segunda-feira, 18 de abril de 2016

Beatas berrantes à espera do milagre

Gritos. Berros. Histeria coletiva. Olhos ensopados de lágrimas. Mãos e braços tremelicantes. Cantorias e palminhas na fila quilométrica. Onde você está mesmo? Prestes a entrar no camarim do Paul McCartney? Não. É um público diferente. Olhe à sua volta. Velhas, muitas velhas. Velhas rezando terço. Velhas enfrentando filas de até cinco horas. Velhas desafinando o punhado de canções religiosas. Velhas com tubo de oxigênio. Velhas zanzando em cadeiras de rodas. Velhas exigindo filas prioritárias – com qual fim, se são todas velhas?

Pode a bomba cair duas vezes no mesmo lugar? Sim, ela cai.

Oito meses depois, aqui estamos, no shopping Catuaí, novamente à espera do padre Marcelo Rossi. Da última vez, tentei de todas as formas me aproximar, sem sucesso, do padre-cantor. Por meio da assessora, descobri que ele só havia atendido a Globo e o SBT. O jornal impresso não era o foco dele. Curioso, isso. No início de tudo, não era só o verbo?

Determinado a falar com o padre, pedi conselhos ao meu amigo Baiano. Engenheiro mecânico e, nas horas vagas, ateu por natureza, ele é um grande leitor de Daniel Dennett, Richard Dawkins e Christopher Hitchens. Por e-mail, Baiano me encaminhou 39 perguntas que eu deveria fazer ao padre-cantor, como: 1) Por que Deus abriu o Mar Vermelho para que Moisés tirasse os judeus do Egito, mas não abriu os portões dos campos de concentração?; 2) Cristãos dizem que se um bebê morrer, ele vai para o céu. Por que, então, os mesmos cristãos são tão contrários ao aborto, se isso privaria as crianças de irem para o inferno?; 3) Por que Deus mandou o dilúvio para eliminar o mal na Terra, se não funcionou, e o mal voltou logo em seguida? Deus, onipotente e onisciente, já deveria saber que isso aconteceria. Por que, então, ele se deu ao trabalho?; 4) Cristãos adoram dizer o quanto Jesus se sacrificou por nós. Mas, se ele era Deus, então como não sabia que, em três dias, estaria no céu para nos governar? Se ele está lá vivo, o que exatamente ele sacrificou?; 5) Todos somos, realmente, filhos de Deus? Até mesmo Charles Manson, Suzane Von Richthofen, Motoqueiro Atirador de Goiânia, Maníaco da Torre, Luan Santana?

Além das questões religiosas do Baiano, também tenho minha listinha de indagações, mais direcionada às veredas culturais – que revelam, e muito, as peculiaridades de qualquer sujeito. Prefere, o padre-cantor, Lennon ou McCartney? Woody Allen ou Pedro Almodóvar? Sasha Grey ou Sensi Pearl? Essas respostas, infelizmente, você jamais saberá. Porque o assessor de imprensa das Livrarias Curitiba, mesmo sem saber quais perguntas levo na manga, já elimina qualquer possibilidade de diálogo com o padre-cantor. "Infelizmente, o padre Marcelo só vai atender os veículos de comunicação que agendaram previamente a entrevista. Sinto muito, Gaioto."

Churrasqueiro da fé

Sem acesso ao padre, pego minha listinha de perguntas e vou direto ao povo – não é a tal voz de Deus? Às duas em ponto, quase 800 velhas e tiazonas enfileiradas. A primeiríssima, Marina David, 57, chegou às duas da madrugada. Fã do padre-cantor, ela já ganhou a bênção dele no ano passado. "Mas foi rápido demais, porque já estava muito tarde e o padre acelerou o atendimento." Dessa vez, Marina não hesitou em perder um dia de trabalho só para ser a primeirona. "Acho que vou ter mais tempo pra falar com ele, né? A palavra dele me leva à comoção. Ele é diferente dos outros padres. Nem se compara ao padre Fábio de Melo, que é só cantor. O padre Marcelo é mais espiritual: ele acende o fogo da fé."

Gostei de Marina. Talvez ela seja a pessoa certa para responder as perguntas do Baiano. Tiro a listinha do bolso e escolho uma pergunta aleatoriamente. "Cristãos dizem que se um bebê morrer", vou lendo em voz alta, "ele vai para o céu. Por que, então, os mesmos cristãos são tão contrários ao aborto, se isso privaria as crianças de irem para o inferno?"

Sem respostas, Marina até esboça alguma coisa, mas desiste. Acuada, busca ajuda no rosto das amigas. Rapidinho, o batalhão de velhas fiéis te cerca, metralhando uma porção de respostas para todos os lados.

"Porque todos temos direito à vida!"

"Quem vai parar no inferno são os médicos!"

"Isso é coisa de assassino."

"Qual diferença de quem tira a vida de um bebê e de um homem?!"

"Isso é coisa que se pergunte, moço!?"

"Quem faz aborto não tem Jesus no coração."

As respostas são ecléticas, mas sempre fogem à questão. E Marina também sente que são todas insuficientes.

"Vou te contar uma coisa", avisa. "Quando tinha 32 anos, fui mãe solteira. Comi o pão que o Diabo amassou. Tive três filhos. Sem casa, passando fome, frio, morando sabe onde? Debaixo da ponte. Eu e meus três filhos. Todo mundo dormindo no piso bruto. Hoje, tá todo mundo aí: casado, bem de vida. Já pensou se eu tivesse feito aborto? O que seria de mim? E deles?"

Reza e tragédia

Sigo pela multidão. Sentada na banquetinha de plástico, a velha vai despindo, lentamente, o sapatão laranja. Meiona por meiona, lentamente, até a brisa geladinha refrescar cada pezão inchado, decorado por escamações, micoses, frieiras, bicho geográfico e unhas macilentas. Apavorado, você testemunha o silencioso strip-tease dos pezões octogenários. Por sorte, gritos e assovios desviam tua atenção. Seis sujeitos passam por uma área isolada, ao lado da fila. Velhas descalças levitam na pontinha dos pezões. Ainda não é o padre-cantor. Mas é suficiente para estimular a contagiante cantoria de dois versos minimalistas:

"Padre Marcelo, cadê você?

Eu vim aqui só pra te ver!"

(repete infinitas vezes, até a exaustão).

"Quando olho pro padre Marcelo, vejo Jesus em pessoa", comenta a auxiliar de administração Cleuza Martins, 56, interrompendo o grito de guerra. Gozando merecidas férias, ela veio sozinha, na companhia apenas de familiares emoldurados. "Onde a mãe vai, as fotos também vão. Trouxe uma foto de cada filho, ó, todas do dia do casamento. É para a bênção do padre", exibe, toda serelepe.

Quero saber das histórias impossíveis. Milagres, mágicas, esse tipo de coisa. "Tá falando com a pessoa certa. Tenho vários testemunhos. São tantas histórias do Deus do Impossível que você vai dizer: 'essa mulher é doida!'"

Abraçando molduras, ela começa o relato, e, aos poucos, as velhas em volta escancaram ouvidos à trama. "Há dois anos, meu genro, minha filha e meus dois netos saíram de carro, enquanto fiquei em casa com meu netinho de colo. Quando eles viraram a esquina, já senti a voz Dele. Era uma voz grave, falando direto no meu coração. Como eu sabia que era Deus? Porque era, ora. Senti uma coisa ruim e fui pro meu quarto. Comecei a rezar, pedindo misericórdia. E não deu outra. Meu filho tava em alta velocidade e bateu o carro na Nildo Ribeiro. Deu perca total. Você tinha que ver como ficou o carro dele e do outro motorista. Uma cena horrorosa. Felizmente, todos saíram vivinhos."

Diante dos cochichos espirituais, não será ela capaz de responder única pergunta da lista do Baiano? Ela sorri, disposta a esclarecer os mistérios da fé.

"Por que Deus abriu o Mar Vermelho para que Moisés tirasse os judeus do Egito, mas não abriu os portões dos campos de concentração?", questiono.

Com todos os seus testemunhos, Cleuza pensa quatro, cinco, seis vezes. A hesitação é evidente. Talvez, ela lembrasse daquela história do judeu faminto, pai de família e muito religioso que pediu um pouco de comida a um soldado alemão no campo de concentração. O soldado, então, pegou um rato vivo e colocou nas mãos do judeu. Em seguida, apontou uma arma para o judeu e ordenou que ele comesse, ali mesmo, aquele rato, vivo.

"Nos campos de concentração não tinha ninguém de fé! Judeu não tem fé, meu filho", garante Cleuza, antes de acrescentar: "As coisas às vezes acontecem porque precisam acontecer. Os mistérios de Deus são grandes."

Sangue azul
Mais atrás, descubro Thereza Iracema dos Santos, 77. Encarou os 112,6 quilômetros que separam Tapejara de Maringá. E, nos dias em que permaneceu por aqui, fez questão de aproveitar a vasta agenda cultural da cidade. "Ontem, fui ver a palestra do Doutor Bactéria. Hoje, vim no padre Marcelo. Não é uma maravilha?", comenta, feliz da vida. Boa de prosa, conta detalhes bombásticos de seus longínquos ancestrais. "Sou de família italiana. Sabia que sou descendente do Papa Pio 10?" Com as veias cheias de sangue azul, comento que ela deveria ter direito a algum acesso exclusivo que facilitasse o encontro com o padre-cantor. Rapidinho, ela escancara o sorrisão – ela ainda não tinha pensado nisso.

Enquanto Thereza reflete sobre seus direitos, garantidos pela árvore genealógica, puxo conversa com uma loira de olhos chorosos.

"Sou louca pelo padre", desabafa a psicóloga Kelly Moraes, 39. "Já vi ele em Londrina, em fevereiro deste ano, em Curitiba, em março, e agora aqui em Maringá. Só falta ele ir pra minha cidade, Cascavel, que eu vou de novo atrás dele", avisa.

"Com ele, eu arrepio da cabeça aos pés", revela.

Na aliança brilhante, a mais óbvia pergunta.

"O maridão não sente ciúmes?"

"Olha, vou te contar, viu..."

Quantas revelações se escondem num sorriso danado?

"...ele fica um pouco enciumado, sim!"

Seleciono perguntas aleatórias da listinha do Baiano.

"Por que Deus é do sexo masculino?"

"Deus é Deus, ué. Nem homem nem mulher."

"Se o design de Deus é tão inteligente, por que homens têm mamilos?"

"Porque seria horrível nada não ter. Já pensou?"

"Se o Satanás é o Pai da Mentira, como podemos ter certeza de que ele não enganou os cristãos e fez com que eles o adorassem como deus e rejeitassem o legítimo Deus?"

"Impossível: Deus é mais!"

Agradeço a conversa, ainda insatisfeito com as respostas.

Metallica & Jesus

Na fila, uma moçoila chama a atenção. Rosas negras tatuadas no braço direito, frases agigantadas marcadas no punho esquerdo e flores coloridas no punho direito.

"Gosta de rock?", vou sondando.

"Adoro Guns, Cash, Bob Dylan e, principalmente, Metallica. Até fui no show deles ano passado, no Rock in Rio, e fiquei bem pertinho do palco. Gosto de rock e de Deus. Na verdade, não sei o que seria da minha vida sem oração", comenta Alessandra Cussolin, 22.

Diariamente, ela gasta exatamente dez minutos rezando. Dez minutos: tempo para ler quatro ou cinco páginas de um romance de Philip Roth; ouvir "Moment's Notice", executada pelo John Coltrane; ou, ainda, fazer uma torta salgada no liquidificador. Pergunto a Alessandra se ela já pensou em usar esses dez minutos diários para fazer outras coisas, em vez de rezar. "De forma alguma. Eu não tenho outra coisa melhor para fazer nesse tempo", comenta, no exato momento em que começa o berreiro, despertando palmas de aleluia. Três horas em ponto. O padre-cantor vai começar a maratona de autógrafos.

"Quer dar uma olhada no padre?", oferece o assessor de imprensa. "Só não pode fazer perguntas, certo?" Certo. Ganho acesso a uma área lateral, longe das filas congestionadas, que dá acesso imediato à saleta onde enfiaram o padre-cantor. Durante o trajeto, minhas velhas amigas me acenam e lançam sorrisos – por dentro me amaldiçoam e torcem pelo pior.

Garrancho da fé

Dentro da saleta, dois grandes caixotes recebem os pedidos de orações dos leitores. É só passar e arremessar lá dentro. Teoricamente, o padre-cantor vai ler um por um e interceder por todos. Pego um bilhetinho. Letra tremida, miúda, sem qualquer pontuação, empanturrada de erros gramaticais:

"Padre marcelo pelo amor de deus não esqueci di mim minha filha tem muita depreção principalmente no trabalho."

Epa, quem não tem depressão no meio do trabalho? Pego outro bilhetinho.

Garrancho quase incompreensível, com letras agigantadas e tremelicantes, em linhas grávidas de novos erros gramaticais.

"Padre marcelo estou escrevendo porque fiquei com medo eu já fiz muito medroza porque vivo sozinha ainda tem este velho Leonildo que vive aqui dentro da minha casa enfrentando eu tanto tempo que vivemos separados não tem nada entre nós ele continua aqui brigando entrando no meio esse velho horrivel o velho Leonildo."

Nem com santa paciência dá para encarar essas centenas de bilhetes.

Paraíso

A dez passos de distância, o padre-cantor surge ainda mais magro do que na outra vez. Grandes orelhas de três palmos abertos. Meio corcunda. Abatidão. Toma uma bebida amarela-escura. "É Red Bull light", dedura uma fonte que prefere não se identificar – vai que o padre se enfeza e exclui seu nome da listinha de benção? Está explicado: vem do Red Bull a força estranha que mantém o padre-cantor abraçando e sorrindo para tanta gente. Para comer, a santíssima trindade favorita: castanhas, nozes e damascos. É tudo muito rápido. Não dá para falar quase nada. Crianças babonas a tudo olham assustadas, não compreendem o choro dos pais, a empolgação da avó, o coração disparado saltando goela afora - estivéssemos diante de Paul McCartney não seria a mesmíssima coisa? Duas modelos sensuais, moreníssimas, distribuem sorrisos e indicam a saída aos leitores fiéis. Ao lado das morenas angelicais, testemunhando cada curva abençoada, estou finalmente no paraíso.

Publicado  no Diário (18/4/2016)

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Noitada cercado de bailarinas de toalhas


Crianças e adolescentes aguardam em pé na bilheteria do Teatro Calil Haddad. Organizados e disciplinados. Sem empurra-empurra. Sem fura-fila. Conversam entre si em tons amenos, uma e outra risada, sempre de olho no relógio. Mãos entrelaçam expectativas, pés batucam a espera no chão. Aguardam o quê, as dezenas de jovens maringaenses, quase todas mocinhas? Distribuição de sorvete, pipoca e algodão-doce? Ingressos para o show do Justin Bieber?

"Que nada! Hoje é noite de dança clássica. É o Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, fazendo 'Cinderela'", informa a primeirona da fila, Polyana Mauer, de 13 aninhos. "Todo mundo que já está na fila faz aulas de balé. Fiz questão de vir bem cedinho. Quero o melhor lugar, no setor B. É o mais indicado para apreciar não só a dança, mas, também, os elementos do cenário que vão mudando durante a apresentação. Em qual setor você vai?"

Não faço ideia. Nem sei direito o que avaliar. Cenários, coreografias? A mocinha nota minhas interrogações.

"Só não demore muito para entrar na fila. Que os ingressos começam a ser distribuídos uma hora antes do espetáculo. Se você demorar demais, corre o risco de ficar para fora."

Dançando direito

Agradeço à instrutora mirim. Vou pensar melhor em qual setor. A fila, noto agora, vai ficando mais encorpada – serpente rastejando rumo às escadas que dão no mural do grande Poty. Olhando melhor, não são só menininhas enfileiradas. No meio delas, um único garoto também à espera. De blazer e sapato preto, calça jeans escura – eis o único bailarino maringaense?

"Quando comecei, há dois anos, alguns tiravam sarro de mim. Resolvi ignorar os comentários. Quando estou dançando no palco, com pleno domínio da emoção, sentindo a música e recebendo os aplausos da plateia, sinto a melhor sensação do mundo", revela Yuri Braguin, 18.

Estudante de Direito, o rapaz responde a tudo seriamente. Cerimonioso. "Gosto dessas formalidades. Das regras, das leis, das regras da dança. Direito e balé têm suas semelhanças. Um dia, quero chegar ao nível do Baryshnikov. Seus saltos, giros e interpretações são impecáveis. Ele nunca dança por dançar: ele é a dança."

Há um converseiro generalizado no teatro. Gente que vai chegando e enfileirando expectativas. Famílias, namorados de mãos dadas. Crianças, várias delas. De seis, oito, doze e quinze centímetros, correndo e pulando e babando no saguão. Ai, não. Tudo, menos crianças. Quem, em sã consciência, traz propagandas ambulantes de vasectomia pra dentro de um teatro?

Atrás das crianças, o casal de idosos conversa alegrinho. Trocam impressões, cochichos, risadinhas. Aos oitenta e poucos anos - há mais de cinquenta casados? - ainda compartilham curiosidades da vida, um com o outro.

"Nunca vi um balé. Meu filho, sargento aposentado da polícia, que trouxe a gente. Ó ele chegando aí", avisa o sujeito oitentão.

Sargento aposentado chegado em balé clássico?

"E por que não?", devolve José Mantovani, 53, ao lado da esposa. "A gente faz dança de salão, uma vez por semana, das oito às dez. Bailamos bolero, forró, um pouco de tudo. Fiz novas amizades e senti que minha vida melhorou. Você fica mais saudável, né? Daí o pessoal da escola teve a ideia de vir pra cá, e não pensei duas vezes: junto trouxe meus pais. Vai ser uma noite de aprendizado", diz.

E dá-lhe bullying!


Vestidos farfalhantes. Saltinhos marchando em volta. Aromas adocicados, suaves, feromoniosos. Num retrato em branco e preto, Calil Haddad acompanha cada detalhe. Olhar sisudo e severo. Cabelo reluzente entupido de gel. No quadrinho do alto da parede, ele enxerga mais que todos nós. Sente, um por um, os perfumes das musas, cada uma devorada pelos silenciosos olhares do nosso Calil. Ele, sim, sabe das coisas.

É o próprio Calil, com a discrição de um espião inglês, sinalizando com sobrancelhas tremelicantes, quem me aponta a loirinha a alguns metros de seu retrato. Perfume levemente picante - esse, o melhor cheiro da tua vida. Sorridente num vestidíssimo, ao lado de duas amigas. Vou logo puxando papo.

"Elas duas dançam, moço. Menos eu", avisa a loirinha.

"Por que não baila?", questiono.

"É trauma de criança. Culpa da minha mãe", acusa Fabiana Artuso, 22.

Em menos de vinte segundos, prontinha para falar de seus dramas mais profundos - não é nosso tipo favorito?

Como é bom mulher que se abre.

"Nunca dancei porque minha mãe sempre dizia que eu era gorducha demais."

Covinhas poliglotas. Ombros tenros. Lábios elegantes.

"Tem certeza que..."

Sem jeito, você não começa a gaguejar?

"...fo-ra de for-ma?"

"Não foi só minha mãe. Sofri muito bullying também no colégio."

Nos olhos, a mesma melancolia de Ingrid Thulin.

"Os garotos me chamavam de gorda-baleia, saco de areia."

Todos tão míopes?

"Colavam chicletes na minha cadeira."

Pobres coitados cegos, malditos astigmatas.

"Sem falar nos namoricos: garotos por quem eu era apaixonada e se aproximavam de mim..."

Sempre há alguém de bom senso.


"...só pra ficar com minhas melhores amigas."

"!"

"Agora, tudo mudou: emagreci quinze quilos. Sem remédios. Fui no nutricionista e, seguindo a receita, fechei a boca. Passei a praticar exercícios. Comecei a caminhar no Parque do Ingá. Hoje, chego a dar três voltas."

Liberar endorfinas de roupinha apertadinha e cabelinho preso num rabinho de cavalo. Trotando e galopando em matas virgens, penetrando cavernas e abrindo clareiras - empunhando o facão sempre em riste! -, subindo e descendo montanhas, desbravando territórios nunca d'antes navegados - ilhas Andamão!, Tristão da Cunha!, Santa Helena! -, decorando sotaques desconhecidos, aspirando fragrâncias exóticas, mergulhando nas águas límpidas e cristalinas de sereias – ei, onde estamos indo com tudo isso? Sente os batimentos? Quase rompendo o peito? Põe a mão aqui, ó. Assim. Quase enfartando, só de imaginar essa caminhada de três voltas no nosso Parque do Ingá.

"Hoje, posso olhar para todos eles de uma forma diferente..."

Dedinhos serelepes ajeitam o vestidíssimo na cinturinha mais fina.

"...porque finalmente eu sou..."

O início, o fim e o meio?

"...GOS-TO-SO-NA."

Emerson & Hudson

Usando bonés de hip hop e bermudões folgadões, a dupla de amigos dá o ar da graça no teatro com a mesma emoção de quem declara o imposto de renda. Perdidos em cochichos desconfiados. Reticentes. Sem gestos bruscos.

"Vieram pro balé?", vou sondando.

"Balé?!", respondem, surpresos, afinados em uníssono.

Veja os rostos espantados. Em silêncio, o laboratorista Emerson Souza, 24, e o auxiliar de serviços Hudson Marques, 22, imaginam qual melhor estratégia. Mototáxi? Fugir num zepelim? Carona num disco voador?

"Vishi, nem tava sabendo", confessa Emerson.

"A gente veio por causa do colégio. Vale cinco horas. Será que..."

Quatro olhos acuados, amedrontados.

"...é legal?", pergunta Hudson, vacilante.

"Se você gosta de moças sensuais..."

"!"

"...coxas à mostra, ombros nus, clavículas tentadoras, aberturas de pernas impressionantes..."

"!!"

"...tudo com..."

Emerson & Hudson desembestam a correr para pegar os ingressos do balé.

"...boa música."

Coreografia sacolejante

A estudante Bruna Gomes e outras dezenas de estudantes da Escola Estadual Erico Verissimo, de Faxinal, alongam braços e esticam pernas. Visivelmente aliviados. O grupo sacolejou por duas horas numa viagem de ônibus. O veículo não tem ar-condicionado – as janelas arregaçam ventos refrescantes –, mas nenhum dos viajantes estava preocupado com luxos excessivos.

"O que a gente quer é curtir a cultura. Tenho 17 anos e ainda não vi um balé. Minha cidade não tem teatro, dança nem shows. Só esses sertanejos", lamenta a moça. E mais não dá para descobrir. É preciso apressar o passo, que os ingressos estão se esvaindo.

Com entrada liberada, o público vai tomando assento. Na bilheteria, uma voz estridente lamenta as verdades da vida.

"Ai, meu Deus, acabou?!", espanta-se Norma Segatti, 61, ao lado de duas menininhas de dez centímetros. "Pena que minha filha demorou demais para sair do trabalho e me trazer aqui", lamenta.

Cerca de cem pessoas não conseguem ingressos. Minha instrutora-mirim estava certa. Quem vacila nos ponteiros sempre acaba dançando.

Bailarinas de toalhas

Chego meio atrasado, o espetáculo já rolando. Num canto escuro, me acomodo em pé. Três bailarinas rapidamente somem de cena. E a cortina, então, escancara a primeira troca de cenários, arrancando suspiros coletivos.

"Uauuuu!", surpreende-se o público, embasbacado.

Será pela rápida mudança de palco? Saem os antigos elementos cênicos e surgem cadeiras, espelhos, portas gigantes, coisas que – impossível prestar atenção nos outros trecos.

Teus olhos só miram as sete bailarinas – não é o tal número sagrado? Deslizam de um canto para o outro do palco, com saltinhos e reboladinhas, enroladas apenas em toalhas brancas. Colos nus. Coxas à mostra. Ombros exibicionistas. Panturrilhas fluentes. Nas costas de bailarinas curitibanas você encontra respostas e embasamentos para uma porção de coisas, como:

1) Resolver os conflitos no Oriente Médio;

2) Apaziguar as veleidades explosivas de Kim Jong-il;

3) Solucionar os truques de mágica do Circo Tihany;

4) Escrever uma letra para "Valsa (Como São Lindos os Youguis) (Bebel)", música composta por João Gilberto e entoada apenas pela sequência enigmática de "nana, nana, nana, nana", durante exatamente três minutos e trinta e dois segundos.

No canto esquerdo do palco, uma ruivinha sorridente levanta da cadeira, depois de abrir e fechar as pernas, com as mãozinhas sobre os joelhos, e toma a frente do palco. Do alto, não parece ter nove quilômetros de pernas? Segura na pontinha dos dedos a toalha branquíssima – cai!, cai!, cai! –, enquanto desce, lentamente, até o chão. Outras pernas surgem ao lado dela. Coxas morenas, negrinhas, loirinhas – isso, o velho Degas nunca te mostrou. Na plateia, nenhuma alma entediada. A garota ciumenta estende a mão para esconder as delícias do namorado babão – não verás país nenhum. Ninguém fuça mensagens nem pensa em outras coisas. Todos os pensamentos são para as bailarinas de coxas brilhantes, ao som de violinos e violoncelos. No peito bate firme o arrependimento: da próxima vez, será da primeira fileira.

Publicado no Diário (3/4/2016)