segunda-feira, 20 de abril de 2015

Latidos, preces, vestidos, Jesus e discípulos de Jah

Nosso cronista do cotidiano visita o Edifício Maurício Schulman, conhecido como Blocos da UEM, e conta um pouco da historia de seus habitantes

Chego em frente ao portão. Seis e pouco da tarde. Um cachorro me sorri latindo. Não é preciso avisar o porteiro. Com um Palio imbicando na calçada, o funcionário da guarita abre de uma vez o portão de ferro. Generoso, para todos.

"Duvido que você não faria o mesmo."
"Mãe, eu tô chegando em casa."
"Deixei para comprar as passagens no final de semana, é sempre mais em conta."
"Tá errado, claro que tá errado."
"Empresta o isqueiro?"

Jovens com pastas e bolsas passam triscando. Alguns seguem para a UEM, outros saem com roupas de caminhada e cachorros encoleirados. Tento falar com o porteiro, mas ele está concentrado, explicando alguma coisa para uma jovem moradora. Deixo quieto, vou entrando assim mesmo. Sem avisar. O Condomínio do Conjunto Habitacional de Maringá, também conhecido como edifício Maurício Schulman - nome do engenheiro responsável pelo projeto - e até como Blocos da UEM - por ser tão colado à Universidade - parece uma extensão da Avenida Dr. Mário Clapier Urbinati, na Zona 7. Com 15 blocos e 480 apartamentos, o aglomerado arquitetônico é praticamente o Copan maringaense. Sento num dos bancos. Quinze prédios inquietos. Velhos, adultos, estudantes e bebês de colo. Vômito de criança? – alguém caminha com um pacote de Fandangos aberto. Pretas, loiras, nerds magricelos, japonesas, ruivas e bombadões de academia convivem todos juntos e misturados. Duas sessentonas conversam ao meu lado, com uma terceira senhora, sobre remédios e saúde.

"Antiformina acaba com a pessoa, não é, Maria? Fala para ela!"
"Dizem que é um terror, Claudete."
"Ele te deu dois ou só um?"
"A diabete da minha mãe era emocional. E ela foi parar no HU. Ficou andando assim, ó: quase caindo."
"E se eu tomar só a metade, será que é melhor?"
"É perigoso demais. Tem que tomar muito cuidado..."
"Estou quase indo amanhã com você no médico, Claudete."
"... porque, senão, piora tudo de uma só vez. Já imaginou?"
"Ai, não, nem me fale."

Chernobyl e Maria Joana
Deixo Claudete e suas antiforminas. Sigo entre carros e moradores. Passo por parquinhos com escorregador, gira-gira, trepa-trepa e balanço. Tudo estranhamente vazio. Parece um daqueles parquinhos fantasmagóricos de Chernobyl. Perto da radiação, eis a nossa loirinha: 27 aninhos, sentadinha na frente de um dos blocos, calça jeans surradinha, velha camiseta coloridinha. Veja, Orfeu, veja: não tem ela os mesmos olhinhos de ressaca de Françoise Dorléac? A mesma voz rouquinha de Lauren Bacall? O pescocinho fatal de Vivien Leigh? Ai, filha de Maringá. Dos seus lábios vem a mirra mais preciosa! Ó poço das águas vivas que correm do Líbano! Ó bendita – ei, cara, de novo esse papo de cotovia embriagada? Não pode ver uma musa, esse coração afoito já alça voos atabalhoados, no léxico da juventude, prometendo loas e versos dodecassílabos para a noite do meu bem? Poupemos o nome da nossa loirinha – de uma musa você não atende mil e um pedidos? Vamos batizá-la, porém, de Maria Joana.

"Só uma coisa... Aqui não é o Copan maringaense... É o Brooklin maringaense", diz Maria Joana, bem devagar, olhando para o chão.

Para ela, o segundo maior problema de viver no Brooklin é a vista dos quartos e da sala. "Não sei se você vai entender... Mas, sabe?... Você acorda... Você, então, olha para o lado... E só tem janelas... janelas... janelas... janelas..." Na república que ela divide com mais três pessoas, só há um maior problema que a paisagem minimalista: encarar as reclamações da vizinhança, indignada com o cheiro verde que emana da república. "É um saco, sabe? A gente não tem liberdade nem pra fumar um baseadinho...", reclama, sossegadona, Maria Joana.

Encontrando Jesus
Vou me embrenhando num bloco do Brooklin. Penumbra de gente tomando banho. A água escorre do chuveiro e bate no corpo de alguém. Plantas de plástico. Panela de pressão apitando furiosa. Escovas de dente. Vitamina de frutas da Vigor. Pimenta Tabasco. Cheiro de café. Embalagem de Toddy. Rolos de papel higiênico. Alguns apartamentos têm cozinhas e banheiros virados para os corredores. No vidro de um deles, o adesivo de uma abelha sorridente: "sou feliz porque estou sempre louvando o senhor". Um coração, no mesmo vidro, surge sorridente e de braços abertos: "eu sou dizimista". Na porta, um aviso escrito à Saramago, exterminando todas as vírgulas: "Deus está no controle não entre aqui com raiva mau humor pessimismo intrigas inveja porque acreditamos na vida que fazemos e principalmente temos fé". O que leva um sujeito a exibir sua fé aos vizinhos? Resolvo bater à porta do fiel morador. Ele não demora. De bermuda de surfista, sem camisa e descalço, Marco Antonio, 45, polidor de automóveis, tem consciência de seu engajamento religioso. Desde 1994, ele mora no primeiro andar do bloco. Hoje, vive com a esposa e um filho. "Ponhando a palavra do senhor aqui no vidro e na porta de casa, quero impactar um pouco. Muita gente daqui do prédio precisa de Deus", justifica.

Sigo minha peregrinação, batendo pernas pelo Brooklin. Latidos graves e potentes ecoam de um apartamento não muito longe dali. Quem responde, em outra janela, é um latido menos encorpado, mas também grave. Dá para ouvir tudo bem nítido: dois barítonos no primeiro ato da opereta canina. Interrompendo o dueto masculinizado, um terceiro latido, agudo e estridente - eis a nossa Maria Callas! -, assume o posto de soprano. Nem o severo Karajan seria capaz de encerrar a performance do trio.

Chama o síndico!
"Aqui tem de tudo. São dois mil moradores. É uma cidade!", desabafa Aparecido Alves, 50, atual síndico do Brooklin. Morando há quase 40 anos por lá, ele decidiu abandonar o trabalho numa transportadora, há dois anos, para se dedicar exclusivamente à sindicância. Sob suas coordenadas estão 32 funcionários: 18 porteiros, 12 zeladores e outros 2 na área administrativa. Nos blocos não se ouve críticas à sua administração. Como ninguém topou disputar a reeleição com ele, Cidão foi eleito no final do mês passado para seguir no posto por mais dois anos. "Já colocamos corrimão em todas as escadarias e espalhamos lâmpadas de emergência por todos os prédios. Terminaremos em 30 dias a pintura completa de todos os blocos: só faltam umas paredes lá no F", comenta, orgulhoso de seus feitos políticos.

Para manter a ordem de tudo, ele recebe um honorário de seis salários mínimos e sua rotina é puxada. "É toda hora atendendo moradores, acompanhando o andamento das obras, apagando o fogo dos vizinhos", comenta. A pior das brigas, por lá, é sempre a questão do silêncio. "Para isso, temos que aplicar as multas, que chegam a meio salário mínimo. Depois da primeira multa, ninguém mais insiste em fazer barulho", observa.

Milionários anônimos
Vou vasculhando outros cantos. O campinho de areia, no fundo dos blocos, um dia já foi de grama. Antes dos computadores e celulares e vídeo games 6D, a criançada lotava o campinho. Hoje, o campinho estaria deserto, não fossem os quatro estudantes jogando uma pelada. Quando terminarem o jogo, eles podem fazer a happy hour nalgum bar ali da frente, esticar um jantar nos restaurantes e até alugar um DVD na locadora de filmes, tudo a cerca de 70 passos, do outro lado da rua, de frente para o Brooklin. "É por isso que todo mundo gosta daqui. É tudo muito perto", resume Amanda de Oliveira, 24.

Sentados num banquinho, à porta dos blocos, dois amigos planejam o que fazer com o dinheiro da Mega Sena que eles certamente embolsarão na próxima aposta. "Vou comprar uma fazenda no Mato Grosso e plantar soja", imagina Pedro Antonio, 45. "Uma parte vou doar para a igreja evangélica e a outra mandarei para os parentes. Fico com um pouquinho também, né?", promete o aposentado João Hiraiama, 77. E volta e meia papeiam sobre a vida e outros delírios, despretensiosamente. "Só saio daqui milionário ou morto. Adoro esse lugar", comenta Pedro Antonio. Olho o relógio. Aperto o passo. Desço tamborilando pelas escadas – vampirizar as últimas vítimas.

Poeta de Deus
Com a porta aberta, atenta a quem sobe e desce, Marisa Luisa, 50, dá os últimos retoques ao desenho de um de seus vestidos. Gosta de tudo bem colorido, então, vai metendo azul, vermelho e preto, na tela do notebook, sentada na mesa da sala. Usa um vestidão amarelo, chinelão com detalhes douradões e tem os cabelos molhados de quem saiu há pouco do banho. Já são quase oito horas da noite, está escuro, e ela não se incomoda de falar sobre seus tantos projetos a um desconhecido, escorado na escada. "Só de uma coisa não abro mão: do colorido dos meus desenhos", comenta. Formada em Moda, Marisa quer imprimir seus desenhos, juntar tudo numa pasta e distribuir o currículo pela cidade. Na sala, além dela, o pai de 85 anos e a sobrinha adolescente aumentam o ibope de alguma novela global. Panela de pressão. Cheiro acre. Antigos móveis marrons. Dois colchões empilhados na sala – um deles esquecido próximo à janela. As veleidades artísticas de Marisa: além de roupas, literatura. "Escrevo muitos versos religiosos, em homenagem a Jesus. Mas também escrevo poemas sobre as mulheres e sobre o amor. Tenho material para um livro de 117 páginas", ameaça. Para provar, começa a recitar o trecho de um de seus poemas: "Quando se esgotarem todas as possibilidades, aí é que o milagre acontece", diz, com o olhar distante, certamente prevendo a extensa fila para autógrafos no tão esperado dia do lançamento. Para quem morou durante sete anos em São Paulo, deixar a porta aberta, como Marisa faz agora, falando sobre poemas e vestidos com vizinhos e desconhecidos, é luxo digno de ostentação: "Isso não existe em São Paulo. Aqui é o paraíso".
 
Aleluia!
É o paraíso, mas ainda faltam as harpas eólias do rei Davi, a voz melíflua e maviosa do espírito de profecia, as filhas de Sião e as uvas das vinhas de Engadi. Será que estão escondidos nos outros cantos do condomínio? De longe, vejo uma luz. Depois de trombar com discípulos de Jah, evangélicos e poetas de Cristo, vou me aproximando. Chego em frente ao portão. Dessa vez não tem cachorro latindo. Nove pessoas se engalfinham nas mesas do salão do condomínio. Todos leem alguma coisa, alguns acompanham a leitura com o indicador. O grupo nota a minha presença. Todos abrem um sorrisão. Uma sexagenária loira vem ao meu encontro, espiando minhas roupas, dos pés à cabeça. "Estamos estudando o texto bíblico católico. Gostaria de participar?" Há duas décadas, o grupo dos nove se reúne no salão, religiosamente às terças-feiras. Agradeço o convite, mas fica para a próxima. Vou saindo de cena, cercado pelo Senhor. É mesmo uma pequena cidade. Com todo o tipo de gente. Só não encontro as dezenas de kaingangs com seus balaios. De tanto esbarrar em índios pelas ruas maringaenses não é que, de repente, deles sinto falta? O porteiro me dá boa noite. Latidos, ao longe, desafinam a ária canina.

Publicado no Diário (19/4/15)

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