Há um bom tempo não pisava nessas calçadas. Não pratico esportes. Não
vejo graça em arder no sol. Não suporto piqueniques nem sentar na grama
- pentelhado, você, por besouros, abelhas e borboletinhas
afrescalhadas, sem falar no impiedoso batalhão de formigas-cabaça. O
Parque do Ingá, num domingo de manhã, não é um dos lugares mais
sedutores para um boêmio sedentário, queimando a ressaca nos raios das
dez horas. E vou maldizendo o pauteiro do jornal, disparando, também,
mil e um palavrões à sua santíssima mãe. Entusiasta da rotina natureba, o
pauteiro usa a bicicleta para se deslocar diariamente entre o jornal e
sua casa, e agora vive me mandando para pautas estranhíssimas: decide
aleatoriamente um símbolo oficial ou não oficial da cidade e exige que
volte com um punhado de histórias. "Lá é o melhor lugar do mundo.
Isolaram a rua, o povo pode caminhar, tudo em clima de família." O
pauteiro deve estar louco. Sorte que ele não está lendo isso, então,
tudo bem. No domingão em que volto ao parque, vejo que muitas pessoas,
todas distribuindo sorrisos, pensam exatamente como o pauteiro.
Crianças, pais e mães esbanjando felicidade. Respirando o ar puríssimo. O
melhor lugar do mundo.
Tomo nota dos cachorros maringaenses: traços e trejeitos idênticos
aos de seus donos. O rosto esfíngico e blasé do salsichinha, alimentado a
pão-de-ló e ostras parisienses, é o mesmo da senhorinha, cheia de joias
e de nariz empinado, empunhando a coleirinha dourada do bichano. O
Rottweiler musculoso e de olhos cheios de sangue não é irmão mais novo
do mal-encarado bombadão de academia que fuzila com seu olhar os demais
transeuntes, a baba espumando no canto da boca? Raquítico e sem pelos, o
Chihuahua é a miniatura do sujeitinho franzino, magricelo e careca. As
bochechas de um Buldogue escorrem do rosto canino – inspiram-se nos
relógios molengões de Dalí ou nas flácidas bochechas do dono amado?
Sentado
num dos bancos - praticar esportes vai contra as minhas questões
políticas e religiosas -, acompanho os atletas. Há corredores modernetes
e retrôs. Cada um respeita o espaço e as peculiaridades do outro. Com
roupas brilhantes e tênis novinhos, os modernetes ostentam, nos braços,
equipamentos eletrônicos ultra-sofisticados, que medem a pressão e
calculam o deslocamento do sujeito - compartilhando em tempo real as
informações nas plataformas sociais -, além de realizar outras ações
secundárias, como disparar raios laser, acionar explosivos à distância e
identificar duplas sertanejas com a emissão de apenas uma única nota
musical. Saudosistas, os retrôs caminham sem adornos extravagantes e
renegam o uso de aparelhos da última geração: sábios da velha guarda,
orientam-se unicamente pelo deslocamento do sol – não é mais confiante
que os ponteiros do Big Ben? Com o velho All Star, bermuda surrada e
camiseta da noite passada, não me enquadro em nenhum dos grupos.
Tem
uma movimentação a uns trezentos metros. Um grupo de crianças - ou
seriam anões? - prepara alguma coisa. Resolvo me aproximar. No meio do
caminho, ouço a revolta de dois pais. Acompanhando três crianças de
bicicletas, eles foram impedidos de entrar no parque. "Tá errado, né?
Não faz sentido proibir as bicicletas", reclama, indignado, um dos
sujeitos. Vou seguindo. Passo pela vendedora de água e refrigerantes.
"As vendas estão boas mesmo com a crise", avalia a mulher, que trabalha
há três anos naquele ponto, de frente para o parque. Ruim só quando São
Pedro não colabora. "Se chove, não vendo nem uma garrafinha de água." É
domingo de protesto (12 de abril). Na Avenida Paulista, em São Paulo,
manifestantes lotam as ruas para exigir o impeachment da presidente. No
parque, a única manifestação é contra um ciclista engajado, ostentando
uma bandeira gigante do PT. Saudado aos berros e palavrões de jovens e
adultos que interrompem suas flexões e abdominais, o ciclista distribui
acenos e arremessa beijos. Mas não vacila: pedalando sempre bem
rapidinho. Parar ali não é das melhores ideias.
Pollock precoce
Trezentos metros de caminhada depois, chego
finalmente ao grupo: mais de dez crianças, cada uma acompanhada pelos
seus pais. Todo mundo agachado na grama, debruçado sobre um tecido e
rabiscando o que dá vontade. Um garotinho, encarnando o estilo
subversivo de Pollock, arremessa com o pincel tintas vermelhas, pretas e
amarelas sobre o tecido. Concentrado, outro pequeno parece desenhar um
mamute voador. Alguém fez um jardim macilento, sobrepondo camadas de
tintas que deixaram a pintura em relevo – eis o nosso Anselm Kiefer
maringaense.
A obra coletiva foi financiada pelo empresário
Marcos Brosso, 51, proprietário de uma estamparia. Ele costuma doar
rolos gigantes de tecido para entidades assistenciais. Pela primeira
vez, trouxe um dos rolos para o parque. Chegou às dez horas, estendeu o
rolo no chão, distribuiu uns potinhos de tinta em cima do tecido e
deixou que seu filho - e quem mais quisesse - soltasse a imaginação.
"Olha que beleza. Estão todos fazendo novas amizades", observa,
apontando para o grupo.
"As crianças gostaram tanto que até já
combinamos de voltar no próximo domingo", comenta a advogada Ana
Bellizia, 37, ao lado do marido e de Francesco, o filho pintor de apenas
5 anos. "O que eu mais gosto é de desenhar", confessa Francesco. Tento
compreender seu desenho, em vão. Peço ajuda ao autor. "É um sol meio
maluco", explica o pequeno surrealista, com os dedos cheios de tinta.
Além de pintar, Francesco gosta de vir ao parque, nos finais de semana,
para cumprir dois objetivos básicos: "Andar de bicicleta e ver os
macaquinhos".
Nosso Drummond
Volto para a entrada do parque. Já estou suando à
beça. Suor é um horror. Lá na frente, uma estátua em tamanho real faz
sucesso com as crianças: um senhor sorridente, sentado num banco, sem se
incomodar com o câncer de pele. Todo mundo quer passar a mão, chegar
mais perto e enxergar os detalhes - quem sabe, entabular uma conversa?
Adriano José Valente, o 5º prefeito de Maringá, também desperta a
compaixão da criançada. "Cotadinho, mãe, aquele homem tá no sol!" De
olho no Drummond maringaense, vejo o tiozinho que caminha lento rumo a
um banco afastado, no meio das árvores. Ele traz alguma coisa nas mãos,
deve ser uma marmita. Dez minutos depois, uma senhora, também com uma
marmitinha, segue o mesmo trajeto e senta ao lado dele. Teriam combinado
um encontro pelo WhatsApp? "Jandaia do Sul não tem um lugar para a
gente ficar assim", comenta Jovina Barbosa, 72. Ela conheceu Valdevino
Barbosa, 72, há quase uma década, em Mandaguari, numa festança com roda
de viola e gente nadando no rio. A festança acabou em casamento. Quase
todo o final de semana eles vem para Maringá. Na marmita, o casal traz
arroz, carne, linguicinha, feijão e frango. Para comer tudo quentinho,
debaixo das árvores, ouvindo o dedo de prosa dos passarinhos. "Sempre
fazemos novas amizades. Aqui, a gente passeia, fica na sombra, curte a
natureza. É gostoso. Quer almoçar com a gente?"
Não sou chegado
em piqueniques, tem grama, besouro, as tais borboletas afrescalhadas,
mas isso eu não comento. Agradeço o rangão, deixo o casal no almoço
bucólico-romântico. Reza a lenda que para lá, embrenhados no meião da
mata, vivem centenas de índios kaingangs. Organizam rituais regados a
música e dança, conversam num dialeto próprio e produzem seus balaios
coloridos que serão comercializados nas tantas esquinas maringaense.
"Forçando bem a vista dá para ver os indinhos praticando arco e flecha
no meio da mata. Vez ou outra, uma flecha acerta a cabeça de algum
turista. Claro que vocês, da mídia golpista, tentam esconder esses
incidentes", costuma divagar um amigo meu, antropólogo que se gaba de
ter lido as obras completas de Lévi-Strauss. Míope e astigmata feito uma
toupeira, não enxergo índios nem flechas.
Saindo do parque,
flagro um jovem cadeirante acompanhado pelo pai. É até difícil alcançar o
programador Vitor Gotardo, 24, pilotando uma dessas cadeiras
motorizadas. "Até o lago", vou perguntando, meio ofegante, "você deve
ter enfrentado um baita rally, não?" Ele concorda. "Com todos esses
paralelepípedos, foi bastante difícil chegar lá embaixo. Melhor seria se
tivesse uma parte asfaltada. Facilitaria o nosso acesso", comenta. "O
banheiro, pelo menos, está bacana, limpo", avalia o pai, Nilson Gotardo,
49. Empunhando uma máquina fotográfica, a dupla vai dar um tratamento
nas fotos e postar tudo ainda no domingo, nas plataformas sociais.
Maior abandonado
"Quando eu era jovem, todas as árvores aqui eram
nomeadas. Você caminhava e aprendia o nome delas. Hoje, são poucas as
árvores com placas. É ruim, né?", reclama o administrador de empresas
Dorival Stabile, 44. Ele veio ao parque para acompanhar o filho,
estudante da UEM, que precisa observar as condições do parque para um
trabalho acadêmico. "Deveria ter algum projeto para renomear as árvores.
Deveria, também, ter alguma sinalização para quem desce com carrinhos
de bebê. Talvez uma pista de asfalto, de um metro de largura, para mão
afetar o meio ambiente. Outra coisa: tem muitas árvores cortadas e
caídas no meio da mata. Isso dá uma sensação de abandono. E deve ser
fácil resolver: é só chamar uma equipe levar os destroços embora. A
impressão é de que pensam assim: 'Ah, caiu? Dane-se, deixa lá, deixe
apodrecer'", comenta. O filho reforça a opinião paterna. "Deveria estar
melhor cuidado. O parque do Ingá é só que nos resta: o Horto Florestal
tá fechado e no Bosque das Grevíleas só tem drogado", reclama Bruno
Stabile, 18.
Andar pelo parque é esbarrar num punhado de
macaquinhos, para a glória da criançada e dos turistas embasbacados. Um
deles persegue uma borboleta dourada, anonimamente, sem ser notado pelo
grupo de turistas, todos armados com máquinas fotográficas e celulares
modernos. Com desenvoltura, pula os troncos de árvores caídos na mata,
desvia da pedra, tenta em novo pulo abraçar a borboletinha – brincam, os
dois, ou é a fome batendo forte? Outro macaquinho resolve cruzar a
frente do grupo – e não se arrependeria, o coitado? Triste bichano,
vítima dos flashes disparados em sua direção – quem não quer exibir o
nosso primatinha nas redes sociais?
Quase meio-dia. Os malditos
mosquitos pinicam pescoço, canela e braços. Câncer de pele. Na mata
respiro o ar puríssimo – e não é que bate a saudade da poluição? Vejo
mais corredores. Deve ser bom. São quase dez anos sem atividades
esportivas, mesmo assim não deve ser tão difícil. Resolvo correr. Aperto
o passo. Não fez uma vez? Tipo andar de bicicleta. Vamos lá.
Respiração. Inspire pela boca. Solte pelo nariz. Ou o inverso? Caramba.
Assim. Inspire um, dois, três. Solte tudo. Fácil. All Star surrado.
Olhar para frente. Jamais o chão. Cachorros. Velhos. Faixa de pedestre.
Criança de bicicleta. Um, dois, três. Caldo de cana. Água. Refrigerante.
Pipoca. Batata frita gordurosa. Aceita cartão de crédito. Diners.
Coper. Sicredi. Hipercard. Visa. Master. O vento refresca. Árvore
Sapuva. Nada dos kaingangs e seus balaios. Nada de oca. Nem arco e
flecha. Casal turista sorrindo na selfie. Solte devagar. Macacos. De
novo. Dois deles. Palmito. Soltar tudo. Qual o prazer disso? Selfie +
casais + sorrisos + parque do Ingá. Um, dois, três. Pai com criança e
esposa. Aquele livro do Baudrillard: genial. Correr em círculos. Soltar
tudo. Não é boa a sensação? Um, dois, três. Meio banal. Em círculos. O
que Heidegger disse mesmo? "Queda na banalidade." Eu caio na banalidade.
Tu cais. Ela cai. E nós postamos tudo no Facebook. Solte tudo.
Impossível continuar. A dor, no peito, vem fundo – eis o enfarto fatal
ou só gases indefesos? Desisto, vou me escorando. Na árvore. Eu podia
estar lendo, em casa, numa boa. Mas tô aqui, no sol, num domingo, plena
manhã, esbaforido, encharcado de suor, o coração desertando goela afora.
Qualquer caminhada, caramba, estou mesmo fora de forma, é um esporte
radical. Mesmo assim, de jeito algum, de meu sedentarismo não abro mão.
Jamais. Adeus, naturebas. Var ter volta, pauteiro, espere.
Publicado no Diário (26/4/15)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário