segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Sempre de portas abertas

Rua Duvivier, Copacabana, a poucos metros do mar. Era ali, no primeiro andar de um prédio antigo, que Ferreira Gullar escancarava seu apartamento para leitores desconhecidos. Ao porteiro, bastava informar o nome e a cidade de onde você vinha. De segunda a segunda, de manhã ou à tarde, o poeta autorizava o acesso para quem quer que fosse, pedindo que a visita subisse. O próprio Gullar, magrelo, alto, sorridente, surgia à porta, cordialmente, já apontando uma longa mesa de madeira. Diante da sala, repleta de quadros, esculturas, colagens e livros, dava conselhos a jovens escritores, criticava as artes plásticas contemporâneas, maldizia meia dúzia de políticos e refletia sobre seu fazer literário, disparando metáforas e sutilezas poéticas.

“A vida é pouca”, disse-me Gullar, em um dos nossos dois encontros sem hora marcada. E, na frente dele, emendei o restante dos versos do poema No mundo há muitas armadilhas: “A vida é louca, mas não há senão ela. E não te mataste, essa é a verdade”. Até o maior poeta brasileiro estende o mais longo dos sorrisos quando vê seus versos ganharem vida na trajetória de outra pessoa.

Contato
Nesses encontros improvisados, não havia pressa. Os relógios paravam. As buzinas silenciavam. Os quarenta graus, ali, não te infernizavam. Gullar fazia dedicatórias em quantos livros fossem necessários. Posava para fotos. Até mesmo quando pedi que assinasse meu ukelele, que ele pensou ser um cavaquinho, não recusou o autógrafo. Figura cada vez mais rara em eventos literários, ele tinha consciência do distanciamento de seus leitores. Sabia, sim, de sua importância. Sabia que era preciso, de alguma forma, manter algum contato com seu público. O apartamento da Rua Duvivier era uma ponte, sem mediadores, entre autor e público — jornalistas, estudantes, professores, leitores em geral. E nas vezes em que me recebeu, em 2009 e 2013, despediu-se com o mesmo sorriso gentil, até rejuvenescido pelo encontro.

Enquanto poeta, Gullar serviu-se de revoltas e espantos, medos e cenas triviais. Qualquer tema, em suas mãos, rendia grandes versos. O osso da própria perna. O alto preço do feijão — que, ainda hoje, não cabe no poema. Um gato andando pelo apartamento. O desemprego. O número de crianças mortas no Piauí. O branco do açúcar que adoça o café. Um homem — eu?, você? —, à procura do grande amor, olhando para uma vitrine no meio da Avenida Nossa Senhora de Copacabana. A poesia, ensina Gullar, é onipresente.

Quanto à morte, deixou belos poemas, como Morrer no Rio de Janeiro, Os mortos e Despedida. Este último, relido agora, arrepia a alma ao traduzir o sentimento do nosso último grande poeta:

“Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro
(…)
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique
Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.”

Gullar pode até ter sido um homem de carne e de memória, de osso e esquecimento, brasileiro, maior, casado e reservista, mas, definitivamente, não era um homem comum. Homens comuns não deixam legados líricos, nem precisam escancarar suas residências a desconhecidos íntimos. O poeta maranhense, na verdade, jamais morrerá. Uma parte de Gullar estará sempre dentro daquele apartamento, na Rua Duvivier; uma parte de mim, também.

Publicado no Correio Braziliense (5/12/16)

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Raspadinha democrática

Rapazotes com o mesmo cabelo do Xororó e meninas de longos saiotes cruzam a Avenida Mauá, de olho nas Belinas e Fuscas. A sete passos do portão do colégio de madeira, outros estudantes se aglomeram em volta de uma carriola de algodão-doce. A foto, feita em 1982, hoje está pendurada na secretaria do Colégio Santo Inácio. Quase tudo mudou. A estrutura do colégio. Os pedregulhos da avenida. As roupas das moças. Mudaram os carros e os cortes de cabelo. Aparentemente, nada resistiu ao tempo. Mas basta lançar um olhar mais atento à foto para notar a única brava resistência: Alair Arengue, hoje com 66 anos, e seu carrinho de algodão-doce permanecem na mesma calçada do colégio, a exatamente sete passos da entrada.

Vestindo uma camisa branca, com três botões refrescando o calor infernal - o mesmo calor dos tempos d'outrora -, o ambulante escapa do sol debaixo do boné branco e vermelho. Há 53 anos, Alair oferece raspadinhas, algodão-doce e chicletes nesse ponto da Mauá, em frente ao Santo Inácio. "Durante 32 anos, eu ficava aqui pela manhã e, à tarde, fazia o Marista. Hoje tô velho. Só fico aqui", diz, sossegadão, encostado em seu carrinho adocicado.

De raspadinha em raspadinha, Alair foi esquentando a poupança. Comprou casa própria, há 35 anos, na Vila Operária e, desde que adquiriu um Fusca em 1973, nunca mais abriu mão de um carro próprio. Hoje, aliás, ele tem dois: um Corsa 1996 e uma Safira 2008.

Testemunha ocular dos sentimentos maringaenses, presenciou o amor tomar forma, à sua volta, com os 79.873 casais de adolescentes que, cheios de paixão, engataram namoros bebericando a mais doce das raspadinhas. Também viu o amor morrer, com os 79.871 casais de adolescentes que, tempos depois, empunhando a mais amarga das raspadinhas, terminaram seus relacionamentos. Ao lado do carrinho, Alair ouviu brigas de mães com seus filhos, brigas de pais com suas esposas e sustentou conversas com 76.324 crianças esquecidas pelos pais à frente do colégio, após o término das aulas. Culpa dos tantos atrasos paternos? Alguma reunião importante? Algum amado secreto? Alguma irrecusável amante?

Político, eu?!

Fonte ignorada por historiadores, conhece detalhes que ninguém mais recorda. "Bem aí onde tá a igreja tem um grande poço de água que atende tranquilamente toda a cidade. Os maringaenses, isso lá no passado, formavam filas pra pegar água nesse poço. Depois de um tempão, a igreja ficou com o terreno. E os padres fizeram questão de arrumar o tal poço. O tanto de água que os padres daí têm acesso, viu? É coisa de louco", diz, sentadão na banqueta na calçada, com a mesma tranquilidade de quem conversa no sofá da própria casa.

Embora o ponto de Alair seja fixo, os maringaenses podem encontrá-lo, de tempos em tempos, dentro de suas próprias residências. Incontáveis candidatos a prefeito já se apropriaram de seus sorrisos e acenos em propagandas na TV – muitos, inclusive, fizeram questão de serem filmados abraçando e conversando com o Tio da Raspadinha. "Acredita que até já me convidaram pra virar vereador?! Recusei na hora."

Orgulhoso da clientela, elenca os nomes que, em tenra idade, já se regalaram com sua raspadinha. "O Silvio Iwata. O Dr. Sala. O Darlei, do Bom Dia. O Hiran, do Santa Rita. O Turkinho, do Monte Líbano. Pena que, quando crescem, já não compram raspadinhas", lamenta. Até mesmo os maiores adversários políticos encontram, nas raspadinhas de Alair, algo em comum. "O Ulisses Maia foi meu cliente dos cinco aos nove anos. O Silvio Barros também vinha direto quando era garotinho. Os dois ainda lembram de mim." A receita para agradar a gregos e troianos? "Não faço ideia. O que sei é que minha raspadinha e meu algodão-doce são os mais tradicionais da cidade."

Circular por aí com dinheiro no bolso rendeu alguns momentos tensos. Em dois fins de tarde, Alair tomou voz de assalto. Dois sujeitos trintões, mal-encarados, sempre na Mauá. "Eram grandalhões desse tamanho, ó. Mas não contavam com isso", comenta Alair, tirando de um compartimento secreto, no teto do carrinho de doces, um assustador facão de açougueiro. "É pra cortar o gelo. E também pra me proteger. Fugiram tudo em desespero ali pra frente."

Encontro fatal

"Manhêêê, me dá?", pergunta um garotinho de cinco anos, que acaba de se aproximar, estendendo os dois braços na direção das raspadinhas.

A mãe hesita um instante.

"Meu filho nunca provou uma raspadinha."

"Nunca?!", surpreende-se Alair.

"Quanto custa?"

"Tem de R$ 3, R$ 4 e R$ 5: cê que manda."

"Vê a de R$ 5."

"Seu filho nunca mais vai ser o mesmo: depois que provar, quando me ver por aqui, vai ficar louco e chamar pelo Tio da Raspadinha", avisa, entregando a bebida colorida.

As duas mãozinhas agarram, firmes, o copo de plástico. O menino arregala os olhos, surpreso com o azedinho da menta harmonizando perfeitamente com o doce da groselha. Dito e feito: quando verá, novamente, o Tio da Raspadinha?

Perfil publicado no Diário (27/11/2016)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Bafio da fera, Dylan & Raquel no protesto de professores

A cidade está mais quente que nunca. Com véspera de segundo turno beirando os 40° C, maringaenses queimam o verbo em cada esquina, vociferando a favor de seu candidato preferido. Conversas politizadas, que começam cordiais e respeitosas nas mesas de bares e cafés, costumam descambar, rapidinho, para o palavrório de baixos calões, xingamentos, chutes, pontapés, uma e outra ameaça. Até mesmo sujeitos absolutamente apolitizados passaram a desfilar longas arengas em defesa de seus ideais políticos nunca dantes revelados. E, sem um único sopro de vento geladinho, alunos engajados decidem paralisar escolas públicas, reivindicando uma série de melhorias. Unidos e organizados, professores também se lançam em protestos, combinando para bater pernas por seus direitos numa quarta-feira ensolarada. "O ser humano", já adiantava Aristóteles, "é um animal político".

O calor banha a regata do gorducho, esgota os palavrões da velha e enriquece vendedor de picolé, mas não cancela a passeata dos professores. Às duas em ponto - ai, essas professoras que nunca se atrasam! -, o batalhão de senhoras, rapazotes, moçoilas e tiozões divide-se na Avenida Carneiro Leão, em frente ao Núcleo de Educação. Num caminhão de micareta - felizmente, sem os 357 percussionistas -, duas vozes esgoelam palavras de ordem. Entre uma fala e outra, Raul Seixas canta "Tente Outra Vez". Quem chegou antes cuida do precioso lugarzinho, debaixo da marquise, na cadeirinha de praia, a salvo do sol cancerígeno. Três mil manifestantes, dirão, mais tarde, organizadores? Mil professores, calculará a Polícia? Trezentos e poucos sujeitos à sua frente? Impossível chegar a um número redondo. Passeata, assim como a literatura, não é uma arte exata.

"Não importa que esteja quente", avisa uma querida professorinha cinquentona, aplaudida pelas três colegas em volta.

"Se chovesse pedra, se desse trovão..."

"É uma santa provação!"

"...nem assim eu ficava em casa."

"É como a música, tá ouvindo? Não pode desistir fácil das coisas. Tente sempre, tente outra vez."

"Viu só? Até dá mais força, sabe?", comenta a professorinha, que pede mil vezes para não ter o nome revelado.

Todas de roupas confortáveis, guarda-sóis coloridos, tênis ideais para essa longa estrada da vida. Gentis, falam sobre o desafio de ser professor. Da necessidade de um ensino de alta qualidade. Revoltam-se contra os alunos respondões. Como ensinar sobre organelas citoplasmáticas, modelo do mosaico fluido, proteína alfa-hélice, com moleques vendo nudes? Com moçoilas mandando nudes? Em tom saudosista, relembram as noites de graduação, os amores soterrados pelo tempo, a velha canção que sumiu do rádio, e mais não é possível. Em cima do caminhão, vozes estimulam a caminhada. Senhoras levantam das cadeirinhas de praia, correm para guardá-las no carro e invadem o meio da rua.

"Olha o sonho! Olha o sonho!", oferece a ambulante Marily Barbosa, 41. Diante do batalhão de professores visionários, não é o melhor negócio?

Senhoras se aglomeram em busca do docinho mais que perfeito. "Eu mesma faço e a Benê me ajuda a vendê", comenta, realizando o sonho dos professores por apenas R$ 3.

Sair da Carneiro Leão, entrando na Joubert de Carvalho, é adentrar um novo mundo. Maringá Botões. Sajama Tecidos e Malhas. Mercadinho do Retalho. Sanvest Máquinas. Marinex. Seu Tecido Sua Moda. Marisol Tecidos. Quantos mais? Na rua que presta homenagem ao compositor, o comércio é dominado por rolos de tecidos coloridos e máquinas de costura. Nas empresas, clientes e vendedores esquecem das compras. Tentam identificar, na multidão, algum rosto conhecido. Dentro de um hotel, alguém ouve bem alto "Borbulhas de Amor". Na portela da entrada, uma moça gorducha e de cor vende amor eterno por quinze minutos. Trinta e poucos anos? Melhor chutar quarenta. Nos grandes lábios rosados, promessas de êxtases e delírios – qual louca epopeia você não viveria neste hotel? "Para em teu límpido aquário mergulhar", grita Fagner num dos quartos. Chinelinho macilento. Shortinho minúsculo verde-berrante. Celular pendurado na cinturona. Pés escamosos. Unhas vermelhonas. Blusinha verde-estridente escrita "Beautiful". Barrigona decorada de fartas veias. Profundas celulites. Teias de estrias. Duas tatuagens ilegíveis – num quarto escuro, como ler?

"Fazer silhuetas de amor à luz da luuua, saciar essa loucuuura", esgoela-se o grande Fagner.

"É da polícia, é? Greve da polícia, né?", pergunta a moça, desconfiada, soprando calientes cortinas de fumaça no teu rosto.

Do bafio da fera emanam as mil e uma fragrâncias do Rio Bostinha.

Já pensou?

"Uma noite para unir-nos até o fiiim"?

"Cara a caraaa, beijo a beijooo"?

"E viveeer para sempreee dentro de tiii"?

Ai, não. Melhor não imaginar nada.

Os grevistas já cruzando a Joubert de Carvalho com a Duque de Caxias. Aqui, nada de tecidos nem máquinas de costuras. Euvany Presentes. JV Presentes. Gnomos Presentes. Eis a Chinatown maringaense. Nas minúsculas lojinhas, o punhado de guarda-chuva, relógio, chapéu, carregador de celular, mochila esverdeada, boneca de olhão esbugalhado. Será tudo falsificado? Sem clientes - culpa da crise?, do preço?, qualidade do atendimento?, do sol sacana? -, lojistas correm à porta. Alguns sacam celulares e enquadram professores em ângulos alternativos. "Acontece alguma coisa diferente, já sai todo mundo correndo. Acidente de carro, então?! Tem que ser rápido: todo mundo querendo bater a foto primeiro e tirar a mais bonita", orgulha-se a vendedora Maria de Fátima, 40.

Três ou quatro quarteirões, e pronto. Tuas panturtilhas começam a protestar. Como essas senhoras protestantes resistem ao esforço físico? Alimentam-se da força e do sangue dos jovens alunos? Rejuvenescidas, sim, muito mais dispostas do que você. O coração dispara rapidinho, fatigado e farto – será o fatal enfarto?

Por sorte, nada de mais. Ensopado em suor, você é só lamentos. Onde as carrancas lançando nas praças a água fresquíssima? Onde a Fontana di Trevi para você banhar pulso, rosto, coração? O diabo arrota lufadas de ar quentíssimo a cada segundo. Impossível, na passeata, não maldizer mil santos.

Um professor trintão, magrelo e de cabelos desgrenhados, corre para alcançar os protestantes. Fosse narigudo e judeu, não seria a reencarnação de Bob Dylan? Uma pena, ninguém cantar Bob Dylan nesta cidadela infeliz. Por que o maringaense não entoa Bob Dylan? Por que não existem covers de Bob Dylan? A única brisa geladinha te arrepia a nuca. A resposta, meu amigo, vem soprada ao vento.

"Claro que canto!", comenta Raquel Costa, com o timbre mais arrebatador que há. "Quer ouvir?", oferece. Só ela, empunhando um violão, seria digna de homenagear Bob Dylan. Vinte e poucos anos? Prefere Dylan em folk, rock, blues? Correndo para protestar? Essas e outras respostas, você nunca saberá. Improvisado à capella, o canto de Raquel Costa domina as ruas maringaenses, diminuindo ainda mais Joubert de Carvalho, invadindo os quartos no hotel, colecionando acenos de trinta e sete motoqueiros, sendo aplaudido, em pé, por balconistas e gerentes das lojas de tecidos e presentes paraguaios. O protesto segue, organizado, enchendo a cidade de canções.

Publicado em O Diário (23/10/2016)

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Famosos & desconhecidos nos corredores da 3ª Flim

Toda pessoa esconde um punhado de enredos. Há pessoas que trazem, dentro de si, romances inteiros compostos por seiscentas e poucas páginas, repletos de personagens malditos e bondosos zanzando por diversos cantos do mundo, de São Petersburgo a Manaus, de Marialva a Madagascar, em enredos dostoievskianos de crimes e castigos, humilhados e ofendidos, noites brancas, jogadores, idiotas e eternos maridos.

Há outras pessoas
que trazem
lirismo na alma
e quando abrem
o verbo
as frases parecem
versos
roubados
de
Manoel
de
Barros.

Há pessoas com relatos concisos que cabem em mínimas linhas - gente em forma de conto recorre sempre ao silêncio.

Há outras pessoas que são, essencialmente, uma novela, e nelas os microcosmos nunca se estendem demais, nem são excessivamente breves, compondo um gênero de almas que são um meio-termo literário.

Na 3ª edição da Festa Literária Internacional de Maringá (Flim), as histórias não estão apenas nas obras expostas nos estandes: cada alma, aqui, é um universo literário a ser explorado. Basta observar e ouvir. Quer ver?

"A coisa tá tão difícil que até roubaram uma casa na Morangueira, cê viu?"

"E aquela morte do galã da Globo?! Jesus amado! Logo afogado!"

"A casa inteira foi roubada: porta, janela, parede, casinha de cachorro, teto, só deixaram lá o terreno baldio porque não dava pra levar."

"Ler é até mais prazeroso do queee... ai, amiga, cê sabe bem do que eu tô falando."

"Minha vida tá horrível. Inda bem que tem Tom Zé no sábado. Maior gênio não há. Tomara que ele toque a serra elétrica e folha de fícus!"

"Caco quem?! Que nada! Me recuso a ver TV. Rede Vida, Record, SBT?! Eu, hein! Vim mesmo pela Ana Maria Machado."

"Tomara que cante 'Augusta, Angélica e Consolação': pô, eu também amo o Tom Zé."

"E o Juarez, que era milionário e agora tá pobre?! Essa Maringá é uma loucura mesmo!"

"Olha ele ali, ó, pega a máquina, Fernandaaa, pega a máááquina, mulheeer! Minha Nossa Senhóóóra, o Caco Barcellos é... do meu tamanho?!"

O famoso jornalista da TV Globo cruza a multidão de leitores, escoltado por seguranças, e, em meio a pedidos de selfies, pedidos de autógrafo, pedidos de emprego, pedidos de conselhos profissionais, pedidos amorosos, consegue, enfim, chegar são e salvo, às sete e meia da noite, ao palco do auditório Flim. No caos que Caco causou, ouço ele dizer em alto e bom som, coberto de razão:

"Cada pessoa carrega uma boa história. Todo dia é dia de ir atrás das histórias que estão acontecendo".

Caçando verbos

Caneca do Mondrian. Tiozões comprando livros. Tapete do Shakespeare. Kanga do Kafka. Tapete da Clarice Lispector. Patê de berinjela. Patê de tomate seco. Escultura de algum objeto não identificado. Senhoras comprando livros. Geleia de mexerica. Gibi do Batman. Pôster do Homem-Aranha. "Chega de Saudade", do Ruy Castro. Dois volumes da autobiografia do Fernando Henrique Cardoso. Pencas de livros redigidos por jovens celebridades do YouTube. Dois garotos comprando contos. Caça-Palavras nível fácil. Caça-Palavras nível difícil. Toda sorridente, pôster de Maria. Todo sorridente, pôster de Jesus. Todo sorridente, pôster do Lucas Lucco – epa, até aqui?! Cantores sertânicos não te dão descanso nem na Flim.

"O pôster do Luan Santana já acabou: esgota sempre rapidinho. Nas capitais, o Justin Bieber é nosso carro-chefe. No interior, só dá Luan: a meninada adora ele", comemora, feliz da vida, o vendedor.

Gente fina, ele parece ter cara de novela e topa interromper as palavras-cruzadas, debruçado ao balcão, para uma breve conversa.

"Segunda vez que participo dessas feiras literárias. A empresa em que trabalho é grande, tá sempre na Bienal de São Paulo."

"Entre uma e outra venda, a descoberta da palavra certeira?"

"Rapaz, isso faz um bem pra mente que nem te conto. Descubro uma nova palavra a cada minuto que passa."

"E quanto tempo leva para esquecê-la?"

"Esqueço logo em seguida! É difícil, viu, guardar tanta palavra de uma vez."

"Algum conselho para iniciantes de palavras-cruzadas?"

"Vários. Para fazer bem essa arte, você tem que ter algumas coisas básicas: 1) Paciência; 2) Trabalhar a memória; 3) Concentração máxima; 4) Paz interior."

Chego a segurar uma edição baratinha, em dúvida se levo ou não. Deixo para lá. Não tenho nenhum requisito básico para caçar palavras – elas mesmas é que me caçam.

Mulher de mil livros

Romance do Mia Couto. Romance do Faulkner. O consumo não é ruim: ruim, sim, é o consumismo – versão desenfreada de compras alucinadas. Às cinco da tarde, uma jovem de dezoito anos, ao lado de uma pilha de livros, te aborda com o sorrisinho mais generoso.

"Conhece esse livro?", questiona.

Capa preta. Desenho de mulher. O nome não te lembra nada.

"Conhece essa autora?", insiste, apontando o nome Jessica Sanz.

Jéssica. Não venceu Jabuti. Nem Prêmio Portugal Telecom. Não foi publicada pela Patuá. Jéssica, Jéssica. Não está na Record, na Cosac Naify, na Companhia das Letras. Jéssica.... Não foi tema de resenha. Não virou matéria. Não saiu em nota. Jéssica Sanz: você força cada centímetro da memória à caça do nome, mas nada não recorda.

"Sou eu mesma, muito prazer: sou romancista", apresenta-se a moçoila, estendendo a mão.

Gentil, a jovem fala de seu livro com detalhes empolgantes – você, de volta para casa, entretendo familiares depois da longa viagem. Enredo que mistura elementos da fantasia. Amigos virtuais que conheceu num jogo chatíssimo pela internet e inspiraram personagens. Final sempre feliz, com casais unidos até que a morte os separe – as ilusões da juventude são sempre maviosas.

Vinda de Campos dos Goytacazes (RJ), Jéssica Sanz participa da segunda feira literária de sua vida. A primeira, há alguns meses, em sua cidade natal, foi um sucesso estrondoso. "Vendi todos os cem exemplares do meu livro", comenta. Na segunda edição, custeada pelo pai-mecenas, resolveu aumentar vertiginosamente a tiragem: "Imprimimos mil livros", detalha.

Mil edições, ela diz, custaram a bagatela de R$ 7 mil. Com essa grana, você não passaria uns dias em Paris, jantando no Le Procope e bebericando na Brasserie Lipp?! Mesmo em tempos de crise, com investimentos de alto risco na maldita instabilidade econômica, a jovem está confiante no negócio verbal. "Se eu vender todos os mil livros, meu lucro chega, em média, a R$ 30 mil". Com essa grana, quantos dias você não passaria em Paris?

Mundão marginal

Esbarro em outros desconhecidos autores. Simpáticos sujeitos com jeito de contos, eles me oferecem espumante em tacinhas de plástico e tentam me vender seus versos - alguns, melhor evitar. Noutro canto, quarenta e nove velhos aspirantes a Emiliano Perneta declamam poeminhas parnasianos sobre tua chatíssima igreja-cone. Basta ouvir uma única estrofe para ter noção de sua obra completa - não permita, Deus, que terminemos assim.

Moçoilas vestidas de bruxinhas e Branca de Neve fisgam fascinações de dez meninos e meninas, em meio a contações de histórias - daqui a alguns anos, desse grupo pequenino não sairá um grande escritor?

Para onde quer que você olhe nos corredores da Flim, a literatura está presente. Forçando a vista, é possível encontrar até detalhes marginais, como no caso da estudante Heloísa Gomes. Aos dezesseis anos, ela entra na sala de aula e vai logo escondendo um livro debaixo da mesa. Nas aulas de Geografia, História, Matemática, Literatura e Física, ela não resiste à tentação. E na subversão mais poética que há, esperta para jamais ser flagrada por professoras carrancudas, recorre aos clássicos de Jane Austen. "Ela é maravilhosa. Já li três romances e me identifico muito", comenta. As amigas, ela reclama, infelizmente não têm o mesmo hábito. "Mais chegadas em série de TV, joguinho de celular, bobeira de Facebook."

Conselhos premiados

Com atrações gringas, nacionais e novos autores, a Flim sobrou até para mim. Incumbido de fazer uma mediação, preparei algumas perguntinhas ao grande José Eduardo Agualusa. O premiado escritor angolano, autor dos romances "O Vendedor de Passados" e "Teoria Geral do Esquecimento", chega em cima da hora, precisamente às 19h30. Alunos de Letras, famigerados professores da UEM e leitores em geral compõem a plateia. Agualusa tinha 27 anos quando escreveu sua primeira obra, o romance histórico "A Conjura". Uma estratégia um tanto incomum para quem está iniciando a trajetória literária. Pergunto a ele sobre essas primeiras linhas incomuns, arriscadas, e, com um sorriso irônico, o grande Agualusa dispara a resposta: "Para escrever, é preciso ser um pouco irresponsável".

Bem-humorado, fala sobre: 1) o processo de escrita de suas obras ("escrevo para saber como a história vai terminar"); 2) revela a importância do sono ("chego a sonhar diálogos inteiros, com personagens e cenários"); 3) indica o caminho da bonança ("escrever não vai te fazer milionário; para ficar rico, basta entrar para a política"); 4) lembra a influência das grandes linhas ("o bom livro é aquele que te dá vontade de escrever"); 5) comenta a afinação das lagartixas ("infelizmente, as lagartixas nunca cantaram para mim, só sorriram"); 6) entre outras delicadezas poéticas. Da plateia surgem leitores angolanos e moçambicanos, todos felizes da vida em encontrar o nobre escritor africano.

Fama & glória

Ao descer do palco, Agualusa é abordado por leitores. Isso é comum nesse tipo de evento. As atrações principais atendem o público, enquanto os mediadores seguem para casa ou para o bar. Os leitores pedem fotos, autógrafos, beijos e abraços. Deve ser bom ser querido pelos leitores, imagino, também descendo do palco. Com pés no chão, já disposto a correr rumo às mesas do Divina Dose, sou abordado por um sujeito quarentão.

"Você, então, é o Gaioto?"

Sujeito de boina, alguns papéis na mão, olhar vidrado de artista.

"Gosto bastante dos seus textos. Leio todo domingo."

Quem diria?! Agradeço o elogio. Maior felicidade não há que encontrar um leitor - esse, por sua vez, é exigente.

"Acho que você deveria fazer uma crônica sobre minha vida. Fui artista de rua na Europa, imitando Chaplin e ganhando 100 euros por dia! Lá fora, sim, o artista é valorizado. Não aqui, onde tratam a gente feito bicho, marginal, mendigo."

Há pessoas que carregam longas epopeias.

"A gente poderia sentar num bar, tipo que nem aquele texto com o Demarchi, e falar sobre mim e sobre a morte, ando pesquisando muito sobre o tema. Sou judeu, amigo da família Leminski, minha vida dá uma crônica! Você, por acaso, tem um cigarro?"

"Sinto muito, não fumo."

Baixando o tom, olhando para os lados.

"E uma ervinha, tem?"

"Puxa vida, não sou chegado."

"Que tipo de intelectual é você?"

"Nenhum! Cronista frustrado, poeta medíocre, músico manco, maestro incapaz de ler partituras: esse c ara sou eu."

Arranco um sorriso do leitor e já sou abordado por um senhor com o mesmo chapeuzinho lusitano de meu avô. Setenta e poucos anos?

"Sou amigo do Rui, lá do Diário, e te leio todo domingo. To-do do-min-go! Não acredita, é?! Um dia, pedi que o Rui falasse pra você do quanto eu gosto dos seus textos, ele não falou? Vim na Flim só pra te ver."

Inacreditável. Eis a tão esperada glória?! Pergunto nome, idade, vou agradecendo os tantos elogios, embora eu não mereça nenhum deles.

"Só não gosto quando você fala de... Deus", comenta, com risadinha sacana e me dando um tapinha nas costas.

Que senhor bacana. Por essa, nunca esperava.

"Venho lendo suas crônicas todo domingo", revela uma senhora chamada Luzia, "não perdi a oportunidade de vir te ver."

Pô, melhor que Prêmio Jabuti, Portugal Telecom, Nobel de Literatura.

"Já fui em outros eventos literários em que você estava. Gosto dessas apimentadas que você dá na conversa", diz a doce senhora.

Ainda estupefato, vou cumprimentando outros leitores. Todos muito gentis, cordiais, bem-humorados: se, com estas crônicas dominicais, você consegue carregar leitores para um encontro com Agualusa - este, sim, um escritor de verdade - então tua missão está cumprida.

Publicado no Diário (18/9/2016)

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Na busca de um bom boteco, em busca de Maringá perdida

Ademir Demarchi está confortavelmente sentado numa das mesas do Divina Dose. Quase não o reconheço: protegido pelo frio, refugiado sob uma dessas toquinhas bolivianas, preparadas em lã azulíssima. Observo-o de longe, concentrado em anotações: quieto, escutando anonimamente as histórias dos clientes em volta, rabiscando frases e expressões numa caderneta. Cuidado, você, ao confessar teus segredos no bar: escritores podem surrupiar todos teus detalhes. Encho o copo de Serra Malte geladíssima e já vamos engatando assunto. Milan Kundera & Mia Couto. Geraldo Vandré & Woody Allen. Michel Houellebecq & Paolo Sorrentino – essas duplas, sim, você encara sem medo. "Vir pra cá me deixa um tanto melancólico", desabafa o grande poeta e cronista do Diário, em passagem pela cidade para visitar alguns familiares.

Eu também ficaria extremamente melancólico, se estivesse na pele do Demarchi. Não deve ser fácil abandonar, ainda que por uns dias, a luxuosa cobertura em Santos, com vista de frente para o mar, e regressar às remotas ruas do passado. Para alguns autores, a cidade - ou seu distanciamento dela - é extremamente importante. Impossível ler Kafka sem refletir sobre sua relação conturbada com Praga. Ninguém fica imune a São Luís versada no "Poema Sujo", do Ferreira Gullar, nem a Combray mitificada por Proust. Em busca da Maringá perdida, pergunto ao cronista sobre suas memórias, caçando resquícios de 1975 a 1985, período em que Demarchi viveu por aqui.

"Infelizmente, algumas coisas não resistiram ao tempo. Sinto falta de uma portinha, perto da banca do Massao, que vendia uma porpeta frita muito saborosa, feita lá mesmo. Sinto falta do Cine Maringá, Cine Plaza, Cine Horizonte, Cine Pedutti. Da Biblioteca Pública. Do antigo calçadão rústico da praça da Prefeitura, que foi azulejado por um arquiteto desses aí que azulejam paisagem", lembra, saudosista, encarando o copo à frente, criando casas, casebres, casarões, ruas, avenidas e uma imensa Catedral a partir da espuma da cerveja, que ele faz questão de entornar, sedento, num só gole.

Sempre atencioso, Seu Valter pousa outra Serra Malte e vamos molhando o verbo na mesa 33. Comento com Demarchi meu sonho recente: eu estava morto, todo de branco, e bebia com vários amigos (ele, inclusive) naquele boteco. Se há um único paraíso em Maringá, esse lugar é o Divina Dose.

Crítico severo de bares, Demarchi concorda. "Não me lembro de bares que me marcaram na minha Maringá de antigamente. Havia uns pontos de encontro, os bares na Zona 7, insossos, e a Cantina da UEM até o fim das aulas. Na juventude, a diversão era improvisada nas festinhas de bairro: uma lona no quintal, muita música de toca-discos embaixo e rock alternado com música melosa pra se grudar com as moças. Bebida barata, vida simples", comenta, com um sorriso sacana.

"Como eram as belas maringaenses da sua época? Existiam tantas loiras quanto nos dias de hoje?", vou sondando.

"Não é tão diferente de hoje, está aí você casadão em plena juventude se metendo à besta. Eram todas casadoiras, aliás, como todas as mulheres, românticas incuráveis nessa Maringá, a sentimental. Muitas, muitas caipiras. Me apaixonei umas vezes por minhas fantasias, tive uma primeira namorada vestida de pétalas de rosas e me evadi em busca do Santo Graal que ressoava na distante voz de uma sereia."

"O amor é lindo", digo, tirando uma gargalhada do poeta, que acaba de publicar um livro com esse mesmo título irônico.

"No dia em que impichmaram a Dilma, acho-a uma chata, mas sua cassação foi uma encenação feita por bandidos, pois bem, o que dizer quando nesse dia marcante para a história do País abri um jornal e li duas manchetes: 'Homem ateia fogo em carro onde ex estava com namorado em Piracicaba' e 'Separação de William Bonner e Fátima Bernardes causa comoção na internet'. A notícia mais importante era a liquidação da empresa Bonner & Bernardes Ltda. O amor é lindo", sacaneia o poeta, esvaziando mais uma Serra Malte.

A Maringá de hoje tem Festa Literária Internacional. Tem festival em que músicos de outros Estados executam Shostakovich, Brahms, Chopin. Tem exibições de filmes alternativos. Tem festival de jazz com big bands. Tudo isso com entrada grátis.

"Minha Maringá não teve nada disso. Minha época exigia atitude, fazer jornais, fazer teatro e criamos um cineclube, que reunia meia dúzia, pois os cinemas não davam o que queríamos de cinema europeu, japonês, russo, italiano, onde pulsava a vida longe do cinema norte-americano."

"Difícil acesso a livros, filmes, discos... Como você sobreviveu àquela infernal Maringá?"

"O jeito era viajar atrás da cultura. Fiz muitas viagens, fui parar até num encontro de cineclubes numa cidade italiana perto de Vitória, no Espírito Santo, dias de viagem de ônibus, onde me embriaguei com vinho de jabuticaba, assistindo um gay interpretar ao piano e cantando Lisa Minelli e seu 'Life is a Cabaret'..."

"!?"

"...não me interessei pelo ator-poeta e seus olhares melífluos e conheci uma húngara que me introduziu nos mistérios gozozos diluindo refinadamente a embriaguez do vinho de jabuticaba feito pelos monges daquele monastério em que estávamos hospedados e que depois me acompanhou até São Paulo, onde nos hospedamos em um hotelzinho perto do Teatro Municipal, passeamos pelo Anhangabaú e aprendi a amar a cultura húngara e suas proximidades a um ponto em que tenho praticamente todos os autores publicados no Brasil, a começar por um 'Tradutor Cleptomaníaco' e acabar com 'Antologia da Literatura Ucraniana', de Wira Selanski, uma raridade que teve adaptação poética sabe de quem?"

"?"

"Nossa Helena Kolody."

"!"

"Como você pode ver, Maringá, essa sentimental, me fez ir longe para estar sempre de volta."

Demarchi pede umas cachaças para rebatermos a cerveja geladíssima. Dona Ione, sempre gentil, ajeita os copinhos translúcidos de onde emanam os doces perfumes dos porres homéricos.

"A frase do Dickens 'aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos' se encaixa bem na sua Maringá?"

"Perfeitamente. O lugar da juventude é esse, o melhor e o pior ao mesmo tempo. Se se consegue um blend perfeito disso, tira-se um ótimo vinho para a velhice", aconselha.

Nosso diálogo é degolado por um jovem moreno. Um metro e sessenta, bicicleta estropiada, celular hipermoderno, empilhando três metros de tapetes coloridos.

"Vamo comprá tapete hoje?", oferece, gentilmente, Johnny Tapete.

Culpa da crise, recusamos os adornos de chão – na tua casa, os dezoito tapetes vendidos noutras noites pelo mesmo Johnny Tapete, quando você estava ligeiramente alcoolizado, já não lotam teus armários? Figura folclórica da noite maringaense, ele insiste.

"Não é um tapete comum: é um tapete voador", garante, erguendo na altura do rosto uma das opções de tapetes e deixando cair, de uma vez, rumo ao chão.

Propaganda é mesmo a alma do negócio: mais três tapetes, de Johnny Tapete, para tua vasta coleção.

"Tua Maringá é muito melhor que a minha. Como pude viver, nesses 56 anos, sem conhecer Johnny Tapete?", questiona-se Demarchi.

Seu Valter traz nova rodada de cachaça e outra Serra Malte com a noitada avançando é ali que eu pergunto sobre a meretriz septuagenária Tia Maria "sou virgem disso" & a famigerada Mansão de Pedra "um mito para mim" e como foi mesmo aquele dia em que ele assistiu Lula discursar na carroceria de um caminhão em frente à Igreja São José eu estava na organização mas não me lembro das conversas que tenha tido e das relações de Kurosawa & Trotski ou de como Beckett & Peppino di Capri se encontram e se afastam não sei os motivos agora que nos levaram até o Gógol talvez sejam as descrições do "Almas Mortas" mas não posso afirmar com veemência daí Demarchi tira o celular do bolso aponto para ele rindo da touca chilena quer dizer boliviana tá muito estranho mesmo cara e dou risada quando ele lê um trecho bom à beça do começo de um conto? romance? nunca ouvi falar desse escritor caramba me envie amanhã porque eu com certeza claro que mando pode deixar vou esquecer sem falar na ressaca esse escritor é ótimo o amor Gaioto é um dos maiores FÓUM FÓUM males contemporâneos eficientemente incorporado FÓUM FÓUM como um dos mais profícuos meios de alimentação do capitalismo FÓUM FÓUM FÓUM FÓUM um caminhão de bombeiro cruza a frente do Divina Dose com luzes faiscantes será incêndio em prédio? na minha casa? gato no alto da árvore? criança engasgada com comida? e bebericamos a terceira rodada de cachaça a sociedade das formas econômicas que moldam os afetos e os transformam em objeto o casamento é uma encenação caríssima feita pra alegrar mulher e damos risada e brindamos porque é um teatro ele diz erguendo o copo é uma grande produção é uma relação de contrato empresarial e Seu Valter atende meu pedido trazendo conta e saideira quando pagamos no crédito com Demarchi declamando um dos seus novos poemas "O Amor"

ar aprisionado num vidro
com tampa de pedra
em forma de pássaro

Publicada em 4/8/2016

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Tome muito cuidado ao contemplar o pôr do sol

Os dramas urbanos dão vida às cidades. Enchem as esquinas de dúvidas, refletem o passado no ponto de ônibus, planejam crimes e pecados enquanto desviam de motoqueiros imprudentes, disparando rajadas de palavrões. Nos semblantes desarmônicos, um pouco de tudo. Repare em cada pedestre. Ciúmes. Preguiça. Inveja. Desejo. Tédio. Gula. Paixão. Rancor. Frustração. Medo. Orgulho. Preconceito. Ódio. Desespero. Pânico. As calçadas são um safári sentimental. Você, quando caminha, também ouve os sussurros das ruas? Confissões, desabafos e alguns detalhes revelam, aos poucos, os enredos das tuas cidades.

"Mãezinha, a genti não pódi complá: a gente não tem dinhêlu."
"A vizinha até ligou pro síndico. Toda semana, me inferniza. Ela é sabe o quê? Uma mal..."
"Comida. Não aguento mais lanche: hoje, quero feijoada completa."
"...caráter. Que culpa eu tenho se a vizinha do andar de cima fica andando de salto?!"
"Um beijão pra senhora, Dona Olga, e um abração pro Seu Sato!"
FÓÓÓÓÓÓÓÓM – a buzinada de um caminhão esmaga a fala alheia."
"Só se fala nisso, amiga: no casamento da socialite Camila Costa, em outubro. Sonho da minha vida é participar da alta sociedade maringaense."
"Reboco, ó: igual tua casa, tá vendo?!"
"Praia?! Cê tá louca. Com que dinheiro, amor?!"
"O plano de saúde tá impossível. Tô tentando operar a mãe no plano de alguém."
"Olha só. Que bonito. Todo mundo trabalhando!"
"Vô é terminá com aquela safada. Sei que saiu ontem com o Claudinho, acredita?! O Claudinho!"

Em cinco minutos, você testemunha amores e ódios de atores anônimos no trecho interditado da BR-376. O palco é a passarela recém-construída em Sarandi, num dos principais acessos à cidade, ligando a Avenida Antonio Volpato à Ademar Bornia. No processo de construção de dois viadutos, o trânsito foi desviado pelas marginais da rodovia. Diariamente, cerca de 30 mil veículos cruzam esse trecho sarandiense, entre buzinadas e xingamentos, num louvável exercício de paciência. A caminho de casa, pedestres exaustos fazem uma pausa. Dezenas deles. Rostos calados, ardidos, sofridos e suados – não são os mesmos rostos da "Manifestação", do grande Antonio Berni? Debruçados sobre a passarela, mergulham fundo na solidão e refletem segredos em silêncio - cogitam, eles, desistir da existência?

"Nunca! Tava aqui pensando no futuro", explica o ambulante Moacir Souza, 28, assistindo as três dezenas de operários, lá embaixo, manchando botas, calças e camisetas com respingos de cimento e cal. Antes de vender água (R$ 2), suco (R$ 2) e refrigerantes (R$ 2,50) em cima de uma bicicleta, aproveitando o trânsito da BR-376, Moacir passava manhãs e tardes construindo residências alheias. "Ganhava diária de R$ 80. Chapando parede, fazendo requadro: a coisa mais difícil que tem. Fiz casas e até um prédio em Maringá, na Vila Operária. Hoje, no trânsito, chego a ganhar R$ 70. Mas quero fazer um curso técnico e arranjar trabalho decente. A rua é incerta: num dia dá grana, no outro não dá nada. Há um ano, saí de Dourados, no Mato Grosso do Sul, com mulher e filho porque lá não tinha emprego. Mas, aqui, a situação também tá difícil. Se não melhorar, o jeito é voltar pra Dourados e morar junto com a minha mãe", comenta, escavando a memória, enquanto máquinas cavocam a terra vermelha.

A rua é incerta. O trabalho é incerto. A vida é incerta. Única coisa só é certa: ao lado do Moacir, outros rostos calados dão seus saltos introspectivos e parecem encontrar, ali, melhores soluções às tantas divagações. "Ver essa trabalheira faz bem pra cabeça da gente", garante um. "Ajuda a relaxar depois do trabalho", comenta outro. "É até bonito, não é, não?", avalia o terceiro.

Suor azedo. Terra seca. Pipoca doce. Perfume picante Jequiti. São vários, os aromas da passarela. Sete tiozões embasbacados não com as moças do Leblon, não com a maré de Copacabana, não com a vista privilegiada do Pão de Açúcar numa das mesas do Porcão, mas, sim, com a construção de Sarandi.

Churrasco de um homem só

Do outro lado da passarela, sinto de longe o cheiro de espetinhos. Na calçada, ao ar livre. Churrasco de um homem só. Onde os amigões? Onde a lambada e o rala coxa? Onde a música em alto e bom som? Quase seis da tarde, a fome bate forte e atravesso em direção aos acepipes na brasa. A dois passos do churrasco, sou tomado pelo fedor de porcos obesos e fezes amargas – um caminhão de suínos despeja aromas ácidos nas ruelas de Sarandi. Guiado, possivelmente, pelo porqueiro Eumeu, o caminhão levanta a poeira vermelha que ameaça teu chapéu e espirra cinzas e poeiras sobre os espetinhos de carne e frango, protegidos por uma tampa de metal. A fome - ela também incerta - passa rapidinho.

"A crise tirou 30% do meu movimento. A construção daí da frente, 40%", lamenta o empresário José Roberto, 55. Proprietário há três anos do restaurante Cabana, que abre diariamente para almoços, José teve que virar churrasqueiro para diminuir o prejuízo. Durante a semana, das 16h às 20h, ele oferece carne e frango aos motoristas, na calçada do restaurante.

"Vendo espetinho bem baratinho, a R$ 3. Mesmo assim, o povão não tem dinheiro pra comprar", lamenta o churrasqueiro da Cabana. Engraçado, esse nome. Cabana, Cabana... Não soa familiar? "Não era aqui, a única casa noturna de Sarandi?" "Exatamente: Cabana 40 Graus. Fechou faz tempão", esclarece o sujeito. A tal Cabana: reduto infernal de funkeiros, cantores sertânicos e outras pragas sonoras. "Não mataram alguém numa dessas noites de funk dentro da Cabana?", pergunto.

"Teve isso, sim. Realmente. Mas foi fora da casa noturna, que fique claro." Com a morte, a única casa noturna da cidade fechou as portas. Desde então, a noite em Sarandi não tem mais teto.

"O pessoal compra espetinho para apreciar a vista da passarela?"

"Nem tanto. Quem compra são os motoristas. Mas o pessoal passa o dia todo aí na passarela. Olhando o trabalho, passando o tempo. Incrível, né? Virou ponto turístico da cidade."

"O que buscam, os tantos turistas?"

"Parece que é bonito ver máquina cavocando. Dizem até que relaxa."

"Tipo pescaria?"

"Nem se compara! Pescar é muito relaxante. Eu mesmo pesco uma vez por ano no Pantanal. Os amigos vão junto. A gente pega Dourado, Piapara, Pintado, um pouco de tudo. E volta sempre mais jovem, com força pra trabalhar melhor."

Ruivinha hippie

Hordas de jovens, tiazonas, tiozões e velhos cruzam o novo ponto turístico. No meio da passarela, empunhando caneta e bloco de notas, você sinaliza com três braços à ruivinha hippie de fone nos ouvidos. Claro que ela não compreende o que você diz. Simpática, vai despindo os fones, e aceita a pausa para ouvir teu verbo.

"Todo dia venho notando esse pessoal parando, mas eu mesma nunca parei pra olhar o que tem lá pra baixo", comenta a ruivinha.
Camisa de deus indiano, pulseiras hippies, colar de filtro dos sonhos.
"A gente acaba não percebendo os detalhes. Das pessoas trabalhando. Das naturezas. Esse pôr do sol..." Setenta tons vermelhos misturados ao doce perfume da ruivinha.
"...não é lindo?!"
O mestre Monet não seria mais impactante. De um lado ou de outro, nada de prédios para atrapalhar a obra-prima. Quatro velhos embasbacados no Louvre logo seguem o rumo, deixando, para você e sua ruivinha, o bendito espaço na passarela.

"Ei, moço, só não olhe demais para o sol, tá?"
"?"
A última máquina vai resfolegando: fim do expediente dos operários.
"Dizem que o sol tem poderes mágicos: se você olhar demais, acaba ficando preso no lugar dele, e ele no seu."
"Não creio nessas crendices."
É doce, o místico riso de uma ruivinha.
"O que há de bom pra fazer em Sarandi?"
"Nada...."
Olhos melancólicos da mais profunda tristeza.
"...não tem arte..." "!"
"...não tem um bar de rock..."
"!!"
"...nem balada que toque música eletrônica...."
Não seria, esse, único lado positivo?
"...Sarandi é uma cidade maravilhosa, se você quer morrer de tédio", ela diz.
"Maringá é uma cidade maravilhosa, se você quer ser esfaqueada no meio da rua", devolvo.

Ela estende sorrisos, evitando encarar o sol – qual dos dois, mais vermelhinho? O vermelho do sol soa um tanto assustador. Há algo de infernal e sedutor no pôr do sol de Sarandi. Lembro as palavras da ruiva: tome cuidado com o sol. Encaro-o bem, quase sem medo: não parece enigmático nesse fim de tarde? Fixo os olhos sem piscar. Um tanto surpreso, vejo meu rosto na passarela, enxergo os detalhes daqui do alto: o chapéu preto, a camisa florida, o bloco de notas na mão. Faz calor demais aqui em cima. Nunca senti tanta febre nem cobicei tanta água. Lá embaixo, uma velha repreende o neto, que desiste de me olhar e protege a vista com as duas mãos. Quero correr, mas sinto o corpo pesado. Tento descer de uma vez, mas é impossível. A ruivinha hippie se despede e vai embora, caminhando em direção à Avenida Londrina. Lá embaixo, o corpo que me pertencia continua me encarando. Parece dizer algo, só que é impossível ouvir de tão longe. Será uma despedida? Tento gritar, mas, que diabos!, não há qualquer voz para gritar. Ele entra no carro e acelera feito louco. Espero que faça o que eu faria. Que siga para o jornal e escreva a crônica sobre o novo ponto turístico de Sarandi, a passarela que eu, agora, ilumino nos fins de tarde.

Publicado em O Diário (16/8/2016)

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Dona Idalina, papo com a Morte e quatro saltos fatais

Por que as pessoas desistem de viver? Única dúvida desperta diversas perguntas. Falta de dinheiro? Frustração amorosa? Insatisfação com o Grêmio Maringá? Desolação com a arte pós-Duchamp? Há dezenas de mistérios envolvendo suicidas, mas uma coisa é certa: na hora da morte, eles preferem a Avenida Carneiro Leão, mais especificamente dois prédios de lá. O Centro Empresarial Transamérica e Centro Comercial Europa. Ambos com 14 andares, separados um do outro por apenas 69 passos - o número mais sacana da vida! -, os prédios contabilizam quatro suicídios. "Se alguém se arremessa em um lugar, não há nada incomum. Mas se duas, três, quatro pessoas, de repente começam a procurar o mesmo canto... Bom, daí a coisa fica meio esquisita, né?", observa um empresário, prestes a entrar no Edifício Europa.

Lá dentro, um silêncio assustador emana das saletas de advogados, dentistas e escritórios de contabilidade. Pessoas se cruzam caladas e cabisbaixas, cada uma compenetrada nos próprios problemas existenciais - pensam elas, será, em desistir de vez? Desafiando os degraus quase infinitos, chego morto de cansaço num escritório do primeiro andar. A telefonista simpática me estende sorrisos e vai logo oferecendo ajuda. Pergunto sobre os tantos suicidas que se jogaram ali do prédio. "Pelo que eu sei, foram quatro suicídios. Dois aqui no Europa, com as pessoas caindo na calçada, e outros dois no Transamérica, no espaço interno do prédio", conta Mari Segatti, 49. "Parece que um rapaz pulou daqui porque tava endividado. A moça, desilusão amorosa. Tenho pena deles, viu? Eu mesma nunca pensei em me matar. Desde cedo, minha mãe, uma guerreira que admiro muito, me ensinou a encarar os problemas e seguir sempre em frente. Você não sabe o inferno que passamos. Minha única lembrança do meu pai é dele com foice na mão pra bater na minha mãe. Viemos fugidas de Paraíso do Norte. Mas, peraí, essas perguntas são para quê?" Ainda esbaforido e tonto da caminhada, nem disse nome nem expliquei nada. A revelação ofegante – ainda hoje morreremos de infarto? - causa assombro à telefonista.

"NÃO PODE SER! Minha nossa, minha mãe te ama. ELA TE AMA! Tem 72 anos e pega o jornal de domingo só pra te ler. E ela morre de dar risada! Você não imagina, Gaioto, o bem que faz pra minha mãe. Acredita que renovei a assinatura do jornal só por sua causa? Mas que coisa, hein! Ainda não tô acreditando. Você... bem aqui! A gente pode tirar uma foto? Quero mostrar pra ela que você não é um senhorzinho, mas um jovem."

Tiramos selfie sorridente. E rabisco carinhos num bilhetinho: "Dona Idalina, não perca o texto do próximo domingo. Você estará nele. Beijão, Gaioto."

No ápice da notoriedade - algo radicalmente diferente da fama, uma versão vulgar que ilude cantores sertânicos -, deixo o prédio e esbarro em mais semblantes tristes. Entre lojas de cosméticos, barbearias, colchões e empresas de crédito no Transamérica, trombo em dezenas de rostos exaustos – todos cogitando o fim de tudo? O silêncio, no hall do prédio, é ensurdecedor. O calor lá de fora, por incrível que pareça, aqui não chega. O ventinho gelado te arrepia a espinha – será o doce sussurro da morte?

"O pessoal, quando resolve se jogar, cai exatamente aqui", diz João Batista Nunes, 61, apontando para a frente dos elevadores. Há 18 anos ceifando cabelos alheios, Nunes acompanhou, de perto, os únicos dois saltos mortais. "É uma tristeza, viu? Ninguém sabe explicar a vida deles. Tanto prédio na cidade, logo esses daqui? Felizmente, pararam com isso. Pelo menos, por enquanto."

O quinto do pai

No terceiro andar, identifico um conhecido. Sessentão aposentado, ex-bancário, bochechas coradas.Volta e meia na companhia de moçoilas, sempre pondo a mão sobre o peito – ameaças do ataque fulminante?

"Veio se matar, Seu Dorival?"

"Não tô pensando mais nisso não, mas já pensei muito."

"Verdade?"

"Claro. Águas passadas, dureza total."

"Falta de dinheiro?"

"Que nada. Uma morena."

Chapéu marrom-claro na mão, ligeiro abanando o rosto – o amor deixa marcas que não dá para apagar.

"Deslumbrante, a morena?"

"E como! Coxão assim, ó. Peitão desse tamanho."

Cabeça doida, coração na mão, desejo pegando fogo...

"Ai, só de lembrar."

...esse Fagner sabe mesmo das coisas.

"A gente se conheceu num baile em Marialva. Daí em diante, não desgrudamos. Era pobrezinha e resolvi pagar a faculdade de Direito, aqui em Maringá. Ela bem sabia que eu era casado."

"!"

"Passei a bancar o apartamentinho dela. Nosso ninho de amor. Até que se enroscou com o professor, nove anos mais velho do que eu."

"!!"

"Você sabe... Hoje, o Viagra... Não que eu precise disso, graças a Deus!"

Doce gargalhada de galã, um e outro perdigoto saltando boca afora.

"Começamos a sair, nós dois, com a morena. Em dias diferentes, claro. Num sábado, ele se confundiu e foi bater no nosso ninho de amor. Levava buquê de rosa e vinho argentino, acredita? Ficou vermelho de raiva e, depois, me procurou. 'Quanto cê paga pra ela, hein?', ele perguntava. Fiz as contas: restaurante, aluguel do nosso ninho, aula de inglês e espanhol, parcela do carrinho, mensalidade da graduação: quatro mil e pouco. 'Pago o dobro pra ela. E você some, tá certo?' Respondi que sim, mas a morena continuou me procurando. Assim, por três anos. Até que nasceu o filho da morena. Um bebezão lindão. E a gente continuou saindo. Ela levando o filhinho junto nos nossos encontros no Egitu's, no Romanu's ..."

"!"

"...já se perguntou por que esses lugares têm essas fixações mesopotâmicas?"

"?!"

"Daí não suportei mais aquilo. Terminei. Há dois anos, a morena me procurou. Dizendo que o professor acusa o filho de ser meu."

"E é?"

"A prova está nas bochechas coradinhas!", comenta Dorival, orgulhoso da obra-prima.

"Hoje encaro numa boa. Mas pensei em me matar. De verdade. Eu, casado a vida toda, maior exemplo de dignidade... Fazendo filho em outra?! Minha família não ia suportar."

"Chegou a pensar no local?"

"Seria ou aqui ou no Europa. É o point dos suicidas", diz, alegrinho. "O que me salvou foi o trabalho. Também arranjei um hobby: natação. Rapidinho, esqueci os problemas. Já imaginou? Eu, agora, mortinho da Silva? Que bobagem. Hoje, se ela volta, nem me importo. Assumo a criança de vez. Já criei quatro filhos. Não me custa criar o quinto."

Diálogos fatais

No 14º andar do Transamérica, salas comerciais escancaram serviços num silêncio fúnebre. É aqui que a morte ronda, sedenta, à espera de novos saltos. No corredor vazio, tomo um baita susto com a visão: empunhando uma foice na mão direita e vestindo uma túnica negra, encobrindo toda a cabeça, encontro a Morte caminhando em minha direção.

"É você mesma?"

"Quem mais poderia ser?"

Vozinha dos diabos, aguda e estridente: a Morte tem os mesmos tons da cantora Joelma.

"Venho falando sobre você o dia todo."

"Ouvi o chamado. O que quer de mim?"

"Por que você costuma agir aqui, entre o Transamérica e o Europa?"

"É perto do Terminal Rodoviário, posso vir a pé ou de mototaxi. Além disso, há bons bares e restaurantes na região para depois do expediente."

"Como decide quem vai partir?"

"Não decido. Só cumpro meu trabalho. Presto serviço terceirizado, temos sindicato e tudo. Nosso sistema é organizadíssimo. Pego a alma aqui e despacho do outro lado da existência. Lá, outro colaborador decide se irá para o inferno, purgatório ou céu."

"Como é exatamente o outro lado da existência?"

"Quer que eu te mostre agora?"

"Acho melhor não."

"Certo. Ainda não é sua hora."

"Quando será?"

"Tá longe, pelo que ouvi dizer. Ainda tem muitos textos pela frente."

"Você, também, uma leitora fiel?"

"Vejo vez ou outra, mas, não me leve a mal, prefiro as crônicas do Demarchi e do Reginaldo."

"Muitas pessoas pedem pra morrer?"

"Toda hora. Me acionam e vou até o lugar. No começo, é tudo maravilhoso. Depois, a rotina vira uma chatice."

"Como assim?"

"Muita gente me chama e depois se arrepende no meio do caminho. Ficam de conversinha e já não querem se matar. Tô velha, sabe? Já não tenho aquela paciência do início da carreira. Dialogando, pacientemente, convencendo as pessoas. Pelo amor de Deus, hein, não vai colocar isso no teu texto!"

"Pode deixar."

"Há um bom tempo, já faço tudo maquinalmente: 'ô fulano, vai logo, se joga daí de uma vez, pô!'. Só faço uma exigência: não esqueça o bilhete, dobrado dentro da carteira, em letra legível. É mais fácil pra identificar o corpo."

"Essas são suas primeiras declarações oficiais à imprensa?"

"Creio que sim. Quando estive com Hemingway..."

"Você esteve com Hemingway?!"

"...sim. Em 2 de julho de 1960. Ou 1961, não me lembro."

"Caramba!"

"Era um gênio, né? E vou te confessar uma coisa. Foi a única vez que implorei para que alguém não cometesse suicídio."

"Você poderia ter evitado o suicídio do Hemingway?!"

"Tentei de todas as formas. Mas ele estava muito bêbado e, sobretudo, decidido. Queria passar de uma vez para o outro lado. Conversamos durante horas. Ele criticava tudo e todos e tomava um copão inteiro de Mojito. Num determinado momento, Hemingway me encarou, rindo, e disse bem assim: 'Se eu não estivesse tão decidido, publicaria nossa conversa na New Yorker, com o título 'O Velho e a Morte'. Daí pegou a espingarda e deu um tiro na cabeça."

Convido a Morte para tomar umas cervejas comigo no Divina Dose, mas ela recusa.

"Não bebo no meio do expediente. Além do mais, preciso correr. Outro roqueiro de 33 anos acaba de solicitar meus serviços urgentemente", explica, desaparecendo no corredor.

Na última olhada para o hall do Transamérica, você pensa na Nona Sinfonia de Dvorák, no "Guerra e Paz" do Tolstói, no filme do Woody Allen que ainda não estreou, nos versos do E. E. Cummings, nas obras completas de Dalton Trevisan: há motivos de sobra para suportar essa vida inautêntica.

Publicado em O Diário (8/8/2016)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

A noite em que Rafael Castro quebrou a guitarra

Rafael Castro e Os Monumentais tocam hoje no Tribo’s”, anunciava o panfleto capenga pregado na parede do bar. A entrada custava R$ 15 ou R$ 20, não lembro exatamente, mas certamente não era mais caro do que isso. O bar estaria completamente deserto não fosse uma ruiva e uma morena conversando com um sujeito magricelo e careca.

Pesadelo de todo empresário, maravilha de qualquer boêmio. Ali, você poderia buscar sua bebida no balcão tranquilamente, sem a epopeia cruzando hordas de sujeitos aleatórios, todos embriagados, em meio a saltos mortais, desvios bruscos, cotoveladas, empurra-empurra e outras estratégias recorrentes em aglomerações sonoras, independentemente do estilo musical, do pagode ao funk, do metal ao gospel.

“Essa noite ainda pode ser épica”, comentou, sem qualquer resquício de empolgação, meu amigo Daniel Orsini. Físico e boêmio, ele insistiu em me levar para ver o show do tal Rafael Castro - mais para tomar uns pileques do que para ouvir o som. “Se for um desastre”, disse, “nenhuma alma vai testemunhar”.

Essa, a vantagem dos pessimistas. O otimista sempre levará uma vida pior que o pessimista porque, diante das inevitáveis frustrações, ele fatalmente se decepcionará. O pessimista, por outro lado, encara a vida como deve ser: enfadonha e entediante, e qualquer coisa diferente que apareça já é lucro. Não conhecia o som do trio paulistano. Dias antes, cheguei a ouvir qualquer coisa na internet. Lembro da guitarra e das gravações propositalmente toscas, mas não recordo, hoje, qualquer canção marcante. Não sei assobiar uma única música do Rafael Castro e os Monumentais - e talvez fosse uma obrigação moral depois de tudo o que ele nos proporcionou naquela noitada.

Falávamos sobre música e provocações. O rock, afinal, sempre esteve profundamente relacionado com a transgressão. Transgredir: ultrapassar o limite de algo. Bob Dylan, quando abandonou o violão no quinto disco e partiu para a guitarra elétrica, debandando do folk e, produzindo canções mais pesadas, assumiu um papel inegavelmente transgressor, sendo, inclusive, vaiado, xingado e amaldiçoado pela audaciosa proposta sonora. Hoje, não há quem negue a Dylan sua relevância ao rock mundial nem quem condene a mudança de rumo; aquelas opiniões negativas ficaram eternamente condenadas a sérias revisões críticas.

Evidentemente, as transgressões não são exclusivas de roqueiros. Debussy, ao apresentar “Pelleas Et Melissande”, foi extremamente criticado e houve quem abandonasse o teatro antes mesmo do fim da ópera – hoje, um clássico indiscutível. O compositor francês rompia com os paradigmas musicais da época e fazia de sua arte um novo caminho para as próximas gerações. Stravinsky, com a “A Sagração da Primavera”, e Tchaikovsky, com “O Lago dos Cisnes”, também levaram vaias devido à audácia estética de suas estreias. Nesse sentido, com provocações e urros de desgosto, os acordes de Debussy, Tchaikovsky e Stravinsky soam tão rock n’ roll quanto as canções de Bob Dylan.

Insistindo na provocação, vamos enumerando outros rocks e roqueiros injustamente ignorados: 1) a explosão erótica de Oswald de Andrade; 2) a batida sincopada de João Gilberto; 3) as reboladas agudas de Ney Matogrosso; 4) as figuras diabólicas de Iberê Camargo; 5) os versos subversivos de Geraldo Vandré; 6) a psicodelia de Ronnie Von. E só interrompemos a produção da lista para ouvir a conversa da mesa ao lado, surpreendente. “O Nasi veio no Tribo’s depois de um show do Ira!. Daí começou a beber, fumar e ficou tão louco, querendo fazer outras coisas, que foi expulso pelos seguranças”, disse a ruiva.
“A Camila Morgado também esteve aqui, tomou caipirinhas e ninguém percebeu que era ela! Esbarrar na Camila Morgado no Tribo’s deve ser como encontrar o Lula numa livraria: você até reconhece, mas nunca acredita que seja o mesmo!”, comentou a morena.

“E o show do Ludovic?! Que loucura foi aquilo”, comenta o magrelo. As duas moças escancaram curiosidade. “Você viu o show do Ludovic?!”

“Claro!”, gaba-se o sujeito. “Era uma noite dessas, ó, sossegadona. Mas o bar não tava tão vazio como hoje”, diz o sujeito, espiando mais duas almas que acabam de chegar e pegam lugares não distantes dali.

“No início, achei que seria uma noite normal. Mas não sabia que seria inesquecível.”

“E como o grande Jair Naves estava?”

“Louco. Muito louco. Sem camisa, ele ficou se debatendo diversas vezes contra o chão, acho até que arrancou, com a mão, umas lascas do palco. Cuspiu cerveja na cara do companheiro de banda, o guitarrista ou baixista, e, em seguida, desceu do palco, alucinadão, caçando alguma cadeira de plástico.”

“Uma cadeira de plástico?!’

“Quando achou a bendita cadeira, levou o treco para cima do palco e se enfiou debaixo dela, agachado, como se estivesse preso, e continuou cantando. O Jair só saiu lá debaixo depois, bem depois. Largou o microfone num solo de guitarra, saiu correndo pelo bar e, depois de uns dois minutos, voltou como se nada houvesse acontecido.”

O solo de guitarra, de repente, degolou a conversa. O tal Rafael Castro surgia com um surrado chapéu de pescador hippie, velha bermuda branca e camiseta regada verde. Cabelão ensebado nas costas, vasta barbona de profeta, olhos alucinados de felicidade – imaginaria, ali, um Rock in Rio só para ele? Não se incomodavam, ele e os Monumentais, de tocar para o mínimo público de apenas nove desconhecidos? Por que não cancelar? Devolver o dinheiro? Alegar dor de cabeça e cair na estrada rumo à próxima cidade, talvez Londrina, com mais fãs? O que, de fato, o motivou? Teria pensado, o tal Rafael Castro, naqueles poucos coitados que desembolsaram dinheiro e que talvez muito esperavam pela apresentação? Precisaria, ele, tanto assim do dinheiro, que, somando toda a portaria, daria uma média de R$ 135? Nessa tarde saudosista, entre uma e outra pergunta, me dou conta que já vi, em Maringá, algumas cenas provocantes. Jorge Mautner, por exemplo, cantando a capella (!), uma música erótica sua e de Caetano Veloso, “Tarado”, estrategicamente na frente da Catedral, foi um desses momentos inesquecivelmente transgressores na história do rock maringaense.

Gostaria de ter testemunhado, também, outras cenas. O show do Barão Vermelho no Chico Neto, com Cazuza e Frejat trocando socos e pontapés nos camarins. Aquela apresentação do Raul Seixas. O show dos Raimundos, com Rodolfinho Abrantes ainda não cristanizado, tocando com entrada grátis na UEM. Por mais shows que você testemunhe, a vida nunca será o bastante. É impossível dar conta de todas as melodias.

“Tá tudo bem com vocês, Maringá?!”, pergunta Rafael Castro, escancarando sorrisos de rockstar.

Havia um certo constrangimento coletivo. Público e banda não sabiam direito como se portar. Qual a maneira correta de agir diante do vazio? Na multidão, você é só mais um. E pouco importa se você cantar um determinado trecho de música, talvez errado, ou se vai improvisar uns passos de tango, certamente errados, com sua companhia.

“Tá tudo bem com vocês, Maringá?!”, insiste o rapaz, empunhando a guitarra.

É aí que o climão de constrangimento dá espaço a uma nova sensação. Um show sem barreiras entre público e artista, com canções servidas à la carte. Aos nove pagantes, Rafael Castro e os Monumentais fizeram um dos melhores shows que ninguém viu na história do rock maringaense. Não há registros fotográficos nem gravações daquela apresentação. Cada solo escapava da alma. Em que ano estávamos? As músicas eram entoadas com fervor. 2007? Impiedoso, o baterista descia a mão no surdo, na caixa, nos pratos. 2006? Quieto e calado, o baixista fazia suas cordas berrarem. Que memória traidora. Os nove pagantes estávamos todos colados ao palco. Só a música tinha direito à fala. Ninguém se importava com o mundo lá fora. Consciente dessa ligação quase sobrenatural, Rafael Castro tirou a guitarra vermelha do corpo e socou, com ela, o palco do Tribo’s, surpreendendo o resto da banda, que passou a tocar ainda mais alto. Você já tentou quebrar uma guitarra, caríssimo leitor? Não é tão fácil como nos filmes. A primeira batida, na verdade, é só para desestabilizar. A segunda, com mais força, extirpa alguns detalhes externos, como captadores, botões de volume, algumas cordas rompem, mas o corpo da guitarra ainda está ali, resistindo, quase intacto. É só na oitava batida, depois de jorrar estilhaços pelo palco, que a guitarra vermelha, finalmente, deita estraçalhada e sem vida. Rafael Castro e os Monumentais deixam o palco debaixo das palmas febris do coração. Aquelas nove pessoas nunca pediram um bis com tanta devoção – o que, evidentemente, seria impossível diante do estado da guitarra.

Se pudesse escolher, eu estaria bebendo vinho naquela noite, e não cerveja. “A embriaguez da cerveja é a mais ruidosa e a mais bonachona do que a do vinho”, define o mestre Milan Kundera. A culpa dessas noites maringaenses tão barulhentas, simples e estrondosas, é toda da ausência do vinho. E me pego pensando nisso exatamente agora à tarde, comemorando antecipadamente o Dia do Rock, celebrado no dia 13 de julho. Vou empunhando na sala a taça de um Toro Loco, balançando-a suavemente de um lado para o outro, enquanto o tom avermelhado do vinho tenta escalar a taça, em vão, na turbulência que eu mesmo dito e interrompo. Nas laterais, o vinho que escorre de volta à base da taça deixa vestígios de imagens de guitarras e baterias, flashes do Terminal Guadalupe mandando “Pernambuco Chorou”, da Sexta Geração da Família Palim do Norte da Turquia tocando “O Papa tem Artrite”, do Charme Chulo, do Lobão berrando “Dilma Bandida!” no MPB Bar, de uma moça morena que exige mais uma canção do Marcelo Nova, do show do Ecos Falsos com os integrantes da banda desolados à espera do público, da Relespública fazendo todo mundo dançar num boteco apertado, da noite em que Rafael Castro quebrou sua guitarra para nove pessoas em Maringá, do sol que insiste em romper a escuridão no fim da madrugada quando o segurança do Tribo’s, cordialmente, escancara a porta, permitindo que você chegue à calçada e volte para casa cheio de histórias transgressoras e subversivas.

Publicado no Diário (10/7/2016)

terça-feira, 21 de junho de 2016

Senhoras serelepes, rosas, risos e lágrimas diante do Rei

As ruas da Urca surgem praticamente vazias de moradores – fogem para destinos silenciosos, os cariocas, atordoados com fevereiros de tamborins, surdos e repiques? Diferentemente da Zona Sul do Rio, aqui não há engarrafamentos nem caos. Há silêncios de uma província paranaense. Aos quarenta e dois graus das seis da tarde, o Pão de Açúcar é uma moçoila melancólica tomando banho de sol. Três únicos turistas se aventuram nas calçadas, sempre de olho na numeração dos prédios, alheios aos mosaicos de barcos, nuvens e pássaros jazzistas improvisando maravilhas sobre as águas. Confiro o rabisco: Avenida Portugal, 818, edifício Golden Bay. Eu cheguei em frente ao portão. Encaro um ar severo e aperto o interfone.

"Tenho uma carta para o Roberto Carlos", aviso, mostrando o envelope.

"Ô, rapaz, a gêntí não pódi récebê. Deixi lá no estúdiu dêli, fica a umas seis quádras pra lá, ó", responde o baiano, balançando a cabeça para a esquerda.

Com essa, eu não contava. Há um porteiro no meio do caminho. Se eu fosse conhecido de algum baiano importante e querido, tudo não seria diferente? Improviso nova estratégia:

"Vim em nome do João Ubaldo Ribeiro."

"..."

"Ele mandou isso para o Rei", respondo.

"Ú grândí João Ubaldo?"

"Isso, o grande escritor. Pediu que eu entregasse hoje mesmo."

Um sinal estridente destrava meu caminho. Fui abrindo a porta devagar, mas deixei a luz entrar primeiro. Eu cheguei.

"Pódi deixar comigo. As cártas de hôji já subiram. Amanhã cédinho essa tará na mão dêli", promete o porteiro.

Nunca conheci João Ubaldo, infelizmente. Nas minhas mal traçadas linhas, pedia que Roberto autografasse meu CD "Em Ritmo de Aventura" - o melhor álbum dele - e mais outros dois encartes. Dizia que, dali a dois dias, eu passaria para retirar os discos, devidamente autografados, na portaria. Voltei, em vão, e nunca mais recuperei meus três CD's. Fui furtado pelo Rei.

Desabafo

Quando descobri que o Rei faria um show em Maringá, corri para conseguir uma entrevista. A dezenove dias da apresentação, encaminhei cerca de quinze perguntas para o assessor do cantor (leia nesta página). Confesso que caprichei: incluí tudo o que eu e você gostaríamos de saber. O assessor confirmou o recebimento e adiantou que não poderia garantir que elas fossem respondidas a tempo. Seria preciso esperar. Enquanto as respostas não surgiam, passava tardes inteiras bolando planos para que o Rei autografasse meu LP "Em Ritmo de Aventura".

Algumas ideias – admito, um tanto amalucadas - envolviam perseguições em alta velocidade – para acompanhar o carro do Rei entre o aeroporto e o hotel, abordando-o nalgum sinaleiro do meio do trajeto -, outras ideias contavam com três cachorros, dois gatos e quinze periquitos – tenho vergonha de detalhar, aqui, como seria exatamente esse plano - e até cogitei ligar para Juarez Arantes, a fim de que o milionário excêntrico me escondesse a bordo de seu Del Rey preto, na garagem do Deville – mas havia uma grande possibilidade de o Rei ficar em outros hotéis, e achei melhor não arriscar. Confesso que cogitei tudo isso. Fazer o quê? Às vezes me desabafo, me desespero porque o Rei é mais que um problema, é uma loucura qualquer.

Como vai você

A quatro dias da apresentação, nada de respostas. Penso e repenso: é preciso dar um jeito, meu amigo. Ligo para o Rio. Mauricio, o assessor, me atende. Digo que é uma pena não ter rolado entrevista. Que tenho uma segunda e última solicitação. Explico toda a história dos meus CD's surrupiados, com detalhes tão pequenos de nós e coisas muito grande para esquecer. Gostaria de um minuto ao lado do Rei, vou dizendo, tempo suficiente para ele fazer uma dedicatória no meu LP. Sem perguntas. Só um encontro. Faria um ótimo texto sobre a admiração de um súdito por seu Rei. Gente fina, o assessor me chama de querido.

"Só tem um problema, Gaioto: o Roberto não dá autógrafos."

"?"

"Por causa do Toc (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), o Roberto leva até vinte minutos para fazer uma dedicatória, tentando copiar a mesma letra que tinha no início da carreira."

"E se for uma foto depois do show?"

"A questão das fotos é muito complicada. Não é sempre que ele recebe alguns poucos convidados. Quando faz isso, é sempre, sim, no final do show. Mas ele precisa estar devidamente maquiado e quem faz as fotos é o fotógrafo oficial dele. Ainda não sabemos se ele atenderá convidados em Maringá."

"Sem fotos nem autógrafos posso acompanhar a descida do voo, um pouco próximo, só para registrar os primeiros passos do Rei?"

"Impossível. Quando o avião particular dele pousar aí, um automóvel já estará no meio da pista à espera do Roberto. Ele sai direto do avião, sem ter contato com ninguém, e entra no carro. Dali, segue para o hotel. Entra sempre pelo estacionamento e, de lá, escoltado por seguranças, segue para o elevador que leva à suíte. Nesses deslocamentos, ninguém tem contato com o Roberto: é pra evitar tumulto."

Encaro os fatos: longe dos palcos, impossível abordar o Rei.

Sentado à beira do caminho

Pelo lugar mais acessível, você desembolsa R$ 90 (meia-entrada): arquibancada a milhas e milhas distante do palco. Desisto do plano de abordar o Rei – as dezenas de sujeitos bombadões e uniformizados certamente me impediriam se eu, num gesto irresponsável, marginalesco e imoral, tentasse burlar o forte esquema de segurança, pulando para a arena, onde as cadeiras de plástico, a quatro passos do palco, foram vendidas a R$ 470,40 (meia) e R$ 940,80 (inteira).

"Olha só essas senhorinhas, cara! É o mesmo público das leitoras fiéis do Padre Marcelo?", pergunta, rindo, o meu amigo Jeferson Voss, 28.

Lá embaixo, uma senhora setentona carrega uma embalagem transparente, onde se vê uma felpuda almofada azul sob uma reluzente coroa dourada – roubada, pois, do grande Napoleão?! Atrás de você, quarenta cinquentonas vestidinhas de azul e branco estendem a faixona: "Roberto, essas EX-MOÇAS curtiram muito você e nunca desistiram de assistir o show DO CARA!" Sujeitos quarentões. Cinquentões. Sessentões. Debaixo dos doze graus, casais se abraçam na data mais caliente do ano – é Dia dos Namorados.

Amigo

Para matar a fome, entro na fila dos acepipes gordurosos. Reconheço, ao meu lado, um desses amigos virtuais que você só conhece pelo computador. Será amigo de meu pai, da minha mãe, algum vizinho da infância perdida?

"Você é o Roberto, né?", vou sondando.

Quarentão, coberto de jaqueta, segurando bilhete do pedido dezessete.

"Sou, sim. A gente se conhece?"

"Acho que somos amigos no Facebook."

"Como é o seu nome?", questiona, curioso, um olho grudado no placar eletrônico da senha.

"Alexandre Gaioto."

"Tá brincando?! Não te reconheci."

Gente fina, estende a mão e escancara sorriso.

"Gosto muito dos seus textos. Aquelas crônicas de domingo."

"Tá brincando?!"

"Verdade. Você e a terra da igreja-cone. Das senhorinhas serelepes. Das duplas sertânicas. Leio todas. São bem-humoradas, divertidas, continue escrevendo!"

Quase nem acredito: finalmente, encontrei um leitor.

"Posso tirar uma foto com você? Meu pai não vai acreditar que encontrei um leitor."

"Número dezessete! Dezessete!", esgoela-se alguém.

"É a minha senha. Sinto muito", despede-se o sujeito, aflito de fome.

Sabe, você, como é bom encontrar um leitor-amigo? E me pego pensando nos outros leitores-amigos-virtuais que acumulei com esses textos todos. Na Aniceia Maia, no João Xavier, na Sonia Maria, na Estter Ribeiro e tantos outros que me mandaram mensagens gentis e carinhosas nesse tempo que extirpei a vesícula e, por duas semanas, silenciei o verbo. Para este pobre cronistinha dominical, maior alegria não há do que esbarrar num leitor-amigo. "Eu quero ter um milhão de amigos", me pego cantarolando, a poucos minutos do show, com o lanche em mãos.

Emoções

Com trinta minutos de atraso, o Rei dá as caras às oito e meia. A mega-banda puxa uma versão instrumental de "Como é Grande o Meu Amor por Você", transformando o Parque de Exposições num karaokê lírico. Em seguida, a banda inicia o clássico arranjo de "Emoções". Do meio do palco, entre o baterista e os trompetes e saxofones, ele entra. Alto e magrelo. Vestindo azul, evidentemente, sua cor predileta. Curioso, ele não manca: a perna mecânica, tão firme quanto a esquerda. Homens e mulheres berram e acenam. E é só ele começar o primeiro verso que você, aquele garotinho gorducho de oito anos, tímido e calado, equilibrando três fatias de Panetone na frente da TV, assistindo ao especial de fim de ano, começa a chorar compulsivamente. Minha namorada me olha de uma forma engraçada. "Ué, mas você não prefere o Erasmo?", parece me perguntar, em silêncio. E só não fico tão constrangido porque as comportas oculares despejam litros de água dos rostos de várias dulcíssimas senhoras ao meu lado. A música não é a arte mais emocionante de todas? O Rei passa pela Bossa Nova, retomando "Além do Horizonte", mergulha no rock, com "Ilegal, Imoral ou Engorda", "O Calhambeque" e "Se Você Pensa" - com direito a guitarras distorcidas! -, mostra uma versão em reggae para "Eu te amo, te Amo, te Amo", e, generoso, entoa todas as canções de amor que marcaram a tua vida, como "Proposta" e "Detalhes", provocando mais mil litros de lágrimas na sua face ensopada. Na arquibancada, você é tomado pela mesma sensação de ter visto Bob Dylan, Rolling Stones, Paul McCartney, Erasmo Carlos. O vozeirão firme. Baita som. Banda finíssima. Só faria algumas preciosas alterações no repertório: "Lady Laura" (cafonérrima) por "Quando". "Mulher Pequena" (cafonérrima ao cubo) por "Eu Sou Terrível" - esta, aliás, encerraria a apresentação. "Nossa Senhora" por "As Curvas da Estrada de Santos". "Jesus Cristo" por "O Portão". Sem coisas cafonas nem versinhos religiosos, Robertão soaria ainda melhor.

Ilegal, imoral ou engorda

A cafonice e as letras xiitas fizeram, sim, com que eu me aproximasse mais do Tremendão. Em meio a tantas polêmicas em que Roberto se meteu – incontáveis acusações de plágios, o lance da propaganda da Friboi, a proibição das biografias e a briga com Paulo Cesar de Araújo, quantas mais? – assumi uma postura apática em relação a ele: virei homem calado e até desconfiado. Chamei-o, vez ou outra, de Rei Manco. Agora, esqueço as polêmicas e me entrego, assombrado, à sua música. Em mi menor, a banda puxa os acordes iniciais de "Jesus Cristo". É a última. Sempre foi. Sempre será. Olho para minha namorada, cantando e batendo palmas ao meu lado. No palco, o Rei beija flor por flor e arremessa aos súditos, que se engalfinham em busca da rosa mais cobiçada. Em plena Noite dos Namorados, digo à minha namorada que, por ela, farei uma loucura. Seus olhos, espantados, me espiam com terror – ela me conhece. E, ligeiro, vou descendo as escadas da arquibancada. Noto que os seguranças bombadões estão todos atentos ao show, e não ao público. Aproveito a distração para pular a mureta e invadir os setores carérrimos. Copio o pulo, os passos silenciosos e a mesma agilidade de Liam Neeson, numa de suas missões impossíveis. Então eu corro demais. Vou cruzando velhas que ardem em brasas – só o único bombeiro é capaz de apagar tanto fogaréu. Quem ganha rosa sai de cena e libera uma lacuna no meio da multidão. Aproveito um desses corredores humanos e, quando me dou conta, estou a três cabeças do palco. O Rei se aproxima para lançar a última rosa. "Robertooo, eu também te amo! Me dá uma rosa aí, pô!", solto num vozeirão grave, causando gargalhadas estridentes nas velhas em redor. Acho que ele não ouviu. Sou esmagado por dezenove velhas. O Rei lança a flor numa parábola de graus incalculáveis, mais ou menos na minha direção. Estendo os braços, mas fracasso. A sortuda é uma senhora suada e corpulenta que dá cotoveladas na de trás, passa a perna na da frente e empurra uma gorducha à esquerda e uma magricela à direita: para conseguir uma rosa do Rei, é preciso quebrar algumas leis, invadir setores alheios, apertar e espremer e empurrar, mas ninguém ali se importa com isso. Se chorei ou se sorri, o importante é que finalmente vi e ouvi o Rei.

O REI NÃO RESPONDEU
 

Qual a sensação de ser o maior cantor brasileiro de todos os tempos?

O senhor não vem a Maringá há 17 anos. Consegue se lembrar de seu show por aqui? O que sabe sobre a cidade?

Nas horas livres, o senhor gosta de literatura? Poderia citar os cinco livros mais importantes da sua vida?

O senhor já disse que pretende gravar um disco de inéditas neste ano. Como soará o novo CD?

Erasmo Carlos fez um excelente álbum apenas com os lados b da carreira dele. O senhor considera a possibilidade de gravar, algum dia, um álbum apenas com suas canções menos conhecidas?

O senhor e Erasmo Carlos compuseram "Maria Joana" como uma homenagem velada à maconha. Quando questionado, Erasmo costuma dizer que chegou a provar a maconha, mas não gostou. O senhor chegou a provar maconha ou algum outro tipo de droga durante a sua trajetória?

No filme sobre Tim Maia, a cena de um funcionário do senhor arremessando dinheiro aos pés dele, que estava pobre e no início da carreira, é muito forte e gerou muitas críticas. Essa cena realmente aconteceu nos bastidores do seu show?

Por que o senhor não libera o álbum "Louco Por Você"? Há planos para liberá-lo futuramente?

"Em Ritmo de Aventura", para mim, é um dos melhores álbum do senhor, com aquele rock sessentista. Algumas bandas de rock têm feito shows reproduzindo álbuns na íntegra. Acha que é possível, algum dia, o senhor fazer um show especial executando na íntegra esse álbum?

O senhor acha que a polêmica das biografias prejudicou a sua imagem?

O que o senhor pode adiantar sobre a autobiografia que está escrevendo? Quais os maiores desafios durante esse processo de escrita?

A música "O Careta" foi considerada plágio pela Justiça. Essa e outras acusações de plágio aborrecem o senhor?

O senhor ficou ofendido por ter sido convidado a se apresentar na abertura dos jogos paraolímpicos do Rio de Janeiro? Por que recusou o convite?

Em fevereiro de 2014, deixei meu CD "Em Ritmo de Aventura" na portaria do edifício Golden Bay, onde senhor mora, para ser autografado. No dia seguinte, passei pra pegar o CD autografado, mas, segundo o porteiro, o CD havia sido entregue em seu apartamento e o senhor ainda não havia assinado o encarte. Será que o senhor poderia devolver o meu CD, se possível autografado? Ou, então, eu poderia levar o meu LP do "Em Ritmo de Aventura" para o senhor assinar antes do show aqui em Maringá, que tal?

Publicado no Diário (19/6/2016)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Evangélicos ouvem a voz de Deus na Rua Galáxia, no Jd. Universo

Depois de passar três dias e três noites debruçado sobre um mapa de Maringá, à caça de coisas inusitadas, esbarro, finalmente, no destino perfeito: Rua Galáxia, no Jardim Universo. Planetas, anéis de Saturno, lixo cósmico, telescópios da Nasa e extraterrestres aterrorizantes não estão todos lá, a exatamente 5,9 km das mesas do Divina Dose, precisamente a 4,6 km da chatíssima igreja-cone? Rua Galáxia, no Jardim Universo: endereço certeiro para enviar as 300 duplas sertânicas desta cidade dos diabos, na esperança que sejam abduzidas e carregadas por OVNI’s a outros planetas distantes? Rua Galáxia, no Jardim Universo: lá, você não encontrará cosmólogos e cientistas comprovando, a partir do Big Ben, a origem de tudo? Rua Galáxia, no Jardim Universo: poetinhas octogenários não rascunham odes e sonetinhos à coincidência feliz da inimaginável junção cósmica?

O endereço mais interestelar de Maringá tem apenas dez quadras. Não há botequinhos minúsculos nem lojinhas de roupa nem armazém de secos e molhados: uma rua só de casas e moradores. Quem cobiça alguma dessas coisas, um copo de cerveja, uma camiseta nova, é obrigado a bater pernas até a Rua Universo, logo ao lado. Além do mínimo comércio, na Universo tem também a única igreja das redondezas. Aberta sete dias por semana – o bendito número sagrado! – a Igreja Evangélica Pentecostal Unção de Gileade tem agenda cheia. Sexta, às 20h, é a “campanha de cura e libertação”. Quarta, às 15h, tem “tarde da benção”. Terça, às 20h, é o dia perfeito nesse tempo de crise econômica, com a tal da “campanha da prosperidade”. Essas e outras atividades surgem no cartaz pendurado numa das três portelas da minúscula Igreja. Mas voltemos à nossa Galáxia, com suas dez quadras de espaço. Numa das esquinas, três sujeitos conversam amenidades – debatem, na Rua Galáxia, os aceleradores de partícula, radiação cósmica, a nucleossíntese estelar, a hipótese do átomo primordial?
“Na verdade, a gente tava falando sobre o culto”, comenta Leandro Emydio, 37.
Ai, não. A fé resiste à ciência até na Rua Galáxia.
“Não sei se você sabe, mas Deus me preparou esse ponto”, diz o sujeito, apontando para o terreno vazio de pedregulhos, cercado por uma cerca baixa e acinzentada. “Eu tava devendo, não tinha dinheiro pra abrir um comércio. Todo dia, dobrava os joelhos e chorava. Daí, ouvi a voz de Deus: ‘Trabalha, homem. Faz a sua parte que eu faço a minha’. Sabe o que aconteceu em seguida? O irmão da igreja comprou esse terrenão aqui e fez uma marcenaria. E eu peguei uma parte do terreno pra abrir o lava-jato. Hoje, faz um bom movimento”, garante, à frente do ponto esvaziado. “Quer dizer, não hoje, né? Que com essa crise tá tudo difícil.”
Gostei daquela parte da voz de Deus. Pergunto como é.
“A voz de Deus tem o mesmo agudo do Xororó ou é mais parecida com o grave do Emílio Santiago?”
O sujeito me olha intrigado.
“Não dá pra comparar com cantores. A voz Dele é como se fosse um vento.”
Já imaginou se Bob Dylan escuta isso?
“Mas, às vezes, Deus também fala como se fosse um vendaval”, comenta a esposa do sujeito do lava-jato.
Um terceiro crente, mais velho, agora irrompe o silêncio, acrescentando seu próprio testemunho.
“Todos nós somos evangélicos e já ouvimos a voz do Senhor”, garante.
O papo sobre a fé é quebrado por uma senhora que interrompe diálogos.
“Querem comprar um pacote do Prever?”, oferece Elza Correia, 50, empunhando pastinhas cheias de papéis e números. “Hoje, minha estratégia é oferecer contratos em toda essa rua, nas dez quadras”, comenta.
“Os moradores da Galáxia estão se preparando para a morte?”, vou sondando.
“Felizmente já marquei alguns horários. E vou voltar em breve. A gente planta hoje e colhe amanhã...”
Não é a vida que ceifa?
“...mas tenho sorte, sabe? Deus guia minhas vendas. Como evangélica, ele me protege e me aconselha.”
Ai, não. Mais uma?
“Você já ouviu a voz de Deus?”, indago.
“Claro que já. Várias vezes”, responde, com os olhos desafiadores.
“Poderia detalhar como é a voz de Deus?”
“Olha, é uma fala muuuito suave.”
“Deus, então, tem a voz do João Gilberto?”
“João quem?”
Começo a cantarolar “Garota de Ipanema”, separando sílaba por sílaba, imitando a calma e os tantos tons do Pai da Bossa Nova, batucando no corpo os toques sincopados que ele executa no violão. Não adianta.
“Não sei quem é esse João.”
“Deus tem a voz do Cauby Peixoto?”
“Não, não, não. Não tem nada a ver com o Cauby. É diferente.”
“Diferente como?”
Sem saber como responder, a senhora recorre a detalhes biográficos, lembrando que, há pouco tempo, “era do mundão”, “perdida”, “uma dessas incrédulas”, e que Deus deu a ela “mais paz de espírito e até dinheiro”.
“Você me garante que, se eu me converter, também ganharei mais dinheiro?”, vou sondando, prevendo os euros e as libras esterlinas, disposto, finalmente, a encarar a trilha da redenção divina.
“Para Deus, tudo é possível. Ele é a salvação”, garante a senhora, antes de se despedir e sair perambulando pela Galáxia, à caça de novos clientes. Despeço-me do trio de evangélicos. Por quanto dinheiro, caríssimo leitor, você se converteria?

Planetário adoentado
No céu, as nuvens ameaçam enxurradas. Infelizmente, nada de discos voadores trocando de cores nem alienígenas zanzando e convivendo harmoniosamente com os seres humanos. Uma rua, assim, com buracos e pedregulhos, com velhos espreguiçando o tédio nos portões, igual a qualquer outra. Numa esquina, avisto ao longe muros altos, brancos, portão de ferro. Deve ser lá. Um planetário na Rua Galáxia?
“Não, moço, aqui é o Núcleo Integrado de Saúde Universo”, informa um rapaz, interrompendo a leitura de um livro.
Como é bom encontrar um leitor. Nas mãos, um clássico de Machadinho? Vida e obra de Georges Lemaître? “Mecânica Quântica Moderna”, de J. J. Sakurai e Jim Napolitano?
“É a Bíblia Sagrada. Sou pastor”, avisa.
Um pastor em plena Galáxia. Vou resumindo o encontro com os fiéis. Ele não se surpreende.
“Em Maringá, 26% da população é evangélica. Nas outras cidades, o número é bem menor: 17%. É mais fácil você encontrar um fiel aqui do que em qualquer outro lugar do País”, justifica Luis Henrique, 39.
Na fila para fazer o exame e compreender a força estranha que atazana seu tornozelo, o pastor concorda em esclarecer as tantas dúvidas sobre as santíssimas cordas vocais.
“Muitos me disseram que já ouviram a voz de Deus. Como é essa voz?”
“Não sei. Deus nunca falou comigo através da voz.”
“Mesmo sendo pastor?”
“Deus fala comigo através da leitura.”
“Por que ele dirige a voz só a algumas pessoas?”
“A função dele é se aproximar e se fazer compreender.”
“Seguindo esse raciocínio, se Deus, então, resolvesse se aproximar de um fã de sertanejo universitário, pensemos aqui numa adolescente, ele poderia usar uma voz parecida com a de algum desses cantores famosos?”
“Claro que sim.”
“Mesmo sendo o Luan Santana?”
“Claro que sim. Não existe um mandamento dizendo que Deus não pode imitar o Luan Santana.”
E mais não é possível perguntar, porque a enfermeira anuncia o nome de Luis Henrique e ele segue, arrastando o pé, rumo aos mistérios do tornozelo.

Aleluia dominante
A senhora que escancara as janelas, com mais duas crianças, também se revela evangélica. O vendedor de limão, com a carriola já esvaziada, engorda a lista de evangélicos. A auxiliar de dentista que, ligeirinha, passa por mim, é testemunha de Jeová. Na Rua Galáxia, no Jardim Universo, é mais fácil flagrar alienígenas mantendo contatos imediatos de primeiro grau, a bordo de objetos voadores com luzes piscantes, do que esbarrar num único ateu.

Publicado no Diário (22/5/2016)