quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

No dia da bimbada

Só queria um trabalho honesto.
Na minha família todos do bem.
Ninguém nunca preso.
Todos honrando o nome.
A tatuagem?
Não é nada não seu moço.
Doutor.
Desculpa.
Fiz há tempo já.
Não sabia que com ela viraria marginal.
Veja meu caso.
Negro.
Anão.
Coxo.
E fanho.
Difícil até de conseguir emprego de entregador.
De ganhar sorriso das mulheres.
Com a tatoo queria ser galã sabe?
Fiquei sem emprego.
E o cara ainda cagou na tatuagem ó que horror.
Nunca paguei pra comer alguém seu doutor.
Essa daí nunca ouvi falar.
Nunca comi uma puta.
Se comesse eu pagava claro.
Tá me acusando injustamente essa mulher doutor.
Eu trabalhei naquela esquina sim.
Tomador de conta de carro com muito orgulho.
Tem que ir cedo.
Senão pegam teu lugar.
Como não sou de briga bem cedo chego.
E tenho que defender meu posto né?
Um amigo disse não vá.
Que tá violento pacas.
E nego morre de bobeira tomando conta de carro.
Mas eu já disse queria trabalho honesto.
Era o meu terceiro dia lá.
Fui na sexta.
De boa.
Um gordo apareceu.
Gordo pra cacete.
Barbudo.
Feio.
Feio que nem o cão.
Fedido.
Ensebado.
Bafão também.
Ficou bem na minha frente.
De costa.
Daí eu disse meu irmão essa esquina daqui já tem dono carai.
Tem que ser macho senão dá treta doutor.
Ele virou.
Me olhou sério avançou um passo.
Levantei.
Ele tava com camisa escrita Sepultura.
Eu louco de encarar o figura?
O anão mais corajoso de Maringá?
Eu só queria meu trabalho honesto.
Daí me olhou encarou e riu.
Riu de mim com todos os dentes.
Não entendi.
Acho que gostou da minha coragem.
O gordo do metal caiu fora sem me fazer mal.
Ah se fazia!
Me estraçalhava ali mesmo.
Fiquei um pouco com medo.
Mas não voltou lá não.
Nem no sábado ainda bem.
Naquele dia espantei uma velha.
Espantei não.
A rua ali é grande.
Que ela ficasse na rua de trás.
Ela olhou no meu olho.
Disse não seu puto anão escroto do caralho.
Eu bater na velha?
Jamais.
Mas ela tava querendo porrada.
Ah se tava.
Veio pra cima e segurei com os dois braços.
Tentou um chute a velha.
Daí eu falei isso mesmo.
Senhora não posso te bater que eu só quero trabalho honesto.
Expliquei que tava ali desde ontem e que não tinha visto ninguém ali.
Ela ficou de boa.
Foi pra rua de trás sem reclamar só depois que viu minha tatoo.
Mas saiu jurando minha morte e riu disse que eu voltasse amanhã anão escroto.
Agora o domingo foi tranquilo.
Aliás nem deveria ter ido.
Pouco movimento.
Só compensa de tarde.
Como espanquei essa moça se eu nem tava lá?
Ela diz que fez o programa comigo às quatro né?
Pois é.
Como se três horas da manhã eu já tava em casa?
Moro no Tabaetê.
Três ruas pra cima do Bar do Moacir.
Tenho conta lá.
Todo mundo me conhece.
Só posso dizer que não bati nunca em ninguém.
Não conheço essa prostituta.
Nunca vou comer uma.
Nunca precisei pagar.
Incrível isso acontecer bem no dia que conheci uma garota.
Dei uma bela bimbada.
No meio da rua.
Pra você ver que não sou tão feio como dizem.
Gostosona de saia e decote.
Chupei todinha.
Não jamais estupro nunca.
Tava andando lá perto do bairro doutor.
Tô falando mais que a verdade.
Que essa moça me encarou virou quando eu virei me deu olhar de desejo!
Cê não iria?
Sei que é crime sexo na rua.
Mas tô falando que como ia bater na puta?
Se eu nem tava no local?
Eu tava é com a gostosona!
Como?
Não sei se era maior de idade.
Deve ser.
Não conheço.
Não sei nome.
Sem telefone também.
Estupro não não não não não não não foi isso não meu Deus.
Alguém!
Cêis não tão entendendo!
Não foi contra a vontade dela não minha nossa tô falando a verdade nada mais que a verdade por favor me ouçam não espanquei não bati em puta nenhuma mas dei uma bimbada rapidinha mesmo no meio da rua pergunta no Bar do Moacir pelo amor de doutor como eu posso ser criminoso se tava falando aqui por favor não me levem não me levem calma tá doendo não espanquei ninguém calma não prende assim não nem estuprei meu Deus não cuidado ai com a algema não me levem não me

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Fogueira de Deus

Jesus me levou tudo.
Nunca mais devolveu.
Nadinha.
Primeiro foi a casa.
Dois quartos um banheiro grande quintal e puxadinho.
Eu não queria dar não.
Mas eles pediram tão alto né?
Daí tinha que dar sim.
Sai do banco que dividia com minha mulher e outros seis fiéis.
Ela segurava minha mão forte e quase não soltou quando levantei.
Bem sabia que eu tava indo pro mal caminho.
Senão eu não tava aqui né?
Mulher sábia.
Lá na frente o pastor chamava né.
Que a gente precisava pagar a viagem pra eles rezarem no nome de todo mundo na frente do muro.
Não lembro o nome dele.
Não do pastor.
O nome do muro.
Mas por que viajar tão longe só pra rezar na frente do muro né?
Aqui já não tem o bastante?
Cachorro não mija naquele muro não?
Pedi licença pra senhora do meu lado.
Oitenta anos tadinha.
Deu o que tinha.
Até os brincos o pastor pediu.
Eu mesmo queria ir embora.
Mas não podia sair no meio de todo mundo né?
O que iam pensar de mim?
Filho de satanás?
Não queria a oração deles?
Traindo Jesus de novo Juvenal?
E se eles perguntassem isso?
Fui tremendo.
Lá na frente o pastor não me olhava.
Botou os olhos pra cima da minha cabeça.
E lá as duas mãos.
E a sua casa Juvenal?
Aquela que eu benzi eu mais o Senhor?
Vamos colocar ela aqui no nome do Senhor Juvenal!
Vamos? Vamos? Vamos Juvenal!
Vamos não.
Pensei mas não consegui falar.
Então ele olhou sorriu e começou a gritar palmas pro Juvenal que agora será abençoado até na vida eterna pra todo sempre irmãos amém!
E todo mundo me aplaudia.
A velha sem brinco sorria.
Quando eu tava voltando pro meu lugar com as pernas bambas tremia como nunca doutor.
Ele me puxou de novo.
Juvenal e o seu carro Juvenal?
Eu tentava achar minha mulher mas tinha um velho bem na frente.
O velho me olhava com amor saindo olhos azuis como os da minha mãe.
Juvenal dê o seu carro a Jesus Juvenal!
Não meu carro não pastor respondi bem baxinho.
Juvenal cê não precisa disso Juvenal!
Não deixe o Satanás te guiar Juvenal!
Que cê vai ter em dobro irmão!
Tudo em dobro em nome de Jesus!
Daí cê viu né?
As quarenta pessoas me aplaudindo de novo e chorando.
Mas quem chorava no fundo era eu.
Como eu ia pro trabalho?
Toda manhã de carona com Jesus?
Desespero muito sim.
Acho que nunca suei tanto doutor.
O pastor me empurrou pra mesinha do lado.
Onde sentava uma moça muito bonita e atenciosa.
É Juvenal do quê?
Aquele perfume o sorriso eu nunca esqueço.
Juvenal da Silva Dias.
Pediu meu documento.
Tirei do bolso da calça.
Essa mesma que eu tô usando.
Ela anotou umas coisas lá.
E me deu um papel pra escrever o nome e RG.
Ai o pastor já tava do meu lado.
E começou a gritar tudo de novo.
Que Juvenal a gente tem que rezar pra todos no muro e pôr as orações lá.
E que pra ir no muro tem avião hotel passagem conta de luz que tá atrasada a tinta que tem que pintar o salão a água.
E que eu e todo mundo que doasse ia receber em dobro ainda em vida!
Tudo em sete meses!
Bem no tempo que sempre foi do Criador!
Quando terminei de assinar ele mandou todo mundo aplaudir.
E chamou uma outra pessoa.
A sensação?
De liberdade doutor.
Sai a pressão do mundo e da situação né?
Não deram só carro e casa não.
Eles aceitavam de tudo.
Quem não tinha casa dava microondas computador tevê tênis o brinco que a senhora deu e que eu já disse.
Minha mulher desmaiou no meio do culto.
Calor infernal o daquela fogueira.
Fomos pra casa.
Mas já tinha gente da igreja lá.
Três homens fortes que nunca vi.
Mostravam o papel com meu nome e número.
Implorei por Jesus e por um banho.
Depois de muito insistir deixaram.
Mas não pude tocar nem pegar em nada.
Tomei banho com o cara sentado na patente.
Eu e Marlene fomos pra casa do meu irmão que é cafetão doutor.
Cuida de prostitutas mas é bom homem.
Mas não quero perto da minha família.
Não gosto dele.
Não segue as regras de Jesus.
Uma prova?
A única coisa que tenho é isso aqui ó.
Esse papel dizendo que um pedaço do céu é meu.
Aqui embaixo assinado pelo Senhor Jesus Cristo.
Perdi o emprego porque não tinha o carro.
Sem carro não Juvenal.
Nem quiseram ouvir sobre o dia da fogueira santa.
Logo você Juvenal?
Ninguém foi rezar por mim em nenhum lugar.
Faz oito meses já.
Enganado sim feito idiota.
Que eu faço com esse papel aqui?
Sem casa carro nem oração?

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Por causo de amor

Como matei meu marido?
Que absurdo doutor.
Não aguento mais chorar.
Repito sim.
Só posso tirar o chinelo?
Meu pé ta coçando bem na sola.
Acho que é frieira.
Coça o dia todo ó.
Esfolado quase sangrando.
Minha história com o Baiano não foi assim como tão dizendo.
Eu amava o pai dos meus filhos.
Mesmo com quase um ano sem sexo.
Na última vez foi meu presente de Natal.
Nesse ano nem isso.
Cada vez mais frio distante.
Daí começou a beber.
Me batia na segunda terça quarta quinta.
Com pausa na sexta.
Recomeçava tudo no sábado quando falava com uma vadia no celular.
Nunca descobri quem era.
Um dia ouvi chamar de meu amor.
Filho da puta.
Me proibiu de usar saia.
Obrigada a sair de casa com blusa até nos dias mais quentes.
E ai se olhasse pro lado.
Lá vinha a mão pesada no meu dorso no meio da rua no supermercado em frente ao Bar do Moacir.
Decote?
Queimou todas as blusinhas num domingo depois do jogo do Maringá Clube.
Rindo alto barriga de fora as crianças assustadas.
Dois meninões todo meu orgulho.
Pra comemorar os sete anos de casada fiz surpresa.
Depois do trabalho voltei com as unhas pintadas de vermelho.
E pimba!
Me bateu com a vara de pescar na área de serviço.
Quando casamos ele adorava minhas unhas assim.
Agora dizia que era de puta vadia biscate.
As marcas do molinete até hoje aqui na minha coxa ó doutor.

O senhor já apanhou de vara?
Sabe como dói?
Eu sei.
Depilação sorvete no shopping andar no Parque do Ingá atravessar o portão de casa.
Proibiu tudo.
Com ciúmes até do carteiro Valdemar.
Um homem tão bom de conversa e conselho.
Minha vida foi isso um ano.
Longe das amigas que escreviam bilhetes e jogavam pelo terreno baldio atrás da nossa casa.
Eu sei que tem essa lei doutor da mulher.
Mas nunca aconteceu com você.
Cê não sabe o que é isso não.
Com todo o perdão.
O inferno te consome.
Tendo que fazer tudo escondido inclusive as compras pros almoços né?
Senão ele me batia porque não tinha feito a marmita.
Mas se eu fazia me batia também porque saía de casa.
E ficava perguntando como me enganava.
Que horas eu saía.
Se eu ia com alguém.
Me enganando a vida toda desgraçada?
Tentei a morte quatro vezes.
Todas nesse ano.
As duas primeiras com estilete.
A terceira engoli as pilhas que você já me lembrou bem antes.
Pra sair um horror né?
Nunca mais.
Depois tentei o atropelamento que também não deu certo.
Não é muito fácil suicídio em Maringá.
Como acusada de assassina se nem eu mesma consigo me matar?
Mas o senhor veja.
Tô aqui repetindo meu amor.
Continuei um ano com ele doutor por causo de amor.
Acreditava de verdade que aquele homem voltaria pra mim.
Nunca vi igual na cama.
Um fogo.
Uma coisa.
Sempre disposto.
Vamos dar uma bimbada?
E aí vinha aquela covinha bonita que eu casei.
Mas depois parou o sexo.
E começou a pancadaria.
Não que deixei de amar não.
Sempre acreditei que o Baiano ia melhorar.
O senhor sabe.
Duas vezes já repeti isso nessa sala.
Sofri aqui dentro ó.
Mas isso não dá pra ver né?
Nem dá pra colocar ai no BO.
Também não ia caber no papel.
O maior amor do mundo.
Pode acreditar.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Neguinha minha!

Aquele anão me deu um frio na espinha.
Bem ali na frente do Bar do Vermelho.
Andava rápido mancando.
A perna direita dez centímetros menor.
Mais três quadras eu já taria em casa.
Ai azar meu.
Devia ter voltado com o Luiz não de ônibus.
Ninguém na rua numa hora dessa.
Madrugada em Maringá vazia sem gente nem proteção.
Braços fortes de homem de verdade.
Negro quase azul.
Se eu mudo de calçada a coisa piora?
Continuo no passo apertado.
Bem do meu lado ele passa rápido.
Nem olhou pro meu vestido novo.
Vermelho decotado bem curtinho.
Como pode?
Tão bem sucedida em qualquer lugar?
Ali sozinha nem ao menos uma espiadinha?
Anão veado?
Curiosa que só virei depois.
E pimba!
Ele virou também.
Sorriso de veado aquilo nunca.
Macho pra danar isso sim.
Olhar de desejo tesão e bebida.
Fiquei quente deu medo.
Voltei pro meu passo desviando das árvores.
Já ouvia ele tropeçando agora pra perto de mim.
Neguinha minha!
Além de anão manco ainda por cima fanho.
Como me alcançou tão rápido?
Já me puxou pelo braço.
Me encostou numa parede.
Eu fraca com dó dele?
Um chute apenas bastaria.
As pernas chacoalhando de um lado pro outro.
Um frio na espinha quente se espalhando pelo corpo.
Como sem reação?
Quente quase com febre.
Aqueles dedinhos passando na minha perna por dentro e por fora.
Encostada firme contra a parede áspera.
Com os dedos chegou até a barriga.
Nunca senti igual.
Me mandou abaixar.
Eu obedeci.
Ele começou a lamber meu decote.
Olhava alucinado.
Não sabia mais onde enfiar a mão.
Tentaria meu ouvido meu umbigo?
Eu puxava o cabelo dele pra trás.
Lambeu meu dois mamilos durinhos durinhos durinhos.
Um relevinho surgiu na calça dele.
Entrou debaixo do vestido.
Apoiando nas minhas pernas lambia toda minha intimidade.
Primeiro na frente.
Depois atrás.
Ficou assim bem gostoso.
Minha mão no corpo dele.
A língua e os dedinhos dele em mim.
E pimba!
Ele foi eu fui também.
Me deu um beijo na bunda do lado esquerdo.
Fechou o zíper.
Saiu mancando sem olhar pra trás.
Deve morar aqui por perto no Tabaetê.
Em casa liguei pro Luiz.
Boa noite amor te amo cheguei bem em casa.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Sorriso do demônio

Minha vida arruinada.
Não fosse a força do pastor Messias que evitou o suicídio.
Lendo a palavra ao lado da minha caminha.
Vem às nove da manhã bem cedinho.
Volta no por do sol antes de ir pro culto.
Mas Jesus me compreende.
Não posso andar.
Cê tá vendo?
Envergonhado até o último suspiro.
Dos amigos recebo todo o apoio.
A minha vergonha eterna ao entrar no HU.
Jamais esquecerei.
Escoltado pela polícia.
Mancando feito doente.
Minha bermuda laranja toda ensanguentada na parte de trás.
Dói só de lembrar.
Só uma coisa da polícia.
Me trataram muito bem.
Me levaram no carro de sirene tocando desrespeitando sinal.
A urgência do caso né?
Do ponto de ônibus pro Hospital.
Mas sumiram com 50 reais.
Meu vale refeição e celular.
Ainda bem deixaram meu passe de ônibus e documento.
Tudo dentro da bermuda laranja.
No bolso fechado com zíper.
Nunca mexi com ninguém.
Namoro sério o Baiano.
Não queria que aparecesse ai no papel.
Sério casado tá pra separar da mulher.
Vamos viver juntos e felizes aqui no Jardim Tabaetê.
No ponto de ônibus chegou o desgraçado.
Queria saber meu nome e de onde eu era.
Não dei papo.
O ponto vazio ninguém às cinco e pouco.
Pego sempre o 335 ali.
Saio da frente do Avenida Center e paro no Cesumar.
Daí venho andando até aqui em casa.
Sou fiel sabe?
E insistia.
Que eu era lindo.
Veio me pegando.
Me agarrou e lascou um beijo quase na boca.
Não faz meu tipo não.
Falando bem da minha camisa cavada.
Voz baixa grave de sedutor.
De que vale a vida sem fidelidade?
Amo Baiano meu namorado:
Na vida um príncipe.
Na cama um animal.
Sou incapaz de qualquer traição.
Empurrei sim.
Disse que não jamais se afaste seu puto.
Cê podia imaginar.
Ó como tá escuro aqui doutor.
Essa é do primeiro chute.
A marca do coturno pesado preto feito a morte.
Cai no chão.
Pulava em cima de mim feito louco.
Gritei por Jesus Nossa Senhora São Mateus.
Me chamava de masoquista.
Eu desesperado iria morrer ali?
Olha aqui na costa o estrago.
Marcas que não saem tão fácil doutor.
Quando eu achei que era o fim do inferno.
Surgiu então o demônio.
Gordo de camiseta preta com estampa do capeta.
Barba grande cortada com navalha.
Cabelo grande ensebado um nojo.
O que seria de mim?
Me puxou pra cima na cara dele.
Senti a barba roçando a minha fuça.
O banguelo sorriso do demônio.
Já tinha uns carros parados no ponto de ônibus.
Todo mundo gritava.
Eu não conseguia escutar nada.
Me jogou no chão.
Ele ia pisar em mim não!
Arrancou minha bermuda ali mesmo.
O pessoal do carro sorria batia palma.
Me ajuda! Me ajuda!
Era o cão em todos eles!
Meu dia tinha chegado.
Pai nosso que estás no céu santificado seja o vosso nome venha a nós o vosso reino.
No meio da oração achei que tava sendo estuprado pelo gordo.
Doeu doeu doeu.
Sentia o sangue saindo da minha bunda.
Aquilo não era um pinto jamais não.
Um pedaço de madeira todo enfiado em mim.
Sem dó nem lubrificação.
Que eu desmaiei.
Ainda bem esses anjos passaram ali e me botaram no carro da polícia.
Me ajudaram no hospital.
São homens de Deus.
Salvaram minha vida.
Minha honra.
O queria de mim sem eles?
Minha situação tá difícil.
É remédio remédio remédio e café pras visitas.
Sei que é pedir muito.
Mas tem como eu ter meu dinheiro de volta doutor?
E meu celular?

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Desgraça

Quando mudamos para essa casa, nossa família estava em luto. O acidente envolvendo um caminhão e o nosso carro resultou na morte de Amélia, minha irmã mais nova, e matou um pouco de todos nós também.
A nova casa era grande o suficiente para minha mãe, meu pai e eu enterrarmos as lembranças nos cômodos, ainda vazios de móveis e alegria. No primeiro dia, com a bagunça dos objetos todos espalhados, minha mãe me chamou ao portão e apontou para uma garota loira que caminhava no meio da rua, empurrando um garoto sentado em uma cadeira de rodas. Daquele momento em diante, eu estava proibido de fazer amizade com a “doidinha” – o termo era de minha mãe.
Durante as refeições, os únicos momentos em que nós três nos reuníamos, ninguém fazia comentários sobre Amélia. Lágrimas, apenas as discretas, no banheiro, com o chuveiro ligado. Na prece das refeições, eu segurava, pela primeira vez, a palma de minha mãe durante a oração, pois eu assumia o posto de Amélia, bem ali, entre os nossos pais.
Eu tinha quatorze anos, e minha missão era viver sem considerar a existência daquela inofensiva vizinha de aproximadamente trinta anos. Pela manhã, ela ajudava sua mãe nas tarefas domésticas. À tarde, no sábado, saía para caminhar com seu filho de oito anos, sentado na cadeira de rodas, vítima de paralisia cerebral. Quando passava em frente à nossa casa, encostava a cadeira próxima à calçada e, enquanto tentava espiar os novos vizinhos, disfarçava, mexendo nos embrulhos e na sacola com bolacha Maizena. Apenas quando o filho se retorcia na cadeira de rodas, abrindo a boca, torcendo o pescoço, com os olhos fechados firmemente, a doidinha levantava do meio-fio e voltava a empurrar a cadeira, agora em direção ao portão entreaberto.
Nos fins de semana, eles recebiam inúmeros parentes e amigos da mesma igreja. Todos frequentavam a Catedral. Para minha surpresa, descobri que a doidinha possuía uma irmã gêmea, que a visitava pelo menos uma vez por mês, aqui no bairro.
As irmãs não viviam juntas. A outra morava em Cruzeiro do Oeste, uma pequena cidade aqui perto, junto com a família de um dos tios. Ela era um pouco mais velha, seu cabelo não era tão loiro quanto ao cabelo da doidinha. Era desbotado, entre o cinza e o bege. Caminhavam juntas, pelo meio da rua, porque os terrenos à venda, cheios de grama, pedras e pedreiros, impossibilitam o trajeto dos transeuntes. Ao mesmo tempo empurrando o carrinho, elas pareciam felizes, despreocupadas com a ausência do pai da criança ou com a chuva que já começava naquele sábado. Foi quando ouvi, pela primeira vez, a voz da doidinha, que apontava para o ceu:
“É chuva, vai molhar tudo lá, ó. Depois vem arco-íris”, disse, dirigindo-se à irmã.
Em seguida, foram embora, esquecendo de fechar o portão, que permaneceu escancarado até a chegada da mãe das doidinhas, por volta das oito horas da noite. Fiquei com medo, porque Maringá está cada vez mais violenta e, afinal, elas estavam sozinhas, desprotegidas e começava a anoitecer.
Ao contrário da previsão, não choveu nem teve arco-íris. Ao encontrar a casa toda escura, à noite, exposta aos ladrões, a velha começou a gritar de dentro do carro, antes mesmo de estacioná-lo na garagem. Furiosa, arrancava dos pulmões uma voz grave e xingava Leonora – era esse o nome da doidinha.
“Vagabunda”, “louca”, “biscate”, “safada” e “irresponsável” eram emitidos na medida em que tapas arrebentavam seu rosto cadavérico e seu corpo magro, como eu bem ouvia do meu quarto. A doidinha preferia o silêncio, mesmo assim, não controlava os gemidos que lhe fugiam das entranhas.
Durante cinco dias, não saiu de casa. A irmã foi embora, sorrindo, entre acenos e resmungos. Na minha semana de férias, troquei minhas diversões com os amigos, para escutar cada passo da doidinha. Eu sabia quando ela iria lavar e secar a roupa, ajeitar a cozinha, a louça, limpar os banheiros e o quintal. E imaginava cada cena com diversos detalhes. Ela deveria vestir um pijama branco, surrado, com detalhes vermelhos e amarelos, mangas arregaçadas, velha pantufa de elefante nos pés.
Numa manhã, acordei com mais uma surra. Desta vez, tão perto que permaneci imóvel, debaixo da coberta, um pouco assustado. Provavelmente escorada contra o muro que separa nossas casas, que fica na frente do meu quarto, a doidinha soluçava, pedindo perdão, repetidamente. Era a única coisa que ela dizia baixinho:
“Perdão.”
Com uma cinta, ou algo do tipo, talvez uma vara, a velha dava a sua lição, berrando, esfregando a cara da doidinha no muro, e ameaçando de “estourar suas costas e o seu coro cabeludo, sua sem vergonha”. O motivo? Furtar um pacote de Maizena da despensa, escondê-lo no armário e devorá-lo sozinha.
Exausta, a velha ordenou calmamente:
“Agache, diabo negro do inferno. De joelhos, agora.”
“Perdão.”
“De joelhos, cadela! De joelhos!”
“Perdão, perdão.”
“Tira a blusa, vai! Tira a calça, sem vergonha!”
Eu só ouvia o riso baixinho da velha. Colado no muro, não entendia mais nada, porque, de repente, um hino de louvor começou a tocar no rádio deles, no volume máximo que as caixas de som suportavam. O coral repetia exaustivamente “Cristo vai voltar, Cristo vai voltar”, enquanto meu pau ficava duro, latejando, com uma fome que eu nunca sentira.
A música só parou por volta das onze da manhã – quase duas horas depois –, porque o tio chegou com o filho da doidinha e tocou a campainha para a velha ajudá-lo a descarregar a criança do carro.
Tentei avisar meus pais, naquela noite, mas os dois perderam o interesse pelos detalhes, ao notar minha empolgação, como se a alegria, naquela casa, estivesse exilada em outro continente, por tempo indeterminado. Talvez imaginassem que aquilo não passasse de uma história para ser contada durante a refeição, apenas para quebrar o silêncio constrangedor entre as nossas garfadas e os pedidos para alcançar o sal. Minha mãe andava, de fato, esquecendo-se de acrescentar sal à comida, e meu pai verbalizou sua crítica, finalmente, com delicadeza:
“Querida, está faltando um pouquinho de sal.”
O suficiente para minha mãe desabar em lágrimas e arremessar um dos copos de cristal na parede, no centro de um imenso pôster do Guernica, que ficava no local onde todas as mães dos meus amigos penduravam alguma imagem da Santa Ceia ou de Maria segurando Jesus no colo. Meu pai, imóvel, ignorou a reação dela, limpando a boca com o guardanapo. Minha mãe, que foi direto para o quarto, não nos acompanhou no jantar menos saboroso de nossas vidas. Era o início da separação dos dois, que seria concretizada só dez meses mais tarde.
A minha aula voltara há duas semanas e eu morria de curiosidades de Leonora. Eu só chegava à noite, porque saía do colégio para auxiliar meu pai no trabalho, e não conseguia acompanhar suas sessões diárias de espancamento. Na casa dela, o silêncio era predominante naquele horário, quando o filho, Emanuel, chegava no carro do tio.
No meio da aula de História, enquanto o professor lecionava sobre as conquistas territoriais de Napoleão pela Europa e, empolgado, subia na mesa para pronunciar algumas palavras atribuídas ao imperador francês, concluí que eu não conseguia mais pensar naquela estranha figura, como uma simples doidinha.
Era Leonora quem aparecia quando eu me masturbava nos banheiros de casa, do colégio e do clube. Era Leonora ajoelhada, amordaçada, olhando nos meus olhos, agarrando-se em mim com dedicação, voracidade, fome. Eu andava tão excitado, que esfreguei meu pau no muro áspero, o mesmo muro infame que nos separava, por longos e prazerosos vinte minutos. Deixei os vestígios de porra escorrendo muro abaixo até alcançarem o piso de cerâmica do quintal, onde a chuva limparia, pouco depois, minha pequena farra solitária em homenagem à Leonora.
Eu estava decidido a ter um encontro com ela. Pouco me importava a ordem de minha mãe. Quem era ela para impedir uma aproximação qualquer? Qual a razão daquele conselho absurdo, patético? Se eu não conseguia infringir pelo menos essa ordem, o que seria de mim daqui a trinta anos? Eu teria um encontro, precisava contemplar Leonora de perto, a um palmo de distância, queria sentir aquela mulher que eu possuía apenas em sonhos efêmeros.
Pedia a meu pai, listas de produtos para eu providenciar no mercado da esquina, apenas para ficar frente a frente com a casa dela. Cada vez que o barulhento portão funcionava, eu me aproximava da janela do quarto de meus pais para, em vão, observar o automóvel deles entrando e saindo da garagem, sem que Leonora fizesse a sua parte na história: empurrar o portão e fincar o espesso cadeado.
A ideia de Leonora estar vivendo em outra casa, junto com outro parente, era plausível. Afinal, na última vez em que Emanuel partiu no banco de trás do carro do tio, não voltou para casa. E, na verdade, poucos têm paciência para cuidar da doidinha e sabem dominar seus furtos, seus ataques à despensa, castigando quando necessário. Provavelmente, a família organizara um rodízio entre os integrantes. Pela lógica, era o momento das merecidas férias da velha.
Num sábado à tarde, com um céu imprevisível, carregado de nuvens, fui caminhar em volta do Parque do Ingá. Sai de casa tão consternado, depois de estudar para uma prova de gramática, que esqueci de disparar o alarme e tive que voltar. Afinal, “Maringá é uma cidade violenta. E o roubado é o maior culpado em um roubo”, repetia minha mãe, em minha consciência.
Voltava lentamente, reparando em meus cadarços frouxos e flácidos, exatamente como meu pau era antes de Leonora ser onipresente em minhas aventuras eróticas. Frouxo sim, mas não morto. Temporariamente desativado, imaturo, infeliz.
O meu controle para abrir o portão ou acionar o alarme nunca funciona na primeira tentativa. É preciso um toque na parede, nas pernas, nas grades, é preciso ser agressivo. Enquanto eu tentava ressuscitar o aparelho, a velha começou lá do fundo, ameaçando sua vítima:
“Não saia daí, sua vagabunda! Você quer engatinhar? Você é cachorra por acaso?”
Quase arrebentei o controle na grade, o portão mal abriu, eu já corria para o fundo de casa. Leonora rosnava frases ininteligíveis, eu colava meu ouvido na parede. A velha ria baixinho. Puxei uma cadeira da mesa da cozinha e me pendurei no muro. De focinheira e vestidinho azul, prostrada, cadela faminta almoçando numa bacia amarela, em frente à velha, que achava tudo muito divertido.
“Cata a bolinha, cata!”, ordenou, arremessando uma bola de meia, atrás do tanque – prontamente devolvida aos pés da dona, que voltava a sorrir.
Quando notou meu olhar assustado, Leonora apontou em minha direção. Eu recuei, mas não soltei as mãos, evitando cair e fazer barulho. A velha enlouqueceu. Chutou a bacia com restos de arroz, feijão preto, salada, e exigiu respeito.
“Com qual dedo, sua sem vergonha?”
Os olhos castanhos me encontraram novamente. Desta vez, desviaram.
“Vou te ensinar a não apontar dedo. Eu te dou comida, te deixava passear e você me trata assim? Sua ingrata! Sua cadela! Você é uma cadela!”
Quando ela deixou o indicador ereto, a velha mudou de ideia. Sorrindo, que ela fosse para o quarto, como estava. Que ficasse esperando, porque já voltaria. Leonora engatinhou até a porta, olhou para a velha, abaixou a cabeça e seguiu.
A velha também entrou, mas saiu logo. Para minha sorte, pela porta da frente, deixando o portão aberto, como ela mesma condenava. Não vou negar que eu senti medo. Ela voltaria em breve, era promessa.
A sala não tinha televisão. Na parede, bem acima da mesa de refeições, um quadro do menino Jesus sorrindo no colo de Maria. Atravessando a sala, vi o corredor com as portas dos quartos. Era o do meio, tinha marcas de sangue até lá.
Leonora deitada nua, na cama, sozinha, ao notar minha presença, meu olhar deslumbrado, levantou-se calmamente, pôs os pés numa sandália de couro desgastado e andou em minha direção. Parou a dois metros, sem desviar os olhos azuis. Estávamos tão próximos, que pude ouvir seu coração bater fraco, sem harmonia. Meu pau estava rijo, sólido, seus olhos notaram o relevo na minha calça jeans. Esticou a mão esquerda – a mesma que minha mãe me estendia durante as orações –, e pude senti-la fria, enrugada, puro osso, acariciando meu corpo. Arcada dentária em colapso, eu tremia tanto, amedrontado, com as mãos encharcadas de suor, que o relevo desapareceu: Um pênis morto de medo.
Guiou-me até a janela cheia de grades do quarto, dando mais um passo para o meu lado. Desvencilhou sua mão da minha parte momentaneamente póstuma, e apontou para o céu vermelho e misterioso de Maringá:
“É chuva, vai molhar tudo lá, ó. Depois vem arco-íris.”
Fechou abruptamente a janela, após a previsão, e me levou até a entrada, indicando a minha casa. Naquela última noite, a surra foi tamanha que meus pais estranharam os gritos, as ameaças e os repetitivos pedidos de perdão, com uma voz baixa, que quase ninguém escutaria se estivesse conversando, com a família reunida.
“Essa velha é louca, deveríamos fazer alguma coisa”, aconselhou minha mãe.
Leonora morreu cerca de dois meses mais tarde, na cama, trajando o mesmo vestidinho azul. Quem viu, disse que morreu sorrindo, semblante em paz, alegre. A família fez um enterro simples, no Prever, na capela popular. Nós não fomos, mas meu pai enviou uma coroa de flores no nome da família. O laudo médico não indicou nada fora do comum.
Respeitando a jornada de trabalho de todos, ela morreu dormindo, na noite de sábado para domingo, não foi um estorvo para ninguém. A guarda do filho de Leonora, o Emanuel, ficou para a velha, que nunca mais foi vista no bairro. As contas para pagar estão acumuladas na caixa de correio, seu nome está no Serasa, os parentes tocam nossa campainha, confusos, em busca de explicações.
As garotas que eu conheci nesses meus trinta anos, interpretavam, na cama, oncinhas, estudantes, diabinhas, mas nenhuma delas topou encarnar o cachorro, de quatro, com uma bacia na frente, como eu sempre detalhava. A cor do vestidinho não importa, eu dizia, fica por sua conta, surpreenda-me, provoca-me. E quem disse que elas voltavam?
Abandonado, não há maior prazer do que enfiar um curto vestidinho, correr para o muro, de focinheira no rosto, e iniciar uma relação solitária, ali mesmo, correndo o risco de ser flagrado pelos pedestres, profanando a parede com o meu pau, segurando-o com a mesma mão que eu oferecia à minha mãe, durante as orações em volta da mesa de jantar. Bendito é o homem que, destemido, engravidou a doidinha, e permaneceu no anonimato para sempre.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O amor e as mortes de Rubem Fonseca

Em “O Seminarista”, escritor mineiro homenageia sua atual namorada e envolve o leitor em uma trama inteligente e cheia de assassinatos
Papai Noel é o primeiro a morrer com uma bala na cabeça. Em uma cena antológica, José Rubem Fonseca inicia “O Seminarista”, seu novo romance policial, escrevendo sobre o assassinato de um sujeito fantasiado de Bom Velhinho, em plena véspera do Natal.
Em “O Seminarista”, Rubem Fonseca cria o José, um matador de aluguel conhecido como O Especialista, que recebe de um personagem chamado Despachante as ordens para realizar uma série de assassinatos. Assim, O Especialista conta, concisamente, alguns de seus “trabalhos específicos” que, além do Papai Noel, incluem um pedófilo, um assassino profissional e um necrófilo.
Depois de assaltar o pedófilo e matá-lo, no segundo assassinato do livro, a figura de José começa a ganhar contornos de um anti-heroi. O protagonista concede uma carona ao garoto que estava no apartamento do pedófilo, leva-o até sua casa, na favela, dá o dinheiro roubado do pedófilo à mãe do garoto e a ameaça: “Se você não tomar conta direito dos seus filhos eu te arrebento, entendeu? E se for viver com um gigolô que vai roubar a sua grana eu mato vocês dois”. É mais um inesquecível personagem fonsequiano.
O assassino abandona o emprego aos 40 anos de idade e revela ter a “consciência pesada”, devido aos crimes que cometeu em sua trajetória. Mas a sua rotina de aposentado muda com a presença de Kirsten, uma jovem alemã que traduz livros do português para o alemão. Na vida real, Rubem Fonseca, a exemplo de José, O Especialista, também namora uma jovem alemã que traduz livros da língua portuguesa para o alemão. Dessa forma, o escritor homenageia e imortaliza sua atual namorada em uma obra que, provavelmente, ela mesma traduzirá para a edição alemã.
Após o início do romance – no livro – de José com Kirsten, o protagonista descobre que ela é filha do Despachante e que, inicialmente, cumpria a tarefa de espioná-lo. Descobre, também, ser alvo de perseguição, devido ao desaparecimento de um CD, contendo informações sigilosas e comprometedoras que estava na casa de uma de suas vítimas.
Nesse ponto da obra, Despachante, Kirsten e José passam a investigar o destino do objeto, enquanto a morte se aproxima do trio a passos céleres. Tudo, é claro, conduzido por um enredo inteligente e misterioso.
Na intensidade do amor e da violência, o escritor insere, na fala de O Especialista, algumas citações bíblicas e excertos poéticos em latim e em outras línguas, de autores como Cícero, Horácio, Sêneca, Camões, Propércio, Petrarca, Salústio, entre outros.
A poesia e os fragmentos de pensamentos pipocavam na cabeça do matador de aluguel desde o tempo em que ele frequentou o seminário e abandonou a vida dedicada à igreja, “por ser um sujeito libidinoso”. A presença das citações é tão frequente, que até mesmo um dos personagens critica o costume de José: “Essa tua mania de falar latim enche o saco”.
O uso de citações é uma estratégia necessária de Rubem Fonseca para mergulhar o leitor na complexidade psicológica do assassino de aluguel. Afinal, a violência, na obra fonsequiana, nunca é gratuita.
Aos 84 anos, Rubem Fonseca continua a provocar seus leitores com doses cavalares de sarcasmo, inteligência, erudição e, além de tudo, uma boa história: receita que o consagrou como O Especialista do romance policial na literatura brasileira.
Título: “O Seminarista”
Autor: Rubem Fonseca
Editora: Agir
Preço: R$ 36,00 (181 págs.)
Avaliação: Excelente
Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná.

Mutarelli solta os demônios

Lourenço Mutarelli une o cômico ao macabro em suas obras

Não espere apenas por um romance ou uma novela. “Miguel e os Demônios”, o novo livro do cartunista e escritor Lourenço Mutarelli, possui influências tão fortes dos filmes e dos quadrinhos, que a obra é, ao mesmo tempo, gibi, roteiro cinematográfico e, claro, literatura.
A linguagem concisa de Mutarelli serve para retratar a psique de seus personagens, que vivem rotinas patéticas, sufocantes e, devido ao caos diário, não conseguem refletir sobre o estado depressivo em que estão envolvidos. A escrita rápida, instantânea e automática do autor caracteriza a trajetória de seus personagens.
O protagonista Miguel, um investigador da polícia civil, permanece consternado em meio ao envolvimento amoroso com sua esposa, um relacionamento sem diálogos nem sentimentos. Sua única diversão consiste em jogar paciência no computador do trabalho.
A vida do protagonista muda quando ele flagra seu chefe, no motel com uma amante, e é pressionado a mudar de repartição. Dias depois, ao atender o chamado de uma mulher que encontrou uma múmia em sua residência, Miguel a reconhece como sendo a amante, uma prostituta com quem ele passa a manter alguns encontros.
Miguel, então, cai em desgraça. Ele fica viciado no sexo com a prostituta; seu pai sofre um derrame cerebral; e resolve separar-se da esposa, que deixa, de propósito, o gás do fogão aberto para causar sua própria morte e as mortes de sua irmã e suas duas filhas.
A culpa da série de acontecimentos é o envolvimento de Miguel com a prostituta, que estaria ligada a seitas satânicas. Dominado, finalmente, pelos demônios que o atormentavam desde o início da obra, Miguel se vinga do cunhado, que fotografava suas próprias filhas, em poses sensuais, e vendia o material na internet.
O enredo, por si só, é bizarro. Descritas pelo autor, as cenas do livro ganham contornos grotescos, irônicos, repugnantes. Em certos momentos, Mutarelli descreve seus personagens por meio de closes de câmeras, indicando, na obra, o momento em que a câmera sobe ou desce. Ou seja, em Mutarelli, a literatura imita a produção cinematográfica.
É preciso ler “Miguel e os Demônios”, reconhecendo o humor peculiar do autor. Em O Cheiro do Ralo (2002), o protagonista conclui que os personagens do seriado “Friends” são seus melhores amigos. Em “A Arte de Produzir Efeito sem Causa” (2008), o personagem principal separa mentalmente as mulheres que encontra à sua frente, toda vez que sai às ruas, em três seções: as mulheres que ele “comia”, “casava” ou “mandava pra forca”. Já em “Miguel e os Demônios”, o chefe de Miguel decepa os dois dedões e o próprio sexo com uma tesoura, e a prostituta com a qual o protagonista se envolve, revela-se ao leitor, abruptamente, como sendo, na verdade, um travesti.
A literatura brasileira não é mais aquela da década de 1930, em que havia uma união temática entre os autores, como Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Os sujeitos pós-modernos, pós-industriais, são projetados na obra de Mutarelli, em situações anormais, viciantes, em que não há vida além da rotina de trabalho. A repetição de ações e a loucura unem o cômico ao macabro em Miguel e os Demônios, um livro mordazmente engraçado, tradutor do Brasil contemporâneo.

Título: Miguel e os Demônios
Autor: Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 34,00 (115 págs.)
Avaliação: Ótimo
Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná.

domingo, 29 de novembro de 2009

Cerco na praça

Aquele baxinho era bom de briga.
Nunca vi igual.
Eu sai da Farmácia pra comprar camisinha e shampoo pra Marlene.
Cafetão companheiro e assessor né?
Os cinco bem na pedra com lata na mão.
Tudo preto. Raça desgraçada.
Apressaram o passo pra dá o bote.
Presa fácil de metro e meio.
Gosto de uma briguinha cê sabe.
Olhando a gente aprende.
Sempre curioso desde criança.
Dando golpe nas primas.
Quebrei o braço da Dinara.
A perna da Dulce.
De castigo um ano inteiro.
Dobraram a Brasil indo pra rodoviária velha.
Cruzaram a rua e foram pra praça.
Bem no meio dela o cerco feito.
No palco sagrado onde os pastores infernizam de dia.
Todos com canivete.
Um magrelo com pau de vassoura.
Ficou parado jogou as duas sacolas no chão.
Não sei com o quê.
Nem quero saber.
Tá louco.
O magrelo foi primeiro.
A paulada bateu no braço direito do baxinho que se protegeu.
Antes de erguer de novo pro próximo golpe uma rasteira surpreendente.
E um pisão na cara. Menos um.
Encarou o bando.
A luz do poste bem no olho.
Algo lá no fundo?
Morte e sangue. Medo nenhum.
Dois se aproximaram com os canivetes.
O chute na boca do estômago do da esquerda.
O da direita meteu o canivete no ombro do baxinho.
Ganhou em troca uma porrada de desorientar.
Outra mais forte. Caído.
Tirou o canivete do ombro e meteu na costa do outro pelego.
Caceta!
Pois é.
Tinha mais dois.
Um caiu fora. Saiu pela sombra.
O outro chegou na voadora e errou o alvo.
Quando se deu conta já tava estirado no chão. Sem consciência.
O cabo de vassora quebrado em dois. A costa fudida.
Pegou tranquilo as sacolas.
Como se nada bicho.
Tinha que ver.
Menor que eu e você.
Saiu rumo rodoviária.
Assoviando Tonico e Tinoco.
Moreninha Linda.
A Marlene encheu o saco pela demora.
Teve que chupar um cara lá sem capa.
Mil desculpas e uns beijinhos.
Gosto muito dela um amor.
Longe de mim o que seria?
Por isso falo pra você se espertá.
Cê vai se fudê ainda mermão.
Escolhe os gordos lentos que não dá pra surpreender.
Baxinho em Maringá pode ser perigoso.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Lincha viado!

Tava queto no meu canto.
Esperando o 335 pra voltar pra casa.
Sempre espero ali sim senhor.
Na Mauá em frente do Avenida Center.
Se tenho dinheiro compro um pastel no japonês.
De pizza.
Mas esses dias tão foda cê sabe.
É a crise né?
O ponto tava vazio às cinco e meia.
Meia hora que faz toda a diferença.
Quando eu saio às seis e meia já tá lotado.
Dai que eu esperava o meu.
Tava sem óculos.
E fico forçando a vista pra longe.
Miopia da brava doutor.
Minha mulher reclama diz que dá ruga.
Melhor a ruga que perder o 335.
Nem tinha reparado que aquela tranquêra já tava lá.
Só vi quando provocou:
“Ai que olhar sério”.
Dai começou.
Olhei pra bicha e achei melhor nem ligar sabe?
Sou de paz não procuro encrenca.
Magricela de camisa cavada.
Chinelo rosa no pé.
Bermuda laranja.
Não levo desaforo mas deixei passar.
“Oi gato!”
Fiquei na minha ainda doutor.
O nervo pulsando.
É a nossa Maringay né?
Tem que respeitar.
Dei um olhar de ódio praquela bicha.
E adiantou?
“Cara feia é fome. Quer uma comidinha?”
Porra ai não deu.
Aquele viado já me achava da turma dele?
Logo eu?
Meti uma bica no estômago ele caiu de frente.
Pulei em cima da costa com meu coturno antigo.
75 quilos que era só pra assustar.
Dei uns seis ou sete pulos assim.
Ele lá sentindo prazer.
Não pedia nenhuma desculpa.
O chinelo rosa longe do pé.
“Pede desculpa filha da puta!”
Nada doutor.
Gemia de prazer o masoquista magricela.
Uns três carros pararam no lugar do ônibus:
“Lincha viado!”
Dai que não sei de onde surgiu aquele maluco ali daquela outra sala.
O gordo barbudo metaleiro.
Me deu um empurrão que sentei no banco do ponto.
Levantou o viado que continuava gemendo.
A plateia mais alto:
“Lincha viado!”
O gordão olhou pros carros.
O viado preso pelo cangote.
Jogou a bicha no chão.
Doeu até em mim.
Baixou a bermuda laranja.
Ai o viado começou a gritar com medo mesmo pela primeira vez.
Acho que até ouvi uma desculpa.
Tinha umas dez pessoas já em volta.
Uma cega desesperada por detalhes.
O japonês abandonou o pastel empolgado.
O gordo abriu uma bolsa e tirou um pau de bateria.
Daqueles que toca o instrumento.
É baqueta? Se o senhor diz.
Dai sem mais nem menos enfiou o troço quase inteiro na bunda do cara.
Nem deu pra perceber o que o gordo ia fazer doutor.
Falei que eu tava sentado.
Quando vi o pau da bateria,
Dois segundos ele já tinha desaparecido no cu do viado.
Tenho estômago forte.
Mas aquilo foi demais.
Aquele gordão ali é barra pesada.
O pior inimigo da face da terra.
Não me deixa junto dele não.
Uma coisa de trinta centímetros assim ó.
Desaparecer quase toda sem uma cuspida no rabo?
A cega vibrava com os detalhes.
O japonês sorria feito aniversariante.
Os motoristas comemoravam:
“Lincha viado!”
Foi ouvir o sinal da polícia,
O gordo saiu como foguete.
Mas é gordo né?
Desceu à esquerda chegou na Brasil cruzou que nem um louco.
E prenderam o bicho acho que na frente daquela escolinha de criança né?
E eu que só queria chegar em casa.
Tenho um primo viado doutor.
Nada contra.
Sempre tratei muito bem ele e o namorado.
Respeito os maringays,
Mas eles me respeitam?
Tá foda viver por aqui viu?
Esse mundo muda rápido.
Acho barbaridade o que fizeram com o viado de verdade.
O que ele menos deve tá reclamando é do meu coturno antigo.
Nunca vi mais gordo doutor.
Não sei como aquele gordo surgiu na história.
Pode perguntar pra quem tava lá.
Pro japonês.
Apareceu já com mochila e baqueta.
Trabalho de pedreiro de segunda a segunda.
Tô fazendo um prédio ali no centro novo.
O doutor pode trazer um pouco de água?

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Duvida?

Meu nome é Dinara. No quinto copo pronta pro abate.
Solteira que Deus o tenha.
Não tive mãe nem pai.
Criada com os filhos do Seu João Silva na Vila Operária.
Obrigada a chupar o pau dele segurando a Magali.
Tadinha da minha boneca de pano.
Hoje é fácil rir.
O velho safado destruiu minha infância.
Como estudar com aquela pica enorme na cabeça?
Mas ensinei tudo às amigas.
De como pegar, botar na boca, passar na bochecha sorrindo,
E fechar o olho rapidinho
Antes da porra espirrar.
Uma última passada, com o rosto melecado:
Todos à loucura.
Quando fugi daquele lugar,
Já era mulher da vida.
A mais procurada aqui no Maçã do Amor.
Com o tempo cê sabe.
Mais caro o de pau grande.
Senão cê não guenta.
Ai meu bem,
Você é dos grandão que eu sei.
Quarenta o programa mais quinze do quarto.
Vinte a chupetinha mais os quinze.
Ainda tô no terceiro copo hoje.
Mas por que tantas perguntas querido?
Tá parecendo repórter.
Já conheceu nossas garotas?
Chegô uma nova mês passado.
Aline loira 18 anos.
Um anjo de garota que só.
Novinha da sua idade.
Linda pra namorar.
Ou algo mais experiente?
Quer tentar meu bem?
Para de roer a unha.
Faz mal.
Te mato de prazer atrás da porta.
De calcinha vermelha bem fina.
Comigo sempre a novidade mais gostosa.
Qual é seu nome?
Fala aqui ó pertinho.
Medo de mim?
Huuum que delícia de nome.
Te faço latir feito cachorrão Celso.
Celsão selvagem.
Huuum.
Não tem medo não.
Com um quarto mudo sua vida.
Duvida?

domingo, 11 de outubro de 2009

Nada de trambolho

Eles chegaram numa tarde chuvosa.
Rindo alto e comemorando.
Logo vi que estavam chapados.
De segredo há coisa de um mês. Pensa que eu não sabia?
O grande assalto no Café Cremoso.
Posso ser tonta. Mas burra, não.
Primeiro, as máscaras de carnaval. Lula, Pelé e um cara que eu nunca vi. Depois, um e outro detalhe no truco.
Eles ficavam jogando bem ai, na entrada. Colocavam a mesinha, as cadeiras, e aproveitavam pra mexer com as mais jovens na rua. Quando eu trazia cerveja – quase duas grades! –, levava um safanão na bunda, bem dado pelo Antônio, que ria pro alto, com a mão na barriga e o olho vermelhão. Já pro final, bêbados, dava pra ouvir tudo sobre o assalto na padaria, no dia seguinte.
E mais safanão.
Até o Baiano e o Bode metiam a mão em mim, enquanto o Antônio me chamava de trambolho.
Foram pra dentro pelas onze e meia.
Quem arrumou tudo?
Euzinha, o trambolho da escrava, a doméstica que todo mundo mete a mão.
Na cozinha, onde eu sempre rezo de manhã, cada um mostrava seu cano.
Todos enferrujados.
Não sei nome de revólver. Sei que eram pretos e enferrujados.
E ficaram em cima da mesa até a noite do dia seguinte.
O Antônio dormiu no sofá. Os outros no chão mesmo. De manhã, me chamou de trambolhinho e pediu café.
Morria de amores por ele, doutor, o café fiz com paixão.
Se frio, ele taca na minha cara.
“Tem que ta pelando, trambolho!”
De tanta exigência, aprendi o mais quente do café. Na recompensa, safanão ardido e olhar de desejo.
Não tavam nervosos, não.
Até tomaram umas latinhas.
Saíram lá pelas seis, no Gol vermelho do Bode.
Fui no bingo ali da esquina. Pra ajudar a igreja.
É um pessoal tão bom. O Senhor fez obras em mim.
Depois do culto, que acabou às oito e meia, começou o bingo.
Acho que voltei às dez.
Estranhei porque não tinha ninguém em casa, e o portão não tava do mesmo jeito que eu deixei.
Como eu fui direto na cozinha, encontrei o saco preto com os três canos enferrujados. Mas não tinha nenhum dinheiro.
Não sei dessa mochila do assalto, não.
Amarela? Pior ainda.
Carrego minhas coisas na sacola da Renner. Não gosto de bolsa.
Tenho só a mochila de couro, pode ver.
O revólver, só peguei pra jogar fora. Joguei no lixão da esquina. Não aguentei aquilo na minha frente, na cozinha. Justo onde eu rezo? O espírito santo aguenta? Nem eu.
Sabia que, se descobrissem, eu tava lascada.
Quis fugir de casa porque queria vida melhor, doutor. Ano passado, me meteu sete balas no corpo! Sete balas, doutor! No meio do Bar do Vandir, comemorando aniversário da afilhada. Toda aquela gente no boteco, ele sacou o cano e começou a disparar feito louco.
É coisa do demônio.
Fui salvada por Jesus, sete é o número Dele!
Por causa do Antônio, as crianças tiradas de mim. Nas mãos da justiça.
Entraram lá em casa e pegaram craquinho, erva, agulha: nada meu! Nunquinha!
Tudo do Antônio, escondido.
Ouviram mentira de vizinho. Esses, sim, do mal, do cão.
O Antônio nem batia tão forte.
Eu tinha que segurar as crianças, né? Senão, elas fugiam. Uma palminha nunca faz mal.
Mas não teve chicote, não. Nunca nunquinha.
Eu fiquei mesmo com medo do assalto. E dos assaltantes.
Tua vida muda quando é um marginal na tua cama. Tua vida não é mais a mesma.
Só o Senhor salva, só o Senhor tem a cura dos ceus, a fé entre irmãos.
Aleluia!
Perdão, doutor.
Mas o Senhor fala em mim. Minhas palavras é Dele! É o mesmo sangue. É a nossa voz!
Sou conhecida de todo o Jardim dos Pássaros e do Ney Braga.
Nunca fiz baderna nem marginalidade.
Respeitada no culto, a oração da sexta é sempre minha.
Me criei no campo.
Ó a mão de trabalho, ó.
Nunca envolvida com droga. Nem sei que gosto.
Nunca vi esse dinheiro. Senão, fugia de Maringá.
Ou não.
Comprava uma casa boa, lá no Jardim Tabaetê. Na rua Vasco da Gama tem o meu sonho, média, quintal pras crianças.
Tô na mesma casa, doutor. Vá lá ver a situação.
A coisa tá feia. É a crise, né? Me mudava! Ah, se me mudava! Com todo o dinheiro na bolsa! Praquela besta sentir minha falta. Pra eu matar a vida dele toda. E ele correr pra mim de novo. Sem safanão, com muito beijo na nuca, me chamando de amor. Nada de trambolho.

sábado, 10 de outubro de 2009

Dicas de leitura - J. M. Coetzee

O sul africano J. M. Coetzee: críticas aos EUA, Tony Blair e Guantánamo
A partir de hoje, vou disponibilizar algumas críticas literárias que tenho feito para a Rádio Universitária Cesumar FM. Não sei ao certo o horário do programete - vou verificar. Já gravei sobre "Órfãos do Eldorado", do Milton Hatoum; "A Segunda vez que te Conheci", do Marcelo Rubens Paiva; do Philip Roth, critiquei "Indignação" - que foi publicada, originalmente, em O Diário; "Leite Derramado", do Chico Buarque - crítica publicada em O Estado do Paraná; "A Arte de Produzir Efeito sem Causa", o penúltimo livro do Mutarelli; enfim, já tem uma pequena lista.
"Diário de um Ano Ruim", que publiquei no ano passado, em O Diário, é o último romance do Nobel sul africano J. M. Coetzee. A trilha fica por conta de Tchaikovsky. Para ouvir, clique aqui:

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Volta pra vê, desgraçado!

Cê desgraçou a minha vida, Antônio
Nunca tão infeliz
De casa não saio mais
Larguei cigarro, cerveja, o emprego de empregada
Só vou pro 14 Bis nas noites de sexta
Ninguém nunca entendeu
Os beijos no Bar do Vandir
Depois, na mesma noite, os disparos no meu peito
Sete tiros não me apagaram
Pensa que não lembro?
Cê cuspindo no meu corpo:
Moisés catarrando no Mar Vermelho
Levaram flor e bombom no Hospital
Não sei quem, sem nenhum bilhete
A justiça pegou as crianças
Querer de volta é impossível
Acharam as agulhas espalhadas no meu quarto
Os craquinhos e a erva em cima da geladeira
Mas não encontraram os três canos enferrujados no armário
Dos vizinhos escutaram a denúncia
Que o seu chicote arrebentava minha costa
Pior do que cavalo
Inventaram que as crianças também surradas com chicote
Enquanto eu ria e segurava uma por uma
A penitência do dia, de segunda a segunda
Tô orando na Igreja da Graça de Deus
Duas quadras daqui de casa
Jesus entrou de novo em minha vida
Daqui não sai tão fácil
Aliviou meus horrores, sonhos bons me acontecem
Joguei fora toda erva, todo crack
Vendi suas roupas pra Maria
Bem guardado o dinheiro do último assalto
Volta pra vê o que te acontece, desgraçado:
Três canos esperando a sua morte

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Os leitores existem

Hoje foi um dia muito especial, porque pude sentir o carinho dos leitores com este malfadado blogue. Pois é, tudo indica que existem leitores por aqui. Este fato já é motivo de sobra para comemorar. Nesse exato momento, estou abrindo um Casillero del Diablo. Tim tim. A lista surpreendente inclui Doutor em literatura, jornalista, acadêmico e até um abantesma!
O feedback começou logo de manhã, com o grande professor e editor de O Diário, Clóvis Augusto Mello, revelando conhecer a existência destes contos. Ele disparou, no meio da aula, que a sua jovem filha está PROIBIDA de ler os contos que aqui são postados. HAHA. Pôxa, Clóvis, sacanagem! Ela pode até ser uma futura leitora!
Dai logo à noite, eu tava sozinho na cantina da UEM, e encontrei meu amigo Zau, Jeferson Voss, que tá estudando Administração. Ele relatou ter lido alguns contos hoje à tarde e fez uma série de críticas: "Nunca vi tanta perda de tempo! Quantos contos idiotas! Mas que merda, hem?". O Zau ficou surpreso e riu pacas quando eu disse que tô preparando um livro. Zau, canalha, você me deve um café, maldito!
Outra grande personalidade que passou recentemente por aqui é o professor de literatura e poeta maringaense Marciano Lopes. Em uma das aulas lá na UEM, Marciano citou o conto "Manolo me come!" e fez uma breve análise. De acordo com Marciano, ao inserir a palavra "amásia" no conto, eu me posiciono contra a personagem feminina, Dulce. O professor afirma ter recorrido ao dicionário para conferir o significado pejorativo da palavra. Embora o significado pejorativo não exista, amasiado, segundo Marciano, está relacionado à promiscuidade. Assim, eu atuei como um narrador autoritário, conduzindo o julgamento do leitor - o que não se repete durante o resto do conto. Pôxa, ter um conto analisado na frente da sala inteira é uma experiência estranha pra cacete. E foi bem legal também porque, além do professor Marciano, uns dois ou três confessaram ter passado aqui no blogue. O escritor Nelson Alexandre foi um deles.
Para fechar, destaco o comentário de Clarice Lispector. A autora voltou à vida para dizer que gostou de "O Estrábico":
"Alexandre Gaioto mergulha no oceano da carne e da língua para dizer o indizível. Transcende o meramente factível. Fabuloso. Aqui não há lugar para clichês. Alexandre Gaioto escreve como quem goza. Sua caneta, um membro saturado de potência, porra. Sem sombra de dúvida o grande escritor da atualidade. Alexandre Gaioto não vai ser jornalista. Vai ser escritor, porra! Ass. Clarice Lispector"

Clóvis, Zau, Marciano, Nelson e Clarice: valeu!

Um conselho de Roth


“Os sentimentos podem ser o maior problema na vida. Os sentimentos podem nos pregar peças terríveis”, alerta Philip Roth. Nestas duas frases, o maior escritor vivo da língua inglesa expõe o cerne de seu novo romance, “Indignação”.
Em seu vigésimo nono livro, Roth retoma a influência da sociedade judaica, a tensão sexual de seus personagens e o excesso de proteção familiar que os envolvem. A novidade, desta vez, está no rompimento com os narradores velhos de seus últimos livros, “O Fantasma Sai de Cena” (2008) e “Homem Comum” (2007).
Narrado em primeira pessoa pelo jovem Marcus Messner, um estudante de direito que está sob efeito de morfina, “Indignação” é um romance primoroso, permeado por diálogos cortantes e conduzido por minuciosos detalhes que constituem, a cada página, o emaranhado psicológico dos personagens de Roth.
No momento em que o protagonista inicia sua vida acadêmica, seu pai passa a temer sua morte de uma forma paranoica, doentia, ainda mais acentuada do que em “O Complexo de Portnoy” (1969), obra que assegurou o lugar de Roth na literatura contemporânea.
Seja com relação aos seus familiares, aos colegas de quarto, à religião e até mesmo na relação sexual com uma colega, o narrador sente-se constantemente indignado, mas sempre escolhe evitar os problemas. A calma de Marcus Messner, no entanto, tem limites. E é discutindo com o diretor de alunos da universidade que o protagonista dá voz aos seus sentimentos e ofende verbalmente o diretor, o que resulta na sua expulsão.
Convocado para ingressar o exército estadunidense na guerra da Coreia, Messner morre atrofiado pelas baionetas inimigas, em um ambiente tão sangrento quanto ao açougue em que trabalhou durante a adolescência.
Por meio de personagens perturbados, que vivem as diferenças existentes entre a cultura judaica e a cultura norte-americana, Philip Roth, aos 76 anos, produz outro retrato provocante dos sentimentos humanos. E revela ao leitor que, às vezes, o melhor é cumprir as obrigações da mesma forma passiva e tolerante tal como Messner, trabalhando no açougue de seu pai, aceitava a tarefa de eviscerar galinhas: “Nauseabunda e repugnante, mas tinha de ser feita.”
Que a vida fosse boa e justa para Messner e para todos nós, mas ela é repleta de injustiças, desaforos, indignação. Evitar os confrontos e aceitar passivamente algumas ordens pode ser a melhor estratégia, de acordo com o conselho de Philip Roth.
Crítica publicada no jornal O Diário do Norte do Paraná, no dia 4 de outubro de 2009.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Dinho

Naquele sábado, toda cidade comovida com o estupro no Parque do Ingá. Seis aposentadas formavam vigília na Catedral, o prefeito concedia, emocionado, entrevista para um programa de TV, o assunto do dia no Bar do Guerra.
Neide, 13, cuidava do carrinho de pipoca do padrasto, em frente ao Parque, desde as dez da manhã. Os olhos vendados, carregada para trás da cabine do pedalinho, dentro do ponto turístico, onde foi violentada por cerca de quinze minutos.
Ao meio dia, poucos se aproximaram da garota que chorava e exibia marcas por todo o corpo. Dois seguranças do Parque, o velho do carrinho de caldo de cana e o responsável pelos leões algemados e carregados pela polícia militar.
Duas horas depois, já com os portões fechados, uma equipe de TV mostrava as imagens do local ao vivo. Trancado no ponto turístico, em frente à Maria Fumaça em exposição, Dinho agarrado ao gorrinho vermelho escrito Jesus, as mãos tremendo, o olhar assustado:
“Coisa suja! Coisa suja!”
No Paraná, a estranha imagem em desespero. Carregado às pressas para a delegacia, Dinho encara os quatro homens algemados atrás do vidro: a única testemunha ocular. As seis aposentadas da vigília deixam as velas acesas e correm para a secretaria da Igreja. Eufórico, o pároco comemora, apontando a televisão:
“O doidinho que viu tudo!”
“Dinho, quem fez a maldade?”, indaga um dos agentes.
Desta vez, o garoto não tentou lamber o nariz nem chacoalhou a algema cedida por um dos policiais. Estendeu o indicador, tirou catota do nariz e esfregou no gorrinho. Com a mão esquerda, Dinho imaginava uma farta barba e ficou a acariciá-la lentamente, olhar sério no quarteto enjaulado, como os bichos do Parque do Ingá.
“Arara! Arara!”, deu pulos de alegria, batendo no vidro que o separava dos suspeitos.
Na mesa à sua frente, café quentinho, pão francês, bolacha de morango e suco de maracujá. Dinho sentou-se nos três lugares disponíveis, provando muito de tudo. Em qualquer lugar quando entra, senta nas cadeiras e come o que oferecem.
Atrás do crucifixo no pescoço, Dinho exibiu o nome e telefone da mãe. Depois do abraço forte no filho, o pedido da polícia:
“É só apontar.”
O ar condicionado era incômodo. Puxava o gorrinho de um lado para o outro, esquentando as orelhas. Organizaram os suspeitos, desfilavam um a um, constrangidos. A cada passo, Dinho olhava sério, abraçado pela mãe. Os primeiros bocejos indicando sono.
“Filho, aponte a coisa suja.”
Quando Manolo, um dos seguranças, encerrou seu quinto desfile em frente ao vidro, o garoto deu um pulo. Queria ver de perto o próximo sujeito. Alisou a barba invisível, tampou os olhos com as duas mãos, o grito estridente, batendo os pés no chão, e apontou o responsável pelos leões.
“Parabéns!”
Aplaudido pelos policiais, ganhou medalhinha no peito, abraços e posou para fotos. Dinho deixou a delegacia, aliviado, acompanhado pela mãe. Depois de tantas perguntas, o sorriso no rosto arredondado e uma discreta ereção ao atravessar a rua.

domingo, 13 de setembro de 2009

O estrábico

Josué me busca no trabalho sempre às seis em ponto. Nunca atrasa um minuto. Ai, que pontualidade. Invejada por todas no salão, dou passos delicados. Uns cinquenta metros até subir na garupa, abraçar firme, grudar no cangote. Lá atrás, as venenosas lançando olhares e acenos para nós. Antes, beijinho no rosto, na testa. Na pontinha do nariz, ele é todo meu.
Casada, sim. Feliz, e muito. A gente vive na Vila Operária, junto com a mãe dele, que ocupa o quartinho dos fundos, e no domingo faz um doce de morango que perfuma todo o bairro. A porta do quarto, só empurrando com os dois braços bem fortes. Não tem mesmo janela. Mas quem precisa, nesse calor?
É na construção de Maringá, vendo tudo lá de cima, dos andares mais altos, que o meu marido sempre chora na sexta feira. O Sol vai abaixando no horário de verão, e ele imagina que nada permanece da mesma maneira. Nem gente, nem cidade, nem cachorro abandonado.
Chora meio escondido, entre os pilares e restos de tijolos. Nenhuma alma com dó. Desce do prédio, pronto, cheiroso para me buscar de moto, que será nossa, de verdade, só daqui a três anos, em dezembro.
Vou te mentir se eu não disser que somos os mais felizes do planeta. Quanto carinho num peito só. Seis meses ele ficou sem me buscar no salão, porque o prédio no novo centro estava ocupando o tempo de todos os pedreiros: quanto mais rápido nascer a construção, melhor.
Eu alcançava o ônibus no terminal, sempre lotado no fim de tarde. Mas só um, porque, como eu já disse, saio do terminal. E, em Maringá, você anda a cidade inteira em dois ônibus apenas.
Desde o primeiro dia em que Josué não me buscou, aquele cara ficou me olhando. Gel no cabelo, traços finos, barba rala, perfumado. O sotaque, percebi quando cedeu o lugar para uma velhinha, e me olhou bem lá no fundo, olhos tortos: o esquerdo, atrapalhado, mirando o nariz.
Um dia sentou comigo, me ajudou a pegar algo no chão. Sorrindo, que eu dissesse meu nome.
“Eulália.”
Por uns dois ou três minutos ficou em silêncio, observando o trânsito na Avenida Brasil. Com a voz doce, disse que na Europa não encontrou nome mais bonito.
“Eulália”, ele disse, e se apresentou:
“Antônio.”
Cheio de detalhes, aguçava minha imaginação com histórias sobre a Espanha, onde viveu quinze anos. O perfume, a camiseta, o sotaque, tudo de lá. Um dos maiores fotógrafos do mundo, sentado do meu lado, no mesmo ônibus. Descia umas dez quadras antes da minha, na casa em que estava construindo. Contava das noites todas gastando dinheiro em cavalos, touradas, em jogos de carta, dos diversos nãos às mulheres mais lindas da Europa.
Aqui em Maringá, no Brasil, o Antônio dizia, tudo era diferente. Começando pelo transporte. Lá na Europa, também andava de ônibus, tranquilo, um luxo, porque ele não pode dirigir. Pode ter convulsão, enrolar a língua, ficar tremendo que nem um terremoto, não pode correr riscos. O jeito é encarar a lotação, com todo mundo. Tudo muito diferente de quando saiu do Brasil, aos dezoito, para a Espanha.
Um dia, me mostrou um álbum bonito, branco, cheio de fotos que ele dizia ter feito. Cada página, um suspiro de inveja. As garotas mais lindas, em cada roupa. Às vezes, até sem roupa, sempre segurando algum dos produtos. Uma delas, nuazinha completa, sorria com uma pasta de dente. Dava um calor só de ver aquelas imagens.
“Imagina você.”

Ai, que besta, como eu fiquei sem graça. Ri de uma forma tão estranha, esquisita. Certo que o assustei. Como ele sabia o que eu pensava? Cada foto, mais de quinze mil reais.
“Meu Deus!”
Eu imaginava Josué descansando no domingo, eu nos braços dele, minha foto vendendo na Espanha, como seria bom. Foi só ele propor essas coisas, que os pregos começaram na minha cabeça. Cada prego por minuto, não fiquei em paz.
Pelos cálculos, dava para largar o salão, descansar um bom tempo, abrir alguma outra coisa mais tranquila, comprar uma casa grande só para a mãe do Josué. Talvez montar uma floricultura ou uma lanchonete por aqui. Duas coisas que faltam mesmo em Maringá: flor e comida.
Sempre que eu entrava no ônibus, encarada por aquele olhinho torto, à espera da resposta. Ainda não, eu dizia. Eu ainda tinha dois meses para pensar com calma, depois disso ele voltaria para a Espanha, para trabalhar com aquelas modelos incríveis, fazer mais fotos, ganhar dinheiro.
Pensei em contar ao Josué, mas ele não iria entender. Embora chore lá de cima dos prédios, olhando toda a cidade mudar, aqui em baixo ele é machão para danar. Nunca que eu ganhasse dinheiro sem roupa. Primeiro, coitado do fotógrafo. Certo que iria tomar uma surra daquelas, talvez até colocasse o olho no lugar certo.
Também não comentei com ninguém do salão. Bando de fuxiqueira, elas me dedurariam na primeira oportunidade. Eu entrei decidida no ônibus numa sexta. Lembro bem, porque eu e o Josué estávamos ansiosos pelo casamento da Lélia e do João, na sexta seguinte. Estava chovendo, aquele trânsito chato, quando sentei ao lado do Antônio. Ele nem percebeu que era eu, observava pela janela o atropelamento que acabara de acontecer.
“Estou pronta.”
Ele me olhou um pouco desconcertado, seu lábio inferior deu uma tremidinha, mas logo sorriu e a tranquilidade reapareceu no seu rosto. A camiseta preta, o gel no cabelo, que perfume era aquele? Antônio era atraente de óculos escuros. Como eu sei que não vai passar aqui no Brasil? E se a foto vier para Maringá?
“Não vai se arrepender.”
A fábrica de pantufas, ele dizia que era portuguesa, de uma cidade chamada Évora. Precisavam de uma modelo brasileira para a foto do novo catálogo, porque o produto principal seria uma pantufa estampando o mico-leão-dourado. Trinta mil euros só para umas fotografias calçando os chinelos de veludo. Não concordei em tirar a parte de baixo, não mesmo. Ele insistiu que não poderia começar desse jeito, eu exigindo tudo.
“Mas a parte de cima?”
“Tudo bem”, concordei.
A foto seria na casa de um amigo, onde, segundo ele, estavam armazenados temporariamente seus equipamentos de fotografia, lentes, tripé. Numa casa localizada atrás da Avenida Cerro Azul, amanhã, às quatro da tarde, sem atraso. Não deveria levar nenhuma amiga, porque ele dizia que, com mais garotas, é sempre um estorvo. Com a roupa mais sensual, claro. Calculando na cabeça, disse que ainda daria tempo para alcançar a lotação.
Naquele dia, me arrumei feito princesa. Mas isso à tarde, quando não tinha ninguém em casa. Antes de sair para o trabalho, fiz surpresa e carinho: levei café e bolo de fubá na cama para o Josué. A desculpa para deixar o salão, depois do almoço, era a tontura que me fez desmaiar enquanto eu pintava as unhas de uma japonesa. Todas assustadas, fui para casa de carona com a patroa, que insistia em me levar ao hospital. Com o falso desmaio, machuquei a cabeça de verdade.
Coloquei o vestido verde, bem decotado, troquei de brinco pelo menos dez vezes, o salto vermelho nos pés. Sai de casa torcendo que ninguém me flagrasse. Dois ônibus até chegar à casa de madeira, sem cerca elétrica, de muros baixos, decorados com algumas pichações.
Sem campainha, bati palma e gritei pelo Antônio, que demorou para chegar à janela, espionou-me e, finalmente, veio empurrar o portão para mim. Ele vestia branco, dos pés à cabeça, o cabelo encharcado de gel, estava até engraçado. Abraçou-me, perguntou se eu estava pronta. Sim. O dinheiro, ele explicou, seria depositado no dia seguinte, na minha conta ou quando eu quisesse. Tinha ocorrido um problema na conta dele, mas já havia entrado em contato com o gerente do banco, e tudo estaria certo até a noite, por volta das dez horas.
O combinado era o dinheiro antes. Mas fiquei com vergonha de perguntar, já que isso deveria ser comum nesse meio da moda. Eu bem que vi, quando entrei naquele lugar, como podia morar alguém? Infelizmente, a mobília foi retirada porque ele está terminando uma mudança, e só o segundo andar, lá em cima, ainda está todo cheio, justificava o Antônio. Ele e seu amigo estudaram juntos desde a quarta série no Instituto de Educação. Os dois caminhavam juntos até o colégio, amigos para tudo, compartilhavam dinheiro, histórias, namoradas, isso ele ia dizendo enquanto ajeitava os equipamentos.
Na parede, Antônio colocou um pano branco. Que eu ficasse ali na frente. Fui. Sem luz elétrica, como fazer a foto? Isso ele não respondeu. Enquanto ele me indicava as posições em frente ao pano, para testar a máquina, pensava o tempo inteiro no meu Josué, como administraríamos os trinta mil euros, quanto eles valeriam aqui no Brasil? Pensei em perguntar ao Antônio, mas ele estava concentrado demais apertando os botões e mexendo numa lanterna que ajudava a iluminar o lugar.
Imaginei um homem de Évora dirigindo seu carro, contornando um redondo, observando minha foto estampada na parede de um shopping. A mulher ao lado dele, dando-lhe um tapa pela indiscrição, os filhos rindo no banco de trás: motivo de ciúmes e inveja. Bendito seja o mico-leão-dourado.
“O vestido”, ele apontou.
Tirei um pouco sem jeito, estava fria aquela casa. Que eu jogasse para ele. Atrás do pano, que eu pegasse as pantufas. Uma coisinha muito feia, viu? Um troço esquisito, desconfortável, nem parecia mico-leão.
“É moda na Europa.”
Calcei lentamente, meus pés logo começaram a doer. Não sabia o que fazer dali para frente. Fiquei encarando a lente, num olhar que misturava ódio e sensualidade. De onde veio? Sei lá. Fiquei com essa cara até ele começar a exigir. Sorria, deita, sorria, tira o sutiã. Mais de quarenta minutos.
Dai para frente ele começou a beber alguma coisa que não dava para ver o que era. Comecei a ficar com sede. Pedi por água.
“Não sai dai. É trabalho.”
Ele já não falava comigo durante as fotos. Eu começava a perder a noção do horário, virava de um lado para o outro, fazia poses de tudo que era jeito, deitada, na ponta dos pés, ajoelhada: quantas fotos mais?
Notou minha impaciência. Fez dois ou três elogios: bonito, bonito. Às vezes, deixava a máquina no canto, e mexia na lanterna, é verdade. Mudava de posição, deixava uma parte do meu corpo iluminada, a outra ficava escura. Tirei as pantufas do pé, coloquei em frente aos seios, mordi cada uma, depois mordi as duas de uma só vez, dei alguns tapinhas na minha bunda com o mico-leão, deslizei a pantufa do pé esquerdo da minha boca até o umbigo. Repeti isso quinze vezes. Minha cabeça estava doendo por causa do falso desmaio, estava exausta. Finalmente ele chegou com água para mim, eu já estava escorada na parede, nem percebi.
“Meu anjo.”
Fui acordar desse jeito, naquele Gol branco, no meio do Borba Gato, com o barulho dos carros, o vidro arrebentado do lado esquerdo, deitada no banco de trás. Umas crianças gritavam que eu estava morta, acordei confusa, ela morreu, ela morreu, muita buzina, ela morreu, eu não entendia nada. Alguém me cobriu com uma camiseta, um velho arriscou uma respiração boca a boca, tentei empurrá-lo com o pouco de força que eu tinha no momento. O gel, o perfume, o endereço da casa, o nome, não sei onde trabalhava, não vi o amigo dele nem sei o nome. Também não sei o sobrenome do Antônio. Não sei se ele mora mesmo naquela casa. Que desgraçado. Moça, jura para mim, no meu olho: meu Josué não vai mesmo nunca saber disso? Não esquece, pelo amor, de fazer o desenho dele ai, com o olho torto que nem o diabo: cem por cento estrábico.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Manolo, me come!

As mãos tocando a coxa branca, o suspiro do gordinho. Lábios mordidos, quase sangrando, olhar embriagado de suco de goiaba. Na Praça da Catedral, o domingo ensolarado, famílias aproveitam o descanso sagrado. Lugar ideal do piquenique romântico.
Em cima da toalha verde com estampa do Batman, mortadela, geleia de morango e quatro pães. Manolo, saciado, tira do bolso o presente da amásia. O anel de prata que brilha feito diamante debaixo do sol: a economia mais sofrida da vida. Deixou os gibis de domingo, o fliperama do Avenida Center e não comprou raspadinha nem lanches no colégio.
Surpresa, Dulce agradece com o beijo mais molhado. Ao aproximar-se, Manolo contempla seus pequenos seios de bicos rosados, durinhos. E nem estava ventando, como pode?
Dulce sorri, dá uma cuspidinha no anel, que é logo guardado dentro da cestinha. O dedo de Manolo – ele jurara à atendente: “é o mesmo tamanho, tenho certeza” – não foi boa referência ao diâmetro do mimo. Antes de lançar um olhar furioso, um olhar que o amante precoce nunca mais esquecerá, Dulce abre um pouquinho mais as pernas: o enfarto do Manolo? Mãos atrapalhadas na massagem improvisada.
“Assim dói.”
Mais macia que o sofá da tia Lúcia, pensava o gordinho, cujos dedos desbravavam mais e mais centímetros na perna da garota.
Suavemente inclinada para trás, ainda sentada na grama, Dulce suspirava com os toques em seu corpo. Sentia todos os pelinhos loiros balançarem nos dedos roliços do namorado, três anos mais jovem. Ela com quinze anos neste janeiro; ele com doze apenas em dezembro.
Aproximou-se novamente, expondo os peitinhos rosados, sorrindo ao observar o olhar desnorteado à sua frente. Após o beijo, lambeu delicadamente a bochecha esquerda e seguiu com a língua até a pontinha da orelha. Lá, percorreu toda ela com a língua, enquanto Manolo se contorcia sem controlar o riso e o pequeno relevo em sua bermuda branca:
“Você é um tesão”, “Por que você não pára de olhar meus peitos, hem?”, “Manolo, me come?”
Não só sua orelha estava encharcada. Ela saiu dos braços do Manolo e, sorrindo, puxou a mão dele para baixo da sua saia jeans. Segurando firme, Dulce regia os movimentos que três dedos do Manolo faziam acima de sua calcinha. Olhava, despreocupada, a calçada e o time de futebol que jogava um pouco longe deles, camuflados nas sombras das pequenas árvores.
Dulce gemia, Manolo ofegante já coordenava os dedos sem o auxílio, “bem de levinho”, como ela mesma exigiu. Os olhos fechavam, abriam, ela tremia um pouquinho, cerrava os dentes nos lábios grossos, pôs a mão novamente na mão de Manolo, arranhou seus dedos, endureceu as duas pernas, que começaram a tremer.
“Ai, meu Deus!”, suspirou.
“Ai, ai, ai, Manolo!”
Quando ele achou que ela fosse desmaiar ou sofrer um ataque, Dulce sussurrou, saciada, uma jura de amor que leu numa embalagem de bala de morango. Ele estava assustado, a prova da paixão nos dedos da mão direita, úmida de suor, parcialmente dolorida: o gordinho mais feliz de Maringá.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Num bar em Lisboa

“Bolchevique! Bolchevique! Bolchevique!”, acusou-me o sujeito bigodudo e gordo, com o dedo em riste. O Bocage era tudo o que eu sempre quis, com o fado melancólico do quarteto lusitano. Os poucos bêbados, as garçonetes e as paredes soturnas do Bocage pareciam girar, enquanto a soprano recitava alguns excertos d’Os Lusíadas, acompanhada pelo timbre estridente da guitarra.
O sujeito se aproximava.
Debaixo do braço, pasta encardida e caderno velho. Jornais macilentos colados sobre as páginas. Dizia-me, do pouco que eu conseguia ouvir, algumas datas e nomes russos. Tcheckov precisava de alguém na fábrica. Mas ele não voltará para aquele inferno nunca mais. Comunista, Tcheckov, nessa altura do jogo? Tentei continuar a conversa. A colheita e o carteado. Olhava-o, mas já não ouvia. A temperatura havia consumido suas pedras de gelo; as mulheres, a bebida. A gola desarrumada contrastava com o cabelo alinhado.
E já era melancolia demais.
Educado, agradeci a cerveja. Sorri ao deixar o dinheiro. Ele empurrou de volta. Em pé, me segura o braço e abre a pasta. Três canetas caem. Devolvo sem algum agradecimento os panfletos subversivos. Muito texto, poucas fotos. Luto contra o espirro, mas ele sai mesmo assim e eu limpo minha mão na camisa branca. Crônicas literárias narram o encontro do militante colombiano, Passos Aguiar, com um agitador cultural, no meio da posse de Gorbachov, em 12 de Março de 1985. Não sei russo, confidenciaria. Não sei quem é o agitador nem o tal Aguiar.
Estou aqui, estou em Lisboa, estou definhando. E só.
Estou definhando moralmente, intelectualmente e socialmente.
Pediríamos outra bebida e o sujeito me pagaria outro drinque. Falaríamos sobre linguística, poesia e, talvez, até desabafássemos sobre o sexo, que sempre precisa ser desabafado nesses lugares estranhos, desproporcionais, angustiados. Criticaríamos as mulheres, seríamos grandes amigos.
Era uma reunião plenária do Comitê Central do Partido Comunista analisada sobre cinco ou seis literatos e intelectuais alternativos. O indicador atabalhoado do gordo apontava a foto: cinco personalidades russas. A morena de olhos verdes, ele apontava, quase em segundo plano, aqui, quase desfocada: Lá estava Carolina, bem atrás do escritor que eu nunca ouvira falar.
Eu seguia mais rápido por aquela Lisboa encardida, em que as pessoas possuíam cabeça de galo e corpo de bacalhau. E não sorriam. “Carolina é só uma questão de tempo”, gritava o gordo, tresloucadamente.
Subíamos correndo, eu e o acusador, por entre a D. Dinis; passávamos pelas putas; banhávamo-nos às margens do Tejo e escalaríamos sem dificuldade a Torre do Tombo. O acusador nunca me alcançaria. Talvez até chegasse perto, com seus dedos escapando da gola da camisa. Quase.
“Bolchevique! Bolchevique! Bolchevique!”, acusou-me o sujeito gordo com o dedo em riste. Foi a última coisa que eu consegui ouvir, antes de receber dois tiros e ser arremessado às margens do Tejo.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Por que tão faminta?

Acordei de pau duro. Não consegui urinar. Tive que mijar sentada, forçando meu pau para baixo, para que ele não encostasse na beira da privada. Eu estava no Vale Azul, tinha acabado de ser sequestrada por dois fortes negros e um ruivo obeso com chapéu panamá. Eles enfiavam canos de aço no meu cu, masturbavam-se uns aos outros e terminavam gozando na minha boca, puxando meu cabelo, enfiando as três picas de uma vez goela abaixo. Ai Meu Deus, caralho, vou engasgar, tenham dó de mim, porra. Cada vez que eu pedia clemência, mais rijo eles surgiam. Nem adiantou chamar Nossa Senhora. Eu sentia a barba ruiva roçando minhas costas, seus dentes podres a estraçalhar meu pescoço, um dos negros babando no meu mamilo direito e o outro punhetando-se atrás do ruivão. Entre os três sujeitos, eu, cadela no cio, saciando o desejo, gritando socorro, querendo mais, sem saber quantas grossas picas amontoavam-se, agachada, satisfazia cada um deles, dedicada, sorrindo, vem ruivão, e eles já não eram três, mas vinte, vinte e nove, que voltavam ainda mais sedentos quando satisfeitos. Eu havia sido molestada no Parque do Ingá, no bloco G34 da UEM e, finalmente, em Sarandi, no Vale Azul. Não é lá muita coisa ter acordado de pau duro. Meu pau é bem pequeno, aliás, se você quer saber. Desde que abandonei a enfermaria do Hospital Santa Rita, há três meses, mal saio da cama, o mastruço se exibe orgulhoso. E só desce na hora do almoço. Deus, por que tão faminta?


terça-feira, 12 de maio de 2009

Esquartejada sem um pio

“Ô de dentro!”
Lavando o prato de plástico, Edivânia escuta o insistente do portão. Faz sol nesta quinta feira e, graças a Deus, nenhum motoqueiro atropelado no Jardim dos Pássaros.
Camiseta xadrez, calça jeans surrada, suspensório e sapato marrom. Edivânia observa, dentro da cozinha, sem motivos para não simpatizar.
“Bom dia, paz do Senhor. Vim aqui com a indicação do padre Janilson. A senhora não ouviu o sermão de março? Atropelada na Cerro Azul, minha filhinha de sete anos. Que eu corte a sua grama?”
Há três meses faltava nas missas da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Contenta-se em acompanhar pela Rádio Colmeia, chupando manga, os pés descalços. E nem é preciso ajoelhar, uma dificuldade e tanto aos oitenta e dois anos.
“Minha nossa misericórdia! Que o gramado está assim dos ratos do Ney Braga.”
No sorriso do
“Como é o seu nome, seu moço?”
Dente de ouro no sorriso do Amaral.
A vida inteira sozinha. Conheceu a Vila Operária, onde criou o filho único, seu sustento e alegria. A mesada justa para o mês.
“E não faz muito caro?”
Dente de ouro no sorriso do Amaral.
Na bolsa cinza, o cortador enferrujado e as sacolinhas do Cidade Canção. Ó, mato infinito, albergue de todos os peçonhentos desabrigados do Jardim dos Pássaros. Cozinha suja de barro, leite velho fora da geladeira, os óculos esquecidos em cima do fogão aceso.
Cuspiu no gramado, chutou o cortador. O ônibus obedecia a faixa de pedestres e o motorista sorriu ao anjinho, que escapou dos braços da mãe, cruzou a Cerro Azul exibindo a imensa janelinha, onde a língua escorregou marota:
“Pai!”
O asfalto tingido de vermelho durante quatro dias sem chuva. Mais alguns meses para completar oito anos, não fosse o entregador de pizzas embriagado.
Arranca a navalha enferrujada e a lubrifica com cuspe. Em vinte pedaços, Edivânia esquartejada sem um pio. Cheio de moscas e uma gosma amarela entre os dedos dos pés, o corpo seria encontrado em frente ao Parque do Ingá, por volta das oito horas da manhã do dia seguinte, dentro das sacolas do Cidade Canção.
O Sol desaparece. Um motoqueiro é atropelado no Jardim dos Pássaros. Uma deficiente mental acaba de ser molestada novamente pelo padrasto na Zona 7. Dois pedreiros são espancados por policiais no Requião. E na Avenida Brasil, Marta, 58, prostituta, seduz o motorista do Del Rey preto:
“Que eu fico louca com dente de ouro!”

sábado, 7 de março de 2009

Foge, Silvia! Foge!

“Para aqui, porra. Policial gostoso. Mostra o cacetete! Vem, gostoso”, gritou a Silvia. No silêncio da Avenida Brasil, a viatura escuta o pedido da nova garota. E volta.
Era a primeira semana dela, Abílio.
A porta da Principal Calçados está sempre coberta por folhas de jornais. O cheiro de tinta é forte - acabaram de pintá-la hoje –, mas o cheiro de merda é ainda pior. Alguém cagou em uma caixa de sapatos e deixou ali mesmo, no meio da rua. Silvia senta em cima do jornal. O inferno do vestidinho branco. O jeans é melhor, não suja tanto. As sacolas de supermercado não são nada confortáveis, rasgam logo, não duram a noite. As páginas ficam por lá, aguardando os funcionários da loja, no dia seguinte.
Na bolsa, traz presente do Edvaldo, O Diário. Na segunda, Silvia trouxe até pirulito.
“Pra mexer com a língua e dar um aceno, sabe?”
Quase três anos no açougue, as crianças na escolinha particular, o pai morto-vivo no hospital há seis meses.
Nunca negou cliente. Até faz hora extra, de manhã e à tarde, atrás do Instituto de Educação. Só não quis com o Louquinho. Suado, bobo da ideia, olho virado, exibindo as economias. De dia, na Tiradentes, perseguindo os vestidos que passam. Ás vezes é certo correr. Fica meio esquisito, pode ser violento com pau na mão. Ou faca. Na Santos Dumont, uma moradora do Edifício Atlantis chegou a largar sacola e celular com medo dele. Diz que vai caçar tubarão em Marte. Policial nenhum prende.
Entra na quitanda, compra miojo, ganha café. Onde ele cozinha? Ninguém precisa de panela quando não tem miolo.
“Estou sem casa. Mataram ele com arpão, nas costas. Hoje, não vou mais para Marte”, costuma dizer. Durante três meses, ela me contava que atendeu um nobre empresário, que até virou nome de bairro, em Londrina. Sempre oferecendo pozinho.
“Mas dessas coisas eu não gosto, não, viu?”. Tão meiga.
Disse que falou em casamento. O sonho de todas nós, Abílio.
“Detalhava meu vestido, alugaria em São Paulo, chamaria o padre Júlio, eu escolho os padrinhos. Quem sabe, se tudo desse certo, andaríamos de Limusine por Maringá, pela Tiradentes lotada. E seria na Catedral, entrando com Bandolins, faríamos fotos entre as árvores - se não chovesse, claro.”
E como ela não ia acreditar?
“Falava sério, cuspiu na aliança. Era o diabo, aquela mulher. E tão cheiroso, romântico, recitava poema. Trouxe um livro do Vinícius de Moraes no carro. Não culpo eles, não. Mulher não dá carinho, não dá nada, nem conversa, e quer coisa fiel? Não fosse o maldito ataque cardíaco. Saiu em todos os jornais, com foto e tudo.”
Eu falei para ela do comandante Antônio. Direito, sempre pagou certinho. Contei do dia em que, enfezado, fez o diabo. Também, o João Paulo foi inventar um programa, reclamou lá na frente. O melhor vestido vermelho. O rapaz tirou foto pro jornal. Mas nem saiu, não. Acho que eles devem trocar por dinheiro ou só para sacanear, né? Mas quem viu, viu. Comandante puto, chamando de viado, travesti, tudo misturado. Prendeu na hora. O João voltou com dente a menos e roxo no corpo.
Mexer com policial é complicado. Sempre tem um que bebe um pouco e já vem para cima da gente, aqui na Avenida Brasil mesmo, dizendo que é a voz da autoridade. O negócio é abrir a perna, que passem a mão e deem uma beliscada. Nunca se sabe muito bem quem está dentro do carro, nem o estado de humor. Freguês, policial ou não, sem humor bom é terrível. Você tenta fazer uma piada, fala sobre o tempo, e o silêncio aterrorizante do seu lado.
Com a Silvia foi horrível. Segunda feira é fria, nunca tem movimento. A Larissa, e você sabe disso, Abílio, nem vem de segunda. Ela é diferente. A Silvia é trabalhadeira, é raçuda.
Mas ninguém pode cutucar a onça com vara curta, né?
Era a primeira semana dela, ali na Avenida Brasil. A Silvia estava feliz porque estava na rua. Abandonara o namorado violento, o segurança ladrão, iria mudar de vida, iria trabalhar na PrincipaL Calçados. Logo aqui, bem atrás da gente. Ela treinava em voz alta:
“Pois não, posso ajudá-lo, moço? Os chinelos ficaram lindos!”.
Engraçado, né? Lembrei da sua frase, Abílio: “Longe é um lugar que não existe”.
Ainda pagaria a mensalidade atrasada da escolinha dos meninos. Eu já gostava dela. Bom humor, sonhadora. Não sei como ela foi virar mulher da vida.
Quando eu vi a confusão, desesperei.
“Foge Silvia! Foge!”, gritei.
Era o comandante de Curitiba, trabalhando na cidade. Promovido recentemente. Veio só passar a semana.
Freada brusca, ouvindo CBN, desceram com a mão na arma.
Amarildo, o motorista, ligou a lanterna e alumiou a cara da Silvia.
Ninguém naquela segunda. Ninguém mesmo.
“Ela é nova no pedaço, Curitiba”, avisou o Amarildo.
“Fica na sua, negão. Perguntei? Quantos anos você tem, putinha?”
Cachorro acuado, Silvia não dizia nada. Olhava para o chão, parecia muito longe. Irreconhecível. Resmungou alguma coisa que só o Curitiba ouviu.
“Ah, então você gosta de dar? É porque o veado do seu pai está na merda, né? Quantos filhos você tem? Hem? Quantos filhos? Responde, vadia!”
Ela começou a chorar, sentou no chão, esfregou a cabeça na parede, dizia alto:
“Ai, meu Jesus. Ai, menino da tábua.”
Ele deu mais um ou dois passos.
“Para de mentir. Você dá, porque você gosta. Porque você é uma P-U-T-A! Quanto você cobra o anal, hem? E se alguém tiver o pau grosso como o meu? É mais caro?”
E foi tirando o dinheiro. Cinco, dez e várias notas de um real eram arremessadas e caíam sob a cara da garota, que já abraçava as pernas e tremia.
Ai, que dor no peito, Abílio. Eu tentei te ligar. Mil desculpas. Você trocou o telefone? Como não te encontrei? Está em Maringá, né? Não fique bravo. Eu deveria ter ligado para a polícia?
Não consegui sentir cheiro de cachaça.
O Curitiba se aproximou ainda mais dela, exigiu que o motorista ficasse ao seu lado, e começaram a cuspir nela. A interminável chuva de catarro. Já com as bocas secas, puxaram o cabelo, chutaram e levaram ela no carro.
Tremendo toda, eu, atrás da árvore.
Atendi um garoto, depois de tudo. Era recém casado, Astra azul, banco de couro, ar condicionado. Igual àquele que você tinha.
Até o louquinho estava lá, do outro lado da rua, mostrando as economias, querendo sexo. Ele gritava que me amava mais do que tudo, me chamava para viajar para Marte, que a nave estava partindo e eles não partiriam sem mim.
Nem Deus sabe onde a Silvia foi parar.
Sinto muito, Abílio.
Sempre sua,
Marta.