Rafael Castro e Os Monumentais tocam hoje no Tribo’s”,
anunciava o panfleto capenga pregado na parede do bar. A entrada custava
R$ 15 ou R$ 20, não lembro exatamente, mas certamente não era mais caro
do que isso. O bar estaria completamente deserto não fosse uma ruiva e
uma morena conversando com um sujeito magricelo e careca.
Pesadelo
de todo empresário, maravilha de qualquer boêmio. Ali, você poderia
buscar sua bebida no balcão tranquilamente, sem a epopeia cruzando
hordas de sujeitos aleatórios, todos embriagados, em meio a saltos
mortais, desvios bruscos, cotoveladas, empurra-empurra e outras
estratégias recorrentes em aglomerações sonoras, independentemente do
estilo musical, do pagode ao funk, do metal ao gospel.
“Essa
noite ainda pode ser épica”, comentou, sem qualquer resquício de
empolgação, meu amigo Daniel Orsini. Físico e boêmio, ele insistiu em me
levar para ver o show do tal Rafael Castro - mais para tomar uns
pileques do que para ouvir o som. “Se for um desastre”, disse, “nenhuma
alma vai testemunhar”.
Essa, a vantagem dos pessimistas.
O otimista sempre levará uma vida pior que o pessimista porque, diante
das inevitáveis frustrações, ele fatalmente se decepcionará. O
pessimista, por outro lado, encara a vida como deve ser: enfadonha e
entediante, e qualquer coisa diferente que apareça já é lucro. Não
conhecia o som do trio paulistano. Dias antes, cheguei a ouvir qualquer
coisa na internet. Lembro da guitarra e das gravações propositalmente
toscas, mas não recordo, hoje, qualquer canção marcante. Não sei
assobiar uma única música do Rafael Castro e os Monumentais - e talvez
fosse uma obrigação moral depois de tudo o que ele nos proporcionou
naquela noitada.
Falávamos sobre música e provocações. O
rock, afinal, sempre esteve profundamente relacionado com a
transgressão. Transgredir: ultrapassar o limite de algo. Bob Dylan,
quando abandonou o violão no quinto disco e partiu para a guitarra
elétrica, debandando do folk e, produzindo canções mais pesadas, assumiu
um papel inegavelmente transgressor, sendo, inclusive, vaiado, xingado e
amaldiçoado pela audaciosa proposta sonora. Hoje, não há quem negue a
Dylan sua relevância ao rock mundial nem quem condene a mudança de rumo;
aquelas opiniões negativas ficaram eternamente condenadas a sérias
revisões críticas.
Evidentemente, as transgressões não
são exclusivas de roqueiros. Debussy, ao apresentar “Pelleas Et
Melissande”, foi extremamente criticado e houve quem abandonasse o
teatro antes mesmo do fim da ópera – hoje, um clássico indiscutível. O
compositor francês rompia com os paradigmas musicais da época e fazia de
sua arte um novo caminho para as próximas gerações. Stravinsky, com a
“A Sagração da Primavera”, e Tchaikovsky, com “O Lago dos Cisnes”,
também levaram vaias devido à audácia estética de suas estreias. Nesse
sentido, com provocações e urros de desgosto, os acordes de Debussy,
Tchaikovsky e Stravinsky soam tão rock n’ roll quanto as canções de Bob
Dylan.
Insistindo na provocação, vamos enumerando outros
rocks e roqueiros injustamente ignorados: 1) a explosão erótica de
Oswald de Andrade; 2) a batida sincopada de João Gilberto; 3) as
reboladas agudas de Ney Matogrosso; 4) as figuras diabólicas de Iberê
Camargo; 5) os versos subversivos de Geraldo Vandré; 6) a psicodelia de
Ronnie Von. E só interrompemos a produção da lista para ouvir a conversa
da mesa ao lado, surpreendente. “O Nasi veio no Tribo’s depois de um
show do Ira!. Daí começou a beber, fumar e ficou tão louco, querendo
fazer outras coisas, que foi expulso pelos seguranças”, disse a ruiva.
“A
Camila Morgado também esteve aqui, tomou caipirinhas e ninguém percebeu
que era ela! Esbarrar na Camila Morgado no Tribo’s deve ser como
encontrar o Lula numa livraria: você até reconhece, mas nunca acredita
que seja o mesmo!”, comentou a morena.
“E o show do
Ludovic?! Que loucura foi aquilo”, comenta o magrelo. As duas moças
escancaram curiosidade. “Você viu o show do Ludovic?!”
“Claro!”,
gaba-se o sujeito. “Era uma noite dessas, ó, sossegadona. Mas o bar não
tava tão vazio como hoje”, diz o sujeito, espiando mais duas almas que
acabam de chegar e pegam lugares não distantes dali.
“No início, achei
que seria uma noite normal. Mas não sabia que seria inesquecível.”
“E como o grande Jair Naves estava?”
“Louco.
Muito louco. Sem camisa, ele ficou se debatendo diversas vezes contra o
chão, acho até que arrancou, com a mão, umas lascas do palco. Cuspiu
cerveja na cara do companheiro de banda, o guitarrista ou baixista, e,
em seguida, desceu do palco, alucinadão, caçando alguma cadeira de
plástico.”
“Uma cadeira de plástico?!’
“Quando
achou a bendita cadeira, levou o treco para cima do palco e se enfiou
debaixo dela, agachado, como se estivesse preso, e continuou cantando. O
Jair só saiu lá debaixo depois, bem depois. Largou o microfone num solo
de guitarra, saiu correndo pelo bar e, depois de uns dois minutos,
voltou como se nada houvesse acontecido.”
O solo de
guitarra, de repente, degolou a conversa. O tal Rafael Castro surgia com
um surrado chapéu de pescador hippie, velha bermuda branca e camiseta
regada verde. Cabelão ensebado nas costas, vasta barbona de profeta,
olhos alucinados de felicidade – imaginaria, ali, um Rock in Rio só para
ele? Não se incomodavam, ele e os Monumentais, de tocar para o mínimo
público de apenas nove desconhecidos? Por que não cancelar? Devolver o
dinheiro? Alegar dor de cabeça e cair na estrada rumo à próxima cidade,
talvez Londrina, com mais fãs? O que, de fato, o motivou? Teria pensado,
o tal Rafael Castro, naqueles poucos coitados que desembolsaram
dinheiro e que talvez muito esperavam pela apresentação? Precisaria,
ele, tanto assim do dinheiro, que, somando toda a portaria, daria uma
média de R$ 135? Nessa tarde saudosista, entre uma e outra pergunta, me
dou conta que já vi, em Maringá, algumas cenas provocantes. Jorge
Mautner, por exemplo, cantando a capella (!), uma música erótica sua e
de Caetano Veloso, “Tarado”, estrategicamente na frente da Catedral, foi
um desses momentos inesquecivelmente transgressores na história do rock
maringaense.
Gostaria de ter testemunhado, também,
outras cenas. O show do Barão Vermelho no Chico Neto, com Cazuza e
Frejat trocando socos e pontapés nos camarins. Aquela apresentação do
Raul Seixas. O show dos Raimundos, com Rodolfinho Abrantes ainda não
cristanizado, tocando com entrada grátis na UEM. Por mais shows que você
testemunhe, a vida nunca será o bastante. É impossível dar conta de
todas as melodias.
“Tá tudo bem com vocês, Maringá?!”, pergunta Rafael Castro, escancarando sorrisos de rockstar.
Havia
um certo constrangimento coletivo. Público e banda não sabiam direito
como se portar. Qual a maneira correta de agir diante do vazio? Na
multidão, você é só mais um. E pouco importa se você cantar um
determinado trecho de música, talvez errado, ou se vai improvisar uns
passos de tango, certamente errados, com sua companhia.
“Tá tudo bem com vocês, Maringá?!”, insiste o rapaz, empunhando a guitarra.
É
aí que o climão de constrangimento dá espaço a uma nova sensação. Um
show sem barreiras entre público e artista, com canções servidas à la
carte. Aos nove pagantes, Rafael Castro e os Monumentais fizeram um dos
melhores shows que ninguém viu na história do rock maringaense. Não há
registros fotográficos nem gravações daquela apresentação. Cada solo
escapava da alma. Em que ano estávamos? As músicas eram entoadas com
fervor. 2007? Impiedoso, o baterista descia a mão no surdo, na caixa,
nos pratos. 2006? Quieto e calado, o baixista fazia suas cordas
berrarem. Que memória traidora. Os nove pagantes estávamos todos colados
ao palco. Só a música tinha direito à fala. Ninguém se importava com o
mundo lá fora. Consciente dessa ligação quase sobrenatural, Rafael
Castro tirou a guitarra vermelha do corpo e socou, com ela, o palco do
Tribo’s, surpreendendo o resto da banda, que passou a tocar ainda mais
alto. Você já tentou quebrar uma guitarra, caríssimo leitor? Não é tão
fácil como nos filmes. A primeira batida, na verdade, é só para
desestabilizar. A segunda, com mais força, extirpa alguns detalhes
externos, como captadores, botões de volume, algumas cordas rompem, mas o
corpo da guitarra ainda está ali, resistindo, quase intacto. É só na
oitava batida, depois de jorrar estilhaços pelo palco, que a guitarra
vermelha, finalmente, deita estraçalhada e sem vida. Rafael Castro e os
Monumentais deixam o palco debaixo das palmas febris do coração. Aquelas
nove pessoas nunca pediram um bis com tanta devoção – o que,
evidentemente, seria impossível diante do estado da guitarra.
Se
pudesse escolher, eu estaria bebendo vinho naquela noite, e não
cerveja. “A embriaguez da cerveja é a mais ruidosa e a mais bonachona do
que a do vinho”, define o mestre Milan Kundera. A culpa dessas noites
maringaenses tão barulhentas, simples e estrondosas, é toda da ausência
do vinho. E me pego pensando nisso exatamente agora à tarde, comemorando
antecipadamente o Dia do Rock, celebrado no dia 13 de julho. Vou
empunhando na sala a taça de um Toro Loco, balançando-a suavemente de um
lado para o outro, enquanto o tom avermelhado do vinho tenta escalar a
taça, em vão, na turbulência que eu mesmo dito e interrompo. Nas
laterais, o vinho que escorre de volta à base da taça deixa vestígios de
imagens de guitarras e baterias, flashes do Terminal Guadalupe mandando
“Pernambuco Chorou”, da Sexta Geração da Família Palim do Norte da
Turquia tocando “O Papa tem Artrite”, do Charme Chulo, do Lobão berrando
“Dilma Bandida!” no MPB Bar, de uma moça morena que exige mais uma
canção do Marcelo Nova, do show do Ecos Falsos com os integrantes da
banda desolados à espera do público, da Relespública fazendo todo mundo
dançar num boteco apertado, da noite em que Rafael Castro quebrou sua
guitarra para nove pessoas em Maringá, do sol que insiste em romper a
escuridão no fim da madrugada quando o segurança do Tribo’s,
cordialmente, escancara a porta, permitindo que você chegue à calçada e
volte para casa cheio de histórias transgressoras e subversivas.
Publicado no Diário (10/7/2016)
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