quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

No dia da bimbada

Só queria um trabalho honesto.
Na minha família todos do bem.
Ninguém nunca preso.
Todos honrando o nome.
A tatuagem?
Não é nada não seu moço.
Doutor.
Desculpa.
Fiz há tempo já.
Não sabia que com ela viraria marginal.
Veja meu caso.
Negro.
Anão.
Coxo.
E fanho.
Difícil até de conseguir emprego de entregador.
De ganhar sorriso das mulheres.
Com a tatoo queria ser galã sabe?
Fiquei sem emprego.
E o cara ainda cagou na tatuagem ó que horror.
Nunca paguei pra comer alguém seu doutor.
Essa daí nunca ouvi falar.
Nunca comi uma puta.
Se comesse eu pagava claro.
Tá me acusando injustamente essa mulher doutor.
Eu trabalhei naquela esquina sim.
Tomador de conta de carro com muito orgulho.
Tem que ir cedo.
Senão pegam teu lugar.
Como não sou de briga bem cedo chego.
E tenho que defender meu posto né?
Um amigo disse não vá.
Que tá violento pacas.
E nego morre de bobeira tomando conta de carro.
Mas eu já disse queria trabalho honesto.
Era o meu terceiro dia lá.
Fui na sexta.
De boa.
Um gordo apareceu.
Gordo pra cacete.
Barbudo.
Feio.
Feio que nem o cão.
Fedido.
Ensebado.
Bafão também.
Ficou bem na minha frente.
De costa.
Daí eu disse meu irmão essa esquina daqui já tem dono carai.
Tem que ser macho senão dá treta doutor.
Ele virou.
Me olhou sério avançou um passo.
Levantei.
Ele tava com camisa escrita Sepultura.
Eu louco de encarar o figura?
O anão mais corajoso de Maringá?
Eu só queria meu trabalho honesto.
Daí me olhou encarou e riu.
Riu de mim com todos os dentes.
Não entendi.
Acho que gostou da minha coragem.
O gordo do metal caiu fora sem me fazer mal.
Ah se fazia!
Me estraçalhava ali mesmo.
Fiquei um pouco com medo.
Mas não voltou lá não.
Nem no sábado ainda bem.
Naquele dia espantei uma velha.
Espantei não.
A rua ali é grande.
Que ela ficasse na rua de trás.
Ela olhou no meu olho.
Disse não seu puto anão escroto do caralho.
Eu bater na velha?
Jamais.
Mas ela tava querendo porrada.
Ah se tava.
Veio pra cima e segurei com os dois braços.
Tentou um chute a velha.
Daí eu falei isso mesmo.
Senhora não posso te bater que eu só quero trabalho honesto.
Expliquei que tava ali desde ontem e que não tinha visto ninguém ali.
Ela ficou de boa.
Foi pra rua de trás sem reclamar só depois que viu minha tatoo.
Mas saiu jurando minha morte e riu disse que eu voltasse amanhã anão escroto.
Agora o domingo foi tranquilo.
Aliás nem deveria ter ido.
Pouco movimento.
Só compensa de tarde.
Como espanquei essa moça se eu nem tava lá?
Ela diz que fez o programa comigo às quatro né?
Pois é.
Como se três horas da manhã eu já tava em casa?
Moro no Tabaetê.
Três ruas pra cima do Bar do Moacir.
Tenho conta lá.
Todo mundo me conhece.
Só posso dizer que não bati nunca em ninguém.
Não conheço essa prostituta.
Nunca vou comer uma.
Nunca precisei pagar.
Incrível isso acontecer bem no dia que conheci uma garota.
Dei uma bela bimbada.
No meio da rua.
Pra você ver que não sou tão feio como dizem.
Gostosona de saia e decote.
Chupei todinha.
Não jamais estupro nunca.
Tava andando lá perto do bairro doutor.
Tô falando mais que a verdade.
Que essa moça me encarou virou quando eu virei me deu olhar de desejo!
Cê não iria?
Sei que é crime sexo na rua.
Mas tô falando que como ia bater na puta?
Se eu nem tava no local?
Eu tava é com a gostosona!
Como?
Não sei se era maior de idade.
Deve ser.
Não conheço.
Não sei nome.
Sem telefone também.
Estupro não não não não não não não foi isso não meu Deus.
Alguém!
Cêis não tão entendendo!
Não foi contra a vontade dela não minha nossa tô falando a verdade nada mais que a verdade por favor me ouçam não espanquei não bati em puta nenhuma mas dei uma bimbada rapidinha mesmo no meio da rua pergunta no Bar do Moacir pelo amor de doutor como eu posso ser criminoso se tava falando aqui por favor não me levem não me levem calma tá doendo não espanquei ninguém calma não prende assim não nem estuprei meu Deus não cuidado ai com a algema não me levem não me

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Fogueira de Deus

Jesus me levou tudo.
Nunca mais devolveu.
Nadinha.
Primeiro foi a casa.
Dois quartos um banheiro grande quintal e puxadinho.
Eu não queria dar não.
Mas eles pediram tão alto né?
Daí tinha que dar sim.
Sai do banco que dividia com minha mulher e outros seis fiéis.
Ela segurava minha mão forte e quase não soltou quando levantei.
Bem sabia que eu tava indo pro mal caminho.
Senão eu não tava aqui né?
Mulher sábia.
Lá na frente o pastor chamava né.
Que a gente precisava pagar a viagem pra eles rezarem no nome de todo mundo na frente do muro.
Não lembro o nome dele.
Não do pastor.
O nome do muro.
Mas por que viajar tão longe só pra rezar na frente do muro né?
Aqui já não tem o bastante?
Cachorro não mija naquele muro não?
Pedi licença pra senhora do meu lado.
Oitenta anos tadinha.
Deu o que tinha.
Até os brincos o pastor pediu.
Eu mesmo queria ir embora.
Mas não podia sair no meio de todo mundo né?
O que iam pensar de mim?
Filho de satanás?
Não queria a oração deles?
Traindo Jesus de novo Juvenal?
E se eles perguntassem isso?
Fui tremendo.
Lá na frente o pastor não me olhava.
Botou os olhos pra cima da minha cabeça.
E lá as duas mãos.
E a sua casa Juvenal?
Aquela que eu benzi eu mais o Senhor?
Vamos colocar ela aqui no nome do Senhor Juvenal!
Vamos? Vamos? Vamos Juvenal!
Vamos não.
Pensei mas não consegui falar.
Então ele olhou sorriu e começou a gritar palmas pro Juvenal que agora será abençoado até na vida eterna pra todo sempre irmãos amém!
E todo mundo me aplaudia.
A velha sem brinco sorria.
Quando eu tava voltando pro meu lugar com as pernas bambas tremia como nunca doutor.
Ele me puxou de novo.
Juvenal e o seu carro Juvenal?
Eu tentava achar minha mulher mas tinha um velho bem na frente.
O velho me olhava com amor saindo olhos azuis como os da minha mãe.
Juvenal dê o seu carro a Jesus Juvenal!
Não meu carro não pastor respondi bem baxinho.
Juvenal cê não precisa disso Juvenal!
Não deixe o Satanás te guiar Juvenal!
Que cê vai ter em dobro irmão!
Tudo em dobro em nome de Jesus!
Daí cê viu né?
As quarenta pessoas me aplaudindo de novo e chorando.
Mas quem chorava no fundo era eu.
Como eu ia pro trabalho?
Toda manhã de carona com Jesus?
Desespero muito sim.
Acho que nunca suei tanto doutor.
O pastor me empurrou pra mesinha do lado.
Onde sentava uma moça muito bonita e atenciosa.
É Juvenal do quê?
Aquele perfume o sorriso eu nunca esqueço.
Juvenal da Silva Dias.
Pediu meu documento.
Tirei do bolso da calça.
Essa mesma que eu tô usando.
Ela anotou umas coisas lá.
E me deu um papel pra escrever o nome e RG.
Ai o pastor já tava do meu lado.
E começou a gritar tudo de novo.
Que Juvenal a gente tem que rezar pra todos no muro e pôr as orações lá.
E que pra ir no muro tem avião hotel passagem conta de luz que tá atrasada a tinta que tem que pintar o salão a água.
E que eu e todo mundo que doasse ia receber em dobro ainda em vida!
Tudo em sete meses!
Bem no tempo que sempre foi do Criador!
Quando terminei de assinar ele mandou todo mundo aplaudir.
E chamou uma outra pessoa.
A sensação?
De liberdade doutor.
Sai a pressão do mundo e da situação né?
Não deram só carro e casa não.
Eles aceitavam de tudo.
Quem não tinha casa dava microondas computador tevê tênis o brinco que a senhora deu e que eu já disse.
Minha mulher desmaiou no meio do culto.
Calor infernal o daquela fogueira.
Fomos pra casa.
Mas já tinha gente da igreja lá.
Três homens fortes que nunca vi.
Mostravam o papel com meu nome e número.
Implorei por Jesus e por um banho.
Depois de muito insistir deixaram.
Mas não pude tocar nem pegar em nada.
Tomei banho com o cara sentado na patente.
Eu e Marlene fomos pra casa do meu irmão que é cafetão doutor.
Cuida de prostitutas mas é bom homem.
Mas não quero perto da minha família.
Não gosto dele.
Não segue as regras de Jesus.
Uma prova?
A única coisa que tenho é isso aqui ó.
Esse papel dizendo que um pedaço do céu é meu.
Aqui embaixo assinado pelo Senhor Jesus Cristo.
Perdi o emprego porque não tinha o carro.
Sem carro não Juvenal.
Nem quiseram ouvir sobre o dia da fogueira santa.
Logo você Juvenal?
Ninguém foi rezar por mim em nenhum lugar.
Faz oito meses já.
Enganado sim feito idiota.
Que eu faço com esse papel aqui?
Sem casa carro nem oração?

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Por causo de amor

Como matei meu marido?
Que absurdo doutor.
Não aguento mais chorar.
Repito sim.
Só posso tirar o chinelo?
Meu pé ta coçando bem na sola.
Acho que é frieira.
Coça o dia todo ó.
Esfolado quase sangrando.
Minha história com o Baiano não foi assim como tão dizendo.
Eu amava o pai dos meus filhos.
Mesmo com quase um ano sem sexo.
Na última vez foi meu presente de Natal.
Nesse ano nem isso.
Cada vez mais frio distante.
Daí começou a beber.
Me batia na segunda terça quarta quinta.
Com pausa na sexta.
Recomeçava tudo no sábado quando falava com uma vadia no celular.
Nunca descobri quem era.
Um dia ouvi chamar de meu amor.
Filho da puta.
Me proibiu de usar saia.
Obrigada a sair de casa com blusa até nos dias mais quentes.
E ai se olhasse pro lado.
Lá vinha a mão pesada no meu dorso no meio da rua no supermercado em frente ao Bar do Moacir.
Decote?
Queimou todas as blusinhas num domingo depois do jogo do Maringá Clube.
Rindo alto barriga de fora as crianças assustadas.
Dois meninões todo meu orgulho.
Pra comemorar os sete anos de casada fiz surpresa.
Depois do trabalho voltei com as unhas pintadas de vermelho.
E pimba!
Me bateu com a vara de pescar na área de serviço.
Quando casamos ele adorava minhas unhas assim.
Agora dizia que era de puta vadia biscate.
As marcas do molinete até hoje aqui na minha coxa ó doutor.

O senhor já apanhou de vara?
Sabe como dói?
Eu sei.
Depilação sorvete no shopping andar no Parque do Ingá atravessar o portão de casa.
Proibiu tudo.
Com ciúmes até do carteiro Valdemar.
Um homem tão bom de conversa e conselho.
Minha vida foi isso um ano.
Longe das amigas que escreviam bilhetes e jogavam pelo terreno baldio atrás da nossa casa.
Eu sei que tem essa lei doutor da mulher.
Mas nunca aconteceu com você.
Cê não sabe o que é isso não.
Com todo o perdão.
O inferno te consome.
Tendo que fazer tudo escondido inclusive as compras pros almoços né?
Senão ele me batia porque não tinha feito a marmita.
Mas se eu fazia me batia também porque saía de casa.
E ficava perguntando como me enganava.
Que horas eu saía.
Se eu ia com alguém.
Me enganando a vida toda desgraçada?
Tentei a morte quatro vezes.
Todas nesse ano.
As duas primeiras com estilete.
A terceira engoli as pilhas que você já me lembrou bem antes.
Pra sair um horror né?
Nunca mais.
Depois tentei o atropelamento que também não deu certo.
Não é muito fácil suicídio em Maringá.
Como acusada de assassina se nem eu mesma consigo me matar?
Mas o senhor veja.
Tô aqui repetindo meu amor.
Continuei um ano com ele doutor por causo de amor.
Acreditava de verdade que aquele homem voltaria pra mim.
Nunca vi igual na cama.
Um fogo.
Uma coisa.
Sempre disposto.
Vamos dar uma bimbada?
E aí vinha aquela covinha bonita que eu casei.
Mas depois parou o sexo.
E começou a pancadaria.
Não que deixei de amar não.
Sempre acreditei que o Baiano ia melhorar.
O senhor sabe.
Duas vezes já repeti isso nessa sala.
Sofri aqui dentro ó.
Mas isso não dá pra ver né?
Nem dá pra colocar ai no BO.
Também não ia caber no papel.
O maior amor do mundo.
Pode acreditar.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Neguinha minha!

Aquele anão me deu um frio na espinha.
Bem ali na frente do Bar do Vermelho.
Andava rápido mancando.
A perna direita dez centímetros menor.
Mais três quadras eu já taria em casa.
Ai azar meu.
Devia ter voltado com o Luiz não de ônibus.
Ninguém na rua numa hora dessa.
Madrugada em Maringá vazia sem gente nem proteção.
Braços fortes de homem de verdade.
Negro quase azul.
Se eu mudo de calçada a coisa piora?
Continuo no passo apertado.
Bem do meu lado ele passa rápido.
Nem olhou pro meu vestido novo.
Vermelho decotado bem curtinho.
Como pode?
Tão bem sucedida em qualquer lugar?
Ali sozinha nem ao menos uma espiadinha?
Anão veado?
Curiosa que só virei depois.
E pimba!
Ele virou também.
Sorriso de veado aquilo nunca.
Macho pra danar isso sim.
Olhar de desejo tesão e bebida.
Fiquei quente deu medo.
Voltei pro meu passo desviando das árvores.
Já ouvia ele tropeçando agora pra perto de mim.
Neguinha minha!
Além de anão manco ainda por cima fanho.
Como me alcançou tão rápido?
Já me puxou pelo braço.
Me encostou numa parede.
Eu fraca com dó dele?
Um chute apenas bastaria.
As pernas chacoalhando de um lado pro outro.
Um frio na espinha quente se espalhando pelo corpo.
Como sem reação?
Quente quase com febre.
Aqueles dedinhos passando na minha perna por dentro e por fora.
Encostada firme contra a parede áspera.
Com os dedos chegou até a barriga.
Nunca senti igual.
Me mandou abaixar.
Eu obedeci.
Ele começou a lamber meu decote.
Olhava alucinado.
Não sabia mais onde enfiar a mão.
Tentaria meu ouvido meu umbigo?
Eu puxava o cabelo dele pra trás.
Lambeu meu dois mamilos durinhos durinhos durinhos.
Um relevinho surgiu na calça dele.
Entrou debaixo do vestido.
Apoiando nas minhas pernas lambia toda minha intimidade.
Primeiro na frente.
Depois atrás.
Ficou assim bem gostoso.
Minha mão no corpo dele.
A língua e os dedinhos dele em mim.
E pimba!
Ele foi eu fui também.
Me deu um beijo na bunda do lado esquerdo.
Fechou o zíper.
Saiu mancando sem olhar pra trás.
Deve morar aqui por perto no Tabaetê.
Em casa liguei pro Luiz.
Boa noite amor te amo cheguei bem em casa.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Sorriso do demônio

Minha vida arruinada.
Não fosse a força do pastor Messias que evitou o suicídio.
Lendo a palavra ao lado da minha caminha.
Vem às nove da manhã bem cedinho.
Volta no por do sol antes de ir pro culto.
Mas Jesus me compreende.
Não posso andar.
Cê tá vendo?
Envergonhado até o último suspiro.
Dos amigos recebo todo o apoio.
A minha vergonha eterna ao entrar no HU.
Jamais esquecerei.
Escoltado pela polícia.
Mancando feito doente.
Minha bermuda laranja toda ensanguentada na parte de trás.
Dói só de lembrar.
Só uma coisa da polícia.
Me trataram muito bem.
Me levaram no carro de sirene tocando desrespeitando sinal.
A urgência do caso né?
Do ponto de ônibus pro Hospital.
Mas sumiram com 50 reais.
Meu vale refeição e celular.
Ainda bem deixaram meu passe de ônibus e documento.
Tudo dentro da bermuda laranja.
No bolso fechado com zíper.
Nunca mexi com ninguém.
Namoro sério o Baiano.
Não queria que aparecesse ai no papel.
Sério casado tá pra separar da mulher.
Vamos viver juntos e felizes aqui no Jardim Tabaetê.
No ponto de ônibus chegou o desgraçado.
Queria saber meu nome e de onde eu era.
Não dei papo.
O ponto vazio ninguém às cinco e pouco.
Pego sempre o 335 ali.
Saio da frente do Avenida Center e paro no Cesumar.
Daí venho andando até aqui em casa.
Sou fiel sabe?
E insistia.
Que eu era lindo.
Veio me pegando.
Me agarrou e lascou um beijo quase na boca.
Não faz meu tipo não.
Falando bem da minha camisa cavada.
Voz baixa grave de sedutor.
De que vale a vida sem fidelidade?
Amo Baiano meu namorado:
Na vida um príncipe.
Na cama um animal.
Sou incapaz de qualquer traição.
Empurrei sim.
Disse que não jamais se afaste seu puto.
Cê podia imaginar.
Ó como tá escuro aqui doutor.
Essa é do primeiro chute.
A marca do coturno pesado preto feito a morte.
Cai no chão.
Pulava em cima de mim feito louco.
Gritei por Jesus Nossa Senhora São Mateus.
Me chamava de masoquista.
Eu desesperado iria morrer ali?
Olha aqui na costa o estrago.
Marcas que não saem tão fácil doutor.
Quando eu achei que era o fim do inferno.
Surgiu então o demônio.
Gordo de camiseta preta com estampa do capeta.
Barba grande cortada com navalha.
Cabelo grande ensebado um nojo.
O que seria de mim?
Me puxou pra cima na cara dele.
Senti a barba roçando a minha fuça.
O banguelo sorriso do demônio.
Já tinha uns carros parados no ponto de ônibus.
Todo mundo gritava.
Eu não conseguia escutar nada.
Me jogou no chão.
Ele ia pisar em mim não!
Arrancou minha bermuda ali mesmo.
O pessoal do carro sorria batia palma.
Me ajuda! Me ajuda!
Era o cão em todos eles!
Meu dia tinha chegado.
Pai nosso que estás no céu santificado seja o vosso nome venha a nós o vosso reino.
No meio da oração achei que tava sendo estuprado pelo gordo.
Doeu doeu doeu.
Sentia o sangue saindo da minha bunda.
Aquilo não era um pinto jamais não.
Um pedaço de madeira todo enfiado em mim.
Sem dó nem lubrificação.
Que eu desmaiei.
Ainda bem esses anjos passaram ali e me botaram no carro da polícia.
Me ajudaram no hospital.
São homens de Deus.
Salvaram minha vida.
Minha honra.
O queria de mim sem eles?
Minha situação tá difícil.
É remédio remédio remédio e café pras visitas.
Sei que é pedir muito.
Mas tem como eu ter meu dinheiro de volta doutor?
E meu celular?

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Desgraça

Quando mudamos para essa casa, nossa família estava em luto. O acidente envolvendo um caminhão e o nosso carro resultou na morte de Amélia, minha irmã mais nova, e matou um pouco de todos nós também.
A nova casa era grande o suficiente para minha mãe, meu pai e eu enterrarmos as lembranças nos cômodos, ainda vazios de móveis e alegria. No primeiro dia, com a bagunça dos objetos todos espalhados, minha mãe me chamou ao portão e apontou para uma garota loira que caminhava no meio da rua, empurrando um garoto sentado em uma cadeira de rodas. Daquele momento em diante, eu estava proibido de fazer amizade com a “doidinha” – o termo era de minha mãe.
Durante as refeições, os únicos momentos em que nós três nos reuníamos, ninguém fazia comentários sobre Amélia. Lágrimas, apenas as discretas, no banheiro, com o chuveiro ligado. Na prece das refeições, eu segurava, pela primeira vez, a palma de minha mãe durante a oração, pois eu assumia o posto de Amélia, bem ali, entre os nossos pais.
Eu tinha quatorze anos, e minha missão era viver sem considerar a existência daquela inofensiva vizinha de aproximadamente trinta anos. Pela manhã, ela ajudava sua mãe nas tarefas domésticas. À tarde, no sábado, saía para caminhar com seu filho de oito anos, sentado na cadeira de rodas, vítima de paralisia cerebral. Quando passava em frente à nossa casa, encostava a cadeira próxima à calçada e, enquanto tentava espiar os novos vizinhos, disfarçava, mexendo nos embrulhos e na sacola com bolacha Maizena. Apenas quando o filho se retorcia na cadeira de rodas, abrindo a boca, torcendo o pescoço, com os olhos fechados firmemente, a doidinha levantava do meio-fio e voltava a empurrar a cadeira, agora em direção ao portão entreaberto.
Nos fins de semana, eles recebiam inúmeros parentes e amigos da mesma igreja. Todos frequentavam a Catedral. Para minha surpresa, descobri que a doidinha possuía uma irmã gêmea, que a visitava pelo menos uma vez por mês, aqui no bairro.
As irmãs não viviam juntas. A outra morava em Cruzeiro do Oeste, uma pequena cidade aqui perto, junto com a família de um dos tios. Ela era um pouco mais velha, seu cabelo não era tão loiro quanto ao cabelo da doidinha. Era desbotado, entre o cinza e o bege. Caminhavam juntas, pelo meio da rua, porque os terrenos à venda, cheios de grama, pedras e pedreiros, impossibilitam o trajeto dos transeuntes. Ao mesmo tempo empurrando o carrinho, elas pareciam felizes, despreocupadas com a ausência do pai da criança ou com a chuva que já começava naquele sábado. Foi quando ouvi, pela primeira vez, a voz da doidinha, que apontava para o ceu:
“É chuva, vai molhar tudo lá, ó. Depois vem arco-íris”, disse, dirigindo-se à irmã.
Em seguida, foram embora, esquecendo de fechar o portão, que permaneceu escancarado até a chegada da mãe das doidinhas, por volta das oito horas da noite. Fiquei com medo, porque Maringá está cada vez mais violenta e, afinal, elas estavam sozinhas, desprotegidas e começava a anoitecer.
Ao contrário da previsão, não choveu nem teve arco-íris. Ao encontrar a casa toda escura, à noite, exposta aos ladrões, a velha começou a gritar de dentro do carro, antes mesmo de estacioná-lo na garagem. Furiosa, arrancava dos pulmões uma voz grave e xingava Leonora – era esse o nome da doidinha.
“Vagabunda”, “louca”, “biscate”, “safada” e “irresponsável” eram emitidos na medida em que tapas arrebentavam seu rosto cadavérico e seu corpo magro, como eu bem ouvia do meu quarto. A doidinha preferia o silêncio, mesmo assim, não controlava os gemidos que lhe fugiam das entranhas.
Durante cinco dias, não saiu de casa. A irmã foi embora, sorrindo, entre acenos e resmungos. Na minha semana de férias, troquei minhas diversões com os amigos, para escutar cada passo da doidinha. Eu sabia quando ela iria lavar e secar a roupa, ajeitar a cozinha, a louça, limpar os banheiros e o quintal. E imaginava cada cena com diversos detalhes. Ela deveria vestir um pijama branco, surrado, com detalhes vermelhos e amarelos, mangas arregaçadas, velha pantufa de elefante nos pés.
Numa manhã, acordei com mais uma surra. Desta vez, tão perto que permaneci imóvel, debaixo da coberta, um pouco assustado. Provavelmente escorada contra o muro que separa nossas casas, que fica na frente do meu quarto, a doidinha soluçava, pedindo perdão, repetidamente. Era a única coisa que ela dizia baixinho:
“Perdão.”
Com uma cinta, ou algo do tipo, talvez uma vara, a velha dava a sua lição, berrando, esfregando a cara da doidinha no muro, e ameaçando de “estourar suas costas e o seu coro cabeludo, sua sem vergonha”. O motivo? Furtar um pacote de Maizena da despensa, escondê-lo no armário e devorá-lo sozinha.
Exausta, a velha ordenou calmamente:
“Agache, diabo negro do inferno. De joelhos, agora.”
“Perdão.”
“De joelhos, cadela! De joelhos!”
“Perdão, perdão.”
“Tira a blusa, vai! Tira a calça, sem vergonha!”
Eu só ouvia o riso baixinho da velha. Colado no muro, não entendia mais nada, porque, de repente, um hino de louvor começou a tocar no rádio deles, no volume máximo que as caixas de som suportavam. O coral repetia exaustivamente “Cristo vai voltar, Cristo vai voltar”, enquanto meu pau ficava duro, latejando, com uma fome que eu nunca sentira.
A música só parou por volta das onze da manhã – quase duas horas depois –, porque o tio chegou com o filho da doidinha e tocou a campainha para a velha ajudá-lo a descarregar a criança do carro.
Tentei avisar meus pais, naquela noite, mas os dois perderam o interesse pelos detalhes, ao notar minha empolgação, como se a alegria, naquela casa, estivesse exilada em outro continente, por tempo indeterminado. Talvez imaginassem que aquilo não passasse de uma história para ser contada durante a refeição, apenas para quebrar o silêncio constrangedor entre as nossas garfadas e os pedidos para alcançar o sal. Minha mãe andava, de fato, esquecendo-se de acrescentar sal à comida, e meu pai verbalizou sua crítica, finalmente, com delicadeza:
“Querida, está faltando um pouquinho de sal.”
O suficiente para minha mãe desabar em lágrimas e arremessar um dos copos de cristal na parede, no centro de um imenso pôster do Guernica, que ficava no local onde todas as mães dos meus amigos penduravam alguma imagem da Santa Ceia ou de Maria segurando Jesus no colo. Meu pai, imóvel, ignorou a reação dela, limpando a boca com o guardanapo. Minha mãe, que foi direto para o quarto, não nos acompanhou no jantar menos saboroso de nossas vidas. Era o início da separação dos dois, que seria concretizada só dez meses mais tarde.
A minha aula voltara há duas semanas e eu morria de curiosidades de Leonora. Eu só chegava à noite, porque saía do colégio para auxiliar meu pai no trabalho, e não conseguia acompanhar suas sessões diárias de espancamento. Na casa dela, o silêncio era predominante naquele horário, quando o filho, Emanuel, chegava no carro do tio.
No meio da aula de História, enquanto o professor lecionava sobre as conquistas territoriais de Napoleão pela Europa e, empolgado, subia na mesa para pronunciar algumas palavras atribuídas ao imperador francês, concluí que eu não conseguia mais pensar naquela estranha figura, como uma simples doidinha.
Era Leonora quem aparecia quando eu me masturbava nos banheiros de casa, do colégio e do clube. Era Leonora ajoelhada, amordaçada, olhando nos meus olhos, agarrando-se em mim com dedicação, voracidade, fome. Eu andava tão excitado, que esfreguei meu pau no muro áspero, o mesmo muro infame que nos separava, por longos e prazerosos vinte minutos. Deixei os vestígios de porra escorrendo muro abaixo até alcançarem o piso de cerâmica do quintal, onde a chuva limparia, pouco depois, minha pequena farra solitária em homenagem à Leonora.
Eu estava decidido a ter um encontro com ela. Pouco me importava a ordem de minha mãe. Quem era ela para impedir uma aproximação qualquer? Qual a razão daquele conselho absurdo, patético? Se eu não conseguia infringir pelo menos essa ordem, o que seria de mim daqui a trinta anos? Eu teria um encontro, precisava contemplar Leonora de perto, a um palmo de distância, queria sentir aquela mulher que eu possuía apenas em sonhos efêmeros.
Pedia a meu pai, listas de produtos para eu providenciar no mercado da esquina, apenas para ficar frente a frente com a casa dela. Cada vez que o barulhento portão funcionava, eu me aproximava da janela do quarto de meus pais para, em vão, observar o automóvel deles entrando e saindo da garagem, sem que Leonora fizesse a sua parte na história: empurrar o portão e fincar o espesso cadeado.
A ideia de Leonora estar vivendo em outra casa, junto com outro parente, era plausível. Afinal, na última vez em que Emanuel partiu no banco de trás do carro do tio, não voltou para casa. E, na verdade, poucos têm paciência para cuidar da doidinha e sabem dominar seus furtos, seus ataques à despensa, castigando quando necessário. Provavelmente, a família organizara um rodízio entre os integrantes. Pela lógica, era o momento das merecidas férias da velha.
Num sábado à tarde, com um céu imprevisível, carregado de nuvens, fui caminhar em volta do Parque do Ingá. Sai de casa tão consternado, depois de estudar para uma prova de gramática, que esqueci de disparar o alarme e tive que voltar. Afinal, “Maringá é uma cidade violenta. E o roubado é o maior culpado em um roubo”, repetia minha mãe, em minha consciência.
Voltava lentamente, reparando em meus cadarços frouxos e flácidos, exatamente como meu pau era antes de Leonora ser onipresente em minhas aventuras eróticas. Frouxo sim, mas não morto. Temporariamente desativado, imaturo, infeliz.
O meu controle para abrir o portão ou acionar o alarme nunca funciona na primeira tentativa. É preciso um toque na parede, nas pernas, nas grades, é preciso ser agressivo. Enquanto eu tentava ressuscitar o aparelho, a velha começou lá do fundo, ameaçando sua vítima:
“Não saia daí, sua vagabunda! Você quer engatinhar? Você é cachorra por acaso?”
Quase arrebentei o controle na grade, o portão mal abriu, eu já corria para o fundo de casa. Leonora rosnava frases ininteligíveis, eu colava meu ouvido na parede. A velha ria baixinho. Puxei uma cadeira da mesa da cozinha e me pendurei no muro. De focinheira e vestidinho azul, prostrada, cadela faminta almoçando numa bacia amarela, em frente à velha, que achava tudo muito divertido.
“Cata a bolinha, cata!”, ordenou, arremessando uma bola de meia, atrás do tanque – prontamente devolvida aos pés da dona, que voltava a sorrir.
Quando notou meu olhar assustado, Leonora apontou em minha direção. Eu recuei, mas não soltei as mãos, evitando cair e fazer barulho. A velha enlouqueceu. Chutou a bacia com restos de arroz, feijão preto, salada, e exigiu respeito.
“Com qual dedo, sua sem vergonha?”
Os olhos castanhos me encontraram novamente. Desta vez, desviaram.
“Vou te ensinar a não apontar dedo. Eu te dou comida, te deixava passear e você me trata assim? Sua ingrata! Sua cadela! Você é uma cadela!”
Quando ela deixou o indicador ereto, a velha mudou de ideia. Sorrindo, que ela fosse para o quarto, como estava. Que ficasse esperando, porque já voltaria. Leonora engatinhou até a porta, olhou para a velha, abaixou a cabeça e seguiu.
A velha também entrou, mas saiu logo. Para minha sorte, pela porta da frente, deixando o portão aberto, como ela mesma condenava. Não vou negar que eu senti medo. Ela voltaria em breve, era promessa.
A sala não tinha televisão. Na parede, bem acima da mesa de refeições, um quadro do menino Jesus sorrindo no colo de Maria. Atravessando a sala, vi o corredor com as portas dos quartos. Era o do meio, tinha marcas de sangue até lá.
Leonora deitada nua, na cama, sozinha, ao notar minha presença, meu olhar deslumbrado, levantou-se calmamente, pôs os pés numa sandália de couro desgastado e andou em minha direção. Parou a dois metros, sem desviar os olhos azuis. Estávamos tão próximos, que pude ouvir seu coração bater fraco, sem harmonia. Meu pau estava rijo, sólido, seus olhos notaram o relevo na minha calça jeans. Esticou a mão esquerda – a mesma que minha mãe me estendia durante as orações –, e pude senti-la fria, enrugada, puro osso, acariciando meu corpo. Arcada dentária em colapso, eu tremia tanto, amedrontado, com as mãos encharcadas de suor, que o relevo desapareceu: Um pênis morto de medo.
Guiou-me até a janela cheia de grades do quarto, dando mais um passo para o meu lado. Desvencilhou sua mão da minha parte momentaneamente póstuma, e apontou para o céu vermelho e misterioso de Maringá:
“É chuva, vai molhar tudo lá, ó. Depois vem arco-íris.”
Fechou abruptamente a janela, após a previsão, e me levou até a entrada, indicando a minha casa. Naquela última noite, a surra foi tamanha que meus pais estranharam os gritos, as ameaças e os repetitivos pedidos de perdão, com uma voz baixa, que quase ninguém escutaria se estivesse conversando, com a família reunida.
“Essa velha é louca, deveríamos fazer alguma coisa”, aconselhou minha mãe.
Leonora morreu cerca de dois meses mais tarde, na cama, trajando o mesmo vestidinho azul. Quem viu, disse que morreu sorrindo, semblante em paz, alegre. A família fez um enterro simples, no Prever, na capela popular. Nós não fomos, mas meu pai enviou uma coroa de flores no nome da família. O laudo médico não indicou nada fora do comum.
Respeitando a jornada de trabalho de todos, ela morreu dormindo, na noite de sábado para domingo, não foi um estorvo para ninguém. A guarda do filho de Leonora, o Emanuel, ficou para a velha, que nunca mais foi vista no bairro. As contas para pagar estão acumuladas na caixa de correio, seu nome está no Serasa, os parentes tocam nossa campainha, confusos, em busca de explicações.
As garotas que eu conheci nesses meus trinta anos, interpretavam, na cama, oncinhas, estudantes, diabinhas, mas nenhuma delas topou encarnar o cachorro, de quatro, com uma bacia na frente, como eu sempre detalhava. A cor do vestidinho não importa, eu dizia, fica por sua conta, surpreenda-me, provoca-me. E quem disse que elas voltavam?
Abandonado, não há maior prazer do que enfiar um curto vestidinho, correr para o muro, de focinheira no rosto, e iniciar uma relação solitária, ali mesmo, correndo o risco de ser flagrado pelos pedestres, profanando a parede com o meu pau, segurando-o com a mesma mão que eu oferecia à minha mãe, durante as orações em volta da mesa de jantar. Bendito é o homem que, destemido, engravidou a doidinha, e permaneceu no anonimato para sempre.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O amor e as mortes de Rubem Fonseca

Em “O Seminarista”, escritor mineiro homenageia sua atual namorada e envolve o leitor em uma trama inteligente e cheia de assassinatos
Papai Noel é o primeiro a morrer com uma bala na cabeça. Em uma cena antológica, José Rubem Fonseca inicia “O Seminarista”, seu novo romance policial, escrevendo sobre o assassinato de um sujeito fantasiado de Bom Velhinho, em plena véspera do Natal.
Em “O Seminarista”, Rubem Fonseca cria o José, um matador de aluguel conhecido como O Especialista, que recebe de um personagem chamado Despachante as ordens para realizar uma série de assassinatos. Assim, O Especialista conta, concisamente, alguns de seus “trabalhos específicos” que, além do Papai Noel, incluem um pedófilo, um assassino profissional e um necrófilo.
Depois de assaltar o pedófilo e matá-lo, no segundo assassinato do livro, a figura de José começa a ganhar contornos de um anti-heroi. O protagonista concede uma carona ao garoto que estava no apartamento do pedófilo, leva-o até sua casa, na favela, dá o dinheiro roubado do pedófilo à mãe do garoto e a ameaça: “Se você não tomar conta direito dos seus filhos eu te arrebento, entendeu? E se for viver com um gigolô que vai roubar a sua grana eu mato vocês dois”. É mais um inesquecível personagem fonsequiano.
O assassino abandona o emprego aos 40 anos de idade e revela ter a “consciência pesada”, devido aos crimes que cometeu em sua trajetória. Mas a sua rotina de aposentado muda com a presença de Kirsten, uma jovem alemã que traduz livros do português para o alemão. Na vida real, Rubem Fonseca, a exemplo de José, O Especialista, também namora uma jovem alemã que traduz livros da língua portuguesa para o alemão. Dessa forma, o escritor homenageia e imortaliza sua atual namorada em uma obra que, provavelmente, ela mesma traduzirá para a edição alemã.
Após o início do romance – no livro – de José com Kirsten, o protagonista descobre que ela é filha do Despachante e que, inicialmente, cumpria a tarefa de espioná-lo. Descobre, também, ser alvo de perseguição, devido ao desaparecimento de um CD, contendo informações sigilosas e comprometedoras que estava na casa de uma de suas vítimas.
Nesse ponto da obra, Despachante, Kirsten e José passam a investigar o destino do objeto, enquanto a morte se aproxima do trio a passos céleres. Tudo, é claro, conduzido por um enredo inteligente e misterioso.
Na intensidade do amor e da violência, o escritor insere, na fala de O Especialista, algumas citações bíblicas e excertos poéticos em latim e em outras línguas, de autores como Cícero, Horácio, Sêneca, Camões, Propércio, Petrarca, Salústio, entre outros.
A poesia e os fragmentos de pensamentos pipocavam na cabeça do matador de aluguel desde o tempo em que ele frequentou o seminário e abandonou a vida dedicada à igreja, “por ser um sujeito libidinoso”. A presença das citações é tão frequente, que até mesmo um dos personagens critica o costume de José: “Essa tua mania de falar latim enche o saco”.
O uso de citações é uma estratégia necessária de Rubem Fonseca para mergulhar o leitor na complexidade psicológica do assassino de aluguel. Afinal, a violência, na obra fonsequiana, nunca é gratuita.
Aos 84 anos, Rubem Fonseca continua a provocar seus leitores com doses cavalares de sarcasmo, inteligência, erudição e, além de tudo, uma boa história: receita que o consagrou como O Especialista do romance policial na literatura brasileira.
Título: “O Seminarista”
Autor: Rubem Fonseca
Editora: Agir
Preço: R$ 36,00 (181 págs.)
Avaliação: Excelente
Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná.

Mutarelli solta os demônios

Lourenço Mutarelli une o cômico ao macabro em suas obras

Não espere apenas por um romance ou uma novela. “Miguel e os Demônios”, o novo livro do cartunista e escritor Lourenço Mutarelli, possui influências tão fortes dos filmes e dos quadrinhos, que a obra é, ao mesmo tempo, gibi, roteiro cinematográfico e, claro, literatura.
A linguagem concisa de Mutarelli serve para retratar a psique de seus personagens, que vivem rotinas patéticas, sufocantes e, devido ao caos diário, não conseguem refletir sobre o estado depressivo em que estão envolvidos. A escrita rápida, instantânea e automática do autor caracteriza a trajetória de seus personagens.
O protagonista Miguel, um investigador da polícia civil, permanece consternado em meio ao envolvimento amoroso com sua esposa, um relacionamento sem diálogos nem sentimentos. Sua única diversão consiste em jogar paciência no computador do trabalho.
A vida do protagonista muda quando ele flagra seu chefe, no motel com uma amante, e é pressionado a mudar de repartição. Dias depois, ao atender o chamado de uma mulher que encontrou uma múmia em sua residência, Miguel a reconhece como sendo a amante, uma prostituta com quem ele passa a manter alguns encontros.
Miguel, então, cai em desgraça. Ele fica viciado no sexo com a prostituta; seu pai sofre um derrame cerebral; e resolve separar-se da esposa, que deixa, de propósito, o gás do fogão aberto para causar sua própria morte e as mortes de sua irmã e suas duas filhas.
A culpa da série de acontecimentos é o envolvimento de Miguel com a prostituta, que estaria ligada a seitas satânicas. Dominado, finalmente, pelos demônios que o atormentavam desde o início da obra, Miguel se vinga do cunhado, que fotografava suas próprias filhas, em poses sensuais, e vendia o material na internet.
O enredo, por si só, é bizarro. Descritas pelo autor, as cenas do livro ganham contornos grotescos, irônicos, repugnantes. Em certos momentos, Mutarelli descreve seus personagens por meio de closes de câmeras, indicando, na obra, o momento em que a câmera sobe ou desce. Ou seja, em Mutarelli, a literatura imita a produção cinematográfica.
É preciso ler “Miguel e os Demônios”, reconhecendo o humor peculiar do autor. Em O Cheiro do Ralo (2002), o protagonista conclui que os personagens do seriado “Friends” são seus melhores amigos. Em “A Arte de Produzir Efeito sem Causa” (2008), o personagem principal separa mentalmente as mulheres que encontra à sua frente, toda vez que sai às ruas, em três seções: as mulheres que ele “comia”, “casava” ou “mandava pra forca”. Já em “Miguel e os Demônios”, o chefe de Miguel decepa os dois dedões e o próprio sexo com uma tesoura, e a prostituta com a qual o protagonista se envolve, revela-se ao leitor, abruptamente, como sendo, na verdade, um travesti.
A literatura brasileira não é mais aquela da década de 1930, em que havia uma união temática entre os autores, como Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Os sujeitos pós-modernos, pós-industriais, são projetados na obra de Mutarelli, em situações anormais, viciantes, em que não há vida além da rotina de trabalho. A repetição de ações e a loucura unem o cômico ao macabro em Miguel e os Demônios, um livro mordazmente engraçado, tradutor do Brasil contemporâneo.

Título: Miguel e os Demônios
Autor: Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 34,00 (115 págs.)
Avaliação: Ótimo
Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná.