segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Dentadura, clássicos sertânicos, enfarto, sedução e cárcere privado

Duas velhas ensopadas de chuva dão graças a Deus quando alcançam a área coberta do Parque de Exposições. A água encharca o vão dos dedos dos pés, inunda decote, orelha, sovaco, e despenteia o que resta da cabeleira: fios esparsos tingidos de vaidade. Velhas molhadinhas vão se enturmando. É dia de festa. No palco, a bandinha de integrantes sexagenários inicia a execução de "Nessa Longa Estrada da Vida", clássico sertânico dos tempos d'antanho. A sanfona da memória vem a calhar. Incontáveis senhoras serelepes saltam das capengas cadeiras de plástico rumo à pista, engalfinhando-se ao lado de outras dezenas de viúvas que cantam, caçam e dançam. Duas horas da tarde de uma terça-feira. Aqui, ninguém se importa com o horário – o tempo passa sempre lento, indiferente aos anseios do Baile do Idoso.

Clima de azaração. Troca de olhares. Coxas roçando canelas e sorrisos na melhor idade. Casais conversam alegrinhos, mãos danadas abanando coxas e pescoços. Línguas rugosas encharcam lábios rachados pelo tempo – a sedução. Atenta, a doce estudante de Educação Física da UEM não desgruda os olhos da pista, animada pelos dançarinos idosos. "Quem me dera essa empolgação toda", surpreende-se Erica Leme, 22. No meio da velha guarda, uma única garota encarna o sertanejão, descalça, formando par com a própria mãe. "Venho pra acompanhar mesmo. Dançar é uma das minhas paixões", comenta Virginia Pereira, 16. De vestidinho em branco e preto, segurando o saltinho alto com a mão direita, ela está visivelmente exausta: não é fácil acompanhar o ritmo dos tantos anos.

Prisão de amores

A música termina sem as palmas febris do coração. Os artistas, aqui, são os próprios dançarinos. Chego junto. Maquiagem desbotada no toró. Vestidão florido, decotão generoso, cabelo preto lambido na testa. Setenta e sete anos aparentando uns 98.

"Meu tempo de casada foi um inferno. Única bênção da minha vida, quando ele foi embora. Há quinze anos."

Olhinhos faiscantes metralhando cada dançarino.

"Meu marido me atazanava. Me chamava de tudo quanto era nome. Aquilo era o diabo em pessoa. Me trancava em casa. Nunca me levou pro baile. Dançar assim? Nunquinha."

Em quarenta e seis anos de prisão, carcereiro e detenta dividindo a mesma cama de casal. Todas as noites.

"E quantos filhos?", vou perguntando.

"Tive doze filhos!"

"?!"

"Daí você me pergunta, né? Imagina, então, se o casamento fosse bom, hein?!"

Mais risadas serelepes.

"Naquele tempo, meu filho, se a mulher não queria, tinha que querer..."

"!"

"... sem berro, sem reclamar, na marra."

Uma velha afobada, de olho no verbo alheio, invade a conversa.

"A gente era estuprada! Es-tu-pra-da!", denuncia, aos berros, a voz esganiçada.

"Isso mesmo. Era estupro toda noite. Ai de você, se não quisesse..."

Doce gargalhada das duas velhas, alívio das mil e uma noites de horror.

"E sempre bêbado, né, Maria?"

"Ca-cha-cei-ro! A mesma desgraça toda santa noite."

Risos centenários concluem no bailão: o casamento é o sepulcro do amor.

Às senhoras, pergunto sobre a paixão. Dessa louca mania de casar cedo, morar junto para todo o sempre, amém. Quase todos os seus amigos, na casa dos vinte e poucos anos, não estão se metendo em frutíferas famílias? Em uníssono, a rápida resposta da dupla:

"Deus me livre!"

Olhar de nojo, asco, contorcendo todos os músculos do rosto – você, criança, deliciado com o azedinho do limão.

Descompasso do gordo

Novos acordes sertânicos dão o tom do baile. Quem não dança, aguarda. Sapatinho brilhante, dedões pintados de vermelho, bafão de dezessete maços de cigarro. O olhinho meio torto? Deve ser felicidade. Sentadona de frente para a pista, ela acompanha corpos sacolejando – cada partido solteiro, novo sonho da velha.

"Solteiríssima?", indago.

"Vim solteira. E tô pescando", sinaliza, serelepe.

À mostra, as perninhas macilentas e cheias de varizes azulonas, que se cruzam e formam cidades com pontes, igrejas, pracinhas, penitenciárias e estádios de futebol, não são as iscas mais eficientes?

"Fiquei viúva e minha mãe, de 79 anos, também enviuvou. Viemos juntas. Olha ela lá, bailando."

Apontando a senhora de longe – epa!, não é a mãe mais nova que a própria filha?

"Só acho que podiam tocar música mais antiga."

"!"

"Por que não cantam 'Saudade do Matão'?"

"?!"

"As músicas de hoje são tudo ruim. Cê não quer dançar comigo?"

Doce risada, a da liberdade.

"Ah, não dança? Que pena. Sabe que não tenho tipo favorito?! Pode ser qualquer um. Desde que dance bem. Olha esse, ó, que tá passando."

Gorducho arrastando passos em sapatos marrons. Boca aberta, olhos confusos com tantos braços e movimentos, camisa azul por baixo da calça jeans surrada.

"Ô, dança comigo aê!"

A ordem de berros surpreende o sujeito. Intimado de supetão.

"Dança comigo, vem!"

Passivo e submisso, ele acata. Ombro com ombro. Mãozinha vacilante na cintura – dele e dela. Discrepância evidente dos dançarinos. Passos frenéticos de garça magrela, lentidão de elefante obeso. Dois pra lá, dois pra cá. Canhestros sem clima. Ela sussurra no ouvido dele uma série de palavras - impublicáveis? O grupo entoa "Ainda Ontem Chorei de Saudade", recebida pelas experientes dançarinas com gritinhos de delírio – beatlemania do sertão. Trilha ideal. Mas há certo descompasso. Não vai dar certo. Não por muito tempo. Menos de dois minutos de dança, ela volta à cadeira um bocado frustrada. E o sujeito, como se nada, segue caminho.

"Acredita que pisou no meu pé? Meu Deus, como dança mal", critica, compenetrada no criterioso processo seletivo.

Morte e vida londrina

Para não morrer de fome, doze velhos aguardam enfileirados no quiosque – ali, não existe atendimento preferencial. O dinheirinho bem guardado na mão firme é para água (R$ 2), refrigerante (R$ 3) ou porção de frango (R$ 10). Cardápio minimalista. Cadê a cerveja geladinha? Caipirinha de limão? Onde a sobremesa? Doce de goiaba com creme de leite? "Aqui não tem nada disso. A maioria da velharada é diabética ou hipertensa. Cervejinha ou vinho, meu filho, só de vez em nunca", explica a senhorinha de 68 anos. Mas cerveja e acepipes adocicados são o que menos fazem falta.

"Ruim é essa falta de homem, né?" Sobre a ausência, ela tem razão. Onde os grandes varões? Herói de Tirso de Molina? Insuperável dançarino de tangos e boleros? Eterno rei das trovas, exibindo canetinha no bolso da camisa – prestes a rabiscar versinhos de amor à musa da tarde? "Tão tudo enfiado no boteco. Enchendo a cara, jogando bocha, berrando no baralho. Homem quando fica velho se aposenta de tudo. Até disso que cê tá pensando! Daí pro enfarto é um passo só. E a gente fica aqui, que nem besta, caçando homem pra bailar", reclama. Vaidosa, ajeita o cabelinho a todo segundo. Dedões enrugados volta e meia tocam o brincão balangando na orelha – quantos já perdidos nessa vida inteira? Rapidinho, pouco tempo de conversa te escancara a morte: o marido, falecido há muitos anos. Ela tinha acabado de chegar em Londres, onde a filha entrava em processo de parto. Quatro dias depois do desembarque, a mensagem. "Enfarto fulminante. Caiu durinho." A morte não atrapalhou a vida. "Nem voltei pro enterro no Brasil. Fazer o quê?! Morreu, morreu, ué", comenta a velhinha, já abraçando as amigas que acabam de chegar ao baile. "De Londres, acompanhei o nascimento do meu neto. Desde então, tô na ativa. Danço um pouco de sertanejo, só me falta valsa e bolero."

Dentes vacilantes

"Mas o tempo cercou minha estrada e o cansaço me dominou. Minhas vistas se escureceram e o final da corrida chegou", esgoela-se o cantor sexagenário, amontoando suspiros no formoso topete de laquê. Nos olhares lançados pelas senhoras, promessas secretas de noites em claro e cama quente. Única entediada, uma velha tolera o show e, esvaindo-se em suor, encharca o guardanapo de quarenta graus. Sentadinha à mesa, dedinhos batucam versos sertânicos. Desânimo da música ruim, do calor castigando ou da garrafa de água?

"Bom mesmo seria uma cervejinha, né?", pergunto.

Ela escancara dentes branquíssimos – quinze mãos lhe fazendo cócegas, o mesmo êxtase dos dezessete aninhos.

"Ai, sim! Cervejinha bem geladinha", responde, remexendo de um lado para o outro a dentadura vacilante.

"Em busca do grande amor?", vou sondando.

Inquietos, pré-molares e incisivos requebram na boquinha carcomida.

"Deus me livre..."

Cai ou não cai?

"... nunca mais..."

Cai ou não cai?

"... disso tô vacinada."

Correndinha, a mão protege a bocona banguela, inteirinha nua - não para você, mas para pouquíssimos privilegiados. Último ato erótico, arremessado ao lado da cama, nessa longa estrada da vida.

Publicado no Diário (4/10/15)

Nenhum comentário: