quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Mutarelli solta os demônios

Lourenço Mutarelli une o cômico ao macabro em suas obras

Não espere apenas por um romance ou uma novela. “Miguel e os Demônios”, o novo livro do cartunista e escritor Lourenço Mutarelli, possui influências tão fortes dos filmes e dos quadrinhos, que a obra é, ao mesmo tempo, gibi, roteiro cinematográfico e, claro, literatura.
A linguagem concisa de Mutarelli serve para retratar a psique de seus personagens, que vivem rotinas patéticas, sufocantes e, devido ao caos diário, não conseguem refletir sobre o estado depressivo em que estão envolvidos. A escrita rápida, instantânea e automática do autor caracteriza a trajetória de seus personagens.
O protagonista Miguel, um investigador da polícia civil, permanece consternado em meio ao envolvimento amoroso com sua esposa, um relacionamento sem diálogos nem sentimentos. Sua única diversão consiste em jogar paciência no computador do trabalho.
A vida do protagonista muda quando ele flagra seu chefe, no motel com uma amante, e é pressionado a mudar de repartição. Dias depois, ao atender o chamado de uma mulher que encontrou uma múmia em sua residência, Miguel a reconhece como sendo a amante, uma prostituta com quem ele passa a manter alguns encontros.
Miguel, então, cai em desgraça. Ele fica viciado no sexo com a prostituta; seu pai sofre um derrame cerebral; e resolve separar-se da esposa, que deixa, de propósito, o gás do fogão aberto para causar sua própria morte e as mortes de sua irmã e suas duas filhas.
A culpa da série de acontecimentos é o envolvimento de Miguel com a prostituta, que estaria ligada a seitas satânicas. Dominado, finalmente, pelos demônios que o atormentavam desde o início da obra, Miguel se vinga do cunhado, que fotografava suas próprias filhas, em poses sensuais, e vendia o material na internet.
O enredo, por si só, é bizarro. Descritas pelo autor, as cenas do livro ganham contornos grotescos, irônicos, repugnantes. Em certos momentos, Mutarelli descreve seus personagens por meio de closes de câmeras, indicando, na obra, o momento em que a câmera sobe ou desce. Ou seja, em Mutarelli, a literatura imita a produção cinematográfica.
É preciso ler “Miguel e os Demônios”, reconhecendo o humor peculiar do autor. Em O Cheiro do Ralo (2002), o protagonista conclui que os personagens do seriado “Friends” são seus melhores amigos. Em “A Arte de Produzir Efeito sem Causa” (2008), o personagem principal separa mentalmente as mulheres que encontra à sua frente, toda vez que sai às ruas, em três seções: as mulheres que ele “comia”, “casava” ou “mandava pra forca”. Já em “Miguel e os Demônios”, o chefe de Miguel decepa os dois dedões e o próprio sexo com uma tesoura, e a prostituta com a qual o protagonista se envolve, revela-se ao leitor, abruptamente, como sendo, na verdade, um travesti.
A literatura brasileira não é mais aquela da década de 1930, em que havia uma união temática entre os autores, como Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Os sujeitos pós-modernos, pós-industriais, são projetados na obra de Mutarelli, em situações anormais, viciantes, em que não há vida além da rotina de trabalho. A repetição de ações e a loucura unem o cômico ao macabro em Miguel e os Demônios, um livro mordazmente engraçado, tradutor do Brasil contemporâneo.

Título: Miguel e os Demônios
Autor: Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 34,00 (115 págs.)
Avaliação: Ótimo
Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná.

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