quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Nem vaselina?

O primeiro barulho veio no intervalo da novela.
Uma coisa lá no quintal.
Tipo um tropeço.
Estranho, seco.
Depois uma tosse.
Um palavrão no chute da latinha.
Sozinha, aqui, entrei em desespero.
Desde que Jonas morreu não fui mais a mesma.
Roçar o calcanhar de madrugada com quem?
Corri o olho no telefone.
Debaixo do sofá que não tava.
No meu azar, perdido em algum canto da casa.
Me cobri com a cortina ali atrás.
No silêncio do Borba Gato, só os passos do infeliz, meu coração e a propaganda da pasta de dente na TV.
Tão ruim de magrelo, puxou a cortina gozando da minha cara.
Escondendo de mim?
Não conseguia ficar em pé, ele.
Desequilibrado, derrubou tudo sozinho.
A estante, a mesinha e caiu ali, ó, bem em cima do aquário.
Contra ele nem um sopro saiu da minha boca.
De nada adiantou explicar.
Alegar inocência?
Eu era, sim, a culpada do sangue derramado.
Azar o meu.
Que tive a boca fechada com a mão dele.
Talvez até me passou doença de sangue.
AIDS?
Me levou até que com cuidado lá pra cima.
Sempre com o estilete na mão ameaçando por trás.
De uma vez me jogou na cama.
E pimba!
Eu, a última cotovia do Borba Gato.
No meio da novela, mais uma vítima da fome?
Aos oitenta e três, sem piedade?
Nem vaselina?
Só deu pra ver aquelas marcas no corpo todo.
Desenhos de rostos tortos.
Estranhos rostos pretos de diabos.
Sem nariz, olho, cabelo.
Dois grandes na barriga.
E alguns nas costas.
No rastro de sangue minha quase consumação.
Foi ouvir a sirene na rua, não pensou duas vezes.
O telhado do vizinho facilitando a fuga do marginal.
Que agora conhece até o esconderijo atrás da cortina.