Nosso cronista do cotidiano visita o Edifício Maurício Schulman, conhecido como Blocos da UEM, e conta um pouco da historia de seus habitantes
Chego em frente ao portão. Seis e pouco da tarde. Um cachorro me
sorri latindo. Não é preciso avisar o porteiro. Com um Palio imbicando
na calçada, o funcionário da guarita abre de uma vez o portão de ferro.
Generoso, para todos.
"Duvido que você não faria o mesmo."
"Mãe, eu tô chegando em casa."
"Deixei para comprar as passagens no final de semana, é sempre mais em conta."
"Tá errado, claro que tá errado."
"Empresta o isqueiro?"
Jovens
com pastas e bolsas passam triscando. Alguns seguem para a UEM, outros
saem com roupas de caminhada e cachorros encoleirados. Tento falar com
o porteiro, mas ele está concentrado, explicando alguma coisa para uma
jovem moradora. Deixo quieto, vou entrando assim mesmo. Sem avisar. O
Condomínio do Conjunto Habitacional de Maringá, também conhecido como
edifício Maurício Schulman - nome do engenheiro responsável pelo projeto
- e até como Blocos da UEM - por ser tão colado à Universidade -
parece uma extensão da Avenida Dr. Mário Clapier Urbinati, na Zona 7.
Com 15 blocos e 480 apartamentos, o aglomerado arquitetônico é
praticamente o Copan maringaense. Sento num dos bancos. Quinze prédios
inquietos. Velhos, adultos, estudantes e bebês de colo. Vômito de
criança? – alguém caminha com um pacote de Fandangos aberto. Pretas,
loiras, nerds magricelos, japonesas, ruivas e bombadões de academia
convivem todos juntos e misturados. Duas sessentonas conversam ao meu
lado, com uma terceira senhora, sobre remédios e saúde.
"Antiformina acaba com a pessoa, não é, Maria? Fala para ela!"
"Dizem que é um terror, Claudete."
"Ele te deu dois ou só um?"
"A diabete da minha mãe era emocional. E ela foi parar no HU. Ficou andando assim, ó: quase caindo."
"E se eu tomar só a metade, será que é melhor?"
"É perigoso demais. Tem que tomar muito cuidado..."
"Estou quase indo amanhã com você no médico, Claudete."
"... porque, senão, piora tudo de uma só vez. Já imaginou?"
"Ai, não, nem me fale."
Chernobyl e Maria Joana
Deixo Claudete e suas
antiforminas. Sigo entre carros e moradores. Passo por parquinhos com
escorregador, gira-gira, trepa-trepa e balanço. Tudo estranhamente
vazio. Parece um daqueles parquinhos fantasmagóricos de Chernobyl. Perto
da radiação, eis a nossa loirinha: 27 aninhos, sentadinha na frente de
um dos blocos, calça jeans surradinha, velha camiseta coloridinha.
Veja, Orfeu, veja: não tem ela os mesmos olhinhos de ressaca de
Françoise Dorléac? A mesma voz rouquinha de Lauren Bacall? O pescocinho
fatal de Vivien Leigh? Ai, filha de Maringá. Dos seus lábios vem a
mirra mais preciosa! Ó poço das águas vivas que correm do Líbano! Ó
bendita – ei, cara, de novo esse papo de cotovia embriagada? Não pode
ver uma musa, esse coração afoito já alça voos atabalhoados, no léxico
da juventude, prometendo loas e versos dodecassílabos para a noite do
meu bem? Poupemos o nome da nossa loirinha – de uma musa você não
atende mil e um pedidos? Vamos batizá-la, porém, de Maria Joana.
"Só uma coisa... Aqui não é o Copan maringaense... É o Brooklin maringaense", diz Maria Joana, bem devagar, olhando para o chão.
Para
ela, o segundo maior problema de viver no Brooklin é a vista dos
quartos e da sala. "Não sei se você vai entender... Mas, sabe?... Você
acorda... Você, então, olha para o lado... E só tem janelas...
janelas... janelas... janelas..." Na república que ela divide com mais
três pessoas, só há um maior problema que a paisagem minimalista:
encarar as reclamações da vizinhança, indignada com o cheiro verde que
emana da república. "É um saco, sabe? A gente não tem liberdade nem pra
fumar um baseadinho...", reclama, sossegadona, Maria Joana.
Encontrando Jesus
Vou me embrenhando num bloco do
Brooklin. Penumbra de gente tomando banho. A água escorre do chuveiro e
bate no corpo de alguém. Plantas de plástico. Panela de pressão
apitando furiosa. Escovas de dente. Vitamina de frutas da Vigor.
Pimenta Tabasco. Cheiro de café. Embalagem de Toddy. Rolos de papel
higiênico. Alguns apartamentos têm cozinhas e banheiros virados para os
corredores. No vidro de um deles, o adesivo de uma abelha sorridente:
"sou feliz porque estou sempre louvando o senhor". Um coração, no mesmo
vidro, surge sorridente e de braços abertos: "eu sou dizimista". Na
porta, um aviso escrito à Saramago, exterminando todas as vírgulas:
"Deus está no controle não entre aqui com raiva mau humor pessimismo
intrigas inveja porque acreditamos na vida que fazemos e principalmente
temos fé". O que leva um sujeito a exibir sua fé aos vizinhos? Resolvo
bater à porta do fiel morador. Ele não demora. De bermuda de surfista,
sem camisa e descalço, Marco Antonio, 45, polidor de automóveis, tem
consciência de seu engajamento religioso. Desde 1994, ele mora no
primeiro andar do bloco. Hoje, vive com a esposa e um filho. "Ponhando a
palavra do senhor aqui no vidro e na porta de casa, quero impactar um
pouco. Muita gente daqui do prédio precisa de Deus", justifica.
Sigo
minha peregrinação, batendo pernas pelo Brooklin. Latidos graves e
potentes ecoam de um apartamento não muito longe dali. Quem responde,
em outra janela, é um latido menos encorpado, mas também grave. Dá para
ouvir tudo bem nítido: dois barítonos no primeiro ato da opereta
canina. Interrompendo o dueto masculinizado, um terceiro latido, agudo e
estridente - eis a nossa Maria Callas! -, assume o posto de soprano.
Nem o severo Karajan seria capaz de encerrar a performance do trio.
Chama o síndico!
"Aqui tem de tudo. São dois mil
moradores. É uma cidade!", desabafa Aparecido Alves, 50, atual síndico
do Brooklin. Morando há quase 40 anos por lá, ele decidiu abandonar o
trabalho numa transportadora, há dois anos, para se dedicar
exclusivamente à sindicância. Sob suas coordenadas estão 32
funcionários: 18 porteiros, 12 zeladores e outros 2 na área
administrativa. Nos blocos não se ouve críticas à sua administração.
Como ninguém topou disputar a reeleição com ele, Cidão foi eleito no
final do mês passado para seguir no posto por mais dois anos. "Já
colocamos corrimão em todas as escadarias e espalhamos lâmpadas de
emergência por todos os prédios. Terminaremos em 30 dias a pintura
completa de todos os blocos: só faltam umas paredes lá no F", comenta,
orgulhoso de seus feitos políticos.
Para manter a ordem de tudo,
ele recebe um honorário de seis salários mínimos e sua rotina é
puxada. "É toda hora atendendo moradores, acompanhando o andamento das
obras, apagando o fogo dos vizinhos", comenta. A pior das brigas, por
lá, é sempre a questão do silêncio. "Para isso, temos que aplicar as
multas, que chegam a meio salário mínimo. Depois da primeira multa,
ninguém mais insiste em fazer barulho", observa.
Milionários anônimos
Vou vasculhando outros
cantos. O campinho de areia, no fundo dos blocos, um dia já foi de
grama. Antes dos computadores e celulares e vídeo games 6D, a criançada
lotava o campinho. Hoje, o campinho estaria deserto, não fossem os
quatro estudantes jogando uma pelada. Quando terminarem o jogo, eles
podem fazer a happy hour nalgum bar ali da frente, esticar um jantar
nos restaurantes e até alugar um DVD na locadora de filmes, tudo a
cerca de 70 passos, do outro lado da rua, de frente para o Brooklin. "É
por isso que todo mundo gosta daqui. É tudo muito perto", resume
Amanda de Oliveira, 24.
Sentados num banquinho, à porta dos
blocos, dois amigos planejam o que fazer com o dinheiro da Mega Sena
que eles certamente embolsarão na próxima aposta. "Vou comprar uma
fazenda no Mato Grosso e plantar soja", imagina Pedro Antonio, 45. "Uma
parte vou doar para a igreja evangélica e a outra mandarei para os
parentes. Fico com um pouquinho também, né?", promete o aposentado João
Hiraiama, 77. E volta e meia papeiam sobre a vida e outros delírios,
despretensiosamente. "Só saio daqui milionário ou morto. Adoro esse
lugar", comenta Pedro Antonio. Olho o relógio. Aperto o passo. Desço
tamborilando pelas escadas – vampirizar as últimas vítimas.
Poeta de Deus
Com a porta aberta, atenta a quem
sobe e desce, Marisa Luisa, 50, dá os últimos retoques ao desenho de um
de seus vestidos. Gosta de tudo bem colorido, então, vai metendo azul,
vermelho e preto, na tela do notebook, sentada na mesa da sala. Usa um
vestidão amarelo, chinelão com detalhes douradões e tem os cabelos
molhados de quem saiu há pouco do banho. Já são quase oito horas da
noite, está escuro, e ela não se incomoda de falar sobre seus tantos
projetos a um desconhecido, escorado na escada. "Só de uma coisa não
abro mão: do colorido dos meus desenhos", comenta. Formada em Moda,
Marisa quer imprimir seus desenhos, juntar tudo numa pasta e distribuir
o currículo pela cidade. Na sala, além dela, o pai de 85 anos e a
sobrinha adolescente aumentam o ibope de alguma novela global. Panela
de pressão. Cheiro acre. Antigos móveis marrons. Dois colchões
empilhados na sala – um deles esquecido próximo à janela. As veleidades
artísticas de Marisa: além de roupas, literatura. "Escrevo muitos
versos religiosos, em homenagem a Jesus. Mas também escrevo poemas
sobre as mulheres e sobre o amor. Tenho material para um livro de 117
páginas", ameaça. Para provar, começa a recitar o trecho de um de seus
poemas: "Quando se esgotarem todas as possibilidades, aí é que o
milagre acontece", diz, com o olhar distante, certamente prevendo a
extensa fila para autógrafos no tão esperado dia do lançamento. Para
quem morou durante sete anos em São Paulo, deixar a porta aberta, como
Marisa faz agora, falando sobre poemas e vestidos com vizinhos e
desconhecidos, é luxo digno de ostentação: "Isso não existe em São
Paulo. Aqui é o paraíso".
Aleluia!
É o paraíso, mas ainda faltam as harpas
eólias do rei Davi, a voz melíflua e maviosa do espírito de profecia,
as filhas de Sião e as uvas das vinhas de Engadi. Será que estão
escondidos nos outros cantos do condomínio? De longe, vejo uma luz.
Depois de trombar com discípulos de Jah, evangélicos e poetas de
Cristo, vou me aproximando. Chego em frente ao portão. Dessa vez não
tem cachorro latindo. Nove pessoas se engalfinham nas mesas do salão do
condomínio. Todos leem alguma coisa, alguns acompanham a leitura com o
indicador. O grupo nota a minha presença. Todos abrem um sorrisão. Uma
sexagenária loira vem ao meu encontro, espiando minhas roupas, dos pés
à cabeça. "Estamos estudando o texto bíblico católico. Gostaria de
participar?" Há duas décadas, o grupo dos nove se reúne no salão,
religiosamente às terças-feiras. Agradeço o convite, mas fica para a
próxima. Vou saindo de cena, cercado pelo Senhor. É mesmo uma pequena
cidade. Com todo o tipo de gente. Só não encontro as dezenas de
kaingangs com seus balaios. De tanto esbarrar em índios pelas ruas
maringaenses não é que, de repente, deles sinto falta? O porteiro me dá
boa noite. Latidos, ao longe, desafinam a ária canina.
Publicado no Diário (19/4/15)
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