segunda-feira, 11 de julho de 2016

A noite em que Rafael Castro quebrou a guitarra

Rafael Castro e Os Monumentais tocam hoje no Tribo’s”, anunciava o panfleto capenga pregado na parede do bar. A entrada custava R$ 15 ou R$ 20, não lembro exatamente, mas certamente não era mais caro do que isso. O bar estaria completamente deserto não fosse uma ruiva e uma morena conversando com um sujeito magricelo e careca.

Pesadelo de todo empresário, maravilha de qualquer boêmio. Ali, você poderia buscar sua bebida no balcão tranquilamente, sem a epopeia cruzando hordas de sujeitos aleatórios, todos embriagados, em meio a saltos mortais, desvios bruscos, cotoveladas, empurra-empurra e outras estratégias recorrentes em aglomerações sonoras, independentemente do estilo musical, do pagode ao funk, do metal ao gospel.

“Essa noite ainda pode ser épica”, comentou, sem qualquer resquício de empolgação, meu amigo Daniel Orsini. Físico e boêmio, ele insistiu em me levar para ver o show do tal Rafael Castro - mais para tomar uns pileques do que para ouvir o som. “Se for um desastre”, disse, “nenhuma alma vai testemunhar”.

Essa, a vantagem dos pessimistas. O otimista sempre levará uma vida pior que o pessimista porque, diante das inevitáveis frustrações, ele fatalmente se decepcionará. O pessimista, por outro lado, encara a vida como deve ser: enfadonha e entediante, e qualquer coisa diferente que apareça já é lucro. Não conhecia o som do trio paulistano. Dias antes, cheguei a ouvir qualquer coisa na internet. Lembro da guitarra e das gravações propositalmente toscas, mas não recordo, hoje, qualquer canção marcante. Não sei assobiar uma única música do Rafael Castro e os Monumentais - e talvez fosse uma obrigação moral depois de tudo o que ele nos proporcionou naquela noitada.

Falávamos sobre música e provocações. O rock, afinal, sempre esteve profundamente relacionado com a transgressão. Transgredir: ultrapassar o limite de algo. Bob Dylan, quando abandonou o violão no quinto disco e partiu para a guitarra elétrica, debandando do folk e, produzindo canções mais pesadas, assumiu um papel inegavelmente transgressor, sendo, inclusive, vaiado, xingado e amaldiçoado pela audaciosa proposta sonora. Hoje, não há quem negue a Dylan sua relevância ao rock mundial nem quem condene a mudança de rumo; aquelas opiniões negativas ficaram eternamente condenadas a sérias revisões críticas.

Evidentemente, as transgressões não são exclusivas de roqueiros. Debussy, ao apresentar “Pelleas Et Melissande”, foi extremamente criticado e houve quem abandonasse o teatro antes mesmo do fim da ópera – hoje, um clássico indiscutível. O compositor francês rompia com os paradigmas musicais da época e fazia de sua arte um novo caminho para as próximas gerações. Stravinsky, com a “A Sagração da Primavera”, e Tchaikovsky, com “O Lago dos Cisnes”, também levaram vaias devido à audácia estética de suas estreias. Nesse sentido, com provocações e urros de desgosto, os acordes de Debussy, Tchaikovsky e Stravinsky soam tão rock n’ roll quanto as canções de Bob Dylan.

Insistindo na provocação, vamos enumerando outros rocks e roqueiros injustamente ignorados: 1) a explosão erótica de Oswald de Andrade; 2) a batida sincopada de João Gilberto; 3) as reboladas agudas de Ney Matogrosso; 4) as figuras diabólicas de Iberê Camargo; 5) os versos subversivos de Geraldo Vandré; 6) a psicodelia de Ronnie Von. E só interrompemos a produção da lista para ouvir a conversa da mesa ao lado, surpreendente. “O Nasi veio no Tribo’s depois de um show do Ira!. Daí começou a beber, fumar e ficou tão louco, querendo fazer outras coisas, que foi expulso pelos seguranças”, disse a ruiva.
“A Camila Morgado também esteve aqui, tomou caipirinhas e ninguém percebeu que era ela! Esbarrar na Camila Morgado no Tribo’s deve ser como encontrar o Lula numa livraria: você até reconhece, mas nunca acredita que seja o mesmo!”, comentou a morena.

“E o show do Ludovic?! Que loucura foi aquilo”, comenta o magrelo. As duas moças escancaram curiosidade. “Você viu o show do Ludovic?!”

“Claro!”, gaba-se o sujeito. “Era uma noite dessas, ó, sossegadona. Mas o bar não tava tão vazio como hoje”, diz o sujeito, espiando mais duas almas que acabam de chegar e pegam lugares não distantes dali.

“No início, achei que seria uma noite normal. Mas não sabia que seria inesquecível.”

“E como o grande Jair Naves estava?”

“Louco. Muito louco. Sem camisa, ele ficou se debatendo diversas vezes contra o chão, acho até que arrancou, com a mão, umas lascas do palco. Cuspiu cerveja na cara do companheiro de banda, o guitarrista ou baixista, e, em seguida, desceu do palco, alucinadão, caçando alguma cadeira de plástico.”

“Uma cadeira de plástico?!’

“Quando achou a bendita cadeira, levou o treco para cima do palco e se enfiou debaixo dela, agachado, como se estivesse preso, e continuou cantando. O Jair só saiu lá debaixo depois, bem depois. Largou o microfone num solo de guitarra, saiu correndo pelo bar e, depois de uns dois minutos, voltou como se nada houvesse acontecido.”

O solo de guitarra, de repente, degolou a conversa. O tal Rafael Castro surgia com um surrado chapéu de pescador hippie, velha bermuda branca e camiseta regada verde. Cabelão ensebado nas costas, vasta barbona de profeta, olhos alucinados de felicidade – imaginaria, ali, um Rock in Rio só para ele? Não se incomodavam, ele e os Monumentais, de tocar para o mínimo público de apenas nove desconhecidos? Por que não cancelar? Devolver o dinheiro? Alegar dor de cabeça e cair na estrada rumo à próxima cidade, talvez Londrina, com mais fãs? O que, de fato, o motivou? Teria pensado, o tal Rafael Castro, naqueles poucos coitados que desembolsaram dinheiro e que talvez muito esperavam pela apresentação? Precisaria, ele, tanto assim do dinheiro, que, somando toda a portaria, daria uma média de R$ 135? Nessa tarde saudosista, entre uma e outra pergunta, me dou conta que já vi, em Maringá, algumas cenas provocantes. Jorge Mautner, por exemplo, cantando a capella (!), uma música erótica sua e de Caetano Veloso, “Tarado”, estrategicamente na frente da Catedral, foi um desses momentos inesquecivelmente transgressores na história do rock maringaense.

Gostaria de ter testemunhado, também, outras cenas. O show do Barão Vermelho no Chico Neto, com Cazuza e Frejat trocando socos e pontapés nos camarins. Aquela apresentação do Raul Seixas. O show dos Raimundos, com Rodolfinho Abrantes ainda não cristanizado, tocando com entrada grátis na UEM. Por mais shows que você testemunhe, a vida nunca será o bastante. É impossível dar conta de todas as melodias.

“Tá tudo bem com vocês, Maringá?!”, pergunta Rafael Castro, escancarando sorrisos de rockstar.

Havia um certo constrangimento coletivo. Público e banda não sabiam direito como se portar. Qual a maneira correta de agir diante do vazio? Na multidão, você é só mais um. E pouco importa se você cantar um determinado trecho de música, talvez errado, ou se vai improvisar uns passos de tango, certamente errados, com sua companhia.

“Tá tudo bem com vocês, Maringá?!”, insiste o rapaz, empunhando a guitarra.

É aí que o climão de constrangimento dá espaço a uma nova sensação. Um show sem barreiras entre público e artista, com canções servidas à la carte. Aos nove pagantes, Rafael Castro e os Monumentais fizeram um dos melhores shows que ninguém viu na história do rock maringaense. Não há registros fotográficos nem gravações daquela apresentação. Cada solo escapava da alma. Em que ano estávamos? As músicas eram entoadas com fervor. 2007? Impiedoso, o baterista descia a mão no surdo, na caixa, nos pratos. 2006? Quieto e calado, o baixista fazia suas cordas berrarem. Que memória traidora. Os nove pagantes estávamos todos colados ao palco. Só a música tinha direito à fala. Ninguém se importava com o mundo lá fora. Consciente dessa ligação quase sobrenatural, Rafael Castro tirou a guitarra vermelha do corpo e socou, com ela, o palco do Tribo’s, surpreendendo o resto da banda, que passou a tocar ainda mais alto. Você já tentou quebrar uma guitarra, caríssimo leitor? Não é tão fácil como nos filmes. A primeira batida, na verdade, é só para desestabilizar. A segunda, com mais força, extirpa alguns detalhes externos, como captadores, botões de volume, algumas cordas rompem, mas o corpo da guitarra ainda está ali, resistindo, quase intacto. É só na oitava batida, depois de jorrar estilhaços pelo palco, que a guitarra vermelha, finalmente, deita estraçalhada e sem vida. Rafael Castro e os Monumentais deixam o palco debaixo das palmas febris do coração. Aquelas nove pessoas nunca pediram um bis com tanta devoção – o que, evidentemente, seria impossível diante do estado da guitarra.

Se pudesse escolher, eu estaria bebendo vinho naquela noite, e não cerveja. “A embriaguez da cerveja é a mais ruidosa e a mais bonachona do que a do vinho”, define o mestre Milan Kundera. A culpa dessas noites maringaenses tão barulhentas, simples e estrondosas, é toda da ausência do vinho. E me pego pensando nisso exatamente agora à tarde, comemorando antecipadamente o Dia do Rock, celebrado no dia 13 de julho. Vou empunhando na sala a taça de um Toro Loco, balançando-a suavemente de um lado para o outro, enquanto o tom avermelhado do vinho tenta escalar a taça, em vão, na turbulência que eu mesmo dito e interrompo. Nas laterais, o vinho que escorre de volta à base da taça deixa vestígios de imagens de guitarras e baterias, flashes do Terminal Guadalupe mandando “Pernambuco Chorou”, da Sexta Geração da Família Palim do Norte da Turquia tocando “O Papa tem Artrite”, do Charme Chulo, do Lobão berrando “Dilma Bandida!” no MPB Bar, de uma moça morena que exige mais uma canção do Marcelo Nova, do show do Ecos Falsos com os integrantes da banda desolados à espera do público, da Relespública fazendo todo mundo dançar num boteco apertado, da noite em que Rafael Castro quebrou sua guitarra para nove pessoas em Maringá, do sol que insiste em romper a escuridão no fim da madrugada quando o segurança do Tribo’s, cordialmente, escancara a porta, permitindo que você chegue à calçada e volte para casa cheio de histórias transgressoras e subversivas.

Publicado no Diário (10/7/2016)