segunda-feira, 27 de abril de 2015

Crianças, bikes, macacos, suor, cães e muitas selfies

Há um bom tempo não pisava nessas calçadas. Não pratico esportes. Não vejo graça em arder no sol. Não suporto piqueniques nem sentar na grama - pentelhado, você, por besouros, abelhas e borboletinhas afrescalhadas, sem falar no impiedoso batalhão de formigas-cabaça. O Parque do Ingá, num domingo de manhã, não é um dos lugares mais sedutores para um boêmio sedentário, queimando a ressaca nos raios das dez horas. E vou maldizendo o pauteiro do jornal, disparando, também, mil e um palavrões à sua santíssima mãe. Entusiasta da rotina natureba, o pauteiro usa a bicicleta para se deslocar diariamente entre o jornal e sua casa, e agora vive me mandando para pautas estranhíssimas: decide aleatoriamente um símbolo oficial ou não oficial da cidade e exige que volte com um punhado de histórias. "Lá é o melhor lugar do mundo. Isolaram a rua, o povo pode caminhar, tudo em clima de família." O pauteiro deve estar louco. Sorte que ele não está lendo isso, então, tudo bem. No domingão em que volto ao parque, vejo que muitas pessoas, todas distribuindo sorrisos, pensam exatamente como o pauteiro. Crianças, pais e mães esbanjando felicidade. Respirando o ar puríssimo. O melhor lugar do mundo.

Tomo nota dos cachorros maringaenses: traços e trejeitos idênticos aos de seus donos. O rosto esfíngico e blasé do salsichinha, alimentado a pão-de-ló e ostras parisienses, é o mesmo da senhorinha, cheia de joias e de nariz empinado, empunhando a coleirinha dourada do bichano. O Rottweiler musculoso e de olhos cheios de sangue não é irmão mais novo do mal-encarado bombadão de academia que fuzila com seu olhar os demais transeuntes, a baba espumando no canto da boca? Raquítico e sem pelos, o Chihuahua é a miniatura do sujeitinho franzino, magricelo e careca. As bochechas de um Buldogue escorrem do rosto canino – inspiram-se nos relógios molengões de Dalí ou nas flácidas bochechas do dono amado?

Sentado num dos bancos - praticar esportes vai contra as minhas questões políticas e religiosas -, acompanho os atletas. Há corredores modernetes e retrôs. Cada um respeita o espaço e as peculiaridades do outro. Com roupas brilhantes e tênis novinhos, os modernetes ostentam, nos braços, equipamentos eletrônicos ultra-sofisticados, que medem a pressão e calculam o deslocamento do sujeito - compartilhando em tempo real as informações nas plataformas sociais -, além de realizar outras ações secundárias, como disparar raios laser, acionar explosivos à distância e identificar duplas sertanejas com a emissão de apenas uma única nota musical. Saudosistas, os retrôs caminham sem adornos extravagantes e renegam o uso de aparelhos da última geração: sábios da velha guarda, orientam-se unicamente pelo deslocamento do sol – não é mais confiante que os ponteiros do Big Ben? Com o velho All Star, bermuda surrada e camiseta da noite passada, não me enquadro em nenhum dos grupos.

Tem uma movimentação a uns trezentos metros. Um grupo de crianças - ou seriam anões? - prepara alguma coisa. Resolvo me aproximar. No meio do caminho, ouço a revolta de dois pais. Acompanhando três crianças de bicicletas, eles foram impedidos de entrar no parque. "Tá errado, né? Não faz sentido proibir as bicicletas", reclama, indignado, um dos sujeitos. Vou seguindo. Passo pela vendedora de água e refrigerantes. "As vendas estão boas mesmo com a crise", avalia a mulher, que trabalha há três anos naquele ponto, de frente para o parque. Ruim só quando São Pedro não colabora. "Se chove, não vendo nem uma garrafinha de água." É domingo de protesto (12 de abril). Na Avenida Paulista, em São Paulo, manifestantes lotam as ruas para exigir o impeachment da presidente. No parque, a única manifestação é contra um ciclista engajado, ostentando uma bandeira gigante do PT. Saudado aos berros e palavrões de jovens e adultos que interrompem suas flexões e abdominais, o ciclista distribui acenos e arremessa beijos. Mas não vacila: pedalando sempre bem rapidinho. Parar ali não é das melhores ideias.

Pollock precoce
Trezentos metros de caminhada depois, chego finalmente ao grupo: mais de dez crianças, cada uma acompanhada pelos seus pais. Todo mundo agachado na grama, debruçado sobre um tecido e rabiscando o que dá vontade. Um garotinho, encarnando o estilo subversivo de Pollock, arremessa com o pincel tintas vermelhas, pretas e amarelas sobre o tecido. Concentrado, outro pequeno parece desenhar um mamute voador. Alguém fez um jardim macilento, sobrepondo camadas de tintas que deixaram a pintura em relevo – eis o nosso Anselm Kiefer maringaense.

A obra coletiva foi financiada pelo empresário Marcos Brosso, 51, proprietário de uma estamparia. Ele costuma doar rolos gigantes de tecido para entidades assistenciais. Pela primeira vez, trouxe um dos rolos para o parque. Chegou às dez horas, estendeu o rolo no chão, distribuiu uns potinhos de tinta em cima do tecido e deixou que seu filho - e quem mais quisesse - soltasse a imaginação. "Olha que beleza. Estão todos fazendo novas amizades", observa, apontando para o grupo.

"As crianças gostaram tanto que até já combinamos de voltar no próximo domingo", comenta a advogada Ana Bellizia, 37, ao lado do marido e de Francesco, o filho pintor de apenas 5 anos. "O que eu mais gosto é de desenhar", confessa Francesco. Tento compreender seu desenho, em vão. Peço ajuda ao autor. "É um sol meio maluco", explica o pequeno surrealista, com os dedos cheios de tinta. Além de pintar, Francesco gosta de vir ao parque, nos finais de semana, para cumprir dois objetivos básicos: "Andar de bicicleta e ver os macaquinhos".

Nosso Drummond
Volto para a entrada do parque. Já estou suando à beça. Suor é um horror. Lá na frente, uma estátua em tamanho real faz sucesso com as crianças: um senhor sorridente, sentado num banco, sem se incomodar com o câncer de pele. Todo mundo quer passar a mão, chegar mais perto e enxergar os detalhes - quem sabe, entabular uma conversa? Adriano José Valente, o 5º prefeito de Maringá, também desperta a compaixão da criançada. "Cotadinho, mãe, aquele homem tá no sol!" De olho no Drummond maringaense, vejo o tiozinho que caminha lento rumo a um banco afastado, no meio das árvores. Ele traz alguma coisa nas mãos, deve ser uma marmita. Dez minutos depois, uma senhora, também com uma marmitinha, segue o mesmo trajeto e senta ao lado dele. Teriam combinado um encontro pelo WhatsApp? "Jandaia do Sul não tem um lugar para a gente ficar assim", comenta Jovina Barbosa, 72. Ela conheceu Valdevino Barbosa, 72, há quase uma década, em Mandaguari, numa festança com roda de viola e gente nadando no rio. A festança acabou em casamento. Quase todo o final de semana eles vem para Maringá. Na marmita, o casal traz arroz, carne, linguicinha, feijão e frango. Para comer tudo quentinho, debaixo das árvores, ouvindo o dedo de prosa dos passarinhos. "Sempre fazemos novas amizades. Aqui, a gente passeia, fica na sombra, curte a natureza. É gostoso. Quer almoçar com a gente?"

Não sou chegado em piqueniques, tem grama, besouro, as tais borboletas afrescalhadas, mas isso eu não comento. Agradeço o rangão, deixo o casal no almoço bucólico-romântico. Reza a lenda que para lá, embrenhados no meião da mata, vivem centenas de índios kaingangs. Organizam rituais regados a música e dança, conversam num dialeto próprio e produzem seus balaios coloridos que serão comercializados nas tantas esquinas maringaense. "Forçando bem a vista dá para ver os indinhos praticando arco e flecha no meio da mata. Vez ou outra, uma flecha acerta a cabeça de algum turista. Claro que vocês, da mídia golpista, tentam esconder esses incidentes", costuma divagar um amigo meu, antropólogo que se gaba de ter lido as obras completas de Lévi-Strauss. Míope e astigmata feito uma toupeira, não enxergo índios nem flechas.

Saindo do parque, flagro um jovem cadeirante acompanhado pelo pai. É até difícil alcançar o programador Vitor Gotardo, 24, pilotando uma dessas cadeiras motorizadas. "Até o lago", vou perguntando, meio ofegante, "você deve ter enfrentado um baita rally, não?" Ele concorda. "Com todos esses paralelepípedos, foi bastante difícil chegar lá embaixo. Melhor seria se tivesse uma parte asfaltada. Facilitaria o nosso acesso", comenta. "O banheiro, pelo menos, está bacana, limpo", avalia o pai, Nilson Gotardo, 49. Empunhando uma máquina fotográfica, a dupla vai dar um tratamento nas fotos e postar tudo ainda no domingo, nas plataformas sociais.

Maior abandonado
"Quando eu era jovem, todas as árvores aqui eram nomeadas. Você caminhava e aprendia o nome delas. Hoje, são poucas as árvores com placas. É ruim, né?", reclama o administrador de empresas Dorival Stabile, 44. Ele veio ao parque para acompanhar o filho, estudante da UEM, que precisa observar as condições do parque para um trabalho acadêmico. "Deveria ter algum projeto para renomear as árvores. Deveria, também, ter alguma sinalização para quem desce com carrinhos de bebê. Talvez uma pista de asfalto, de um metro de largura, para mão afetar o meio ambiente. Outra coisa: tem muitas árvores cortadas e caídas no meio da mata. Isso dá uma sensação de abandono. E deve ser fácil resolver: é só chamar uma equipe levar os destroços embora. A impressão é de que pensam assim: 'Ah, caiu? Dane-se, deixa lá, deixe apodrecer'", comenta. O filho reforça a opinião paterna. "Deveria estar melhor cuidado. O parque do Ingá é só que nos resta: o Horto Florestal tá fechado e no Bosque das Grevíleas só tem drogado", reclama Bruno Stabile, 18.

Andar pelo parque é esbarrar num punhado de macaquinhos, para a glória da criançada e dos turistas embasbacados. Um deles persegue uma borboleta dourada, anonimamente, sem ser notado pelo grupo de turistas, todos armados com máquinas fotográficas e celulares modernos. Com desenvoltura, pula os troncos de árvores caídos na mata, desvia da pedra, tenta em novo pulo abraçar a borboletinha – brincam, os dois, ou é a fome batendo forte? Outro macaquinho resolve cruzar a frente do grupo – e não se arrependeria, o coitado? Triste bichano, vítima dos flashes disparados em sua direção – quem não quer exibir o nosso primatinha nas redes sociais?

Quase meio-dia. Os malditos mosquitos pinicam pescoço, canela e braços. Câncer de pele. Na mata respiro o ar puríssimo – e não é que bate a saudade da poluição? Vejo mais corredores. Deve ser bom. São quase dez anos sem atividades esportivas, mesmo assim não deve ser tão difícil. Resolvo correr. Aperto o passo. Não fez uma vez? Tipo andar de bicicleta. Vamos lá. Respiração. Inspire pela boca. Solte pelo nariz. Ou o inverso? Caramba. Assim. Inspire um, dois, três. Solte tudo. Fácil. All Star surrado. Olhar para frente. Jamais o chão. Cachorros. Velhos. Faixa de pedestre. Criança de bicicleta. Um, dois, três. Caldo de cana. Água. Refrigerante. Pipoca. Batata frita gordurosa. Aceita cartão de crédito. Diners. Coper. Sicredi. Hipercard. Visa. Master. O vento refresca. Árvore Sapuva. Nada dos kaingangs e seus balaios. Nada de oca. Nem arco e flecha. Casal turista sorrindo na selfie. Solte devagar. Macacos. De novo. Dois deles. Palmito. Soltar tudo. Qual o prazer disso? Selfie + casais + sorrisos + parque do Ingá. Um, dois, três. Pai com criança e esposa. Aquele livro do Baudrillard: genial. Correr em círculos. Soltar tudo. Não é boa a sensação? Um, dois, três. Meio banal. Em círculos. O que Heidegger disse mesmo? "Queda na banalidade." Eu caio na banalidade. Tu cais. Ela cai. E nós postamos tudo no Facebook. Solte tudo. Impossível continuar. A dor, no peito, vem fundo – eis o enfarto fatal ou só gases indefesos? Desisto, vou me escorando. Na árvore. Eu podia estar lendo, em casa, numa boa. Mas tô aqui, no sol, num domingo, plena manhã, esbaforido, encharcado de suor, o coração desertando goela afora. Qualquer caminhada, caramba, estou mesmo fora de forma, é um esporte radical. Mesmo assim, de jeito algum, de meu sedentarismo não abro mão. Jamais. Adeus, naturebas. Var ter volta, pauteiro, espere.

Publicado no Diário (26/4/15)

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Latidos, preces, vestidos, Jesus e discípulos de Jah

Nosso cronista do cotidiano visita o Edifício Maurício Schulman, conhecido como Blocos da UEM, e conta um pouco da historia de seus habitantes

Chego em frente ao portão. Seis e pouco da tarde. Um cachorro me sorri latindo. Não é preciso avisar o porteiro. Com um Palio imbicando na calçada, o funcionário da guarita abre de uma vez o portão de ferro. Generoso, para todos.

"Duvido que você não faria o mesmo."
"Mãe, eu tô chegando em casa."
"Deixei para comprar as passagens no final de semana, é sempre mais em conta."
"Tá errado, claro que tá errado."
"Empresta o isqueiro?"

Jovens com pastas e bolsas passam triscando. Alguns seguem para a UEM, outros saem com roupas de caminhada e cachorros encoleirados. Tento falar com o porteiro, mas ele está concentrado, explicando alguma coisa para uma jovem moradora. Deixo quieto, vou entrando assim mesmo. Sem avisar. O Condomínio do Conjunto Habitacional de Maringá, também conhecido como edifício Maurício Schulman - nome do engenheiro responsável pelo projeto - e até como Blocos da UEM - por ser tão colado à Universidade - parece uma extensão da Avenida Dr. Mário Clapier Urbinati, na Zona 7. Com 15 blocos e 480 apartamentos, o aglomerado arquitetônico é praticamente o Copan maringaense. Sento num dos bancos. Quinze prédios inquietos. Velhos, adultos, estudantes e bebês de colo. Vômito de criança? – alguém caminha com um pacote de Fandangos aberto. Pretas, loiras, nerds magricelos, japonesas, ruivas e bombadões de academia convivem todos juntos e misturados. Duas sessentonas conversam ao meu lado, com uma terceira senhora, sobre remédios e saúde.

"Antiformina acaba com a pessoa, não é, Maria? Fala para ela!"
"Dizem que é um terror, Claudete."
"Ele te deu dois ou só um?"
"A diabete da minha mãe era emocional. E ela foi parar no HU. Ficou andando assim, ó: quase caindo."
"E se eu tomar só a metade, será que é melhor?"
"É perigoso demais. Tem que tomar muito cuidado..."
"Estou quase indo amanhã com você no médico, Claudete."
"... porque, senão, piora tudo de uma só vez. Já imaginou?"
"Ai, não, nem me fale."

Chernobyl e Maria Joana
Deixo Claudete e suas antiforminas. Sigo entre carros e moradores. Passo por parquinhos com escorregador, gira-gira, trepa-trepa e balanço. Tudo estranhamente vazio. Parece um daqueles parquinhos fantasmagóricos de Chernobyl. Perto da radiação, eis a nossa loirinha: 27 aninhos, sentadinha na frente de um dos blocos, calça jeans surradinha, velha camiseta coloridinha. Veja, Orfeu, veja: não tem ela os mesmos olhinhos de ressaca de Françoise Dorléac? A mesma voz rouquinha de Lauren Bacall? O pescocinho fatal de Vivien Leigh? Ai, filha de Maringá. Dos seus lábios vem a mirra mais preciosa! Ó poço das águas vivas que correm do Líbano! Ó bendita – ei, cara, de novo esse papo de cotovia embriagada? Não pode ver uma musa, esse coração afoito já alça voos atabalhoados, no léxico da juventude, prometendo loas e versos dodecassílabos para a noite do meu bem? Poupemos o nome da nossa loirinha – de uma musa você não atende mil e um pedidos? Vamos batizá-la, porém, de Maria Joana.

"Só uma coisa... Aqui não é o Copan maringaense... É o Brooklin maringaense", diz Maria Joana, bem devagar, olhando para o chão.

Para ela, o segundo maior problema de viver no Brooklin é a vista dos quartos e da sala. "Não sei se você vai entender... Mas, sabe?... Você acorda... Você, então, olha para o lado... E só tem janelas... janelas... janelas... janelas..." Na república que ela divide com mais três pessoas, só há um maior problema que a paisagem minimalista: encarar as reclamações da vizinhança, indignada com o cheiro verde que emana da república. "É um saco, sabe? A gente não tem liberdade nem pra fumar um baseadinho...", reclama, sossegadona, Maria Joana.

Encontrando Jesus
Vou me embrenhando num bloco do Brooklin. Penumbra de gente tomando banho. A água escorre do chuveiro e bate no corpo de alguém. Plantas de plástico. Panela de pressão apitando furiosa. Escovas de dente. Vitamina de frutas da Vigor. Pimenta Tabasco. Cheiro de café. Embalagem de Toddy. Rolos de papel higiênico. Alguns apartamentos têm cozinhas e banheiros virados para os corredores. No vidro de um deles, o adesivo de uma abelha sorridente: "sou feliz porque estou sempre louvando o senhor". Um coração, no mesmo vidro, surge sorridente e de braços abertos: "eu sou dizimista". Na porta, um aviso escrito à Saramago, exterminando todas as vírgulas: "Deus está no controle não entre aqui com raiva mau humor pessimismo intrigas inveja porque acreditamos na vida que fazemos e principalmente temos fé". O que leva um sujeito a exibir sua fé aos vizinhos? Resolvo bater à porta do fiel morador. Ele não demora. De bermuda de surfista, sem camisa e descalço, Marco Antonio, 45, polidor de automóveis, tem consciência de seu engajamento religioso. Desde 1994, ele mora no primeiro andar do bloco. Hoje, vive com a esposa e um filho. "Ponhando a palavra do senhor aqui no vidro e na porta de casa, quero impactar um pouco. Muita gente daqui do prédio precisa de Deus", justifica.

Sigo minha peregrinação, batendo pernas pelo Brooklin. Latidos graves e potentes ecoam de um apartamento não muito longe dali. Quem responde, em outra janela, é um latido menos encorpado, mas também grave. Dá para ouvir tudo bem nítido: dois barítonos no primeiro ato da opereta canina. Interrompendo o dueto masculinizado, um terceiro latido, agudo e estridente - eis a nossa Maria Callas! -, assume o posto de soprano. Nem o severo Karajan seria capaz de encerrar a performance do trio.

Chama o síndico!
"Aqui tem de tudo. São dois mil moradores. É uma cidade!", desabafa Aparecido Alves, 50, atual síndico do Brooklin. Morando há quase 40 anos por lá, ele decidiu abandonar o trabalho numa transportadora, há dois anos, para se dedicar exclusivamente à sindicância. Sob suas coordenadas estão 32 funcionários: 18 porteiros, 12 zeladores e outros 2 na área administrativa. Nos blocos não se ouve críticas à sua administração. Como ninguém topou disputar a reeleição com ele, Cidão foi eleito no final do mês passado para seguir no posto por mais dois anos. "Já colocamos corrimão em todas as escadarias e espalhamos lâmpadas de emergência por todos os prédios. Terminaremos em 30 dias a pintura completa de todos os blocos: só faltam umas paredes lá no F", comenta, orgulhoso de seus feitos políticos.

Para manter a ordem de tudo, ele recebe um honorário de seis salários mínimos e sua rotina é puxada. "É toda hora atendendo moradores, acompanhando o andamento das obras, apagando o fogo dos vizinhos", comenta. A pior das brigas, por lá, é sempre a questão do silêncio. "Para isso, temos que aplicar as multas, que chegam a meio salário mínimo. Depois da primeira multa, ninguém mais insiste em fazer barulho", observa.

Milionários anônimos
Vou vasculhando outros cantos. O campinho de areia, no fundo dos blocos, um dia já foi de grama. Antes dos computadores e celulares e vídeo games 6D, a criançada lotava o campinho. Hoje, o campinho estaria deserto, não fossem os quatro estudantes jogando uma pelada. Quando terminarem o jogo, eles podem fazer a happy hour nalgum bar ali da frente, esticar um jantar nos restaurantes e até alugar um DVD na locadora de filmes, tudo a cerca de 70 passos, do outro lado da rua, de frente para o Brooklin. "É por isso que todo mundo gosta daqui. É tudo muito perto", resume Amanda de Oliveira, 24.

Sentados num banquinho, à porta dos blocos, dois amigos planejam o que fazer com o dinheiro da Mega Sena que eles certamente embolsarão na próxima aposta. "Vou comprar uma fazenda no Mato Grosso e plantar soja", imagina Pedro Antonio, 45. "Uma parte vou doar para a igreja evangélica e a outra mandarei para os parentes. Fico com um pouquinho também, né?", promete o aposentado João Hiraiama, 77. E volta e meia papeiam sobre a vida e outros delírios, despretensiosamente. "Só saio daqui milionário ou morto. Adoro esse lugar", comenta Pedro Antonio. Olho o relógio. Aperto o passo. Desço tamborilando pelas escadas – vampirizar as últimas vítimas.

Poeta de Deus
Com a porta aberta, atenta a quem sobe e desce, Marisa Luisa, 50, dá os últimos retoques ao desenho de um de seus vestidos. Gosta de tudo bem colorido, então, vai metendo azul, vermelho e preto, na tela do notebook, sentada na mesa da sala. Usa um vestidão amarelo, chinelão com detalhes douradões e tem os cabelos molhados de quem saiu há pouco do banho. Já são quase oito horas da noite, está escuro, e ela não se incomoda de falar sobre seus tantos projetos a um desconhecido, escorado na escada. "Só de uma coisa não abro mão: do colorido dos meus desenhos", comenta. Formada em Moda, Marisa quer imprimir seus desenhos, juntar tudo numa pasta e distribuir o currículo pela cidade. Na sala, além dela, o pai de 85 anos e a sobrinha adolescente aumentam o ibope de alguma novela global. Panela de pressão. Cheiro acre. Antigos móveis marrons. Dois colchões empilhados na sala – um deles esquecido próximo à janela. As veleidades artísticas de Marisa: além de roupas, literatura. "Escrevo muitos versos religiosos, em homenagem a Jesus. Mas também escrevo poemas sobre as mulheres e sobre o amor. Tenho material para um livro de 117 páginas", ameaça. Para provar, começa a recitar o trecho de um de seus poemas: "Quando se esgotarem todas as possibilidades, aí é que o milagre acontece", diz, com o olhar distante, certamente prevendo a extensa fila para autógrafos no tão esperado dia do lançamento. Para quem morou durante sete anos em São Paulo, deixar a porta aberta, como Marisa faz agora, falando sobre poemas e vestidos com vizinhos e desconhecidos, é luxo digno de ostentação: "Isso não existe em São Paulo. Aqui é o paraíso".
 
Aleluia!
É o paraíso, mas ainda faltam as harpas eólias do rei Davi, a voz melíflua e maviosa do espírito de profecia, as filhas de Sião e as uvas das vinhas de Engadi. Será que estão escondidos nos outros cantos do condomínio? De longe, vejo uma luz. Depois de trombar com discípulos de Jah, evangélicos e poetas de Cristo, vou me aproximando. Chego em frente ao portão. Dessa vez não tem cachorro latindo. Nove pessoas se engalfinham nas mesas do salão do condomínio. Todos leem alguma coisa, alguns acompanham a leitura com o indicador. O grupo nota a minha presença. Todos abrem um sorrisão. Uma sexagenária loira vem ao meu encontro, espiando minhas roupas, dos pés à cabeça. "Estamos estudando o texto bíblico católico. Gostaria de participar?" Há duas décadas, o grupo dos nove se reúne no salão, religiosamente às terças-feiras. Agradeço o convite, mas fica para a próxima. Vou saindo de cena, cercado pelo Senhor. É mesmo uma pequena cidade. Com todo o tipo de gente. Só não encontro as dezenas de kaingangs com seus balaios. De tanto esbarrar em índios pelas ruas maringaenses não é que, de repente, deles sinto falta? O porteiro me dá boa noite. Latidos, ao longe, desafinam a ária canina.

Publicado no Diário (19/4/15)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Nu com a mão na consciência

Um empresário da Zona Norte, aqui em Maringá, ficou famoso da noite para o dia. No bairro onde ele mora e trabalha, não se fala em outra coisa. "Tá todo mundo sabendo, né?", comenta, rindo, uma cabeleireira cinquentona. "Aqui na padaria, as pessoas falam dele o dia inteiro", diz a balconista, sem economizar na risada. Quer encontrá-lo? Basta perguntar a qualquer pessoa do bairro. "Ele tem um comércio logo ali, ó", aponta, com uma boa risada, a estudante de 14 anos.

Para bombar na vizinhança, o empresário não precisou compor uma ópera nem atuar em alguma novela. Bastou atender às súplicas e aos desejos ardentes de sua namoradinha virtual, uma morena de aparentemente uns 20 e poucos anos, com quem ele vinha tendo papos quentíssimos nas longas madrugadas no Facebook. Exibindo-se na força do homem - orgulhoso de sua torre de Davi, seu cume de Hermon! -, o empresário pouco se importou com a barriguinha saliente: de frente para o espelho, tirou três selfies, sem aumentar nem diminuir nadinha, da forma como veio ao mundo. Seguindo as orientações da amada – ele não sabia muito bem como passar as fotos para o computador -, o empresário apaixonado foi compartilhando, sigilosamente – não era a sua maior provinha de amor? -, as três imagens tão cobiçadas pela moça.

Dois dias depois, funcionárias de uma farmácia chegaram cedinho na loja e já foram abrindo o misterioso envelope que alguém pôs debaixo da porta, na noite da última segunda-feira. Lá estava o seríssimo empresário, posando em ângulos diferentes, impávido e colossal. "Foi um espanto! Mas de uma coisa ninguém pode tirar sarro: ele é bem dotado, viu?", avalia uma das funcionárias da farmácia.

Rapidinho, as fotos do peladão foram circulando de loja em loja, enviadas de celular para celular, compartilhadas, com as devidas censuras, por meio mundo nas plataformas sociais. Nem o santo pastor da igreja evangélica, onde o empresário dá o ar da graça há tantos anos, foi poupado do envelope. "Armaram para ele. E ninguém nunca ouviu falar da tal garota das fotos. Isso deve ser coisa de ex-namorada", arrisca uma moradora do bairro. "Esse papo de pedófilo é mentira", reforça um vizinho do empresário.

A caminho do peladão, algumas pessoas me aconselham a tomar cuidado. "Aquele lugar dá um povo estranho. Fique esperto. E, se ele não quiser falar, não insista. Acho que até já teve gente armada lá dentro", aconselha uma cinquentona.


"Fui enganado"

O empresário é alto e forte. Tem a cara amarrada. Atrás do balcão, ele vende um maço de cigarro para uma mulher. Mais de um metro e setenta de altura. A cara amarrada, concluo, deve ser culpa das noites de insônia, porque, gente boa, ele já vai estendendo a mão e abrindo o peito. "Fui enganado. Não era uma mulher de verdade. Deve ser alguém querendo armar para mim", lamenta. Com um celular em mãos, o empresário, que é separado e pai de quatro filhos, vai provando que foi seduzido pela moçoila. Desde que avisou que iria à polícia, o perfil da morena já teve a foto trocada – no lugar da mulher, agora aparece um desenho vermelho. E ele vai provando tudo isso na tela do celular. "Sorte que eu não apaguei as mensagens, tá vendo? Ela sempre pedia pra eu deletar as nossas conversas."

Na janelinha do Facebook, em altos papos calientes, madrugada adentro, a morena insiste que o empresário envie as imagens eróticas para que ela possa saciar seus desejos. "Por isso, tá vendo, que eu queria marcar um encontro com ela, mas ela sempre se esquivava?! Agora, vê a minha situação: preciso comprar pão na padaria, e tô morrendo de vergonha", desabafa, antes de acrescentar: "Mas, por favor, fale com meu advogado: eu não posso dar mais detalhes sobre isso. Sabe como é, né? Quanto mais mexe, mais fede."

"Foi ingênuo"

Segundo Rafael Moribe, advogado do empresário, seu cliente "foi ingênuo" ao aceitar os pedidos da namoradinha virtual e enviar as três fotos eróticas. "Foi um momento de euforia que ele teve com a menina, porque ela dizia que ele era bonito e sentia atração física", comenta. No bairro, diz o advogado, o empresário é querido por todos. Em toda a sua vida, ele só teria tido um único arranca-rabo, tenso e sinistro. "Meu cliente se envolveu, certa vez, com uma mulher. O ex-marido dela ficou furioso e foi até o local onde ele trabalha: fez ameaças de morte, demonstrou que estava armado e o meu cliente teve que fugir. Curiosamente, foi nesse mesmo dia que o perfil da moça o adicionou no Facebook e eles começaram a conversar. Veja: não estou afirmando que o autor seja esse sujeito. É preciso, agora, investigar o caso. E como meu cliente acreditava nela, uma moça que se dizia evangélica, resolveu atender o pedido e fez a besteira de enviar as fotos", resume o advogado.

Na tarde de quinta-feira, o empresário e seu advogado entraram com pedido de instauração de inquérito policial, para que se descubra quem é, afinal de contas, o sujeito por trás da foto da moçoila sacana. Ao empresário, vou resumindo o que ouvi nas ruas: digo que ele está bem avaliado pelo mulherio, e que tudo tem algum lado positivo. "Pois é, eu tô sabendo", diz, com uma risada meio sem graça, olhando para o chão. "Uma coisa eu aprendi, viu? Nunca mais vou tirar foto pelado... E a minha vida, agora, como é que fica?"

Publicado no Diário (12/4/2015)

domingo, 5 de abril de 2015

Muitas histórias, mas só um Juarez

O recluso milionário maringaense Juarez Arantes, 73 anos, que há mais de uma década mora no hotel Deville, agora tem um novo capítulo para a sua biografia folclórica, repleta de silêncios, excentricidades e histórias rocambolescas. Sob a justificativa de que Juarez estaria fumando no quarto, o Deville entrou com uma ação de rescisão de contrato, no final do ano passado, exigindo a desocupação da suíte 427, no 4º andar, ocupada há 16 anos pelo milionário maringaense. Segundo o hotel, desde fevereiro de 2014 todas as instalações da empresa seguem o padrão 100% não fumante, e, mesmo consciente da mudança do regulamento, o hóspede teria ignorado essas determinações. Levando em conta as reclamações de hóspedes que, segundo o Deville, se queixam do mau cheiro no corredor do 4º andar, o juiz Fábio Bergamin Capela, da 5ª Vara Cível, concedeu liminar ao hotel, em novembro do ano passado, e estabeleceu o prazo de 15 dias para Juarez debandar de lá, com multa diária de R$ 1 mil, caso descumprisse a ordem. Determinado a todo custo a permanecer no Deville, Juarez recorreu ao Tribunal de Justiça do Paraná. Ao analisar o caso, a desembargadora Denise Kruger Pereira considerou que existe toda uma relação de anos entre o hotel e o hóspede, e suspendeu a decisão de desocupação imediata. Conclusão da noveleta? Pelo menos por enquanto, o quarto de Juarez está garantido por decisão judicial.

O rolo em que o nosso ilustre argentário foi se meter, trazendo à tona seu nome e exibindo seu desejo um tanto inusitado, levantou uma série de questões: 1) Por que um sujeito como ele, com verba de sobra para morar em qualquer lugar do planeta (Leblon, Cuba, Hong Kong), faz tanta questão de permanecer, sozinho e recluso, numa suíte de 28,20 metros quadrados do Deville, com vista para a Avenida Tiradentes?; 2) É fato ou lenda esse papo de que ele mesmo dirige o próprio carro, um Del Rey preto – já que não faltariam economias para contratar um talentoso motorista ou adquirir um carrinho mais moderno?; 3) Quais os detalhes da queda do seu avião, quando, em tenra idade – e pilotando a aeronave! –, teria feito um pouso forçado, no meio da Amazônia, evitando o desastre aéreo e saindo de lá vivinho da silva? 4) Qual bebida negra e misteriosa ele carrega na garrafinha de guaraná Caçulinha, de 237 ml?; 5) E, afinal de contas, como ele conseguiu acumular tanta grana – teria um e outro conselho para o resto do povão, malditos diabos afaimados que sonham com os dias de fortuna, epifanias e levitações?

Para escarafunchar essas e outras respostas, fui atrás do impossível: tentar uma entrevista com Juarez Arantes, o homem que foge dos jornalistas e raramente permite ser fotografado. Na frente do hotel, descubro que seu nome está na boca do povo. "Se você quiser encontrá-lo, é só ficar aqui. Que ele sempre passa com o Del Rey preto", comenta um senhorzinho de uns 70 anos. Então é verdade: ele tem mesmo um Del Rey preto. Que figura. "Deve ser para não chamar a atenção de sequestrador, né?", sugere o aposentado. No reduto de Juarez Arantes, seu nome não é conhecido apenas pela melhor idade. "Sempre vejo ele sozinho, aqui na calçada, fumando um cigarro atrás do outro", dedura a jovem funcionária de uma loja de roupas, debaixo do hotel. "Todos sabem que ele é milionário e mora  há uns vinte anos no hotel, né? Ele é alto, tem 'mullets' (corte de cabelo que fez sucesso nos anos noventa, tipo Chitãozinho & Xororó) e anda com a barra da calça dobrada até a canela. É até engraçado de ver", descreve. Nas ruas, nem todo mundo acha que Juarez faz um bom negócio ao continuar em Maringá. Se pudesse escolher, a estudante Annelise Nocchi, 14, já estaria a milhas e milhas distante da esquina da Tiradentes. "Mesmo com 73 anos, eu estaria em Floripa, curtindo praia e balada, numa hora dessas", comenta, com uma boa risada.

Vou entrando no hotel. Funcionários taciturnos me encaram. O berro de uma criança explode no saguão do Deville. Miles Davis entoa "Summertime": o mais lírico e intenso dos trompetistas. Eu gostaria de falar com o Juarez Arantes, vou explicando ao sujeito da recepção. De terno preto e cabelo cheio de gel, o funcionário parece medir cada palavra. "Ele não se encontra. Saiu há algumas horas." Tento sondar, em vão, seus horários e destino. "Ele não tem horário fixo." Indago se Juarez costuma receber parentes ou amigos. Ele olha bem para a minha cara. Sinto que nossa conversa acabou. "Nunca vi alguém da família dele. Nem amigos. Mas não posso falar mais sobre ele. É questão de ética. Se o senhor quiser esperar ou deixar um recado, sinta-se à vontade." Resolvo ficar. Escolho um dos sofás com vista para a porta de entrada. São quase cinco horas da tarde.

Sem linguiça nem balada
Do hotel, ligo para Helington Lopes, vocalista do Receita do Samba e proprietário da Casa de Bamba. De 1997 a 2002, ele assumia a trilha, aos sábados, das temporadas da tradicional feijoada do Deville, evento que reunia ícones da alta sociedade maringaense. Numa dessas, ele tem algum relato sobre o Juarez. Bem-humorado, o sambista abriu o jogo. "Fui apresentado ao Juarez há quinze anos, por um amigo em comum. Na hora, me disseram que ele era o homem com o maior número de imóveis em Maringá. Depois, nunca mais o vi. E ele nunca foi sambar na minha Casa de Bamba", comentou. Nas feijoadas do Deville, Helington nunca flagrou Juarez se refestelando com samba, cerveja e feijoada completa. "Acho que ele não gosta desse tipo de coisa. Mas lembro de uma coisa engraçada. Um dia, cheguei para tocar e estacionei meu carro numa das vagas do hotel. Mal desci, o manobrista mandou eu tirar o carro de lá, dizendo que a vaga tinha dono. Depois do show, quando fui ver, tinha um Del Rey preto naquela vaga. Achei estranho. Daí me disseram: aquela era a vaga do Juarez", lembra, aos risos.

Meia hora depois, nada do nosso milionário maringaense. Resolvo caçar novos relatos. Vejo um ponto de táxi: dois carros parados, do outro lado da rua. É lá. Todo taxista tem alguma história – no caso de Juarez, várias. "É o homem mais rico de Maringá. As terras lá perto do aeroporto, sabe? Tudo dele. E aquela área abandonada da Mauá até a Colombo, sabe, ali, onde era a Sanbra? Aquele terrenão inteirinho é todo dele. Sem falar nas fazendas em Mato Grosso, Tocantins, Bahia, Goiás... meu deus, é terra pelo País inteiro", diz um dos taxistas.

Bebida misteriosa
De acordo com o outro taxista, que acompanha a conversa, Juarez não administra, sozinho, os seus mil e um negócios. O milionário maringaense teria dois advogados para ajudá-lo com a burocracia e as contas todas. "Eles são dois jovens. Quase sempre estão de terno. E entram e saem do hotel."

Uma de suas peculiaridades, diz o taxista, é a bebida que ele carrega para lá e para cá, como se fosse uma extensão de seu corpo. "É que ele fuma demais e gosta de rebater o cigarro com goles de café. Por isso, o Juarez anda sempre com uma garrafinha de guaraná Caçulinha, cheia de café", detalha. Então é isso: eis a misteriosa bebida negra, um café especial. "Ele joga bastante café com açúcar e mexe tudo. Aquilo dever ser forte. Acho que dura o dia inteiro."

Deixo os taxistas em paz e volto para o Deville. É preciso ficar atento: Juarez pode voltar a qualquer instante. No Dixie Bar, pergunto pelo nosso milionário. Seca e lacônica, a funcionária responde que "não tem autorização para falar sobre esse hóspede". E do outro lado do bar, uma mulher, ruiva, me lança uns olhares aflitos, um bocado nervosos.

Bond girl
Ela ouviu minha conversa com a funcionária e, de longe, me acompanha voltando para o sofá. No som do Deville, Bob Dylan entoa "Jokerman": bendito gênio fanhoso. Alguém comenta algo sobre o jogo do final de semana. E a mulher continua me olhando. Sou míope como uma toupeira, levo um bom tempo para reconhecer que ela está piscando o olho direito para mim, como se tivesse espasmos musculares. Abro um sorriso. Ela para de piscar e, muito seriamente, balança a cabeça e as sobrancelhas, indicando a frente do hotel. A ruiva misteriosa se levanta. Deve ter uns 55 anos. Vestidão preto, saltão alto e pernas e braços decorados por longas nervuras azuis – ai de mim, onde foram parar o azeite de oliveira puríssimo?, as piscinas de Hesebon?, as amorosas mênadas em bando?! Ah, deixa para lá.

"Você quer saber sobre o Juarez, né? Ouvi sua conversa. Meu irmão se hospeda no Deville há vinte anos e tive a oportunidade de almoçar e tomar o café da manhã em mesas bem pertinho dele", conta. Segundo ela, o milionário maringaense costuma tomar café às 9h. Ao meio-dia, regala-se com carne, peixe, salada: sempre sozinho. Mas há uma coisa, em especial, que ela notou durante esses anos. "Depois do almoço, ele leva seis, sete pedaços de bolos de chocolate e baunilha para comer no quarto. Como ele gosta desses bolos, viu?!", comentou a minha Bond girl tupiniquim. Mais tarde, depois de uma longa e minuciosa investigação, eu conseguiria, com exclusividade, a receita dos dois bolos favoritos do Juarez.

Joba biógrafo
Às oito horas da noite, deixo um bilhete no hotel. Que atenda, ora bolas, o pedido de entrevista. Deixo meu celular e o ramal do jornal para que ele entre em contato. Sigo para o jornal. Na redação, ligo para Joba Beltrame (PV), professor aposentado e ex-candidato a prefeito de Maringá. Em 2004, ele se lançou à Prefeitura e, como vice, contou com Juarez. Certamente, Joba teria histórias interessantes. Quando descobre que estou atrás de Juarez, Joba dá uma boa risada. "Bicho, meu sonho é escrever a biografia dele!", revela.

Até biógrafos de peso, como Ruy Castro e José Castello, talvez se acovardassem diante da empreitada que seria publicar um livro sobre Juarez. Há um excesso de silêncio em tudo. Até mesmo Joba, amigão há muitos anos do milionário maringaense - e uma das pouquíssimas pessoas que têm acesso ao seu quarto -, não sabe dizer, precisamente, algumas coisas básicas, como a profissão dos pais de Juarez, a cidade em que ele nasceu, como foi sua infância e adolescência, esse tipo de coisa. Mesmo assim, com Joba é possível lançar muita luz sobre a biografia de Juarez. Nascido em Minas Gerais, ele teria vindo para Maringá com vinte e poucos anos. Aqui, começou a vender remédios na cidade e na região. Determinado a vencer na vida e fazer uma pequena fortuna, o jovem Juarez economizava todo o dinheiro que ganhava – jamais torrar em lambada, bebida, esbórnia e corrida de cavalos. Durante as viagens comerciais, em vez de pagar por uma pousada, Juarez preferia economizar uns trocados, dormindo dentro do próprio carro. Com algum tempo atuando na área, virou representante de laboratórios e foi juntando dinheiro, de pouquinho em pouquinho. "Ele comprou a primeira fazenda em Indianópolis (a 78 km de Maringá). Mas o grande salto econômico foi aos 27 anos, quando comprou a fazenda na Ilha do Bananal, em Tocantins. Porque ele comprou naquele esquema 'porteira fechada': imaginava que tinha só mil bois, mas, na verdade, tinha cinco mil bois. Foi aí que ele deu uma arrancada. Além do mais, naquela época, a carne estava hipervalorizada. A sorte também ajudou na fortuna dele", conta Joba.

"E aquela história amalucada de que Juarez, pilotando um avião, teria feito um pouso forçado, no meio da Amazônia, driblando a morte com classe?", pergunto. Joba dá outra boa risada. "Já me disseram até que ele não teria feito isso só uma vez... teriam sido duas vezes! Acredita?! Dois pousos heroicos, com ele pilotando! Mas já não dá para afirmar que isso aconteceu de verdade. O que ele me contou foi apenas um caso: no meio da Amazônia, na época em que servia o exército, antes de vir para Maringá."

Compreensão subliminar
"E o que ele desejava ao entrar na política, lançando-se como seu vice?", questiono. "Quando me candidatei à Prefeitura, fiz questão de convidá-lo para ser meu vice. Porque somos amigos e sempre tive grande admiração por ele. O Juarez ouve, observa muito e tem uma sabedoria natural, que ninguém sabe de onde veio. Ele vê mais longe do que os outros e entende bem o subliminar. Mas ele nunca foi muito ligado à política. Acho que só aceitou se candidatar porque se identificava comigo e porque desejava uma nova liderança na cidade, fora do esquemão de sempre", diz.

Mesmo candidato a vice-prefeito, Juarez manteve sua reclusão e não deu as caras na campanha. "Acho que ele não tinha dimensão do que poderia se aquilo", reflete. Conversando com Joba, descubro que Juarez é chegado em tangos e boleros. Fã dos bolachões, gosta de ouvir o som puríssimo em sua vitrola, sem MP3 ou outras afetações tecnológicas. Descubro que ele gosta de conversar sobre figuras históricas, como Júlio César, Alexandre Magno e Napoleão – e me pego pensando se Juarez também não seria fã do grande Tibério, que, em sua reclusão, reinou na Ilha de Capri. Pai de cinco filhos, enfrentou um casamento que rendeu divórcio. Não toma cerveja, cachaça, vodka nem uísque – só não abre mão do café com bastante açúcar na garrafinha de guaraná. Hoje, ele tem um avião, com base em Goiânia, que serve para dar um pulinho em suas tantas terras. Aos 73 anos, não se dá ao luxo de pilotá-lo: refocila-se na poltrona dos passageiros, sempre sozinho.

E lá pelas tantas me dou conta de que tenho uma vontade danada de trocar um dedo de prosa com Juarez. O isolamento, afinal, não alimenta no homem pensamentos profundos, como afirmou o velho Gógol? Quem sabe, um dia, entediado na suíte 427, Juarez resolva finalmente encerrar sua reclusão e conceder uma entrevista, no hall do hotel? Veremos. Enquanto opta pela reclusão, Juarez vai seguindo sua rotina discreta, fartando-se com bolos de baunilha e chocolate, dirigindo seu Del Rey antiostentação pelas ruas maringaenses.

Os favoritos de Juarez

Cafezinho do Juarez
*Café
*Açúcar
Prepare um café caseiro, adoce a gosto e, em seguida, jogue tudo dentro de uma garrafinha de guaraná Caçulinha. Importante: se não inserir a bebida na garrafinha de guaraná, não será o legítimo café do Juarez 

Bolo de baunilha
* 500 gramas de ovos
* 2 xícaras de chá de óleo
* 500 ml de leite
* 4 xícaras de açúcar
Misture tudo numa bacia. Em seguida, acrescente 6 xícaras de chá de farinha de trigo, 3 colheres de sopa de fermento e 2 colheres de sopa de baunilha. Após misturar tudo novamente, leve ao forno, em 180o, por 40 minutos. A receita, de grandes proporções, equivale a 3 formas grandes de pudim.

Bolo de chocolate
* 2 xícaras de farinha de trigo
* 2 xícaras de chá de açúcar
* 4 xícaras de chá cacau em pó
* 2 colheres de chá de bicarbonato de sódio
* 2 colheres de chá de fermento em pó
* 1 colher de chá de sal
* 1 colher de café solúvel
* 1 xícara de chá de leite
* 1/2 xícara de chá de óleo
* 2 ovos
* 2 colheres de chá de baunilha
* 1 xícara de água fervente
Junte o óleo, os ovos e a baunilha e bata tudo até ficar homogêneo. Em seguida, coloque os elementos secos (farinha, cacau, etc) e, depois, água fervente. Leve ao forno, em 180o, por trinta a quarenta minutos. Serve duas formas pequenas de pudim.

Publicado no Diário (5/4/15)

quinta-feira, 2 de abril de 2015

O show de João Gilberto em Maringá

Que Chico Buarque, Caetano Veloso e Vinicius de Moraes fizeram shows em Maringá, quase todos nos anos setenta, isso eu já sabia. A voz aflautada e tremelicante do outro lado da linha telefônica, ao ouvir minha resposta, parecia um tanto desapontada. Estava à espera de que ela se despedisse. Eu encerraria a ligação e voltaria ao trabalho. Quase sussurrando, a voz me perguntou: "E o que você sabe sobre o show do João Gilberto Prado Pereira de Oliveira em Maringá?".

Fiquei mudo. Um gelo danado correu minha espinha. João Gilberto nunca tocou na minha cidade. Não há registros, nunca ouvi conversa alguma, sou repórter há quanto anos mesmo?, e, claro, eu conheceria os detalhes do lendário concerto, saberia de cor o repertório de um show do João Gilberto em Maringá. Só podia ser brincadeira.

"Um show do João Gilberto?"

"Isso. Tenho fotos, umas cartas e algumas histórias. Quer publicar um texto sobre isso?"

Claro, claro, eu disse. Tenho todo o tempo do mundo, como foi exatamente esse show?, você estava lá?, onde foi?, em qual ano?, comecei a disparar, enquanto me ajeitava na cadeira, bem perto do computador, com o telefone apoiado no ombro direito. A voz, então, surgiu num risinho tímido, desses com os dentes cerrados.

"Foi um concerto quase secreto, organizado pelos ícones do comunismo na cidade. O Calil..."

Devia ser alguém com certa idade, talvez uma senhora com seus setenta e poucos anos.

"... o Calil... Ah, eu vou te contar tudo, com todos os detalhes. Mas tem que ser aqui em casa."

Claro, claro, respondi, e fui anotando o endereço: um apartamento no terceiro andar do edifício Atlantis, na Avenida Santos Dumont, 2020. O nome da senhora: Jandira Martins. Avisei o fotógrafo e pedi que me acompanhasse urgentemente, ainda era umas três e pouco da tarde.

A caminho do apartamento, com o fotógrafo dirigindo, liguei para o Reginaldo Dias. Historiador, intelectual de esquerda e fã de boa música, ele sabe da minha devoção por João Gilberto. Por sorte, não demorou para atender.

"Oi, Reginaldo! É o Gaioto. Seguinte: o que você pode me dizer sobre o show do João Gilberto aqui na cidade?"

Conheço o Reginaldo. Ele não é de ficar enrolando. Pela primeira vez, ele ficou mudo.

"Alô, Reginaldo?"

Talvez fosse o celular. Essas operadoras de hoje estão cada vez piores.

"Reginaldo, tá me ouvindo?"

Só então ele respondeu, a voz grave e ameaçadora:

"Quem te disse sobre esse show?"

"Uma amiga minha. Tem fotos, cartas e um punhado de histórias. Parece que foi organizado pelos comunistas..."

"Sinto muito. Nada tenho a dizer sobre isso."

Tentei insistir. Fiz outra pergunta.

"Não vou falar sobre o assunto", respondeu o Reginaldo Dias, um pouco alterado, batendo o telefone na minha cara.

Achei estranha aquela reação.Levamos quase uma hora e meia para ir ao apartamento. Antes, o fotógrafo teve que fazer uma imagem de uma dupla sertaneja e de um empresário que ganhou um concurso de jovens empreendedores, algum treco assim. Estacionamos o carro na frente de uma igreja, na Santos Dumont, a poucos metros do prédio. Amarildo, o porteiro que trabalha há quase cinco anos no edifício, disse que Jandira tinha saído há poucos minutos, com uma mala pequena. Pediu que ele ligasse para um táxi e partiu em direção ao aeroporto.

"Estava nervosa, agitada. Disse que faria uma longa viagem, sem data pra voltar. É uma moradora muito querida por todos aqui do prédio. Nunca recebe visitas, não tem parentes. Nunca tinha visto ela desse jeito."

Se a velha partiu para uma viagem em cima da hora, e o Reginaldo Dias, sabe-se lá por quais motivos, não quis abrir o bico, fui falar com Ivana Veraldo, professora da UEM cheia de boas histórias do cenário esquerdista aqui na cidade. Talvez, em off, ela pudesse esclarecer o mistério de João Gilberto tocando num evento comunista, a pedido, quem sabe, do tal Calil (Haddad?). Sei que ela toma café na Brioche Crocante, diariamente, na Zona 7. Dei um pulo na padaria. Ivana estava sozinha, na mesa próxima aos banheiros.

"Oi, Ivana."

Sempre acessível e de boa prosa, ela fechou a cara quando me viu.

"O que teve demais nesse show do João Gilberto em Maringá? Quem é o tal Calil? É o Calil Haddad?"

Ivana tomava um espresso e comia uma torta de morango. De tão nervosa, acabou derrubando o café na mesa. Ela toda estava tremendo.

"Você nunca vai ouvir nada de mim."

Foi a única declaração de Ivana. Ela saiu visivelmente consternada da panificadora e nunca mais atendeu meus telefonemas.

Pelo Facebook, fui explicando tudo ao Ademir Demarchi. O poeta visualizou a mensagem e se recusou a enviar uma explicação. Limitou-se a uma concisa ameaça: "Se você insistir, Gaioto. Meto-lhe uma sova. Você não sabe com quem tá mexendo".

Com o Nelson, do Idê Cabeleireiro, o barbeiro que frequento desde a infância e que escuta todo o tipo de história surreal em seu salão, foi a mesma coisa. Nelson se recusou a falar sobre o tal show e, armado com uma vassoura, foi me enxotando do seu salão aos gritos de "fora golpista!, fora fascista!".

Recorri, então, ao escritor Oscar Nakasato. O único sujeito que topou responder alguma coisa. E ainda aproveitou para disparar uma ameaça. Resolvi publicar o e-mail, aqui, na íntegra.

"Caro Gaioto, não sei como você soube disso. Nem quero saber. Além do mais, desista. Estou escrevendo um romance sobre esse show do João Gilberto. Já tenho 456 páginas. Se você publicar algo sobre essa história, eu te processo. Um abraço, Oscar."

Na dúvida, estou publicando tudo, até sem saber, ao certo, se entrevistas, diálogos e ameças, aconteceram, de fato, ou não. Tudo parece um filme surrealista do Buñuel. De toda forma, vale a pena encarar um processo judicial por causa do João Gilberto. Quem sabe, com sorte, até o próprio cantor será intimado a depor e dar detalhes sobre o tal concerto. Aliás, se você sabe alguma história sobre o tal show, por favor, entre em contato pelo meu e-mail (gaioto@odiario.com) ou pelo telefone (3221-6618). Qualquer detalhe já ajuda. E até desembolso uma grana por fotos ou pelo setlist, autografado ou não, do show de João Gilberto em Maringá.

Publicado no Diário (24/3/2015)