segunda-feira, 23 de maio de 2016

Evangélicos ouvem a voz de Deus na Rua Galáxia, no Jd. Universo

Depois de passar três dias e três noites debruçado sobre um mapa de Maringá, à caça de coisas inusitadas, esbarro, finalmente, no destino perfeito: Rua Galáxia, no Jardim Universo. Planetas, anéis de Saturno, lixo cósmico, telescópios da Nasa e extraterrestres aterrorizantes não estão todos lá, a exatamente 5,9 km das mesas do Divina Dose, precisamente a 4,6 km da chatíssima igreja-cone? Rua Galáxia, no Jardim Universo: endereço certeiro para enviar as 300 duplas sertânicas desta cidade dos diabos, na esperança que sejam abduzidas e carregadas por OVNI’s a outros planetas distantes? Rua Galáxia, no Jardim Universo: lá, você não encontrará cosmólogos e cientistas comprovando, a partir do Big Ben, a origem de tudo? Rua Galáxia, no Jardim Universo: poetinhas octogenários não rascunham odes e sonetinhos à coincidência feliz da inimaginável junção cósmica?

O endereço mais interestelar de Maringá tem apenas dez quadras. Não há botequinhos minúsculos nem lojinhas de roupa nem armazém de secos e molhados: uma rua só de casas e moradores. Quem cobiça alguma dessas coisas, um copo de cerveja, uma camiseta nova, é obrigado a bater pernas até a Rua Universo, logo ao lado. Além do mínimo comércio, na Universo tem também a única igreja das redondezas. Aberta sete dias por semana – o bendito número sagrado! – a Igreja Evangélica Pentecostal Unção de Gileade tem agenda cheia. Sexta, às 20h, é a “campanha de cura e libertação”. Quarta, às 15h, tem “tarde da benção”. Terça, às 20h, é o dia perfeito nesse tempo de crise econômica, com a tal da “campanha da prosperidade”. Essas e outras atividades surgem no cartaz pendurado numa das três portelas da minúscula Igreja. Mas voltemos à nossa Galáxia, com suas dez quadras de espaço. Numa das esquinas, três sujeitos conversam amenidades – debatem, na Rua Galáxia, os aceleradores de partícula, radiação cósmica, a nucleossíntese estelar, a hipótese do átomo primordial?
“Na verdade, a gente tava falando sobre o culto”, comenta Leandro Emydio, 37.
Ai, não. A fé resiste à ciência até na Rua Galáxia.
“Não sei se você sabe, mas Deus me preparou esse ponto”, diz o sujeito, apontando para o terreno vazio de pedregulhos, cercado por uma cerca baixa e acinzentada. “Eu tava devendo, não tinha dinheiro pra abrir um comércio. Todo dia, dobrava os joelhos e chorava. Daí, ouvi a voz de Deus: ‘Trabalha, homem. Faz a sua parte que eu faço a minha’. Sabe o que aconteceu em seguida? O irmão da igreja comprou esse terrenão aqui e fez uma marcenaria. E eu peguei uma parte do terreno pra abrir o lava-jato. Hoje, faz um bom movimento”, garante, à frente do ponto esvaziado. “Quer dizer, não hoje, né? Que com essa crise tá tudo difícil.”
Gostei daquela parte da voz de Deus. Pergunto como é.
“A voz de Deus tem o mesmo agudo do Xororó ou é mais parecida com o grave do Emílio Santiago?”
O sujeito me olha intrigado.
“Não dá pra comparar com cantores. A voz Dele é como se fosse um vento.”
Já imaginou se Bob Dylan escuta isso?
“Mas, às vezes, Deus também fala como se fosse um vendaval”, comenta a esposa do sujeito do lava-jato.
Um terceiro crente, mais velho, agora irrompe o silêncio, acrescentando seu próprio testemunho.
“Todos nós somos evangélicos e já ouvimos a voz do Senhor”, garante.
O papo sobre a fé é quebrado por uma senhora que interrompe diálogos.
“Querem comprar um pacote do Prever?”, oferece Elza Correia, 50, empunhando pastinhas cheias de papéis e números. “Hoje, minha estratégia é oferecer contratos em toda essa rua, nas dez quadras”, comenta.
“Os moradores da Galáxia estão se preparando para a morte?”, vou sondando.
“Felizmente já marquei alguns horários. E vou voltar em breve. A gente planta hoje e colhe amanhã...”
Não é a vida que ceifa?
“...mas tenho sorte, sabe? Deus guia minhas vendas. Como evangélica, ele me protege e me aconselha.”
Ai, não. Mais uma?
“Você já ouviu a voz de Deus?”, indago.
“Claro que já. Várias vezes”, responde, com os olhos desafiadores.
“Poderia detalhar como é a voz de Deus?”
“Olha, é uma fala muuuito suave.”
“Deus, então, tem a voz do João Gilberto?”
“João quem?”
Começo a cantarolar “Garota de Ipanema”, separando sílaba por sílaba, imitando a calma e os tantos tons do Pai da Bossa Nova, batucando no corpo os toques sincopados que ele executa no violão. Não adianta.
“Não sei quem é esse João.”
“Deus tem a voz do Cauby Peixoto?”
“Não, não, não. Não tem nada a ver com o Cauby. É diferente.”
“Diferente como?”
Sem saber como responder, a senhora recorre a detalhes biográficos, lembrando que, há pouco tempo, “era do mundão”, “perdida”, “uma dessas incrédulas”, e que Deus deu a ela “mais paz de espírito e até dinheiro”.
“Você me garante que, se eu me converter, também ganharei mais dinheiro?”, vou sondando, prevendo os euros e as libras esterlinas, disposto, finalmente, a encarar a trilha da redenção divina.
“Para Deus, tudo é possível. Ele é a salvação”, garante a senhora, antes de se despedir e sair perambulando pela Galáxia, à caça de novos clientes. Despeço-me do trio de evangélicos. Por quanto dinheiro, caríssimo leitor, você se converteria?

Planetário adoentado
No céu, as nuvens ameaçam enxurradas. Infelizmente, nada de discos voadores trocando de cores nem alienígenas zanzando e convivendo harmoniosamente com os seres humanos. Uma rua, assim, com buracos e pedregulhos, com velhos espreguiçando o tédio nos portões, igual a qualquer outra. Numa esquina, avisto ao longe muros altos, brancos, portão de ferro. Deve ser lá. Um planetário na Rua Galáxia?
“Não, moço, aqui é o Núcleo Integrado de Saúde Universo”, informa um rapaz, interrompendo a leitura de um livro.
Como é bom encontrar um leitor. Nas mãos, um clássico de Machadinho? Vida e obra de Georges Lemaître? “Mecânica Quântica Moderna”, de J. J. Sakurai e Jim Napolitano?
“É a Bíblia Sagrada. Sou pastor”, avisa.
Um pastor em plena Galáxia. Vou resumindo o encontro com os fiéis. Ele não se surpreende.
“Em Maringá, 26% da população é evangélica. Nas outras cidades, o número é bem menor: 17%. É mais fácil você encontrar um fiel aqui do que em qualquer outro lugar do País”, justifica Luis Henrique, 39.
Na fila para fazer o exame e compreender a força estranha que atazana seu tornozelo, o pastor concorda em esclarecer as tantas dúvidas sobre as santíssimas cordas vocais.
“Muitos me disseram que já ouviram a voz de Deus. Como é essa voz?”
“Não sei. Deus nunca falou comigo através da voz.”
“Mesmo sendo pastor?”
“Deus fala comigo através da leitura.”
“Por que ele dirige a voz só a algumas pessoas?”
“A função dele é se aproximar e se fazer compreender.”
“Seguindo esse raciocínio, se Deus, então, resolvesse se aproximar de um fã de sertanejo universitário, pensemos aqui numa adolescente, ele poderia usar uma voz parecida com a de algum desses cantores famosos?”
“Claro que sim.”
“Mesmo sendo o Luan Santana?”
“Claro que sim. Não existe um mandamento dizendo que Deus não pode imitar o Luan Santana.”
E mais não é possível perguntar, porque a enfermeira anuncia o nome de Luis Henrique e ele segue, arrastando o pé, rumo aos mistérios do tornozelo.

Aleluia dominante
A senhora que escancara as janelas, com mais duas crianças, também se revela evangélica. O vendedor de limão, com a carriola já esvaziada, engorda a lista de evangélicos. A auxiliar de dentista que, ligeirinha, passa por mim, é testemunha de Jeová. Na Rua Galáxia, no Jardim Universo, é mais fácil flagrar alienígenas mantendo contatos imediatos de primeiro grau, a bordo de objetos voadores com luzes piscantes, do que esbarrar num único ateu.

Publicado no Diário (22/5/2016)

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Odeio te amar, minha Maringá

Querida Maringá, cada cidade tem o mitógrafo que merece. Balzac mitificou Paris. Dostoiévski imortalizou São Petersburgo. James Joyce deu vida a Dublin. John dos Passos até passou por você, em 1956, vivenciando teu calor insuportável e tua poeira de sangue e, nas linhas que dedicou a você, notou a fertilidade dessa tua terra vermelha: "Nela cresce qualquer coisa". Mas as poucas linhas de John dos Passos não são o suficiente para te mitificar. Nessa lacuna, meu fim é te encarar. Sorte tua ou azar?

Não sei se tem me acompanhado, mas, há algum tempo, venho sendo teu mitógrafo. A cada domingo, navego tuas ruas, percorro teus personagens, descubro cenários ignorados pelo cotidiano. O calor dos diabos deve ser o mesmo testemunhado pelo John dos Passos. A poeira vermelha agora tem setenta tons de cinza, resultado dos prédios colossais que brotam nas tuas calçadas. Nas tuas curvas, Maringá, vejo de tudo. O famoso padre-cantor que insiste em te visitar, as velhas que te dançam com dentaduras vacilantes nos bailes da prefeitura, as crianças babonas que te descobrem na palma da mão. A cada passo que você dá, Maringá, eu te acompanho - ou será o contrário?

Meu maior prazer é te percorrer. Tuas ruas são planas, nada de ladeiras e descidas de tirar o fôlego – de passagem por aqui, os 350 mil moradores de Ponta Grossa morrem de inveja. Maringá não é menos andável que Paris, Nova Iorque, Buenos Aires. Você zanza de lá para cá e nunca se cansa. É caminhando que te curto, Maringá. E também é caminhando, debaixo dos 49ºC do sol sempre impiedoso, que eu te odeio.

Na idade mais sacana da vida - quem detesta completar meia nove? -, você, Maringá, é uma senhora serelepe maníaca por remédios - qual outra cidade tem tantas farmácias? Vaidosa, cuida como ninguém da aparência - daí teus milhares de cirurgiões plásticos engalfinhando-se em tantas clínicas. Quase setentinha, você é louca por esportes - dez entre dez maringaenses dão volta no Parque do Ingá, no Willie Davids, no Parque Alfredo Nyffeler ou em outro dos teus cantos verdes. Festeira e danada, você nunca nega a saideira – teus bares jamais regulam horário, e a cerveja, como nas benditas mesas no Divina Dose, surgem sempre geladíssimas. Por isso, pelos porres infinitos, eu me levanto para você, ligeiramente alcoolizado, e brindo tua saúde. Mas na ressaca do dia seguinte, Maringá, os vizinhos me acordam com os berros estridentes das tuas 300 duplas sertânicas – são 312 duplas no País inteiro. Você é sádica, Maringá.

Renego a Maringá da chatíssima igreja-cone, com suas milhares de beatas xiitas empunhando os livros do famoso padre-cantor. Não reconheço a Maringá do capenguinha Joubert de Carvalho - eis a musiquinha mais ordinária e ingênua da história da MPB? Rejeito a Maringá da sétima divisão com time desfalcado. Do cachorro-quente recheado de azia em cada esquina. Essa daí não é minha cidade.

Minha Maringá tem moçoilas desfilando diariamente em vestidíssimos floridos – negras, ruivas, loiras, mestiças, outras magníficas de traços indígenas. Minha Maringá é do Poty ignorado – há dois grandes murais dele espalhados por aqui, já reparou? Minha Maringá é dos índios kaingangs com balaios coloridos. Da mitológica Tia Maria exibindo, na Pernambucanas, o caminho da perdição. Do Juarez Arantes regalando-se com bolos de baunilha e acelerando pelas ruas em seu Del Rey preto antiostentação – quem imagina, ali, um milionário? Das moçoilas sexagenárias oferecendo cervejinha carérrima no Skolzinho, no Stop e no Nara's Bar. Dos hippies, cantores satânicos e do Fábio Evans vendendo poemas na São Paulo. Dos causos caóticos nos corredores do edifício Mauricio Schulman, na Zona 7. Dos artesãos, bêbados, ciganos, malditos e foragidos da polícia bebendo a noite no Posto da Paraná. Da velha freira doidinha que, toda de preto, bate pernas pela cidade e reza em silêncio – para onde vai, toda noite, a freira doidinha?

Minha relação contigo, Maringá, é de ódio e apego, desespero e serenidade, sedução e desilusão, berros e silêncios. Intensa e desequilibrada como toda grande história de amor.

Publicado no Diário (8/5/2016)