segunda-feira, 24 de maio de 2010

Lourenço Mutarelli - Entrevista

14:50 horas. Desço do metrô na estação Ana Rosa. É sábado, não há trânsito nas ruas nem tumulto nas escadas rolantes: São Paulo não se parece com São Paulo. A passos céleres, caminho alguns quarteirões rumo ao apartamento do cartunista, escritor e agora também ator Lourenço Mutarelli, 46, um dos meus autores brasileiros prediletos.
O primeiro desafio? Preparar-me para conviver, por alguns instantes, com seus cinco gatos - nutro um ódio descomunal, no meu interior, por esses animais. O segundo desafio? Não atrasar. Mutarelli tem o costume de ser pontual em seus encontros. Como marquei a entrevista para as 15 horas, ainda tenho 10 minutos.
Entre o metrô e a residência de Lourenço Mutarelli existem duas boas livrarias. Não resisto. Entro na primeira. Procuro. Olho. Não encontro. Chamo o atendente.
Quero uma edição de “O Cheiro do Ralo”. Ele me diz que está esgotada, não tem um exemplar há muito tempo. Saio decepcionado. Estou com os quatro livros de Mutarelli na bolsa, menos “O Cheiro do Ralo”.
Na segunda livraria, minha esperança novamente é despertada. Uma mulher responde que sim, tem a obra para me vender. E vai procurar. E volta de mãos vazias. Desisto. Saio da livraria. Caminho mais um pouco. Paro na frente do prédio, cujo número consigo lembrar muito vagamente.
Mas não é necessário conferir o papel que levo no bolso. No segundo andar do edifício, a prova de que o autor reside ali: um gato descansa na janela, como um suicida hesitando se arremessar. Entro no prédio ao som de fortes trovões. Olho para o céu. Nem havia reparado: é o começo da chuva.
Mutarelli abre a porta, estende a mão, me dá um sorriso. Com os pés, segura um dos gatos que tenta desertar corredor afora. Entro. Desvio de um outro gato. A sala é dominada pelos felinos e por uma absurda quantidade de livros. Sentamos. Ele, no sofá encostado na janela; eu, no outro sofá.
Tiro da bolsa meus livros, um bloco de notas e duas canetas. Antes que eu dispare a primeira pergunta, Mutarelli sugere um café. Vamos para cozinha, dois viciados em cafeína.
Infelizmente, eu digo, tive um problema com meu gravador e não vou registrar a nossa conversa. Eu gostaria tanto de guardar um registro, confesso. “Pôxa, que pena”, ele lamenta, enquanto prepara a bebida. Para o escritor, o gravador tem sido um recurso de extrema importância ultimamente.
“Minha memória é muito ruim. Esses dias, eu estava no carro e surgiu uma ideia muito boa. Mas esqueci. Lembro, apenas, que era muito boa. Agora, sempre saio de casa com o gravador”, diz, explicando a diferença existente entre o tradicional bloquinho de notas: “Quando eu gravo os textos, eles ficam mais espontâneos”. A outra função do gravador é auxiliá-lo a decorar as falas das peças teatrais que encena. Em cartaz com “Música para ninar dinossauros”, escrita e dirigida por Mário Bortolotto, Mutarelli teve apenas dois meses para decorar suas falas. Nesse período, quem foi seu maior companheiro? O gravador.
Além dos gatos, Mutarelli divide seu apartamento com a mulher – com quem está casado há 17 anos – e seu filho. A vida conjugal modificou a organização de sua produção artística. Ele adaptou sua rotina à de sua mulher e, enquanto ela saía de casa para o trabalho, Mutarelli retomava seus textos e desenhos.
Compartilhando a mesma opinião de Jorge Amado, o período matutino é o mais produtivo para o autor de “O Cheiro do Ralo”. Curiosamente, Lourenço Mutarelli não lê nenhum dos jornais espalhados na mesa da sala de jantar. À sua disposição, os exemplares da Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo permanecem intocados. “Minha mulher é assinante e separa os meus assuntos prediletos: medicina e página policial”.
A crítica

Quanto aos textos publicados sobre suas obras, o escritor enfatiza: “Não leio as críticas sobre meus livros”. Esse afastamento da produção crítica, segundo ele, deve-se ao fato de ser constantemente atacado pelos jornalistas e especialistas em literatura.
“É burrice achar que eu sempre vou fazer um livro melhor do que o outro. A Folha de S. Paulo, desde que recusei um trabalho que a empresa me ofereceu, sempre me ironiza, me ataca e desvaloriza a influência dos quadrinhos que eu levo para os livros”, diz.
E a Folha pegou pesado mesmo. Lembro Mutarelli da forte crítica publicada pelo jornal no lançamento de “A Arte de Produzir Efeito sem Causa”, publicado em 2008 e que venceria o 3º lugar do Prêmio Portugal Telecom no ano seguinte.
Na resenha veiculada, Alcir Pécora, professor de literatura da Unicamp, considerava o livro como “um gibi sem desenho”, classificou o enredo como “bobo” e ainda afirmou compreender a situação do leitor que, impaciente, “deixasse de lado o livro”. “Aquela crítica me travou. Eu estava no meu primeiro bloqueio criativo quando li, e não consegui escrever mais nada por um tempo”, lembra Mutarelli.
O primeiro bloqueio criativo aconteceu em 2008, durante o período de um mês que passou nos Estados Unidos, a convite da Companhia das Letras, para escrever uma história de amor que se passa na cidade. “O livro que eu fiz para a série ‘Amores Expressos’ é um livro de muitas divergências. Os editores acharam a obra muito confusa, me pediram para mexer no original e eu aceitei. Sinto, no entanto, que as mudanças prejudicaram a história. Eu não gosto desse livro”, diz, ressaltando que, no ano que vem, quando a editora pretende lançá-lo, voltará ao texto para modificá-lo. O motivo da crise?
“Acho que a falta de grana me tirou do foco do livro”, arrisca. No difícil mercado editorial brasileiro, mesmo já sendo um autor respeitado, Mutarelli não consegue viver apenas de literatura. “Com a grana que eu ganho vendendo livros, daria apenas para eu e minha família vivermos um mês”.
Ao mesmo tempo em que ignora as críticas negativas, Mutarelli também não se sente confortável ao ler os comentários que enaltecem suas obras: “Eu me sinto supervalorizado quando falam bem sobre meus livros”, conta. Na última edição da Festa Literária de Parati, a Flip, em 2009, o cantor, compositor e também escritor Chico Buarque elogiou, durante sua palestra, o estilo narrativo de Mutarelli, que carrega a influência dos quadrinhos para a literatura.
O escritor paulistano já sabia que Chico havia lido “O Cheiro do Ralo”. Um amigo em comum dos dois, que trabalha com produção de shows, apresentou os textos de Mutarelli ao escritor e mito vivo da MPB. “Foi bacana saber a opinião do Chico. Ele é um cara que eu respeito muito, mas isso não me deixou mais seguro no que faço”.
O escritor

O texto de Mutarelli é conciso, veloz, desesperado. Em diversos momentos, o autor escreve apenas uma palavra em uma linha, o que dá uma dinâmica bem mais rápida na condução da história. “Eu escrevo de ouvido. É um ritmo. Gosto de como a imagem se transforma no texto, mas quero fugir disso”.
Concernente à própria escrita, algumas coisas mudaram para Mutarelli entre 2004 e hoje. “Escrever era fácil. Agora, não é mais”, revela. Felizmente, para nós, leitores, não é uma crise de criatividade ou algo do gênero. Seguindo as manias e as neuroses incomuns de seus personagens, o escritor revela ter dificuldades em escrever, simplesmente, porque o teclado de seu novo laptop é irritante. “O teclado é pequeno, sempre erro ao digitar o texto, tudo isso me incomoda muito”.
Observando sua escrita de seu último livro, “Miguel e os Demônios” (2009) e “O Cheiro do Ralo” (2004), há algumas diferenças. Nas suas primeiras obras, “O Cheiro do Ralo” e “Jesus Kid” (2004), o autor usa, por exemplo, a expressão “viado”. Em outras obras recentes, publicadas pela Companhia das Letras, a expressão está de acordo com a norma culta da língua portuguesa: “veado”. Pergunto a Mutarelli sobre a mudança e ele fica surpreso. “Nunca prestei atenção nisso!”, diz. Sobre a troca realizada pela editora, ele afirma não se importar, embora considere “veado” uma expressão muito “afrescalhada”.
Outra mudança pode ser percebida na prosa poética apropriada pelo autor. “No começo, meu texto era muito mais poético”, reconhece. Em “O Natimorto” (2004), por exemplo, há passagens compostas basicamente por poesia, e é um romance. “Hoje, estou buscando uma escrita sem efeito”, diz.
Pergunto, então, para Mutarelli, a razão de nunca ter escrito um poema. A resposta do escritor revela o cuidado com sua proposta artística inovadora. “A poesia está tão desgastada, saturada, que é difícil dizer algo que já não foi dito. É difícil trazer algo novo”. Curiosamente, ele não se considera um escritor: “Acho que eu preciso me profissionalizar, ter uma rotina para escrever, publicar um livro por ano”, diz.
O Cheiro

Quando recebeu a proposta para vender os direitos de “O Cheiro do Ralo” para o cinema, Mutarelli nunca imaginou que a versão das telonas pudesse arrebanhar uma nova legião de fãs interessados por suas histórias e pela própria obra: “Achei que ninguém mais fosse atrás do livro”, confessa.
Nesse momento da conversa, ele sugere que peguemos mais um café. Vamos para a cozinha. Enquanto ele se dedica ao preparo, digo ao escritor que ler suas obras é observar, em cada enredo, a repetição constante da rotina de seus personagens.
Por quê? “A rotina é importante para mim. Ela é ruim, ela escraviza e mostra o quanto somos ridículos”, diz. A repetição das atividades diárias de seus personagens funciona, nos livros, como um recurso cômico muito peculiar de Mutarelli. Para o leitor, é impossível não contemplar as irascíveis ações do dia a dia sem esboçar um sorriso. “É um humor meio negro. Quando escrevo, também dou risadas”, confessa.
Outro tema recorrente em seus livros é o relacionamento familiar conturbado vivido pelos personagens. Com exceção de Jesus Kid, todas as histórias revelam as brigas, os desentendimentos e o desgaste da relação familiar. A estrutura da família, conturbada, foi, curiosamente, vivida pelo narrador, durante a infância.
“Hoje, com a minha nova família, nossa relação é muito melhor”. Então, é recorrendo a alguns aspectos autobiográficos que Mutarelli consegue retratar os problemas conjugais que, por sua vez, justificam a profundidade psicológica dos personagens de seus enredos, geralmente rocambolescos. O café já está quente. Ele serve a bebida na minha xícara. Mutarelli caminha equilibrando sua caneca nas mãos. Eu ando com o bloco de notas, a caneta e a xícara. Quem se dá mal no trajeto entre a cozinha e a sala é um de seus gatos, que acaba tingido por um tanto de café derramado. Mutarelli pede perdão ao felino.
Tomo o último gole da minha bebida. O café acabou. Encerro a entrevista. Pego os quatro volumes que trouxe, entrego a Mutarelli e “exijo” que sejam assinados. Na dedicatória, ele faz um autorretrato na minha dedicatória: raridade de colecionador. Enquanto Mutarelli assina os livros, lembro de uma questão importante, que quase esqueço num canto isolado da minha fraca memória. Você acha que sua obra vai resistir ao tempo? Lourenço Mutarelli para.
“Nunca tinha pensado nisso”, responde. Olha para São Paulo, talvez à procura de mais uma resposta, com a serenidade de um monge tibetano. Noto, pela primeira vez, a semelhança dele com o “homem da propaganda do Bom Bril”, como ele mesmo descreve o protagonista de “O Cheiro do Ralo”.
Para Mutarelli, que há poucos minutos atrás afirmou jamais ter tido “a pretensão de escrever uma obra de arte”, a resposta é sim, sua arte resistirá ao tempo: “‘Transubstanciação’ foi relançado em 2004, uma década depois da primeira edição e fez mais sentido na época”, recorda.

Mutarelli encerra a sessão de autógrafos e me entrega os volumes. Coloco tudo na bolsa. Agradeço. Agradeço o café. Agradeço a entrevista. Agradeço os livros escritos e as boas horas de literatura que ele me proporcionou. Já estou em frente ao elevador. Agradeço novamente. Volto para apertar sua mão. Deixo o edifício com alguns pingos de chuva molhando-me a cabeça. Caminho. Paro um instante. Volto para a frente do prédio: o gato branco, gordo, continua contemplando São Paulo do 2º andar.
Publicada em O Diário do Norte do Paraná.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dedé

Bem moço eu era.
Assim, lembro quase de tudo.
Da cara dele com todos os detalhes:
Com espinhas, feio, orelhas de abano.
O amigo do papai mais presente que o papai.
No domingo quem fazia o churrasco?
Temperando a carne?
Suando na churrasqueira sem camisa?
Nunca entendi direito como entrou lá em casa.
Se pela minha mãe.
Se pelo meu pai.
Gostava de me pegar no colo.
De fazer cosquinha na minha barriga.
E assoprar com tudo no meu umbigo enquanto eu me debatia.
Mamãe sempre sorrindo, dizendo: “Para, Baiano!”
Eu já era moço.
O último a ser pego no esconde-esconde.
O rei dos esconderijos inusitados.
Vencendo a brincadeira na vizinhança.
Sei que um dia.
Numa tarde, aliás.
Era tarde e papai não estava.
Era tarde e mamãe dormia.
Baiano apareceu no meu quarto e mostrou uma galinha.
“Conhece a Dedé?”
Bem moço eu era.
Mas gostava de galinha.
Baiano olhava pra mim e sorria.
Peraí.
Ou sou eu que to imaginando ele sorrir?
“Qué brincar com a Dedé?”
Deixei o carrinho na cama e corri atrás da galinha.
Acho que gritava.
Gritava como criança feliz.
“Dedé! Dedé! Dedé!”
O Baiano sempre afastava a galinha.
Quando eu chegava mais perto dela, ele aparecia.
Pegava ela no colo e levava pra mais longe.
Foi assim que acabamos no banheiro da empregada.
Era um lugar pequeno com pia e vaso sanitário.
Só a empregada usava.
Atrás do vaso, a galinha me olhava.
Assustada.
Onde tava o Baiano?
Bem atrás de mim.
Parou do meu lado e disse:
“Vem”.
Entramos.
Ele fechou a porta.
Apagou a luz.
E só deixou eu brincar com a Dedé, depois de brincar com o troço dele.

sábado, 1 de maio de 2010

Maxwell, antes tarde do que nunca


Cuidado ao se aventurar na leitura de “Até mais, vejo você amanhã”. Por mais que a linguagem e a história sejam simples, o romance do jornalista norte-americano William Maxwell é uma boa armadilha. Basta notar o elogio incomum que John Updike, um dos mais relevantes escritores da língua inglesa contemporânea, fez à obra: “Um livro encantador, completamente distinto, em sua forma, de qualquer outro que eu tenha lido.”
William Maxwell, morto em 2000, publicou, ao todo, doze livros: seis romances, três volumes de contos, um de memórias, um de literatura infantil e outro reunindo seus melhores artigos. Durante quatro décadas, ele trabalhou como editor da prestigiosa revista New Yorker, dedicada à literatura, música, teatro e artes plásticas.
No cargo, mantinha contato constante com críticos de arte e literatos, e veiculou, na revista, textos escritos por J. D. Salinger e Vladimir Nabokov. Talvez por influência do jornalismo, William Maxwell absorveu a concisão e a clareza em sua escrita. Em “Até mais, vejo você amanhã”, o autor explora a narrativa límpida, rápida, descrevendo as cenas com detalhes essenciais.
Publicado originalmente em 1980, o livro venceu o National Book Award e a Howells Medal da Academia Americana de Artes e Letras. A história se passa na década de 1920, na zona rural de Lincoln, no Estado de Illinois, num ambiente extremamente pacato. E, mesmo com a ausência de violência no local, o meeiro Lloyd Wilson é assassinado com um tiro de pistola.
Maxwell, felizmente, não investe no enredo policial. Sua proposta é mais elaborada. Cinquenta anos depois do crime, um homem passa a reconstituir o enredo, os personagens e o espaço daquele momento. Esse homem – o narrador –, na época do crime, era um amigo muito próximo do filho do assassino. Mas, depois da tragédia, os dois se separaram e nunca mais trocaram palavras entre si.
A reconstituição dos ambientes familiares, das residências e das tensões nas famílias do assassino e do assassinado, dois vizinhos de fazenda, se dá por meio da criatividade no narrador, que não teve acesso aos mínimos detalhes ou às conversas entre os personagens.
Ele recompõe, então, sobre o motivo da tragédia, que seria o caso extraconjugal da mulher do assassino com Lloyd Wilson, o meeiro assassinado. Após observar seu casamento ir por água abaixo, o assassino entra num estado de loucura e dispara contra o seu vizinho, amigo e traidor.
Da ignorância ao domínioQuando John Updike escreve que nunca leu algo semelhante, no que concerne à forma, podemos confirmar a novidade da proposta de William Maxwell: conduzir seu narrador da ignorância ao pleno domínio da situação e dos envolvidos, direta ou indiretamente, no assassinato. Como jornalista, Maxwell utiliza o narrador partindo de informações reais, no universo da ficção, sobre o assassinato.
E, como escritor, se apropria dos recursos artísticos, em que tudo é possível, para soltar a imaginação sobre o crime. Nessa investida, em que o narrador reconstitui as cenas de sua memória, o autor nos dá alguns conselhos para não confiar, integralmente, no relato, pois “ao falar do passado, mentimos a cada respiração”.
Na mistura de realidade e imaginação, Maxwell abre o jogo com o leitor: “Se alguma parte da mescla de verdade e ficção que virá a seguir parecer pouco convincente ao leitor, ele tem minha permissão para desconsiderá-la”. Ignorando ou não o convite do literato, “Até mais, vejo você amanhã” é uma saborosa leitura.
Publicada em O Diário.

Ubaldo entre a vida e a morte

Novo livro do escritor baiano, “O albatroz azul” remete ao seu clássico “Sargento Getúlio” e traz boas doses de humor e lirismo

Enquanto todos acreditam no nascimento de mais uma mulher, Tertuliano Jaburu está convencido: será um homem, será o seu primeiro neto. Em sigilo, providencia roupas azuis para vestir, com dignidade, o novo integrante da família. Afinal, macho que é macho não pode, jamais, nascer de roupa rosa, pois “sempre estarão sujeitos a ouvir dos desafetos a frase acabrunhante: ‘tu nasceste de cor-de-rosa, infeliz, cala tua boca’”.

É com o nascimento de Raymundo Penaforte, nome cuidadosamente providenciado pelo avô, Tertuliano, que João Ubaldo Ribeiro inicia seu novo romance, “O albatroz azul”. Nas 236 páginas, o baiano compõe sobre os personagens da Ilha de Itaparica, local onde o escritor nasceu e escolheu para eternizar em algumas de suas obras, como “Viva o povo brasileiro”.

A vida, em “O albatroz azul”, é o tema inicial. A morte, porém, logo aparece na história. Além de estar certo sobre o sexo da criança, o personagem Tertuliano Jaburu tem a certeza de que vai morrer em pouco tempo. Assim, aproveita para providenciar os detalhes do batizado de seu neto e trocar as últimas palavras com os amigos e algumas pessoas que admira, mas nunca teve oportunidade de conhecer pessoalmente.

Ao leitor de João Ubaldo é praticamente impossível não aproximar “O albatroz azul” de “Sargento Getúlio”, livro que já é considerado um clássico da literatura brasileira contemporânea. Escrito em 1971, quando o escritor baiano tinha apenas 30 anos, “Sargento Getúlio” reflete a lealdade e a determinação do anti-herói Getúlio Santos Bezerra, que trabalha como capanga de um influente coronel. Na história, Getúlio cumpre a ordem de transportar um prisioneiro político entre duas cidades, mas, durante o trajeto, a situação muda: se entregar o preso, conforme o combinado, seu chefe não assumirá a responsabilidade pelo sequestro e ordenará que seu capanga seja morto. Mesmo sendo avisado por outras pessoas de que será assassinado caso consiga cumprir a missão, o leal sargento Getúlio não abandona seus planos. A morte? Não importa. Ele insiste em honrar a promessa feita ao chefe.

Dessa forma, tanto em “Sargento Getúlio” quanto em “O albatroz azul”, o personagem principal segue em direção à morte, sem medo, desespero ou agonia. É possível comparar o enredo dos dois livros, mas não a linguagem de João Ubaldo. Enquanto a escrita do clássico é intensa e caótica, em sua nova obra a opção é por uma narrativa serena, pausada, mas jamais entediante.
As variações linguísticas, apropriadas pelo autor baiano, permeiam as páginas de “O albatroz azul”. Na fala dos personagens da Ilha de Itaparica, o escritor retoma sua característica mais forte: o bom humor. Seja nos divertidos ditados populares, construídos sempre com rimas interessantes e nas situações peculiares vividas pelos personagens, o livro garante sorrisos ao leitor.

E arrancar sorrisos inesperados é um dos maiores talentos de João Ubaldo. Claro que ele não é sempre bem sucedido. Em seu último livro de crônicas, “O rei da noite”, cinco ou quatro histórias são realmente boas, entre elas “Alpiste para as rolinhas” – que mostra um inusitado costume do vizinho de João Ubaldo, o recluso escritor Rubem Fonseca . As outras três dezenas de histórias são indiferentes, com sátiras e enredos fracos.

Felizmente, esse não é o caso de “O albatroz azul”. Aqui, o escritor baiano aponta para os mistérios e as questões da vida e da morte, sem perder o lirismo e o humor.
Publicada em O Diário.