segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Conversa com O Vampiro

Publicado no Correio Braziliense (11/1/2014)

Dalton Trevisan abre a porta de sua casa: uma fresta de apenas quinze centímetros. Espaço suficiente para um cachorrinho Basset desertar e correr três metros em direção ao portão de ferro que dá na calçada. Cautelosamente exposto, Dalton Trevisan espia pela fresta: protegido de qualquer fotógrafo espertalhão que aparecer, ali, em busca de um raro flagrante. Ele está vestindo alguma coisa azul, é só o que dá para perceber daqui, com a porta entreaberta. Mudo, Dalton Trevisan contempla a performance de seu guardião impávido e colossal, latindo bravamente na frente de um casal desconhecido. E nada não diz.

“Somos seus leitores.Viemos te dar um presente, Dalton”, eu explico, exibindo, na mão direita, um embrulho colorido.

O escritor permanece quieto, provavelmente pensando em como se livrar da visita inesperada. Se fosse um dia de semana, talvez ele indicasse a livraria do Chain, a poucos metros de sua residência. Deixaríamos o presente com uma das atendentes, e ele pegaria depois. Mas é domingo, seis horas da tarde. A livraria não está aberta e nem há pessoas nas ruas, com exceção de um ou outro curitibano perambulando na calçada e dos motoristas que cruzam, em alta velocidade, a esquina onde ele reside.

“Espere só um momento”, o escritor responde,finalmente. Em seguida, bate a porta da casa e desaparece lá para dentro, escoltado pelo fiel cachorrinho. Aconteça o que acontecer, a partir de agora, é preciso ter todo o cuidado do mundo: é o que tento dizer para a minha namorada, apertando forte a sua mão. Afinal, Dalton Trevisan está mal-humorado.

Quem dedurou o estado de humor do recluso contista curitibano foi uma atendente da livraria do Chain, local onde Dalton Trevisan troca mensagens com sua editora e, pelo menos até recentemente, autografava os livros deixados pelos seus leitores. Por isso mesmo, no sábado, passei pela livraria e entreguei sete obras à balconista. Para a minha surpresa, ela recusou a encomenda dos autógrafos.

“Olha, infelizmente, eu não posso ficar com os seus livros. O Dalton não está assinando mais nada”, avisou. Segundo a funcionária, há poucos dias apareceu um leitor e comprou todos os livros disponíveis do contista curitibano. Aproveitando a visita, o cliente pediu que as atendentes coletassem a assinatura do escritor em todas as obras adquiridas.

“Quando o Dalton veio, não assinou nenhum dos livros e disse que não iria mais autografar nada. Ele está de mau humor. Daqui a uns dias, ele volta ao normal”, contou.

Tentar um encontro com o Vampiro de Curitiba, ali na livraria, não é a estratégia mais aconselhada, a menos que o leitor tenha tempo de sobra.“Ele vem quase todos os dias, mas sempre em horários diferentes. Às vezes, às 9h, às 11h, à tarde. Nunca dá para saber”.

Oscilações de humor


Aos 88 anos, Dalton Trevisan continua misterioso. Dos jornalistas e fotógrafos mantém uma distância quase paranoica: aperta o passo, em fuga, quando é abordado para entrevistas. Ignora os eventos literários, não comparece às homenagens que lhe são prestadas, nunca deu as caras para receber os prêmios acumulados em sua trajetória. Quieto, cultiva um ritmo de produção assustador. Desde a estreia com “Novelas Nada Exemplares” (1959), ele já publicou mais de quarenta obras. Só no ano passado foram duas: “Novos Contos Eróticos” (Record) e “Até Você,Capitu?”(L&PM Pocket).

Mesmo com o alerta da vendedora, de que Dalton Trevisan não está em seu melhor humor, resolvo insistir na aproximação. E passo um sábado inteiro, em vão, na porta da casa do escritor, esperando que ele saia para seus passeios diários.

A casa de esquina, onde mora Dalton Trevisan, é grande e antiga, com muros altos e cinzentos. Há um ar macabro naquela residência. Três janelões, na frente da casa, dão para a rua Ubaldino do Amaral, mas estão sempre fechados e protegidos por cortinas. Lá de dentro não se escuta som algum: é tudo estranhamente silencioso demais. Há um sótão sinistro, com vista para a frente da residência, e um puxadinho, no fundo, onde Dalton Trevisan passa as manhãs escrevendo. Ele escreve diariamente e, em seguida, sai flanando pelas ruas do centro de Curitiba. Nas longas caminhadas, aproveita para coletar gírias e observar os bêbados, malditos, maltrapilhos, prostitutas e viciados, que, depois, serão retratados em seus contos.

Mas Dalton Trevisan não é o único observador em Curitiba. Quem passa pela casa do escritor sempre dá uma espiada lá para dentro. Jovens trepam nos grandes muros cinzentos. Namorados erguem suas companheiras na calçada, próximo ao muro. Senhores e senhoras interrompem a caminhada e, por alguns segundos, contemplam o quintal e o bosque pelo portão de ferro. Todas as tentativas são frustradas. E os curiosos sempre saem rindo da missão malfadada.

Naquele sábado, Dalton Trevisan permaneceu trancafiado em sua reclusão. No dia seguinte, com a fé no calor do domingo curitibano, aguardo o contista sair para o almoço, a partir das onze horas da manhã. E nada. Ele deve ter almoçado alguma coisa em casa.

Os curiosos continuam se pendurando nos muros, sem vestígios do contista. E já prevendo o fracasso da aproximação com Dalton Trevisan, um final de semana desperdiçado em vão, resolvo chamá-lo à porta.Toda a paciência tem limites. São seis horas da tarde. Se ele não saiu até agora, num bendito domingo de Sol, não sairá mais. O portão é tudo o que resta. Um minuto de palmas.

Estridentes, fazem eco na entrada da casa. Anunciado três vezes ao portão, o primeiro nome do Vampiro de Curitiba. Como previsto, sem resposta alguma. Então, vem o cachorro. A fresta de quinze centímetros. Dalton Trevisan vestindo algo azul. Menciono o presente. E ele pede que esperemos.

Roupão azul

Tomo um susto danado quando Dalton Trevisan, quem diria, abre um dos janelões de quase três metros de altura, que dão para a rua Ubaldino do Amaral, logo ao nosso lado.
Saímos do portão de entrada e vamos à janela: Dalton Trevisan está na nossa frente, totalmente exposto, exibindo um sorriso gentil.

“A que devo estes presentes?”, pergunta, com a voz grave e amistosa.

Dalton Trevisan está vestindo um roupão azul. Seu cabelo, úmido, está cuidadosamente penteado para trás. Ele deve ter saído do banho há poucos minutos.

“Você gosta de goiabada cascão?”, e já vou estendendo o embrulho colorido.

“E quem não gosta?”, responde, aceitando o presente, sem economizar no sorriso.

“Tem ainda algumas gomas árabes, rahat. Espero que você goste. Poderia assinar os nossos livros?”, indago, entregando um exemplar de sua última obra,“Novos Contos Eróticos”.

Dalton Trevisan pega o livro e sai um pouco da janela. Lá dentro, numa antiga mesa de madeira, ele apoia a obra e assina seu nome, rapidamente, sem dedicatória.

Ao entregar o livro autografado, Dalton Trevisan estende à janela dois exemplares de suas obras:“35 Noites de Paixão” e “Até Você, Capitu?”

“Estes são para vocês”, ele avisa.

Em seguida, minha namorada pede uma assinatura na obra que acaba de ganhar de presente. Dalton Trevisan está tirando o plástico do livro quando uma voz esganiçada chega por trás de nós, quase berrando:

“Ai, posso tirar uma foto?”

Maldito celular

Num pulo, Dalton Trevisan se esconde atrás da cortina. É inacreditável. Depois de tanto tempo à espera, uma infeliz curitibana cinquentona, caminhando com roupa de ginástica, põe todo o encontro em xeque, apontando um maldito celular para o rosto do Vampiro. Viro-me rapidamente para a desconhecida. Não, não, sem fotos, sem fotos, eu digo, quase gritando, enquanto ela pede desculpas e sai de cena, caminhando rápido, nem um pouco constrangida.

Escondido atrás da janela, Dalton Trevisan faz um sinal com a mão direita e pergunta se ela foi embora. Nós o tranquilizamos. Respondemos que sim, ela já foi. Está tudo bem, pode voltar. Dalton Trevisan dá uma espiada pela fresta da janela e surge novamente, estendendo o livro assinado à minha namorada. O susto já passou. Ele realmente parece aliviado.

“Dalton, existe lirismo na sua literatura?”, questiono.

“Basta abrir o livro e você vai ver”, responde, com um sorriso generoso.

“E qual sua opinião sobre esses críticos literários que, desde a década de sessenta, insistem em dizer que você continua se repetindo?”

“Eu não leio os críticos”, diz, rapidamente, sem abrir mão do sorrisão camarada.

O escritor olha em nossos olhos. Um casal embasbacado, feliz da vida pela façanha dominical. É tudo muito inesperado: Dalton Trevisan, de cabelo molhadão e de roupão azul, sorrindo na janela, atendendo seus leitores. Mau humor ali? Jamais.

“Agora, eu já falei demais. Obrigado pelos presentes. Tchau para vocês”, despede-se o Vampirão, fechando a janela.