Que Chico Buarque, Caetano Veloso e Vinicius de Moraes fizeram shows em
Maringá, quase todos nos anos setenta, isso eu já sabia. A voz aflautada
e tremelicante do outro lado da linha telefônica, ao ouvir minha
resposta, parecia um tanto desapontada. Estava à espera de que ela se
despedisse. Eu encerraria a ligação e voltaria ao trabalho. Quase
sussurrando, a voz me perguntou: "E o que você sabe sobre o show do João
Gilberto Prado Pereira de Oliveira em Maringá?".
Fiquei mudo. Um
gelo danado correu minha espinha. João Gilberto nunca tocou na minha
cidade. Não há registros, nunca ouvi conversa alguma, sou repórter há
quanto anos mesmo?, e, claro, eu conheceria os detalhes do lendário
concerto, saberia de cor o repertório de um show do João Gilberto em
Maringá. Só podia ser brincadeira.
"Um show do João Gilberto?"
"Isso. Tenho fotos, umas cartas e algumas histórias. Quer publicar um texto sobre isso?"
Claro,
claro, eu disse. Tenho todo o tempo do mundo, como foi exatamente esse
show?, você estava lá?, onde foi?, em qual ano?, comecei a disparar,
enquanto me ajeitava na cadeira, bem perto do computador, com o telefone
apoiado no ombro direito. A voz, então, surgiu num risinho tímido,
desses com os dentes cerrados.
"Foi um concerto quase secreto, organizado pelos ícones do comunismo na cidade. O Calil..."
Devia ser alguém com certa idade, talvez uma senhora com seus setenta e poucos anos.
"... o Calil... Ah, eu vou te contar tudo, com todos os detalhes. Mas tem que ser aqui em casa."
Claro,
claro, respondi, e fui anotando o endereço: um apartamento no terceiro
andar do edifício Atlantis, na Avenida Santos Dumont, 2020. O nome da
senhora: Jandira Martins. Avisei o fotógrafo e pedi que me acompanhasse
urgentemente, ainda era umas três e pouco da tarde.
A caminho do
apartamento, com o fotógrafo dirigindo, liguei para o Reginaldo Dias.
Historiador, intelectual de esquerda e fã de boa música, ele sabe da
minha devoção por João Gilberto. Por sorte, não demorou para atender.
"Oi, Reginaldo! É o Gaioto. Seguinte: o que você pode me dizer sobre o show do João Gilberto aqui na cidade?"
Conheço o Reginaldo. Ele não é de ficar enrolando. Pela primeira vez, ele ficou mudo.
"Alô, Reginaldo?"
Talvez fosse o celular. Essas operadoras de hoje estão cada vez piores.
"Reginaldo, tá me ouvindo?"
Só então ele respondeu, a voz grave e ameaçadora:
"Quem te disse sobre esse show?"
"Uma amiga minha. Tem fotos, cartas e um punhado de histórias. Parece que foi organizado pelos comunistas..."
"Sinto muito. Nada tenho a dizer sobre isso."
Tentei insistir. Fiz outra pergunta.
"Não vou falar sobre o assunto", respondeu o Reginaldo Dias, um pouco alterado, batendo o telefone na minha cara.
Achei
estranha aquela reação.Levamos quase uma hora e meia para ir ao
apartamento. Antes, o fotógrafo teve que fazer uma imagem de uma dupla
sertaneja e de um empresário que ganhou um concurso de jovens
empreendedores, algum treco assim. Estacionamos o carro na frente de uma
igreja, na Santos Dumont, a poucos metros do prédio. Amarildo, o
porteiro que trabalha há quase cinco anos no edifício, disse que Jandira
tinha saído há poucos minutos, com uma mala pequena. Pediu que ele
ligasse para um táxi e partiu em direção ao aeroporto.
"Estava
nervosa, agitada. Disse que faria uma longa viagem, sem data pra voltar.
É uma moradora muito querida por todos aqui do prédio. Nunca recebe
visitas, não tem parentes. Nunca tinha visto ela desse jeito."
Se
a velha partiu para uma viagem em cima da hora, e o Reginaldo Dias,
sabe-se lá por quais motivos, não quis abrir o bico, fui falar com Ivana
Veraldo, professora da UEM cheia de boas histórias do cenário
esquerdista aqui na cidade. Talvez, em off, ela pudesse esclarecer o
mistério de João Gilberto tocando num evento comunista, a pedido, quem
sabe, do tal Calil (Haddad?). Sei que ela toma café na Brioche Crocante,
diariamente, na Zona 7. Dei um pulo na padaria. Ivana estava sozinha,
na mesa próxima aos banheiros.
"Oi, Ivana."
Sempre acessível e de boa prosa, ela fechou a cara quando me viu.
"O que teve demais nesse show do João Gilberto em Maringá? Quem é o tal Calil? É o Calil Haddad?"
Ivana
tomava um espresso e comia uma torta de morango. De tão nervosa, acabou
derrubando o café na mesa. Ela toda estava tremendo.
"Você nunca vai ouvir nada de mim."
Foi a única declaração de Ivana. Ela saiu visivelmente consternada da panificadora e nunca mais atendeu meus telefonemas.
Pelo
Facebook, fui explicando tudo ao Ademir Demarchi. O poeta visualizou a
mensagem e se recusou a enviar uma explicação. Limitou-se a uma concisa
ameaça: "Se você insistir, Gaioto. Meto-lhe uma sova. Você não sabe com
quem tá mexendo".
Com o Nelson, do Idê Cabeleireiro, o barbeiro
que frequento desde a infância e que escuta todo o tipo de história
surreal em seu salão, foi a mesma coisa. Nelson se recusou a falar sobre
o tal show e, armado com uma vassoura, foi me enxotando do seu salão
aos gritos de "fora golpista!, fora fascista!".
Recorri, então,
ao escritor Oscar Nakasato. O único sujeito que topou responder alguma
coisa. E ainda aproveitou para disparar uma ameaça. Resolvi publicar o
e-mail, aqui, na íntegra.
"Caro Gaioto, não sei como você soube
disso. Nem quero saber. Além do mais, desista. Estou escrevendo um
romance sobre esse show do João Gilberto. Já tenho 456 páginas. Se você
publicar algo sobre essa história, eu te processo. Um abraço, Oscar."
Na
dúvida, estou publicando tudo, até sem saber, ao certo, se entrevistas,
diálogos e ameças, aconteceram, de fato, ou não. Tudo parece um filme
surrealista do Buñuel. De toda forma, vale a pena encarar um processo
judicial por causa do João Gilberto. Quem sabe, com sorte, até o próprio
cantor será intimado a depor e dar detalhes sobre o tal concerto.
Aliás, se você sabe alguma história sobre o tal show, por favor, entre
em contato pelo meu e-mail (gaioto@odiario.com) ou pelo telefone
(3221-6618). Qualquer detalhe já ajuda. E até desembolso uma grana por
fotos ou pelo setlist, autografado ou não, do show de João Gilberto em
Maringá.
Publicado no Diário (24/3/2015)
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