segunda-feira, 15 de setembro de 2014

'Hoje Não Há Vagas'

Matéria publicada no jornal O Diário (14/9/2014)

Caminho pela avenida Carneiro Leão, o relógio marca quase 19h, e desço uma viela rumo à quadra de baixo. Da esquina vejo a entrada do Albergue Santa Luiza de Marillac, na Rua Fernão Dias.

Cumprimento o agente da Guarda Municipal, o único funcionário na frente do abrigo. Pergunto se posso passar essa noite de terça-feira por ali. Minha família inteira foi embora, estou sozinho e sem casa, vou explicando. Ele me encara.

Sou um andarilho, só com RG, sem um centavo no bolso: o tênis estropiado, a velha camiseta azul surrada e uma calça preta que não lavo há uma semana. Para não dar na cara, estou sem óculos, relógio, celular.

A barba desgrenhada e o cabelo ensebado, ajeitado no tapa, completam o visual errante. Minha única bagagem é a sacola plástica, onde se espremem a toalha, a cueca, um par de meias e uma camiseta novinha, com estampa de algum evento organizado pelo jornal.

O agente da Guarda Municipal pergunta se tenho documento e de onde sou. Digo que estou com meu RG e sou de Maringá. "O albergue não recebe gente aqui da cidade. E hoje, também, está lotado: já tem 32 pessoas. Não tem espaço para você", avisa o guarda.

Insisto. Digo que o albergue teoricamente funciona durante 24h e eu realmente preciso de um teto, só por uma noite. Não adianta. Peço alguma sugestão.

Quem sabe um outro albergue?
"Esse é o único da cidade."
"Por favor, posso pelo menos dormir aqui na frente, encostado na parede?"
"Se você tentar dormir aqui na frente do albergue, eu chamo a polícia. Não insista e vá embora", avisa o guarda. "Durma aí em qualquer canto, você que se vire. Tente voltar amanhã."

Como se fossem homens invisíveis

Um sujeito de uns cinquenta anos, que ficou no albergue por três semanas, aconselha-me ficar sentado do outro lado da rua, de frente para o abrigo. "De terça, as freiras distribuem comida para quem fica por aqui. Aí, você explica seu caso e elas vão te deixar entrar".

Agradeço a dica sento no lugar indicado. Há poucas pessoas circulando na rua. Quem cruza a sua frente não te nota no chão: invisível, você, sob o manto da indiferença. Lá dentro do albergue, vozes se alternam nos berros estridentes de que Deus está ao teu lado, irmão, Jesus Cristo nunca vai te abandonar, bendito seja o Pai que cuida de nós e nos protege em todo e qualquer momento, aleluia, aleluia, aleluia.

Do outro lado da rua, vejo o rapaz: tênis branco, uma boa camisa, calça jeans nova. De mochila nas costas, ele parece perguntar por um teto. Após cinco minutos conversando com o guarda, o cara de tênis branco vem em minha direção. "Me disseram mesmo que a situação, aqui em Maringá, estava difícil, com o albergue cheio. Mas não imaginava que iriam me negar abrigo", lamenta Sérgio, com um sorriso triste.

Vivendo há três meses nas ruas e nos abrigos do País, Sérgio já passou por várias cidades. "Se você precisa de um bom albergue, vá para São Paulo. Segundo os últimos dados que vi por aí, são cerca de 46 albergues só em São Paulo", diz.

A articulação de Sérgio, que conversa sem escorregões no português, respeitando a gramática normativa, deixa-me um tanto surpreso. Por um momento, desconfio que o jornalista disfarçado de andarilho é ele, e não eu. "Acho difícil estar realmente lotado. Olha só o tamanho desse prédio: é grande demais", diz, observando o albergue que comporta até 200 pessoas. "Maringá é uma cidade estratégica para quem está na rua: aqui mesmo, no abrigo, eles te dão uma passagem de ônibus para qualquer lugar do País", comenta.

Aos 39 anos, nascido em Botucatu (SP), Sérgio já trabalhou em diversas funções. Chegou a um alto cargo no hotel Ibis, em Campinas (SP). Foi lá, também, que ele cursou Administração, na PUC, até o segundo ano. E abandonou a faculdade após romper com a namorada da época, com quem morava junto e com quem dividia as contas de um apartamento e um carro. Com o fim do romance, ele se meteu no tráfico. Foi preso duas vezes. Sem dinheiro, Sérgio saiu da cadeia e foi para as ruas. Enquanto comenta os rumos de sua vida, os berros estridentes de aleluia, aleluia, aleluia ecoam cada vez mais alto de dentro do albergue. "Está vendo o contraste? Lá dentro, cantam e rezam para Deus, pregando o amor ao próximo. Enquanto isso, estamos aqui fora, sem ter onde dormir nem o que comer. É uma falta de cultura da sua cidade. Em qualquer outro albergue, alguém já teria nos convidado para entrar, pelo menos para ouvir a palavra de Deus", lamenta.
É sinal de Deus

De repente, a reza acaba. Uma caminhonete sai pela garagem. Do carro desce uma morena quarentona, que vem ao nosso encontro. Traz na mão dois pequenos embrulhos com lacinhos azuis. Do meio da rua ela anuncia: "Vocês creem no Nosso Senhor? Isso é para vocês: kit de higiene pessoal", diz a mulher, entregando um embrulho para mim, outro para o Sérgio. É tudo muito rápido. Sem nem ao mesmo olhar nos nossos olhos, ela vira as costas e aperta o passo rumo à caminhonete. Sérgio fica feliz com as duas escovas, um creme dental e os dois bombons ensacados. "Pelo menos, ela nos viu aqui", comenta. "É um dos sinais de Deus. Ele está aqui com a gente." Logo depois, outro carro sai da garagem e para no acostamento da rua. Uma mulher cinquentona vem ao nosso encontro.

"Vocês creem em Deus, irmãos? Em Jeová? São evangélicos?"

Nada não respondo.

"Tenho meus princípios religiosos. Sou temente a Deus", diz Sérgio, com um sorriso.

A mulher evangélica, uma das responsáveis pelos berros estridentes, aos poucos se aproxima.

"Vocês estão com fome, irmãos?"

Ela parece perguntar de verdade. Parece realmente interessada em nos ajudar.

"Sim, estamos famintos", eu digo.

"Então caminhem até a praça da rodoviária. O pastor está agora lá no culto, tem comida para todos. É só ir andando reto que vocês chegam lá", convida.

"O guarda disse que o albergue está lotado. Você consegue nos ajudar a dormir aí no albergue?"

"Ah, irmão, isso eu não consigo. Mas pode ficar tranquilo, viu?", comenta, olhando para o céu: "Você estão no relento, mas estão com Deus, nosso Salvador, e ele dará uma noite agradável, sem chuva e com clima bom. Deus não é mesmo maravilhoso?", diz ela, já seguindo ao carro.

Quentinha com frango salvadora

São quase 21h e a fome bate forte. Por sorte, Sérgio consegue duas marmitas com um pessoal que acaba de chegar no albergue. Num embrulho de alumínio, arroz, feijão, macarrão ao alho e óleo e um pedaço generoso de frango frito. Famintos, sentados de frente para o albergue, regalamo-nos e fartamo-nos com o rangão: coisa fina. "Vamos até o culto na praça. O importante, agora, é se manter ocupado. E aproveitamos para comer mais por lá", sugere.

Andando, Sérgio aproveita para me dar algumas lições de sobrevivência nas ruas. "Coma bastante: sua saúde tem que estar sempre impecável. Afinal, você não tem como se tratar de alguma doença. Outra coisa: tome muito cuidado com a higiene dos abrigos. Conheci um rapaz que pegou uma infecção no pé, no mesmo albergue em que eu estava, e, como ele não se tratou, a coisa ficou bem feia para ele. Acho até que teve que operar."

A possibilidade de dormir na rua é grande. O plano é encontrar uma marquise iluminada, porque "ficar no sereno é outro risco". Mas há outra opção: "Podemos dormir na rodoviária da cidade. O ruim é que não dá para deitar: tem que ficar sentado".

É curioso: Sérgio prefere dormir no meio da rua do que num lugar relativamente seguro. E, bem vestido, com a mala nas costas, será mais um entre tantos passageiros noturnos. Ninguém vai incomodá-lo.

A caminhada demora pouco mais que vinte minutos. E quando a evangélica cinquentona nota a nossa presença na praça, já abre um sorrisão. Alguém nos serve dois pratos de marmita. Dessa vez, no lugar do frango, tem carne. Os acompanhamentos são os mesmos: macarrão e arroz com feijão. No palquinho se engalfinham meia dúzia de evangélicos - alguns de terno, num calor quase infernal.

Sérgio só comerá a marmita depois do culto. Ele diz que ainda não decidiu onde dormirá, mas que certamente será na rua, para poder esticar o corpo. Ele não sabe se ficará em Maringá. Tudo depende de amanhã, se conseguir abrigo. Caso ofereçam uma passagem de ônibus, talvez siga para o interior de São Paulo, para Ponta Grossa, qualquer lugar serve. Deixo meu kit de higiene pessoal para Sérgio. De dentro da sacola, tiro a camiseta novinha, com a estampa de algum evento do jornal, e também deixo com ele. Desejo-lhe boa sorte. Sérgio abre um sorriso. Evangélicos, em pé, gritam aleluia, aleluia, aleluia.

'AGENTE AGIU DE FORMA EQUIVOCADA'

Segundo Oswaldo Zanollo, presidente há 18 anos do Albergue Santa Luiza de Marillac, o agente da Guarda Municipal agiu de forma "equivocada" ao negar abrigo para mim e para Sérgio, naquela terça-feira. "Ele deveria ter acolhido vocês. Ele jamais poderia ter dito isso, não é assim que se faz. É um guarda novo que está trabalhando há pouco tempo com a gente", justifica.

Oficialmente, de acordo com uma lei de 2009, o albergue deveria receber 30 pessoas diariamente. Mesmo em dias quem chegam a 32 hóspedes, como naquela terça-feira, o abrigo continua recebendo uma média de 140 pessoas. "Temos capacidade para receber até 200 pessoas por dia. O que nós não fazemos, de forma alguma, é recusar a acolhida."

Diferentemente do que foi dito pelo agente da Guarda Municipal, Zanollo salienta que o albergue funciona 24h, acolhendo, portanto, as pessoas até mesmo na alta madrugada, se for o caso. "Funcionamos nos 365 dias do ano. Até no Natal e no Ano Novo estamos de portas abertas", garante.

Há 56 anos, o único albergue da cidade recebe, sim, gente de Maringá, ao contrário do que alegou o funcionário da Guarda Municipal.

"Não importa a cidade de origem: nós recebemos. Aceitamos até gente sem documento. Nunca negamos abrigo e alimento".

Diretor da Guarda Municipal, o sargento João Carlos Virmond Porto afirmou que vai analisar o caso. Ele também criticou a postura adotada pelo agente.

"Eu tenho que ver isso com calma, mas parece que está errado, sim. Isso não existe. Tem que acolher, sim".

Mantido à base de doações, o Albergue Santa Luiza de Marillac oferece, além da cama, roupas, comida e banho. Doar passagens de ônibus para os abrigados é prática comum por lá. São Paulo, Fortaleza (CE), Curitiba, Cascavel e Campo Grande (MS) são os destinos mais comuns.

"Doamos uma média de 500 passagens por mês", contabiliza Zanollo. "É uma forma de ajudar a pessoa a chegar até a casa de algum familiar. Para isso, temos assistentes sociais que verificam se a pessoa tem mesmo parentes na cidade em que ela deseja ir, ou se a pessoa está só querendo andar de ônibus", diz.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Verdades do Cogumelo

Publicado no Correio Braziliense (17/6/2014)

“Tem um cara muito estranho querendo falar com você”, avisa a secretária, discretamente apontando para a sala ao lado. Curiosa, ela indaga quem é o sujeito. Digo o nome dele e de sua banda: Blanch Van Gogh, cantor e letrista do Cogumelo Plutão. Não adianta nada. Tento cantarolar, em vão, os versos de “Esperando na janela”, o maior – e único – hit da banda brasiliense. A secretária sai de cena um pouco desapontada e sigo ao encontro de Blanch. 

Mesmo que ela se lembrasse da fisionomia do cantor, seria impossível reconhecê-lo, ali, sentado à mesa: acima do peso, rosto inchado, o cabelo todo ensebado e desgrenhado, não dá para imaginá-lo rolando no chão e entoando o tal hit da janela, como ele fez no clipe da música em 2000.

Gente boa, Blanch estende a mão e vai direto ao assunto: 14 anos depois dos poucos minutos de fama e do misterioso desparecimento de sua banda – que sumiu do mapa sem qualquer aviso oficial –, ele está retomando, finalmente, o Cogumelo Plutão. “Quero começar pelo Paraná porque nosso último show foi aqui no estado. Precisamos fechar esse ciclo e iniciar um novo”, justifica. Empolgado, ele adianta que, em julho, sai o álbum de músicas inéditas (“Amor à Primeira Vista”) e que a turnê, composta por 40 shows, começa em agosto. Ainda não há datas confirmadas.

O sumiço do Cogumelo Plutão, ele conta, foi culpa de um aneurisma. Por causa disso, Blanch foi se tratar nos Estados Unidos, onde teria passado dois anos “entre a vida e a morte”. Enquanto ele vai explicando sua epopeia, a voz sempre calma e serena, algumas histórias inacreditáveis surgem nos relatos. “Nos EUA, fiquei muito tempo numa cadeira de rodas e escrevi um livro que se tornou best-seller lá. Desde então, sou citado em todos os lugares por intelectuais e artistas europeus”, garante, já emendando outro detalhe surreal de sua biografia: “Não sei se você sabe, mas, na Europa, sou considerado um dos maiores artistas plásticos contemporâneos”, avisa, com um generoso sorriso.

Com o hit da janela, vertido a diversos estilos musicais por uma penca de artistas, do sertanejo “universitário” de Cesar Menotti & Fabiano à balada soporífera de Angélica, Blanch diz ter embolsado “bem mais do que R$ 2 milhões” com os direitos autorais. São dele, também, as músicas “Beijar na boca” e “Uma vez mais”, que explodiram, respectivamente, com Claudia Leitte e Ivo Pessoa. “Sou o décimo maior arrecadador de direitos autorais do país”, gaba-se, do outro lado da mesa.

Só grandes amigos

Aproveitando tantas notícias bombásticas, resolvo perguntar sobre o seu amigão Renato Russo. “É verdade que você era namorado dele?”, questiono. Blanch abre um sorrisão malicioso. “Plantaram essa notícia de que eu era namorado do Renato em 1992. Fomos grandes amigos, mas não namorei o Renato. Mesmo porque o Renato não namorava ninguém, não era fiel a ninguém. Se eu tivesse namorado ele, não teria vergonha em dizer”, revela.

A vivência com Renato Russo foi fundamental para que Blanch se dedicasse, de corpo e alma, ao seu Cogumelo Plutão. “Ele me enchia para fazer a banda. No nosso primeiro show, em São Paulo, o Renato estava lá com a gente, cantando e me incentivando. Conheci um Renato diferente, sabe? Não esse aí, o estereotipado do cinema. Cheio de necrófilos em volta... Sabe uma coisa que ele sempre me dizia? ‘Acredite em si mesmo’”, recorda-se. Tão próximo do líder da Legião Urbana, Blanch afirma que acabou servindo de inspiração para algumas canções, como “Vento no litoral".

“Lembro-me que, um dia, eu ia encontrar o Renato no apartamento dele, mas ele simplesmente ficou trancado lá com um namorado. Depois, quando foi à minha casa, eu não o recebi e fiquei com a minha namorada. Quando nos encontramos, ele olhou para mim e começou a dizer: ‘Já que você não está aqui’. E isso, como a gente sabe, virou um clássico. Eu o influenciava e ele me influenciava também. Pense em nós como dois grandes artistas, que se influenciaram mutuamente, tal como os pintores expressionistas”, compara, modestamente.

16 inéditas

“Agora, vou te contar uma coisa”, ele avisa. E faz uma pausa abrupta, forçando um tom dramático à fala. Ele não parece um cara ansioso, nervoso. Mas as unhas roídas, acumulando uma fina camada negra de sujeira, parecem denunciar o contrário.

O que pode ser mais surpreendente do que ele ser um dos maiores artistas plásticos contemporâneos na Europa? Ou, então, ter escrito um best-seller nos EUA, que lhe garantiu a glória e o reconhecimento de artistas e intelectuais europeus? Com Blanch, tudo é possível. “Tenho 16 músicas inéditas, gravadas, do Renato Russo. Oito são músicas só dele e as outras oito são composições nossas”, revela, citando, como exemplo, duas canções: “Camisinha Amarela” e “Plus-Ultra”.

Pouco caso

Em 2006, Blanch diz ter avisado a gravadora EMI da existência do material inédito e, em seguida, teria entrado em contato com o escritório que administra o legado de Renato Russo. A tentativa de aproximação, ele vai resumindo, foi frustrante. “Fui destratado por uma das funcionárias e nunca quiseram saber de mim. Então, por lei, não posso mexer nesse material. Imagino que isso não tenha chegado ao conhecimento do Giuliano Manfredini, que é filho do Renato e é um garoto que eu respeito muito”, reclama.

“Tudo o que eu queria era que o Giuliano tomasse conhecimento dessa situação e me autorizasse a usar o material”, sinaliza o cantor. Pergunto, então, sobre a qualidade do material. O amigão de Renato Russo se aproxima da mesa, finca os cotovelos (eis a cartada matadora de Johnny Moss!? a mão danada de Doyle Brunson!?), e responde calmo, porém firme: “Posso te afirmar que são as melhores músicas que o Renato compôs”, anuncia.

Quando Blanch vai embora, penso no espanto da secretária (“tem um cara muito estranho querendo falar com você”), imagino o concorrido vernissage de Blanch Van Gogh no Museu de Arte Moderna de Paris – boa parte do público, basicamente formado por empresários do sertanejo “universitário”, levando o best-seller dele a tiracolo – e acompanho uma centena de intelectuais europeus rolando no chão e entoando as 16 músicas inéditas de Renato Russo – infelizmente, todas elas são executadas ao mesmo tempo, sendo impossível discernir uma de outra. É um enredo rocambolesco e aloprado de um filme surrealista. Na última cena, o vento, em zoom, vai levando tudo embora.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Conversa com O Vampiro

Publicado no Correio Braziliense (11/1/2014)

Dalton Trevisan abre a porta de sua casa: uma fresta de apenas quinze centímetros. Espaço suficiente para um cachorrinho Basset desertar e correr três metros em direção ao portão de ferro que dá na calçada. Cautelosamente exposto, Dalton Trevisan espia pela fresta: protegido de qualquer fotógrafo espertalhão que aparecer, ali, em busca de um raro flagrante. Ele está vestindo alguma coisa azul, é só o que dá para perceber daqui, com a porta entreaberta. Mudo, Dalton Trevisan contempla a performance de seu guardião impávido e colossal, latindo bravamente na frente de um casal desconhecido. E nada não diz.

“Somos seus leitores.Viemos te dar um presente, Dalton”, eu explico, exibindo, na mão direita, um embrulho colorido.

O escritor permanece quieto, provavelmente pensando em como se livrar da visita inesperada. Se fosse um dia de semana, talvez ele indicasse a livraria do Chain, a poucos metros de sua residência. Deixaríamos o presente com uma das atendentes, e ele pegaria depois. Mas é domingo, seis horas da tarde. A livraria não está aberta e nem há pessoas nas ruas, com exceção de um ou outro curitibano perambulando na calçada e dos motoristas que cruzam, em alta velocidade, a esquina onde ele reside.

“Espere só um momento”, o escritor responde,finalmente. Em seguida, bate a porta da casa e desaparece lá para dentro, escoltado pelo fiel cachorrinho. Aconteça o que acontecer, a partir de agora, é preciso ter todo o cuidado do mundo: é o que tento dizer para a minha namorada, apertando forte a sua mão. Afinal, Dalton Trevisan está mal-humorado.

Quem dedurou o estado de humor do recluso contista curitibano foi uma atendente da livraria do Chain, local onde Dalton Trevisan troca mensagens com sua editora e, pelo menos até recentemente, autografava os livros deixados pelos seus leitores. Por isso mesmo, no sábado, passei pela livraria e entreguei sete obras à balconista. Para a minha surpresa, ela recusou a encomenda dos autógrafos.

“Olha, infelizmente, eu não posso ficar com os seus livros. O Dalton não está assinando mais nada”, avisou. Segundo a funcionária, há poucos dias apareceu um leitor e comprou todos os livros disponíveis do contista curitibano. Aproveitando a visita, o cliente pediu que as atendentes coletassem a assinatura do escritor em todas as obras adquiridas.

“Quando o Dalton veio, não assinou nenhum dos livros e disse que não iria mais autografar nada. Ele está de mau humor. Daqui a uns dias, ele volta ao normal”, contou.

Tentar um encontro com o Vampiro de Curitiba, ali na livraria, não é a estratégia mais aconselhada, a menos que o leitor tenha tempo de sobra.“Ele vem quase todos os dias, mas sempre em horários diferentes. Às vezes, às 9h, às 11h, à tarde. Nunca dá para saber”.

Oscilações de humor


Aos 88 anos, Dalton Trevisan continua misterioso. Dos jornalistas e fotógrafos mantém uma distância quase paranoica: aperta o passo, em fuga, quando é abordado para entrevistas. Ignora os eventos literários, não comparece às homenagens que lhe são prestadas, nunca deu as caras para receber os prêmios acumulados em sua trajetória. Quieto, cultiva um ritmo de produção assustador. Desde a estreia com “Novelas Nada Exemplares” (1959), ele já publicou mais de quarenta obras. Só no ano passado foram duas: “Novos Contos Eróticos” (Record) e “Até Você,Capitu?”(L&PM Pocket).

Mesmo com o alerta da vendedora, de que Dalton Trevisan não está em seu melhor humor, resolvo insistir na aproximação. E passo um sábado inteiro, em vão, na porta da casa do escritor, esperando que ele saia para seus passeios diários.

A casa de esquina, onde mora Dalton Trevisan, é grande e antiga, com muros altos e cinzentos. Há um ar macabro naquela residência. Três janelões, na frente da casa, dão para a rua Ubaldino do Amaral, mas estão sempre fechados e protegidos por cortinas. Lá de dentro não se escuta som algum: é tudo estranhamente silencioso demais. Há um sótão sinistro, com vista para a frente da residência, e um puxadinho, no fundo, onde Dalton Trevisan passa as manhãs escrevendo. Ele escreve diariamente e, em seguida, sai flanando pelas ruas do centro de Curitiba. Nas longas caminhadas, aproveita para coletar gírias e observar os bêbados, malditos, maltrapilhos, prostitutas e viciados, que, depois, serão retratados em seus contos.

Mas Dalton Trevisan não é o único observador em Curitiba. Quem passa pela casa do escritor sempre dá uma espiada lá para dentro. Jovens trepam nos grandes muros cinzentos. Namorados erguem suas companheiras na calçada, próximo ao muro. Senhores e senhoras interrompem a caminhada e, por alguns segundos, contemplam o quintal e o bosque pelo portão de ferro. Todas as tentativas são frustradas. E os curiosos sempre saem rindo da missão malfadada.

Naquele sábado, Dalton Trevisan permaneceu trancafiado em sua reclusão. No dia seguinte, com a fé no calor do domingo curitibano, aguardo o contista sair para o almoço, a partir das onze horas da manhã. E nada. Ele deve ter almoçado alguma coisa em casa.

Os curiosos continuam se pendurando nos muros, sem vestígios do contista. E já prevendo o fracasso da aproximação com Dalton Trevisan, um final de semana desperdiçado em vão, resolvo chamá-lo à porta.Toda a paciência tem limites. São seis horas da tarde. Se ele não saiu até agora, num bendito domingo de Sol, não sairá mais. O portão é tudo o que resta. Um minuto de palmas.

Estridentes, fazem eco na entrada da casa. Anunciado três vezes ao portão, o primeiro nome do Vampiro de Curitiba. Como previsto, sem resposta alguma. Então, vem o cachorro. A fresta de quinze centímetros. Dalton Trevisan vestindo algo azul. Menciono o presente. E ele pede que esperemos.

Roupão azul

Tomo um susto danado quando Dalton Trevisan, quem diria, abre um dos janelões de quase três metros de altura, que dão para a rua Ubaldino do Amaral, logo ao nosso lado.
Saímos do portão de entrada e vamos à janela: Dalton Trevisan está na nossa frente, totalmente exposto, exibindo um sorriso gentil.

“A que devo estes presentes?”, pergunta, com a voz grave e amistosa.

Dalton Trevisan está vestindo um roupão azul. Seu cabelo, úmido, está cuidadosamente penteado para trás. Ele deve ter saído do banho há poucos minutos.

“Você gosta de goiabada cascão?”, e já vou estendendo o embrulho colorido.

“E quem não gosta?”, responde, aceitando o presente, sem economizar no sorriso.

“Tem ainda algumas gomas árabes, rahat. Espero que você goste. Poderia assinar os nossos livros?”, indago, entregando um exemplar de sua última obra,“Novos Contos Eróticos”.

Dalton Trevisan pega o livro e sai um pouco da janela. Lá dentro, numa antiga mesa de madeira, ele apoia a obra e assina seu nome, rapidamente, sem dedicatória.

Ao entregar o livro autografado, Dalton Trevisan estende à janela dois exemplares de suas obras:“35 Noites de Paixão” e “Até Você, Capitu?”

“Estes são para vocês”, ele avisa.

Em seguida, minha namorada pede uma assinatura na obra que acaba de ganhar de presente. Dalton Trevisan está tirando o plástico do livro quando uma voz esganiçada chega por trás de nós, quase berrando:

“Ai, posso tirar uma foto?”

Maldito celular

Num pulo, Dalton Trevisan se esconde atrás da cortina. É inacreditável. Depois de tanto tempo à espera, uma infeliz curitibana cinquentona, caminhando com roupa de ginástica, põe todo o encontro em xeque, apontando um maldito celular para o rosto do Vampiro. Viro-me rapidamente para a desconhecida. Não, não, sem fotos, sem fotos, eu digo, quase gritando, enquanto ela pede desculpas e sai de cena, caminhando rápido, nem um pouco constrangida.

Escondido atrás da janela, Dalton Trevisan faz um sinal com a mão direita e pergunta se ela foi embora. Nós o tranquilizamos. Respondemos que sim, ela já foi. Está tudo bem, pode voltar. Dalton Trevisan dá uma espiada pela fresta da janela e surge novamente, estendendo o livro assinado à minha namorada. O susto já passou. Ele realmente parece aliviado.

“Dalton, existe lirismo na sua literatura?”, questiono.

“Basta abrir o livro e você vai ver”, responde, com um sorriso generoso.

“E qual sua opinião sobre esses críticos literários que, desde a década de sessenta, insistem em dizer que você continua se repetindo?”

“Eu não leio os críticos”, diz, rapidamente, sem abrir mão do sorrisão camarada.

O escritor olha em nossos olhos. Um casal embasbacado, feliz da vida pela façanha dominical. É tudo muito inesperado: Dalton Trevisan, de cabelo molhadão e de roupão azul, sorrindo na janela, atendendo seus leitores. Mau humor ali? Jamais.

“Agora, eu já falei demais. Obrigado pelos presentes. Tchau para vocês”, despede-se o Vampirão, fechando a janela.