segunda-feira, 15 de setembro de 2014

'Hoje Não Há Vagas'

Matéria publicada no jornal O Diário (14/9/2014)

Caminho pela avenida Carneiro Leão, o relógio marca quase 19h, e desço uma viela rumo à quadra de baixo. Da esquina vejo a entrada do Albergue Santa Luiza de Marillac, na Rua Fernão Dias.

Cumprimento o agente da Guarda Municipal, o único funcionário na frente do abrigo. Pergunto se posso passar essa noite de terça-feira por ali. Minha família inteira foi embora, estou sozinho e sem casa, vou explicando. Ele me encara.

Sou um andarilho, só com RG, sem um centavo no bolso: o tênis estropiado, a velha camiseta azul surrada e uma calça preta que não lavo há uma semana. Para não dar na cara, estou sem óculos, relógio, celular.

A barba desgrenhada e o cabelo ensebado, ajeitado no tapa, completam o visual errante. Minha única bagagem é a sacola plástica, onde se espremem a toalha, a cueca, um par de meias e uma camiseta novinha, com estampa de algum evento organizado pelo jornal.

O agente da Guarda Municipal pergunta se tenho documento e de onde sou. Digo que estou com meu RG e sou de Maringá. "O albergue não recebe gente aqui da cidade. E hoje, também, está lotado: já tem 32 pessoas. Não tem espaço para você", avisa o guarda.

Insisto. Digo que o albergue teoricamente funciona durante 24h e eu realmente preciso de um teto, só por uma noite. Não adianta. Peço alguma sugestão.

Quem sabe um outro albergue?
"Esse é o único da cidade."
"Por favor, posso pelo menos dormir aqui na frente, encostado na parede?"
"Se você tentar dormir aqui na frente do albergue, eu chamo a polícia. Não insista e vá embora", avisa o guarda. "Durma aí em qualquer canto, você que se vire. Tente voltar amanhã."

Como se fossem homens invisíveis

Um sujeito de uns cinquenta anos, que ficou no albergue por três semanas, aconselha-me ficar sentado do outro lado da rua, de frente para o abrigo. "De terça, as freiras distribuem comida para quem fica por aqui. Aí, você explica seu caso e elas vão te deixar entrar".

Agradeço a dica sento no lugar indicado. Há poucas pessoas circulando na rua. Quem cruza a sua frente não te nota no chão: invisível, você, sob o manto da indiferença. Lá dentro do albergue, vozes se alternam nos berros estridentes de que Deus está ao teu lado, irmão, Jesus Cristo nunca vai te abandonar, bendito seja o Pai que cuida de nós e nos protege em todo e qualquer momento, aleluia, aleluia, aleluia.

Do outro lado da rua, vejo o rapaz: tênis branco, uma boa camisa, calça jeans nova. De mochila nas costas, ele parece perguntar por um teto. Após cinco minutos conversando com o guarda, o cara de tênis branco vem em minha direção. "Me disseram mesmo que a situação, aqui em Maringá, estava difícil, com o albergue cheio. Mas não imaginava que iriam me negar abrigo", lamenta Sérgio, com um sorriso triste.

Vivendo há três meses nas ruas e nos abrigos do País, Sérgio já passou por várias cidades. "Se você precisa de um bom albergue, vá para São Paulo. Segundo os últimos dados que vi por aí, são cerca de 46 albergues só em São Paulo", diz.

A articulação de Sérgio, que conversa sem escorregões no português, respeitando a gramática normativa, deixa-me um tanto surpreso. Por um momento, desconfio que o jornalista disfarçado de andarilho é ele, e não eu. "Acho difícil estar realmente lotado. Olha só o tamanho desse prédio: é grande demais", diz, observando o albergue que comporta até 200 pessoas. "Maringá é uma cidade estratégica para quem está na rua: aqui mesmo, no abrigo, eles te dão uma passagem de ônibus para qualquer lugar do País", comenta.

Aos 39 anos, nascido em Botucatu (SP), Sérgio já trabalhou em diversas funções. Chegou a um alto cargo no hotel Ibis, em Campinas (SP). Foi lá, também, que ele cursou Administração, na PUC, até o segundo ano. E abandonou a faculdade após romper com a namorada da época, com quem morava junto e com quem dividia as contas de um apartamento e um carro. Com o fim do romance, ele se meteu no tráfico. Foi preso duas vezes. Sem dinheiro, Sérgio saiu da cadeia e foi para as ruas. Enquanto comenta os rumos de sua vida, os berros estridentes de aleluia, aleluia, aleluia ecoam cada vez mais alto de dentro do albergue. "Está vendo o contraste? Lá dentro, cantam e rezam para Deus, pregando o amor ao próximo. Enquanto isso, estamos aqui fora, sem ter onde dormir nem o que comer. É uma falta de cultura da sua cidade. Em qualquer outro albergue, alguém já teria nos convidado para entrar, pelo menos para ouvir a palavra de Deus", lamenta.
É sinal de Deus

De repente, a reza acaba. Uma caminhonete sai pela garagem. Do carro desce uma morena quarentona, que vem ao nosso encontro. Traz na mão dois pequenos embrulhos com lacinhos azuis. Do meio da rua ela anuncia: "Vocês creem no Nosso Senhor? Isso é para vocês: kit de higiene pessoal", diz a mulher, entregando um embrulho para mim, outro para o Sérgio. É tudo muito rápido. Sem nem ao mesmo olhar nos nossos olhos, ela vira as costas e aperta o passo rumo à caminhonete. Sérgio fica feliz com as duas escovas, um creme dental e os dois bombons ensacados. "Pelo menos, ela nos viu aqui", comenta. "É um dos sinais de Deus. Ele está aqui com a gente." Logo depois, outro carro sai da garagem e para no acostamento da rua. Uma mulher cinquentona vem ao nosso encontro.

"Vocês creem em Deus, irmãos? Em Jeová? São evangélicos?"

Nada não respondo.

"Tenho meus princípios religiosos. Sou temente a Deus", diz Sérgio, com um sorriso.

A mulher evangélica, uma das responsáveis pelos berros estridentes, aos poucos se aproxima.

"Vocês estão com fome, irmãos?"

Ela parece perguntar de verdade. Parece realmente interessada em nos ajudar.

"Sim, estamos famintos", eu digo.

"Então caminhem até a praça da rodoviária. O pastor está agora lá no culto, tem comida para todos. É só ir andando reto que vocês chegam lá", convida.

"O guarda disse que o albergue está lotado. Você consegue nos ajudar a dormir aí no albergue?"

"Ah, irmão, isso eu não consigo. Mas pode ficar tranquilo, viu?", comenta, olhando para o céu: "Você estão no relento, mas estão com Deus, nosso Salvador, e ele dará uma noite agradável, sem chuva e com clima bom. Deus não é mesmo maravilhoso?", diz ela, já seguindo ao carro.

Quentinha com frango salvadora

São quase 21h e a fome bate forte. Por sorte, Sérgio consegue duas marmitas com um pessoal que acaba de chegar no albergue. Num embrulho de alumínio, arroz, feijão, macarrão ao alho e óleo e um pedaço generoso de frango frito. Famintos, sentados de frente para o albergue, regalamo-nos e fartamo-nos com o rangão: coisa fina. "Vamos até o culto na praça. O importante, agora, é se manter ocupado. E aproveitamos para comer mais por lá", sugere.

Andando, Sérgio aproveita para me dar algumas lições de sobrevivência nas ruas. "Coma bastante: sua saúde tem que estar sempre impecável. Afinal, você não tem como se tratar de alguma doença. Outra coisa: tome muito cuidado com a higiene dos abrigos. Conheci um rapaz que pegou uma infecção no pé, no mesmo albergue em que eu estava, e, como ele não se tratou, a coisa ficou bem feia para ele. Acho até que teve que operar."

A possibilidade de dormir na rua é grande. O plano é encontrar uma marquise iluminada, porque "ficar no sereno é outro risco". Mas há outra opção: "Podemos dormir na rodoviária da cidade. O ruim é que não dá para deitar: tem que ficar sentado".

É curioso: Sérgio prefere dormir no meio da rua do que num lugar relativamente seguro. E, bem vestido, com a mala nas costas, será mais um entre tantos passageiros noturnos. Ninguém vai incomodá-lo.

A caminhada demora pouco mais que vinte minutos. E quando a evangélica cinquentona nota a nossa presença na praça, já abre um sorrisão. Alguém nos serve dois pratos de marmita. Dessa vez, no lugar do frango, tem carne. Os acompanhamentos são os mesmos: macarrão e arroz com feijão. No palquinho se engalfinham meia dúzia de evangélicos - alguns de terno, num calor quase infernal.

Sérgio só comerá a marmita depois do culto. Ele diz que ainda não decidiu onde dormirá, mas que certamente será na rua, para poder esticar o corpo. Ele não sabe se ficará em Maringá. Tudo depende de amanhã, se conseguir abrigo. Caso ofereçam uma passagem de ônibus, talvez siga para o interior de São Paulo, para Ponta Grossa, qualquer lugar serve. Deixo meu kit de higiene pessoal para Sérgio. De dentro da sacola, tiro a camiseta novinha, com a estampa de algum evento do jornal, e também deixo com ele. Desejo-lhe boa sorte. Sérgio abre um sorriso. Evangélicos, em pé, gritam aleluia, aleluia, aleluia.

'AGENTE AGIU DE FORMA EQUIVOCADA'

Segundo Oswaldo Zanollo, presidente há 18 anos do Albergue Santa Luiza de Marillac, o agente da Guarda Municipal agiu de forma "equivocada" ao negar abrigo para mim e para Sérgio, naquela terça-feira. "Ele deveria ter acolhido vocês. Ele jamais poderia ter dito isso, não é assim que se faz. É um guarda novo que está trabalhando há pouco tempo com a gente", justifica.

Oficialmente, de acordo com uma lei de 2009, o albergue deveria receber 30 pessoas diariamente. Mesmo em dias quem chegam a 32 hóspedes, como naquela terça-feira, o abrigo continua recebendo uma média de 140 pessoas. "Temos capacidade para receber até 200 pessoas por dia. O que nós não fazemos, de forma alguma, é recusar a acolhida."

Diferentemente do que foi dito pelo agente da Guarda Municipal, Zanollo salienta que o albergue funciona 24h, acolhendo, portanto, as pessoas até mesmo na alta madrugada, se for o caso. "Funcionamos nos 365 dias do ano. Até no Natal e no Ano Novo estamos de portas abertas", garante.

Há 56 anos, o único albergue da cidade recebe, sim, gente de Maringá, ao contrário do que alegou o funcionário da Guarda Municipal.

"Não importa a cidade de origem: nós recebemos. Aceitamos até gente sem documento. Nunca negamos abrigo e alimento".

Diretor da Guarda Municipal, o sargento João Carlos Virmond Porto afirmou que vai analisar o caso. Ele também criticou a postura adotada pelo agente.

"Eu tenho que ver isso com calma, mas parece que está errado, sim. Isso não existe. Tem que acolher, sim".

Mantido à base de doações, o Albergue Santa Luiza de Marillac oferece, além da cama, roupas, comida e banho. Doar passagens de ônibus para os abrigados é prática comum por lá. São Paulo, Fortaleza (CE), Curitiba, Cascavel e Campo Grande (MS) são os destinos mais comuns.

"Doamos uma média de 500 passagens por mês", contabiliza Zanollo. "É uma forma de ajudar a pessoa a chegar até a casa de algum familiar. Para isso, temos assistentes sociais que verificam se a pessoa tem mesmo parentes na cidade em que ela deseja ir, ou se a pessoa está só querendo andar de ônibus", diz.