sábado, 23 de março de 2013

Caçando João Gilberto

“Você gosta de João Gilberto?”, indaga o vendedor de CD’s, quando me vê fuçando entre os álbuns disponíveis do criador da bossa nova na estante. Respondo que sim, que estou hospedado há uma semana exatamente a uma quadra do apartamento onde ele mora e que gosto de perambular pelas mesmas ruas em que provavelmente ele já caminhou. O vendedor vira-se para a seção de jazz, ajeita um CD desalinhado e diz que “o João é um gênio, mas um tremendo babaca”. Respeito os segundos de silêncio que preenchem sua fala e aguardo a justificativa. “João Gilberto matou o meu amigo”, afirma, sem esconder o rancor.

Depois de uma semana colecionando histórias do recluso cantor baiano, eu não poderia deixar de ouvir mais uma. No máximo, perderei alguns minutos na famosa livraria do Leblon, escutando uma lorota para entreter turistas. O vendedor nota minha curiosidade para ouvir os detalhes do causo. Ao ser abordado por um cliente em busca de CD's de tangos, o vendedor adianta: “É uma história muito cavernosa, mas já vou te contar”, avisa.

É assim que tenho passado os meus dias no Rio de Janeiro: esperando. Estou de campana no prédio de João Gilberto, desde que deixei na segunda-feira, por volta das 15h, dois CD's dentro de um envelope para serem autografados. Deixei com um jovem porteiro, que se identificou como Gustavo e recebeu o pacote com um sorriso amigável, quase complacente, garantindo que levaria ao cantor. “Vim do Paraná para entregar isso ao João Gilberto”, eu disse, passando o envelope pelo portão.

João Gilberto, aos 81 anos, teria pouco trabalho: abrir o envelope, autografar os dois álbuns em anexo e mandar o pacote de volta para a portaria. Moleza. Contabilizando meio por cima, cinco minutos seriam o suficiente. Um dia depois, na terça de manhã, toco a campainha da portaria. Quem atende é um outro sujeito, mais velho, e rapidamente me apresso a explicar a situação. Ele me interrompe bruscamente. “Escuta aqui, eu sei quem é você. Não tem nada para você aqui”, informa, impaciente, antes de bater o interfone na minha cara.

Anônimo

O Leblon, com suas ruas elegantes e mulheres de fino trato, é uma Hollywood tupiniquim. Artistas de tevê, milionários excêntricos e escritores residem ou batem cartão no bairro. Perambulando naquelas vielas é comum esbarrar em Chico Buarque, Caetano Veloso, João Ubaldo Ribeiro, Sérgio Sant'Anna, Tony Bellotto, Malu Mader e Cláudia Abreu.


Mas João Gilberto não é exatamente uma celebridade. Ele não tem um rosto tão conhecido como o do Chico Buarque ou do Caetano Veloso. Nem mesmo o seu nome, por incrível que pareça, é reconhecido naquelas bandas. “João do quê? Meu Deus, nem sei quem é esse!”, comenta a cearense Rose Gomes, 37, que trabalha há dois anos em uma cafeteria localizada próxima ao prédio de João Gilberto.

Na surdina, João Gilberto pode tomar um sofisticado café com blends especiais, das 9h às 22h, sem ser perturbado pela atendente da cafeteria. Pode caminhar até a esquina, em plena madrugada, e discretamente gelar o calor de 37 graus, ignorado pelas moças do McDonald's.

Se quiser comprar um serrote (R$ 19,90), uma lâmpada (de R$ 12 a R$ 14,90) ou um óleo lubrificante (R$ 4), o cantor continuará gozando os privilégios do silencioso manto do anonimato. “Não faço a mínima ideia de quem é esse cara”, comenta Marlon Costa, 18, que trabalha em uma loja de material de construção, na Rua Carlos Góes.

Na quarta-feira, uma boa notícia. Soube pelo próprio Gustavo, o porteiro, que meu envelope havia sido entregue em mãos, na mesma segunda, ao João Gilberto. Passei a interfornar uma vez por dia na portaria do prédio do cantor para saber que fim tomaram os meus CD's. Mas nada surgiu na quinta nem na sexta. Camarada, um dos porteiros até abriu o portão, permitiu que eu chegasse ao interior do prédio e me explicou, cordialmente, que não havia nenhuma correspondência deixada pelo João Gilberto. “De todos os porteiros aqui do condomínio, o seu João só fala com dois. E o Gustavo é um deles”, tranquilizou-me. Deixo o prédio, sigo pela rua.

Gente famosa

Na Carlos Góes, alguns vizinhos de João Gilberto topam colaborar com relatos, desde que não tenham de ter o nome revelado. “Um dia passei pela portaria e vi o Caetano Veloso sentado no sofá. Depois soube que ele tomou um chá de cadeira. O João não deixou o Caetano subir”, lembra, rindo, uma das moradoras. E acrescenta: “Só quem tem acesso livre ao apartamento é a Bebel (Gilberto), que é filha, e a mulher dele (Cláudia Faissol). É comum encontrá-las no prédio”, diz. Outro morador conta que os demais parentes se correspondem com ele por meio de bilhetes deixados na portaria. “E a comida ele pede por telefone. O entregador leva até o apartamento. Quando precisa sair de carro, espera lá na garagem. Nunca na calçada”, afirma.

De todos os dias em campana, o sábado parece ser o mais quente. Na areia do Leblon, loiras, negras, ruivas e orientais bronzeiam a alma, e as costas, as pernas, as coxas, os peitos, esperando o último aceno do Sol: da cor do pecado. E para cada mulher que cruza a minha frente no mar do Leblon, João Gilberto tem o sussurro certeiro, para ser entoado no momento exato, baixinho, com suaves toques sincopados. Triste é viver na solidão.

Senhor gentil

Ninguém, por mais recluso que seja, consegue resistir ao calor do Leblon. Nem mesmo João Gilberto. E ele dá as caras nas ruas do bairro quando sai para caminhar durante o dia. Solitário. Sem ser reconhecido por ambulantes, balconistas do McDonald's, funcionários das lojas de material de construção e paparazzis. Sai de casa sem o terno e o violão a tiracolo, obviamente.

“Ele usa roupas simples, bermuda e camisa de caminhar, está sempre sozinho. Ninguém o reconhece na rua. Parece ser um senhor gentil”, conta a vizinha que mora no sétimo andar, abaixo de João Gilberto. Em três anos, ela jura já ter encontrado o cantor no hall do condomínio em duas ocasiões. Sempre de dia. E é possível ouvir João Gilberto cantando lá de cima? “Nunca escutei um barulho. Ele é discreto”, diz.

A descrição da vizinha, de senhor “gentil”, não bate com a feita pelo vendedor de CD's — “um gênio, mas um tremendo babaca”. Alguém está mentindo ou exagerando. Quando o vendedor de CD's termina de atender o freguês em busca de tangos, segue para o setor onde estou e retoma a fala. Na trama rocambolesca, seu amigo seria um pernambucano que debandou para o Rio de Janeiro e João Gilberto teria se afeiçoado a ele. Depois de tardes tocando violão na casa do mito da MPB, o cantor teria oferecido um emprego de roadie para o pernambucano. E assim foi. “Ele virou o afinador do violão do João. No shows, era o cara que passava o som do violão. Com o João é assim: tem um cara só para passar o som do violão e outro só para passar a voz”, conta o vendedor.

Durante as turnês nacionais e internacionais, a amizade dos dois nunca sofreu abalos. Pelo contrário. João havia encontrado um roadie competente, além de um fiel amigo. “O problema foi na passagem de som de um show na Áustria, eu acho”, lembra.“O meu amigo estava meio esquentado e tratou mal um dos técnicos de som de lá, pouco antes do show. O clima ficou tenso, e quando a história chegou ao João, ele simplesmente demitiu o meu amigo lá mesmo, no exterior. E o cara nem sabia falar em inglês! Isso não se faz com ninguém. Depois de um bom tempo, sabe-se lá como, esse meu amigo conseguiu voltar e desembarcou no Brasil. Só que ele desembarcou aqui e morreu. Foi assim que João Gilberto matou o meu amigo”, encerrou, um pouco emocionado.

Acusação veemente

Fã declarado de João Gilberto, o vendedor de CD's traz outros causos na manga e, aproveitando que a essa hora não há movimento na livraria, emenda outra história. Diz que o cantor um dia ligou para seu empresário, acusando-o de roubar R$ 10 mil dólares no meio de uma turnê internacional. O empresário teria rechaçado veementemente a acusação, dizendo que as contas feitas pelo cantor estavam todas erradas e que ele calculasse novamente.

“Alguns dias se passaram e João não tocou mais no assunto. Parecia ter esquecido aquilo de vez.” No fim da turnê, que recebeu elogios da crítica e foi um sucesso de público, o cantor teria se juntado ao empresário e aos roadies para comemorar o resultado, jantando num luxuoso hotel do Rio de Janeiro. “Então, ele se virou para o empresário, no meio do jantar, e o acusou: mas aqueles R$ 10 mil dólares você me roubou, né?”

Com o coração na mão, paro na frente do prédio onde mora João Gilberto e interfono ao porteiro. Quem atende, para a minha felicidade, é o Gustavo. Explico que estou indo embora, gostaria de pegar meus CD's. “Ele deixou algo para mim?”, pergunto. Nada. Nem ao menos devolveu os encartes, sem assinar. Indago se há alguma forma de recuperar os CD's. Fora de cogitação. “O João Gilberto só se comunica com a gente, aqui na portaria, quando ele quer. Desde a última segunda, ele não faz contato com nenhum porteiro. A cada dez pedidos de autógrafos, ele atende dois”, comentou.

Olho para o oitavo andar. É um apartamento alugado, de 130 m². As janelas continuam cerradas, protegidas por cortinas e bloqueadores. Lá se foram meus CD's, sorrateiramente afanados por João Gilberto.

Matéria publicada no Correio Braziliense em 21/3/2013