terça-feira, 22 de junho de 2010

Júlia, minha artéria e meu esôfago

Do repertório não lembro, como não lembro da voz, nem da coreografia, do arranjo da banda ou da quantidade de músicos espalhados pelo palco do bar em que fui me meter por acaso numa sexta feira em companhia de um amigo. Nós não sabíamos onde morrer em Maringá: aquele nos pareceu um bom local. Dúvida tenho se aqueles olhos, dela, são castanhos claros ou escuros ou azuis ou até, quem sabe, meio esverdeados de acordo com o humor ou o dia da semana. Laranjas? Não lembro se demonstrou antipatia, se incorporou João Gilberto e reclamou do ar condicionado, se atrasou demais o início da apresentação, em aquecimentos vocais delicados, se o público que acompanhava cantando algumas estrofes – acompanhava? – a irritou com uma marcação descontroladamente fora do compasso. Posso imaginar mas não me atrevo, aliás, gostaria de não me atrever mas não consigo. Imagino que no meio do repertório deve ter cantado alguma canção das baianas que se apresentam em trios elétricos, com a multidão engalfinhando-se em volta e gritando – no trio elétrico não no bar –, ou, talvez, que ela estivesse entoando hinos religiosos de seitas xiitas, que na verdade não estivesse cantando, pelo contrário, gritava tresloucadamente em cima do palco recitando excertos bíblicos em meio a uma dessas fogueiras santas com todo mundo depositando dinheiro e fé e cheque e cartão de crédito e vale refeição. Por um momento, uma garota chegou na minha frente, ela dizia alguma coisa, perguntava alguma coisa, não conseguia escutar o que aquela garota tentava me dizer, então o meu amigo colocou a mão no meu ombro esquerdo, eu vi seu sorriso, e vi que ele falava sobre mim, porque ele continuou sorrindo e me balançando, enquanto conversava com as duas garotas e eu permanecia calado, inexpressivo, assim, um desses rostos que a gente não costuma ver de noite de pessoas que praticam o bem, você sabe, está tudo certo, o que está acontecendo, bicho, você nem deu bola para aquela morena, ele disse, ele estava visivelmente irritado, porque você deveria ter dito alguma coisa, como é que você ficou mudo do nada, vem, vamos, vem, ele foi me puxando uns oito passos para trás. Foi quando ele, pela primeira vez, começou a notar algo estranho comigo porque eu já não andava, não ouvia e não queria sair, aproveitei que me soltou para dar oito passos pra frente novamente. Havia uma mesa vazia, no meu lado esquerdo, onde depositei a cerveja, praticamente cheia, e algum outro aproveitou para bebê-la – meu amigo? – porque eu nunca mais encontrei a garrafa, desde que voltei a tentar me concentrar no palco, onde o vestido branco da Júlia – era esse o nome dela, era esse o nome que eu ouvi dizer na mesa, que agora não estava mais vazia – movia-se como num dos versos de Bandeira. Lentamente, recuperei o fôlego a fala o paladar e o silêncio, por sua vez, desapareceu como um desertor cubano em desespero. Voltei a ouvir. Era Júlia junto do palco, dançando, sem errar a letra, com boas melodias, assegurou-me o meu amigo, era Júlia quem te paralisou o esôfago, a artéria, o coração, ele disse, zombando-me, era Júlia quem te deixou fora de si, foi o sorriso ensurdecedor, foi aquele olhar, não foi, pega essa caneta, toma aqui, ó, pega a caneta que eu estou te dando e escreve um dos seus poeminhas nesse guardanapo e entrega pra ela, vai. Vá pro inferno, retruquei. Fui pegar minha cerveja.