte e seis aninhos, longas argolas de brincos, loirinha de unhas pintadas de vermelho - ai, essas moças pintadas de vermelho. Como resistir? "Depois do trabalho, preciso de pelo menos meia no hora no sofá, pra me recuperar. É uma loucura, né?", comenta, em meio à gritaria.

Com professoras assim, sua vida seria radicalmente diferente. Você não odiaria Deus, não teria tanto ranço de duplas sertânicas, não compraria brigas com dramaturgos medíocres, não seria adepto fervoroso do sedentarismo, e, talvez, em alguns momentos - além da prosa do Proust, das sonatas do surdo Beethoven, de dois ou três filmes do Bergman -, você, enfim, apreciasse viver.

"Professora, amarra meu tênis, por favor?", pede o garoto, trepando na nossa conversa.

Você também não pediria?

Conselhos aos velhos

Esbarro em mim mesmo no pátio do colégio – algumas partes de mim, na verdade, nunca saíram daqui. Um garoto pede que coloque seu nome no papel. Pergunto se já tem um grande amor. Ele se espanta.

"Que nada! Ainda sou criança!"

Mas é só puxar conversa que você escuta detalhes dos tantos desejos.

"Tem mesmo uma menina. Também de cinco anos, da minha sala. Até já fui na casa dela; ela, na minha. Acho que gosto dela. Mas, por favor, não coloca isso aí, hein!"

Pode deixar, pode deixar, vou dizendo aos primeiros passos das agruras da paixão. E, enquanto distribuo acenos aos meus novos amigos, vou elencando, mentalmente, dez conselhos aos velhos: 1) Cuidado ao recolher as roupas sujas: crianças guardam o tempo no bolso da camisa. 2) Nunca proíba a criança de cantar pela casa: é no canto que a criança desenha a própria existência. 3) Repare na melodia: cada canto de criança é composto por notas quentes e azuis. 4) Desbravadores experientes nunca vão explorar tantos mundos quanto canelas de criança – a viagem de uma criança só termina quando o sono pede pra descer. 5) A única criança preguiçosa é aquela que você não mais verá. 6) Distribua canetas coloridas e libere as paredes da casa (ou parte das paredes do apartamento): rabiscos de criança degolam o tédio em família. 7) Com cuidado, espie seus diálogos: crianças contam e recontam verdades de mentiras. 8) Nunca proíba quintal nem sol nem terra nem chuva: criança compreende o mundo no relevo da mão. 9) Choro de criança tem 14 mil caracteres (incluindo espaços). 10) Velho, você foi a mesma criança de amanhã – não é rejuvenescedor?

Publicado no Diário (11/10/15)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Dentadura, clássicos sertânicos, enfarto, sedução e cárcere privado

Duas velhas ensopadas de chuva dão graças a Deus quando alcançam a área coberta do Parque de Exposições. A água encharca o vão dos dedos dos pés, inunda decote, orelha, sovaco, e despenteia o que resta da cabeleira: fios esparsos tingidos de vaidade. Velhas molhadinhas vão se enturmando. É dia de festa. No palco, a bandinha de integrantes sexagenários inicia a execução de "Nessa Longa Estrada da Vida", clássico sertânico dos tempos d'antanho. A sanfona da memória vem a calhar. Incontáveis senhoras serelepes saltam das capengas cadeiras de plástico rumo à pista, engalfinhando-se ao lado de outras dezenas de viúvas que cantam, caçam e dançam. Duas horas da tarde de uma terça-feira. Aqui, ninguém se importa com o horário – o tempo passa sempre lento, indiferente aos anseios do Baile do Idoso.

Clima de azaração. Troca de olhares. Coxas roçando canelas e sorrisos na melhor idade. Casais conversam alegrinhos, mãos danadas abanando coxas e pescoços. Línguas rugosas encharcam lábios rachados pelo tempo – a sedução. Atenta, a doce estudante de Educação Física da UEM não desgruda os olhos da pista, animada pelos dançarinos idosos. "Quem me dera essa empolgação toda", surpreende-se Erica Leme, 22. No meio da velha guarda, uma única garota encarna o sertanejão, descalça, formando par com a própria mãe. "Venho pra acompanhar mesmo. Dançar é uma das minhas paixões", comenta Virginia Pereira, 16. De vestidinho em branco e preto, segurando o saltinho alto com a mão direita, ela está visivelmente exausta: não é fácil acompanhar o ritmo dos tantos anos.

Prisão de amores

A música termina sem as palmas febris do coração. Os artistas, aqui, são os próprios dançarinos. Chego junto. Maquiagem desbotada no toró. Vestidão florido, decotão generoso, cabelo preto lambido na testa. Setenta e sete anos aparentando uns 98.

"Meu tempo de casada foi um inferno. Única bênção da minha vida, quando ele foi embora. Há quinze anos."

Olhinhos faiscantes metralhando cada dançarino.

"Meu marido me atazanava. Me chamava de tudo quanto era nome. Aquilo era o diabo em pessoa. Me trancava em casa. Nunca me levou pro baile. Dançar assim? Nunquinha."

Em quarenta e seis anos de prisão, carcereiro e detenta dividindo a mesma cama de casal. Todas as noites.

"E quantos filhos?", vou perguntando.

"Tive doze filhos!"

"?!"

"Daí você me pergunta, né? Imagina, então, se o casamento fosse bom, hein?!"

Mais risadas serelepes.

"Naquele tempo, meu filho, se a mulher não queria, tinha que querer..."

"!"

"... sem berro, sem reclamar, na marra."

Uma velha afobada, de olho no verbo alheio, invade a conversa.

"A gente era estuprada! Es-tu-pra-da!", denuncia, aos berros, a voz esganiçada.

"Isso mesmo. Era estupro toda noite. Ai de você, se não quisesse..."

Doce gargalhada das duas velhas, alívio das mil e uma noites de horror.

"E sempre bêbado, né, Maria?"

"Ca-cha-cei-ro! A mesma desgraça toda santa noite."

Risos centenários concluem no bailão: o casamento é o sepulcro do amor.

Às senhoras, pergunto sobre a paixão. Dessa louca mania de casar cedo, morar junto para todo o sempre, amém. Quase todos os seus amigos, na casa dos vinte e poucos anos, não estão se metendo em frutíferas famílias? Em uníssono, a rápida resposta da dupla:

"Deus me livre!"

Olhar de nojo, asco, contorcendo todos os músculos do rosto – você, criança, deliciado com o azedinho do limão.

Descompasso do gordo

Novos acordes sertânicos dão o tom do baile. Quem não dança, aguarda. Sapatinho brilhante, dedões pintados de vermelho, bafão de dezessete maços de cigarro. O olhinho meio torto? Deve ser felicidade. Sentadona de frente para a pista, ela acompanha corpos sacolejando – cada partido solteiro, novo sonho da velha.

"Solteiríssima?", indago.

"Vim solteira. E tô pescando", sinaliza, serelepe.

À mostra, as perninhas macilentas e cheias de varizes azulonas, que se cruzam e formam cidades com pontes, igrejas, pracinhas, penitenciárias e estádios de futebol, não são as iscas mais eficientes?

"Fiquei viúva e minha mãe, de 79 anos, também enviuvou. Viemos juntas. Olha ela lá, bailando."

Apontando a senhora de longe – epa!, não é a mãe mais nova que a própria filha?

"Só acho que podiam tocar música mais antiga."

"!"

"Por que não cantam 'Saudade do Matão'?"

"?!"

"As músicas de hoje são tudo ruim. Cê não quer dançar comigo?"

Doce risada, a da liberdade.

"Ah, não dança? Que pena. Sabe que não tenho tipo favorito?! Pode ser qualquer um. Desde que dance bem. Olha esse, ó, que tá passando."

Gorducho arrastando passos em sapatos marrons. Boca aberta, olhos confusos com tantos braços e movimentos, camisa azul por baixo da calça jeans surrada.

"Ô, dança comigo aê!"

A ordem de berros surpreende o sujeito. Intimado de supetão.

"Dança comigo, vem!"

Passivo e submisso, ele acata. Ombro com ombro. Mãozinha vacilante na cintura – dele e dela. Discrepância evidente dos dançarinos. Passos frenéticos de garça magrela, lentidão de elefante obeso. Dois pra lá, dois pra cá. Canhestros sem clima. Ela sussurra no ouvido dele uma série de palavras - impublicáveis? O grupo entoa "Ainda Ontem Chorei de Saudade", recebida pelas experientes dançarinas com gritinhos de delírio – beatlemania do sertão. Trilha ideal. Mas há certo descompasso. Não vai dar certo. Não por muito tempo. Menos de dois minutos de dança, ela volta à cadeira um bocado frustrada. E o sujeito, como se nada, segue caminho.

"Acredita que pisou no meu pé? Meu Deus, como dança mal", critica, compenetrada no criterioso processo seletivo.

Morte e vida londrina

Para não morrer de fome, doze velhos aguardam enfileirados no quiosque – ali, não existe atendimento preferencial. O dinheirinho bem guardado na mão firme é para água (R$ 2), refrigerante (R$ 3) ou porção de frango (R$ 10). Cardápio minimalista. Cadê a cerveja geladinha? Caipirinha de limão? Onde a sobremesa? Doce de goiaba com creme de leite? "Aqui não tem nada disso. A maioria da velharada é diabética ou hipertensa. Cervejinha ou vinho, meu filho, só de vez em nunca", explica a senhorinha de 68 anos. Mas cerveja e acepipes adocicados são o que menos fazem falta.

"Ruim é essa falta de homem, né?" Sobre a ausência, ela tem razão. Onde os grandes varões? Herói de Tirso de Molina? Insuperável dançarino de tangos e boleros? Eterno rei das trovas, exibindo canetinha no bolso da camisa – prestes a rabiscar versinhos de amor à musa da tarde? "Tão tudo enfiado no boteco. Enchendo a cara, jogando bocha, berrando no baralho. Homem quando fica velho se aposenta de tudo. Até disso que cê tá pensando! Daí pro enfarto é um passo só. E a gente fica aqui, que nem besta, caçando homem pra bailar", reclama. Vaidosa, ajeita o cabelinho a todo segundo. Dedões enrugados volta e meia tocam o brincão balangando na orelha – quantos já perdidos nessa vida inteira? Rapidinho, pouco tempo de conversa te escancara a morte: o marido, falecido há muitos anos. Ela tinha acabado de chegar em Londres, onde a filha entrava em processo de parto. Quatro dias depois do desembarque, a mensagem. "Enfarto fulminante. Caiu durinho." A morte não atrapalhou a vida. "Nem voltei pro enterro no Brasil. Fazer o quê?! Morreu, morreu, ué", comenta a velhinha, já abraçando as amigas que acabam de chegar ao baile. "De Londres, acompanhei o nascimento do meu neto. Desde então, tô na ativa. Danço um pouco de sertanejo, só me falta valsa e bolero."

Dentes vacilantes

"Mas o tempo cercou minha estrada e o cansaço me dominou. Minhas vistas se escureceram e o final da corrida chegou", esgoela-se o cantor sexagenário, amontoando suspiros no formoso topete de laquê. Nos olhares lançados pelas senhoras, promessas secretas de noites em claro e cama quente. Única entediada, uma velha tolera o show e, esvaindo-se em suor, encharca o guardanapo de quarenta graus. Sentadinha à mesa, dedinhos batucam versos sertânicos. Desânimo da música ruim, do calor castigando ou da garrafa de água?

"Bom mesmo seria uma cervejinha, né?", pergunto.

Ela escancara dentes branquíssimos – quinze mãos lhe fazendo cócegas, o mesmo êxtase dos dezessete aninhos.

"Ai, sim! Cervejinha bem geladinha", responde, remexendo de um lado para o outro a dentadura vacilante.

"Em busca do grande amor?", vou sondando.

Inquietos, pré-molares e incisivos requebram na boquinha carcomida.

"Deus me livre..."

Cai ou não cai?

"... nunca mais..."

Cai ou não cai?

"... disso tô vacinada."

Correndinha, a mão protege a bocona banguela, inteirinha nua - não para você, mas para pouquíssimos privilegiados. Último ato erótico, arremessado ao lado da cama, nessa longa estrada da vida.

Publicado no Diário (4/10/15)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Defuntos, lanches, preces e jam session no cemitério

Não há como ignorar a morte. Ainda mais aqui, contornando o cemitério. Batendo pernas, você escolhe o seu epitáfio. “Glad did I live and gladly die”, do grande Robert Louis Stevenson, ou “para quem pediu sempre tão pouco, o nada é positivamente um exagero”, do mestre Zé Paulo Paes? Na última despedida, quem virá? Meia dúzia de parentes e três centenas de duplas sertanejas – celebrando, felizes da vida, o teu fim? O cemitério parece quieto, mas não é. Prestando bastante atenção, você escuta os diálogos dos mortos:

“O mausoléu mais bonito, aqui de Maringá, é do João. Parece obra de arte.”


“Do João? Tá brincando, né?”


“Se esse treco é uma obra de arte, o que dizer do ‘Último Adeus’, do Alfredo Oliani, no Cemitério São Paulo?”


Silêncio entre os mortos.

“E a escultura do Francisco Leopoldo e Silva, ‘Interrogação’, no Cemitério da Consolação?”


Mais silêncio entre os mortos.

“Eu, aqui, debaixo da terra sem um túmulo decente... Bom mesmo seria um nu feminino, em cima da minha lápide, tão sensual
quanto à moça de ‘Solitudo’, do Francisco e Leopoldo e Silva, lá na Consolação.”


Os mortos voltam a discutir. Alguns berram de raiva, outros dão risadas. 


“Cala boca, quero dormir!”


“Quem consegue dormir nesse calor?”


“Parece que chegaram mais dois novatos hoje.”


“Fosse viva tomaria mil sorvetes.”


“Novatos, quem são vocês?! Nome completo e causa da morte!”


“Fosse vivo beberia todos os vasilhames do Divina Dose.”


A escalada do dólar, o impeachment petista, o escândalo de lordes ingleses - assuntos importantíssimos não interessam aos mortos maringaenses.


“Sejam bem-vindos ao cemitério, novatos.”


“Venderia fácil minha alma por uma última noitada no Skolzinho.”


“Compraria um revólver e mataria algum cantor sertanejo.”


“Alguém aí sabe dizer que horas são?”


“Mãezinha! As minhocas tão fazendo cosquinha de novo!”


Cemitério de automóveis

Os carros na frente do Prever denunciam as tantas mortes do dia. Uno. Gol. Palio. Ecosport. Corola. Pampa. Parati. Monza. Hordas de velhas, famílias, crianças. Policiais uniformizados saúdam senhoras serelepes e vão entrando no cemitério. Mais policiais zanzam no meio da rua, distribuindo tapinhas nas costas, escancarando sorrisos macilentos. Parentes que não se viam - há quê de anos? - emendam abraços e conversas. A mesma morte que separa, também une. Sentadinha na frente do Prever, abanando o suor com a mesma mão que esbofeteia o mosquito, uma velha morre de calor. Quase quarenta graus para acompanhar a morte alheia – você, suando bicas, também morre aos poucos.

Das sete salas de homenagens, duas estão abertas. Seis velhos velam o corpo de um homem numa delas. Mais concorrida, a despedida da mulher ao lado atrai nove pessoas. Ninguém chora nas salas. Não nessa segunda-feira, às seis da tarde. De frente para os dois corpos, é forte o cheiro de presunto – um menino se regala com sanduíche recheado. As outras salas estão vazias. Entro. Raspas de flores. Cadeiras tortas. Vazio suporte de defuntos. A morte passou por aqui. A fome atacou pacotes de bolachas e pães. Uma Bíblia aberta em algum versículo de Marcos refresca a leitura do crente: “apenas o trigo amadurece, logo se mete a foice, pois é a época da ceifa”. Única lembrança da homenagem, o nome da mulher continua pregado na parede: Terezinha Elias Batista. Ceifada pela vida.


No bebedouro, mãos tremelicantes estendem o copo. Ao som da água que escorre geladinha, o velho lambe os beiços rachados pelo tempo. Mata tudo numa só golada, olhão escancarado, fio de baba escorrendo pelo queixo - essa grande sede de viver.


“Tô aqui pro enterro do meu irmão”, diz o velho. “Morreu novo, só tinha 78 anos. Foi câncer de próstata, não fez direito os exames. A próstata dele ficou desse tamanho, ó. Você, quando chegar aos 40, e se chegar lá, vá logo fazendo os exames, viu?”, aconselha, num tom quase ameaçador.


O movimento parece paradão, mas o dia foi um agito só. “Hoje de manhã tinha mais cinco mortos. Às vezes, tem tanto morto que nem tem onde deixar. Daí a família tem que esperar. Ou ir noutra capela. Tem vez que morre doze, quinze, tudo de uma vez”, comenta uma faxineira. 


A passos firmes, um sujeito entra no Prever carregando um caixote de acepipes. Coca-Cola. Queijos. Pães. Margarina. Chocolates. Bate forte, a fome, rangendo teu estômago. E até penso em me regalar no velório alheio. Mudo o destino com os passos da menina. Correndinha, passa de cabeça baixa, cruzando velhas e velhos enlutados, alheia aos dois corpos mortos, rumo à máquina de refrigerantes. Ligeira, mete moedas na máquina e seleciona salgado, bombom e Guaraná. “Cresci com a morte: isso faz parte da minha vida”, comenta a jovem Keisla Amabile, 15. Neta da proprietária da floricultura ao lado, Keisla dá uma mão nos dias mais movimentados. “Venho desde pequena: entrego as coroas de flores e vou embora”, diz. Encarando a morte diariamente, ela discorre sobre o tema com desenvoltura e inteligência. “Se pudesse escolher, gostaria de morrer dormindo, sem sentir dor.” O primo dela de 18 anos, que invade a conversa, diz que a morte já deu mais trabalho. “Faz tempo que não morre um monte de gente de uma vez”, lamenta o garoto. “Parece que até a morte tá em crise”, comenta, rindo. 

Volto para a frente do Prever. Na saída de um enterro, dezenas de pessoas vão saindo do cemitério em direção aos carros. Crianças tossem desenfreadamente. Beijos, abraços, promessas para uma próxima visita. 

“A gente só se vê nessas horas tristes. Passa lá em casa, pôxa.”


“Olha que eu vô, hein”, ameaça a velha.


“Ai, vai sim. Ficamos amigas por causa dela. Agora, tem que continuar a amizade.”


No meio de tanta gente – até aqui?! -, uma moçoila cruza o Prever. Olhos castanhos, longos cabelos negros, shortinho, blusinha e tênis, tudo preto feito a morte. Vinte e um aninhos de pura louvação. Nas mãos, um skate minúsculo. De criança e anão?

“É um mini long. Adoro andar perto do cemitério”, comenta a voz melíflua e maviosa.

“Os mortos não te incomodam?”, pergunto, arrancando faíscas da boquinha mais vermelha. 


“Claro que não! Super de boa. Não é um lugar triste. Tiro o meu rolê e me sinto confortável”, diz.


Estudante de Psicologia, a moçoila implora, mais de uma vez, que não divulguem seu nome. Das musas maringaenses você não aceita os pedidos mais sórdidos?


Velório ostentação

Familiares bocejantes morrem de tédio. As salas vazias te dão um frio na espinha – não é você o próximo da fila? No meio dos bocejos, um sujeito varre preguiças. Silencioso, atento a cada palavra alheia. Taciturno, lúgubre, soturno. Calado, recolhe lixos. O faxineiro mudo, perturbador em seu silêncio, é um bocado assustador. Dele não ecoam sorrisos. Olhares vazios. Empunhando o rodão de limpeza, não é a morte com sua foice fatal? Ele se aproxima - fugir ou encarar a morte? 


“Bom mesmo foi o enterro do Pinga Fogo. Aquilo deu uma multidão de gente. Nem eu, que trabalho aqui, consegui ver o Pinga. De tão grande, a fila chegava lá no Teatro, no meio da Cerro Azul. Dois agentes funerários acompanhavam a entrada e a saída do público”, lembra o zelador, forçando o esfregão no piso.


Passos pequenos, cabeça inclinada, ombros curvados para dentro. Alma penada vagando pelos corredores desertos.
“Tem vez que dá dó: não vem ninguém velar o defunto. Geralmente, porque a família mora muito longe. Tem caso até que mora em outro país. Daí vem algum amigo da família e vela o corpo. Sem choro”, comenta, olhão esbugalhado de detalhes. “Trabalhando aqui, você aprende a respeitar a tristeza alheia, a se importar com quem tá sendo velado, ainda que seja um desconhecido. Entro, faço uma oração. Mesmo pra quem não conheço.”

Repostas firmes. Amigo dos defuntos abandonados. Único aceno, o dele, antes da lápide pesada tampar o grito do cataléptico. 

“A morte é repentina. Pode ser brutal ou serena, mas quase sempre é repentina.”

As pesadas palavras do faxineiro ecoam no corredor. O mesmo peso de ameaças. Ele, porta-voz da morte. 


“Quando eu morrer, só tenho uma certeza. O Senhor Deus estará presente no meu enterro”, garante, olhão pregado na saleta vazia, imaginando seu último dia. De terno, gravata e dedinhos entrelaçados. 


Carona fúnebre

Terça-feira, seis e pouco de tarde. Poucos carros no estacionamento. Do alto das árvores do cemitério, anu-branco, andorinha-de-casa e sabiá-do-campo solam sax e trompetes numa jam session frenética. Duas risonhas velhinhas forçam a vista, rangendo testas e sobrancelhas, tentando, em vão, observar algum dos pássaros jazzistas. Sentadas no banquinho, de frente para o cemitério, mal enxergam as nervuras azulonas e as crateras de frieiras nos próprios pés, que se esfregam violentos, banhando em sangue o dedão carcomido.


“Uma pena, ter morrido. O Mané era jovem e tinha problemas respiratórios. Lutou muito, mas a morte veio”, lamenta uma das velhas.


Casais, velhos, famílias e crianças ramelentas vão brotando, aos poucos, dos muros do cemitério. Uma chupeta vermelha escorrega e vai ao chão – não é de luto o berro do bebê. 


Pessoas abrem espaço para a passagem de um veículo motorizado. Em vez de jogadores e tacos de golfe, o carrinho motorizado carrega uma velha centenária. Serelepe e sorridente. Quieto e soturno, o motorista de terno preto guia o carrinho em câmera lenta – não matar a centenária de susto? O carro fúnebre leva uma eternidade para cruzar os poucos passos de distância, do cemitério ao Prever. Satisfeita, a velha agradece a carona. “Tchau, viu. Muito obrigada.” O motorista retribui o sorriso, sussurrando palavras quase inaudíveis. Mais dia menos dia, velha e motorista não se encontrarão, por aqui, no mesmo carrinho fúnebre, encarando o mesmo percurso? Do outro lado da rua, um glorioso grupo de mulheres deixa o cemitério. Algumas, como pede o calor de quarenta graus: vestidinho florido, saltinho alto, decotinho fatal - a morte não assassina a vaidade. Com mil e uma musas,a despedida digna de todo grande herói. Assim, o meu, o teu, o nosso fim.


Publicada no Diário (27/9/2015)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Crimes, fedor, fugas e versos do cárcere

Magrelinho, voz baixa, passinhos curtos. Minúsculo em seu um metro e sessenta - cravados! - de altura. O carcereiro mais temido de todos os tempos do minipresídio de Maringá tem um nome nada grandioso, ironicamente no diminutivo: Paulinho. Nunca levantou a voz - nem um ai, qualquer ameaça que seja, mínimo xingamento no ápice das tantas tensões. No lugar dos fortes músculos - onde foram se meter, num corpinho tão miúdo? -, o carcereiro de apenas 57 quilos tinha seus contornos assustadores em outros hemisférios. No olhão esbugalhado revistando cada cela. No silêncio intimidante desafiando os presos. No ruído estridente, quase desumano, que ecoava dos seus dedos ao arranhar, de leve, o revólver de calibre 38 pendurado à cintura. Não foi fácil se transformar na figura mais temida e mais respeitada desses 32 anos do minipresídio maringaense. O momento decisivo foi em 1988: a forma destemida - e suicida - como encarou a morte.

Os boatos de cadeia, ao contrário da maioria dos presidiários, nunca passam muito tempo dentro das celas. Compartilhados com um único vizinho de cárcere, rápido ganham as ruas e a liberdade, passando, antes, pelos ouvidos dos próprios agentes penitenciários. Qual seria a sua reação diante de uma ameaça de morte? Pior: uma ameça de morte de um sujeito de alta periculosidade, com seus quase dois metros de altura, um sujeito que já está encarcerado e permanece, ali, o dia inteiro, sorrindo cinicamente para você atrás das grades? Paulinho deve ter pensado duas vezes. Mas, se pensou, foi tudo muito rápido. Que não deu tempo de ninguém aconselhar nem evitar o que viria pela frente. Tranquilamente, ele deixou a arma em cima da mesa e abriu a porta do minipresídio, caminhando em direção à cela onde estava o preso. No submundo da carceragem, passou rente aos 350 presidiários. Ninguém, inicialmente, esboçou reação – estupefato, você não demora a crer em seus próprios olhos? Em frente à cela, no meio do corredor, o presidiário das ameaças aguardava o carcereiro com um porrete de aço afiadíssimo. Um só golpe daquilo lava a alma de sangue. Ninguém disse única palavra. Quando a pancadaria começou, outros presos partiram para cima de Paulinho, armados com bugigangas caçadas no meio do caminho. Outros, preferiram assistir. Quem viu a cena, nunca mais esquecerá os mínimos detalhes. "Sem ajuda de ninguém, de ninguém!, ele arrebentou o sujeito grandalhão que fazia as ameaças e ainda se defendeu dos presidiários que tentaram fazê-lo de refém. No final, isso parece coisa de cinema, todos os presos abriram caminho para o Paulinho. E da mesma forma como ele entrou, quieto e sozinho, sem qualquer arranhão, debandou da carceragem, fechou a porta e calou a ameaça. A partir dali, todos os presos passaram a chamá-lo de Doutor Paulinho. Essa história já é uma das grandes lendas do minipresídio", detalha o mitológico repórter policial Roberto Silva que, embora não tenha testemunhado a tal batalha, há mais de trinta décadas vem acompanhando, de perto, os bastidores do universo policialesco maringaense.

Exigência do próprio Roberto Silva, eu telefonaria mais tarde ao Doutor Paulinho. "Cada lenda tem mil e uma lacunas de ficção. Vá atrás da verdade", ordenou. Do outro lado da linha, a voz aguda do Doutor Paulinho me receberia com gentileza e outros detalhes. "Não teve isso aí de porretes, não. Entrei sem arma no inferninho e os dois sujeitos que me ameaçaram, dois homicidas, também estavam desarmados. O problema é que eles tinham me ameaçado, num dia de visita, e me chamaram pra porrada. Eram grandes, faziam capoeira e ficaram jogando, me provocando, dizendo 'cê não é bom de porrada, é?'. Eu tinha acabado de chegar a Maringá. Não podia deixar que fizessem aquilo comigo. Então, encarei a dupla. Acertei o primeiro no pau do pescoço. O segundo ficou surpreso, e com isso ganhei vantagem. Dei um golpe no segundo, também sem problemas. Eu, que só tinha as lições do treino da polícia. Nem jogar capoeira eu jogo. Bom, desde então, nunca mais nenhum preso veio me provocar", comentaria o Doutor Paulinho, hoje aposentado do inferninho.

Às três e meia da tarde, disputando os últimos centímetros na sombra, seis repórteres policiais e cinegrafistas vão matando o tédio na frente da 9ª SDP (Subdivisão de Polícia). O vento faz cócegas na árvore, derruba o chapéu do velho, atropela o jornal do delegado. Diante do vento e do Sol impiedoso, você só agradece. Por sorte - ou milagre do tal padre-cantor? -, sem temporais nem previsão de chuva molha-bobo. Aleluia! É hoje que a polícia vai abrir a cadeia. E a imprensa poderá ver, de perto, como é acordar e dormir dentro do inferninho.

"Cêis vieram hoje cedo?", pergunta o cinegrafista João Vitor, 29, de uma emissora de TV. Eu e Ricardo Lopes, fotógrafo de O Diário escalado para a missão, respondemos que não.

"De manhã, eles já liberaram pra TV. O outro cinegrafista até passou mal. Lá dentro é muito fedorento. Vou te falar, viu? Não tenho o estômago pra essas coisas."

Tiro, porrada e bomba
Enquanto a polícia não libera o cárcere à imprensa, Roberto Silva propõe um city tour pela área externa do cadeião. Os demais repórteres e cinegrafistas também se animam. "Esse minipresídio tem uma porção de fatos macabros", adianta o mito do jornalismo maringaense, guia turístico num safári ensolarado. "Dizem que nos anos noventa, a polícia descobriu um plano de fuga dos detentos. Em vez de tapar os buracos, os agentes esperaram que os presos terminassem as escavações. E, no meio da madrugada, quando os presos finalmente conseguiram chegar do lado de fora da cadeia, deram de cara com os policiais, todos fortemente armados. Todos os presos foram fuzilados", relata, fazendo pequenas pausas precisas, controlando o tempo da ação – exímio narrador de causos.

Nesses anos todos, segundo as contas de Roberto Silva, mais de trinta túneis foram cavados. "Era tão fácil escavar o chão que os presos deram o apelido: 'presídio manteiga'", comenta, a boa risada ecoando. E muita, muita gente mesmo, conseguiu debandar, livrinha da silva. "Eu mesmo, veja só, bem aqui onde estamos, do lado de fora do minipresídio, notei que havia um buraco meio estranho. Recente. Feito há poucos dias. Eu imediatamente notifiquei a polícia. Os investigadores até aceitaram a denúncia, mas com ressalvas. Eu desconfiava que aquele buraco tinha sido escavado para que os presos, em suas escavações, encontrassem mais facilmente o ponto de saída. E não deu outra. Dias depois, vários presos fugiram por aquele buraco."

O muro acinzentado, única barreira que separa a liberdade dos presos, não é alto. Fugir por pirâmide humana, alternativa considerável. O arame farpado não é dos mais ameaçadores. Não há guarita nas vértices das paredes, com guardas armados, tal como nos filmes de ação. Nos fundos do cadeião, um campinho de futebol e carcaças de velhos carros apreendidos. É dali, do cemitério de automóveis, que os comparsas dos presos arremessam bolas de meias embolando baseados, cigarros, isqueiros, serras, brocas e outros regalos. Com uma vara de pescar improvisada, ajeitada com tiras de lençol e escovas de dentes, os presos conseguem fisgar, atrás das grades, as bolas de meia. "A única coisa que é proibido mandar pra dentro da prisão é crack: a pedra faz com que os presos surtem e fiquem fora de controle no meio dos demais", comenta.

Lá dentro dos muros cinzentos, Roberto Silva explica, há uma série de regrinhas que jamais podem ser descumpridas. 1) Caguetagem: quem dedura o crime do próximo é punido com uma mortezinha básica. 2) Talaricagem: deu uma de Don Juan para cima da esposa do colega de cela? Danou-se. Crime punido severamente – outro assassinatozinho. 3) Preso por estuprar alguém? Será recebido muito carinhosamente. Por todos os presos, um de cada vez, democraticamente. 4) Furtou o companheiro de cela? Acabou a amizade. Você é colocado numa roda e os presos podem fazer o que quiser – use a imaginação. 5) Soltou gases? Ato imperdoável no mundo do crime. Condenável com bons tapas e pontapés, embora a sova não chegue à morte.

Mais próximos do muro, vamos andando, é possível ver a rachadura, do topo ao chão, causada pelo explosivo C4, arsenal que costuma ser usado em guerra. "Foi um pedacinho desse tamanho ó, minúsculo", diz o jornalista, ilustrando com os dedos. "E mesmo assim fez esse estrago todo. Desse certo, derrubava o muro e ninguém ficava pra contar história."

Prisões bizarras

Pelo celular hipermoderno, Roberto Silva recebe uma mensagem do alto escalão da delegacia. Vão liberar o minipresídio para a imprensa. Vamos voltando. "Quando a polícia informatizou o sistema, tive acesso às fichas antigas. Documentos fabulosos. Achei uma ficha assim: com dia, hora, nome completo do preso, dia do nascimento dele e o motivo do crime: o cidadão tal foi preso porque estava na rodoviária pensando em aplicar um golpe. Pensando! O cara nem cometeu crime algum. Descobri outra ficha, registrada duas horas depois, dizendo que o mesmo sujeito havia sido liberado. E, por fim, tinha uma terceira ficha, registrada quatro horas depois da segunda, oficializando a nova prisão do sujeito, na rodoviária, porque continuava a pensar em aplicar um golpe", lembra. "Tinha tanta coisa lá... Até uma prostituta. Essa é ótima também. A prostituta foi presa, em 1972, no antigo cadeião, porque estava a trottoir nas calçadas", comenta, arrancando boas risadas de repórteres e policiais.

Agentes armados apertam o passo no corredor da delegacia. Submetralhadoras. Pistolas. Escopetas. Olhares firmes e atentos. Cruzamos salas, salinhas e saletas até chegar às grades do inferninho. Quatro e pouco da tarde. Os jornalistas vão sempre atrás. Uns comentam sobre o carcereiro assassinado não sei onde, outro sobre o jornalista, acho que do Norte, que recebeu nova ameaça de morte, e já vão mostrando imagens no celular, vídeos ensanguentados. Somos nove, contando câmeras, fotógrafos e os famosos apresentadores de TV. Vamos entrando no minipresídio, cruzando os pesados portões de ferro. Sabe você o que é estar atrás das grades? O climão, do nada, fica tenso. Abafado. Mal iluminado. Nada de ar correndo, livre – a última brisa fresca dá um nó no coração. E é só alguém dar um berro lá de dentro - epa! -, ainda não é hora. "Volta, volta, volta!", ordena um policial, com rosto surpreso. Recuamos. Primeiro da fila, o fotógrafo Ricardo Lopes desembesta a correr - mais ligeiro que Abebe Bikila! Veloz feito Paavo Nurmi! As mesmas pernadas de Emil Zatopek! Olhão vidrado, esconde o fôlego numa saleta cheia de agentes. "Tem preso escondido nas celas. Traz mais agente, traz mais!", grita o policial. Com o pedido de reforço, quatro sujeitos abandonam a saleta de controle e, afobados, atropelam o fotógrafo assustado, e se metem no meião das celas, com porretes e revólveres. A funcionária entediada, agora, sim, empolgada e atenta às dezesseis câmeras revelando quase todo o interior do cárcere. Quase. A caçada e a correria, culpa de um preso que ignorou a ordem e não seguiu para o pátio. "Imaginou o susto dele, acordar e ver toda a cadeia vazia? Fugiram todos, só eu fiquei?!", comentaria um agente, minutos mais tarde, com uma boa gargalhada. "Tava dormindo. Deve ter fumado um bagulho estragado", disse, apontando para o sujeito encarcerado.

Agora, tudo liberado. Desenhos de palhaços demoníacos, símbolo do PCC. Nomes de mulheres. Amanda. Michely. Declarações do eterno amor - para quem ver? Paredes de histórias. Teses que sugerem novas interpretações da Santíssima Palavra: "Deus não gosta do pecado mas ama o pecador. Vida loka cabuloza", escreveu alguém, enforcando a gramática normativa. Outro preso, alheio a vírgulas e distribuindo milagrosamente um e outro acento, aproveitou o tédio da prisão para compor delicados versinhos, em homenagem a um tal Lincon. Valsinha dois por dois? Pagodinho romântico? Cante como quiser: "Lincon do universo / só bala pra você / seu frango / desse (sic) na vilinha que vc vai morrer / seu safado /Vilinha!!!"

Fosse o Lincon, evitaria me embrenhar nalguma Vilinha. Vila Operária. Vila Morangueira. Vila Esperança. Num show do Martinho da Vila. Toda e qualquer vila - nunca, jamais.

Aleluia!

No minipresídio, cheiro de merda e mijo. O lamaçal e a terra molhada, culpa das tantas escavações – sorte a deles, que de manteiga. Você tropeça num pé solitário de chinelo velho. All Star. Colchões ensopados de lama e suor - talvez sangue. Muita gente já morreu aqui dentro. Enforcada. Eletrocutada. Decepada. É quente aqui dentro. Quarenta e cinco graus sem ter para onde fugir? Sorte de quem conseguiu escapar. A cela não é maior que meu banheiro. Aqui, o banheiro, sem urinol, fica de frente para a pia, onde os presos preparam a comida. Você come com o mesmo cheiro que evacua. A cela, em poucos segundos, começa a ficar mais apertada. Impossível acomodar gente nisso daqui. Teu estômago embrulha. Apertado, em vários nós. Nesses corredores labirínticos, concluo, só aceito me prender aos fios de Ariádiny. O vento lambe o teu pescoço e te recebe com beijos e abraços - não é boa a liberdade lá fora?

Publicado no Diário (15/8/15)

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Ruivas, morenas, escadas, salas, burocracia e berros sertânicos

Debaixo da bandeira da cidade, centenas de estudantes aglomerados com cartazes, punhos fechados, vozes firmes: foi aqui. O povo marchando na Avenida XV de Novembro, entrando pela noite escura, exigindo mais educação, mais saúde, gritando “não é só pelos 15%!”, caramba, há quanto tempo foi isso mesmo, um, dois anos? Tudo isso?

“Lembra?” 

Aqueles protestos organizados pela internet e combinados concomitantemente em diversas cidades, exigindo troca-troca de presidente, cancelamento da Copa do Mundo, extradição de duplas sertanejas, entre outras exigências que o esquecimento soterrou no quintal da memória. Flashes. Selfies. Camisetas de partidos políticos e bandas de rock. A moça com garrafa de vinho.

“Lembra?”

Foi aqui, debaixo da bandeira da cidade, pouco antes de alguém quebrar a vidraça da prefeitura, causando um estardalhaço estridente, todos nós nos afastamos, tentando identificar o autor, mas, naquela altura, o grito de protesto já era outro, e quando eu seguia para a praça, longe do núcleo da gritaria, você, então, cruzava a minha frente, um perfume cítrico, boquinha vermelha, olhinhos roucos das palavras de desordem.

“Lembra?”

Como esquecer uma ruivinha na multidão? Bem que pode ser a mesma, sim, aquela mesma ruiva engajada, uma das musas da “Água agitada”, do Klimt, reflito, enquanto acompanho, com o olhar, a ruivinha saindo da Prefeitura e passando lá longe – quase cinquenta metros? –, apressada, cabisbaixa, cheia de papéis, até entrar num carro de vidros escuros e frear o peito aflito.

“Lembra ou não? Você está com a cara engraçada.”

Grande José Luiz de Araújo. Um dos tantos bons professores que tive na UEM, no curso de Letras.

“E sempre de chapéu!”

“No chapéu cabem todas as minhas mentiras”, respondo, ainda sob o forte impacto da ruivinha – dentes gaguejantes de frio ou emoção? Devo estar um bocado estranho porque o Zé Luiz, que me parou para falar qualquer coisa sobre Pulinópolis, já se despede, diz que vai na outra esquina, rapidinho, mas que, daqui a pouco, a gente se encontra lá dentro da prefeitura, e vou respondendo que sim, claro, seguindo meu caminho sozinho.

Mulheres fatais

As ruivas, vou pensando, não são por acaso. Os pré-rafaelitas ingleses, com suas pinturas simbolistas, e acumulando seguidores na Áustria, Alemanha e Bélgica, foram os responsáveis pela popularização da imagem da mulher ruiva. Gosto da “Água agitada”, com as musas do Klimt retratando a perversidade feminina e a mulher fatal. Como não gostar? No térreo da prefeitura, interrompo o fluxo – ruivas para que te quero.

Culpa de duas caminhonetes com som alto, delas ecoam dois arrochas universitários, com letras grosseiras e infelizes. O gabinete do prefeito fica no primeiro andar. Será o prefeito capaz de ouvir os arrochas sertânicos que emanam dos carros maringaenses agora mesmo, às quatro da tarde desta terça-feira?

Em meio à ruivinha e ao arrocha, tento me concentrar. Paredes cinzentas, um lugar ainda mais melancólico e triste com o tempo nublado lá fora. Calado e avesso à conversa, um velho de roupa acinzentada e olhar lúgubre vaga pelo corredor do térreo, empunhando um sacolão transparente com latas amassadas de refrigerante – se visse vivo, o grande Iberê Camargo faria nova pintura.

Crianças entediadas morrem de silêncio num dos quatro aparelhos, igualmente silenciosos, da ATI (Academia da Terceira Idade). O maior boceja no simulador de caminhada. Não há risos na prefeitura. Quase todo mundo só está aqui porque tem mil e um problemas. Ninguém vem pra cá à toa, para dar uma caminhada aprazível entre papéis, burocracia e processos, determinado a apreciar ambientes diferenciados. Na praça de atendimento, a essa hora sem fila, tem gente com todo o tipo de missão.

Recém-contratada, a ajudante de limpeza Mayara Fernandes, 23, perambulando à caça de vale-transporte. Ela mora em Sarandi e trabalha num colégio da Vila Operária. São quatro ônibus, diariamente, para ir e voltar do trabalho. “Tô com um probleminha. Como eu não tenho conta de luz, água, telefone, não consigo o vale-transporte. Daí, tenho que tirar da boca pra pagar o ônibus e conseguir chegar no trabalho”, comenta.

Recém-formado em Jornalismo, um jovem maringaense tirou carteira de funcionário autônomo - exigência do promissor primeiro emprego - e trabalhou por dois meses numa empresa. Demitido e desiludido com a profissão, resolveu cursar História. Um ano depois, ele se deu conta de que não tinha solicitado o cancelamento da carteira de funcionário autônomo. O resultado? Uma dívida de quase R$ 700 com a prefeitura. “Agora, tenho que cancelar isso o mais rápido possível e parcelar a dívida”, lamenta.

“É um problema atrás do outro, né?”, observa a empresária Bruna Staub, 29. Visivelmente cansada, ela equilibra nos braços a pilha de papéis. “É a sexta vez que venho aqui hoje!”, contabiliza. As idas e vindas são culpa do processo burocrático, iniciado em março deste ano, para que ela possa construir, finalmente, uma casa na Vila Santa Isabel. “A obra ficou embargada porque a prefeitura, há muitos anos, ocupou 50 centímetros do terreno. Entre outras coisas, hoje tive que doar esses centímetros pra Prefeitura, pra que minha casa seja liberada”, conta.

Banheiro de Judas

Sisudo, empunhando pasta e papéis, o engenheiro Jacir Cardoso chega para pegar um de seus projetos, que está, no momento, em avaliação. “Se pudesse, mudaria algumas coisas desse prédio da prefeitura. Veja o banheiro: antigos e sujos. Não parecem aqueles banheiros de rodoviária dos cafundós do Judas?” Desconheço os banheiros dos cafundós do Judas. Mas, realmente, a coisa está feia. Um cheiro desagradável emana dos banheiros masculino e feminino. Acostumada com as tantas fragrâncias, trabalhando estrategicamente de frente para os tronos públicos, a senhorinha da portaria, com seus 65 anos, nem parece se importar tanto com o odor.

Solícita e sorridente – eis o bendito sorriso! –, tenta ajudar todo o tipo de gente perdida, desde outubro passado. Antes, ela dava aulas de artesanato, em escolas integrais, para alunos do Ensino Médio. “O problema é que minhas cordas vocais secaram. Como dar aulas com a voz enroscada? Passei por uma adaptação funcional e me trouxeram pra cá”, resume.

Com fácil adaptabilidade, ela, hoje, já está acostumada aos milhares de setores da prefeitura e diz que gosta do que faz. Lidar com pessoas, um trabalhão danado, não é das missões impossíveis para ela. “Sabe qual é o segredo? Atender da mesma forma como eu gostaria de ser atendida”, revela. “Às vezes, cavo um buracão pro pessoal, pego de um lado, mando pro outro, tento ajudar de toda forma possível.”

Vou penetrando o ventre do prédio, encarando as rampas centrais que levam ao primeiro piso, passando pela Secretaria de Comunicação Social e Secretaria da Fazenda. Os corredores folgam desertos. Dentro das saletas transparentes, homens e mulheres redigem textos, preenchem processos, imprimem arquivos.
Dos corredores você não ouve a risada do japonês gorducho nem o espirro da morena. Sigo. Gabinete do prefeito, portas fechadas. Ninguém à espera. Da rua, nada escuto. Protegido pelas espessas paredes, o prefeito deve trabalhar em paz, a salvo dos berros sertânicos.

Milagres e curas na vila

“O que eu estava te dizendo”, retoma o grande Zé Luiz, já me alcançando no segundo andar, “é que você mostra uma Maringá diferente. Chega a cumprir um papel memorialista. Minha mulher adora os seus textos.”
Estendo um sorriso. Mando um beijo à digníssima esposa. De que valem as tantas tortas linhas sem uma leitora fiel?

“Eu mesmo, que passo com alguma frequência pelo Centro Comercial, nunca tinha notado aqueles detalhes. Suicidas românticos, escritórios misteriosos, cada coisa. Você está preservando essas histórias, perdidas no esquecimento e na morte. Os personagens, o estilo, os temas vibrantes, as suspensões que nutrem a expectativa, diálogos com réplicas breves! Ah, não fosse Gustave Planche, no decênio de 1820, na França, não teríamos esse nosso romance de folhetim aos domingos!”


Agradeço, acumulando elogios debaixo do chapéu. E já no terceiro andar, cruzando a Procuradoria, a Direção de Licitação e os Recursos Humanos, disparo duas frases, de “As Cidades Invisíveis”, do Italo Calvino:

“Nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a escreve. No entanto, há uma relação entre ambos.”

Zé Luiz abre um sorriso.

“Gostaria que você escrevesse uma história... É fantástica. Você sabia que ali em Pulinópolis, distrito de Mandaguaçu, houve o desaparecimento de uma vila de quase mil pessoas, nos anos setenta? Você teria que ir para lá, claro, passar um dia inteiro, mas renderia um bom material. Em 1975, talvez um pouco antes, a vila Allan Kardec recebia pessoas de diversos lugares do País, do Mato Grosso, São Paulo, Minas. Muita gente acreditava que o médico de lá, um médium muito respeitado, era capaz de realizar milagres, curas e salvações. E ele dava aqueles passes, bênção, fazia de tudo.

Os meus pais, que eram de Iguaraçu, vieram para cá. Esse médico construiu até um hospital, dedicado a pessoas com problemas mentais, e a vila chegou a ter pousadas, restaurantes, bares...”

“E como tudo desapareceu?”

“Esse médico, que já morreu há muitos anos, acabou mudando para Sarandi, com a família. E as pessoas que viviam na vila, pouco a pouco foram parar em outras cidades. Como ninguém permaneceu no local, a vila simplesmente desapareceu do mapa. Virou tudo pasto.”

Vou anotando, no bloco de notas, os detalhes da história. O contista não é, como disse Baudelaire, “o pintor da vida moderna?” Ali mesmo, pincelo o futuro quadro. Cheio de pastas e de olho no relógio, o Zé Luiz se despede. Entretido com ruivas e com o sumiço da vila Allan Kardec, até esqueci de perguntar o que ele foi fazer ali. Devia ser outro desses problemões.

No último andar, nada diferente. O mesmo chão calado. As mesmas saletas envidraçadas. Triste, não esbarrar em outra ruiva. Secretaria de Obras. Secretaria de Planejamento. Secretaria do Meio Ambiente. Funcionários concentradíssimos à espera dos próximos problemas, filas livrinhas e banquetas vazias – não há melhor dia para ir à prefeitura.

Ali, encontro uma morena de 28 anos. Advogada, nascida em Maringá, há dois anos morando em São Paulo. Em passagem-relâmpago pela cidade, aproveitou para cumprimentar uma velha amiga na prefeitura. Vamos descendo, juntos, pelo ventre do prédio.

De barco em Bertioga

“No escritório, somos só em três: eu, minha chefe e a secretária. Quer dizer, agora tudo mudou.”
Olhinhos castanhos. Blusinha branca. Saltinho preto. Frases aceleradas, dessas que escancaram o armário a desconhecidos. Meu tipo favorito.

“Na sexta-feira passada, minha chefe disse que era pra eu ensinar um monte de coisas pra secretária, porque ela estava com tempo ocioso demais e seria bom que fizesse umas atividades mais simples.”

“...”

“Ou seja: basicamente, qualquer coisa que não precise de OAB.”

Tão bom encontrar moça que se abre.

“Na segunda-feira de manhã, saí pra pegar uns processos na Justiça do Trabalho e disse à secretária que à tarde ensinaria alguns negócios diferentes. Quarenta minutos depois, eu volto e a minha chefe tinha demitido a secretária. Sabe qual justificativa? Disse que precisava ‘diminuir o escritório’. Pô, o escritório só tinha três pessoas!”

Seu riso, a última camada de açúcar da filhó quentinha e cheia de canela.

Além da crise decepando os colegas de trabalho, a advogada ainda tem que lidar com um problema ainda mais delicado e inusitado, entre rimas de ventos e velas, vidas que vem e que vai.

“Nosso escritório praticamente trabalha para um único grande cliente. Empresário cinquentão, solteiro, até que bonito pra idade. Agora, por meio da minha chefe, ele vem me sondando pra passar um final de semana ao seu lado, viajando de barco, em Bertioga. Já imaginou? Sai sexta e volta domingo?”

Qual amor não é louca viagem? Quem nunca navegou nas ondas turbulentas da paixão? O azul da cor do mar não te remete à inocência perdida? Despacho malícias cheias de clichês.

“Me parece romântico...”

“Esse é o problema! Tenho namorado sério, moramos juntos há dois anos, somos praticamente casados. Se eu entro nesse barco, meu relacionamento naufraga em alto-mar. Se não entro, corro o risco de ser despedida. Que rolo, viu?”

Qual grande amor não parece outro neurótico enredo do Woody Allen? Quando me dou conta, já estamos no térreo. A voz acelerada agradece a conversa.

“Melhor que a minha terapia.”

Ligeira, deserta pela prefeitura e encara o toró, com o inseparável guarda-chuva preto. A chuva encharca a gripe da criança, inunda o tédio da tarde e agride a velha imóvel na esquina – outro maldito motorista explodindo poças d’água.

Publicado no Diário (19/7/2015)