segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Bafio da fera, Dylan & Raquel no protesto de professores

A cidade está mais quente que nunca. Com véspera de segundo turno beirando os 40° C, maringaenses queimam o verbo em cada esquina, vociferando a favor de seu candidato preferido. Conversas politizadas, que começam cordiais e respeitosas nas mesas de bares e cafés, costumam descambar, rapidinho, para o palavrório de baixos calões, xingamentos, chutes, pontapés, uma e outra ameaça. Até mesmo sujeitos absolutamente apolitizados passaram a desfilar longas arengas em defesa de seus ideais políticos nunca dantes revelados. E, sem um único sopro de vento geladinho, alunos engajados decidem paralisar escolas públicas, reivindicando uma série de melhorias. Unidos e organizados, professores também se lançam em protestos, combinando para bater pernas por seus direitos numa quarta-feira ensolarada. "O ser humano", já adiantava Aristóteles, "é um animal político".

O calor banha a regata do gorducho, esgota os palavrões da velha e enriquece vendedor de picolé, mas não cancela a passeata dos professores. Às duas em ponto - ai, essas professoras que nunca se atrasam! -, o batalhão de senhoras, rapazotes, moçoilas e tiozões divide-se na Avenida Carneiro Leão, em frente ao Núcleo de Educação. Num caminhão de micareta - felizmente, sem os 357 percussionistas -, duas vozes esgoelam palavras de ordem. Entre uma fala e outra, Raul Seixas canta "Tente Outra Vez". Quem chegou antes cuida do precioso lugarzinho, debaixo da marquise, na cadeirinha de praia, a salvo do sol cancerígeno. Três mil manifestantes, dirão, mais tarde, organizadores? Mil professores, calculará a Polícia? Trezentos e poucos sujeitos à sua frente? Impossível chegar a um número redondo. Passeata, assim como a literatura, não é uma arte exata.

"Não importa que esteja quente", avisa uma querida professorinha cinquentona, aplaudida pelas três colegas em volta.

"Se chovesse pedra, se desse trovão..."

"É uma santa provação!"

"...nem assim eu ficava em casa."

"É como a música, tá ouvindo? Não pode desistir fácil das coisas. Tente sempre, tente outra vez."

"Viu só? Até dá mais força, sabe?", comenta a professorinha, que pede mil vezes para não ter o nome revelado.

Todas de roupas confortáveis, guarda-sóis coloridos, tênis ideais para essa longa estrada da vida. Gentis, falam sobre o desafio de ser professor. Da necessidade de um ensino de alta qualidade. Revoltam-se contra os alunos respondões. Como ensinar sobre organelas citoplasmáticas, modelo do mosaico fluido, proteína alfa-hélice, com moleques vendo nudes? Com moçoilas mandando nudes? Em tom saudosista, relembram as noites de graduação, os amores soterrados pelo tempo, a velha canção que sumiu do rádio, e mais não é possível. Em cima do caminhão, vozes estimulam a caminhada. Senhoras levantam das cadeirinhas de praia, correm para guardá-las no carro e invadem o meio da rua.

"Olha o sonho! Olha o sonho!", oferece a ambulante Marily Barbosa, 41. Diante do batalhão de professores visionários, não é o melhor negócio?

Senhoras se aglomeram em busca do docinho mais que perfeito. "Eu mesma faço e a Benê me ajuda a vendê", comenta, realizando o sonho dos professores por apenas R$ 3.

Sair da Carneiro Leão, entrando na Joubert de Carvalho, é adentrar um novo mundo. Maringá Botões. Sajama Tecidos e Malhas. Mercadinho do Retalho. Sanvest Máquinas. Marinex. Seu Tecido Sua Moda. Marisol Tecidos. Quantos mais? Na rua que presta homenagem ao compositor, o comércio é dominado por rolos de tecidos coloridos e máquinas de costura. Nas empresas, clientes e vendedores esquecem das compras. Tentam identificar, na multidão, algum rosto conhecido. Dentro de um hotel, alguém ouve bem alto "Borbulhas de Amor". Na portela da entrada, uma moça gorducha e de cor vende amor eterno por quinze minutos. Trinta e poucos anos? Melhor chutar quarenta. Nos grandes lábios rosados, promessas de êxtases e delírios – qual louca epopeia você não viveria neste hotel? "Para em teu límpido aquário mergulhar", grita Fagner num dos quartos. Chinelinho macilento. Shortinho minúsculo verde-berrante. Celular pendurado na cinturona. Pés escamosos. Unhas vermelhonas. Blusinha verde-estridente escrita "Beautiful". Barrigona decorada de fartas veias. Profundas celulites. Teias de estrias. Duas tatuagens ilegíveis – num quarto escuro, como ler?

"Fazer silhuetas de amor à luz da luuua, saciar essa loucuuura", esgoela-se o grande Fagner.

"É da polícia, é? Greve da polícia, né?", pergunta a moça, desconfiada, soprando calientes cortinas de fumaça no teu rosto.

Do bafio da fera emanam as mil e uma fragrâncias do Rio Bostinha.

Já pensou?

"Uma noite para unir-nos até o fiiim"?

"Cara a caraaa, beijo a beijooo"?

"E viveeer para sempreee dentro de tiii"?

Ai, não. Melhor não imaginar nada.

Os grevistas já cruzando a Joubert de Carvalho com a Duque de Caxias. Aqui, nada de tecidos nem máquinas de costuras. Euvany Presentes. JV Presentes. Gnomos Presentes. Eis a Chinatown maringaense. Nas minúsculas lojinhas, o punhado de guarda-chuva, relógio, chapéu, carregador de celular, mochila esverdeada, boneca de olhão esbugalhado. Será tudo falsificado? Sem clientes - culpa da crise?, do preço?, qualidade do atendimento?, do sol sacana? -, lojistas correm à porta. Alguns sacam celulares e enquadram professores em ângulos alternativos. "Acontece alguma coisa diferente, já sai todo mundo correndo. Acidente de carro, então?! Tem que ser rápido: todo mundo querendo bater a foto primeiro e tirar a mais bonita", orgulha-se a vendedora Maria de Fátima, 40.

Três ou quatro quarteirões, e pronto. Tuas panturtilhas começam a protestar. Como essas senhoras protestantes resistem ao esforço físico? Alimentam-se da força e do sangue dos jovens alunos? Rejuvenescidas, sim, muito mais dispostas do que você. O coração dispara rapidinho, fatigado e farto – será o fatal enfarto?

Por sorte, nada de mais. Ensopado em suor, você é só lamentos. Onde as carrancas lançando nas praças a água fresquíssima? Onde a Fontana di Trevi para você banhar pulso, rosto, coração? O diabo arrota lufadas de ar quentíssimo a cada segundo. Impossível, na passeata, não maldizer mil santos.

Um professor trintão, magrelo e de cabelos desgrenhados, corre para alcançar os protestantes. Fosse narigudo e judeu, não seria a reencarnação de Bob Dylan? Uma pena, ninguém cantar Bob Dylan nesta cidadela infeliz. Por que o maringaense não entoa Bob Dylan? Por que não existem covers de Bob Dylan? A única brisa geladinha te arrepia a nuca. A resposta, meu amigo, vem soprada ao vento.

"Claro que canto!", comenta Raquel Costa, com o timbre mais arrebatador que há. "Quer ouvir?", oferece. Só ela, empunhando um violão, seria digna de homenagear Bob Dylan. Vinte e poucos anos? Prefere Dylan em folk, rock, blues? Correndo para protestar? Essas e outras respostas, você nunca saberá. Improvisado à capella, o canto de Raquel Costa domina as ruas maringaenses, diminuindo ainda mais Joubert de Carvalho, invadindo os quartos no hotel, colecionando acenos de trinta e sete motoqueiros, sendo aplaudido, em pé, por balconistas e gerentes das lojas de tecidos e presentes paraguaios. O protesto segue, organizado, enchendo a cidade de canções.

Publicado em O Diário (23/10/2016)