A cidade está mais quente que nunca. Com véspera de segundo turno
beirando os 40° C, maringaenses queimam o verbo em cada esquina,
vociferando a favor de seu candidato preferido. Conversas politizadas,
que começam cordiais e respeitosas nas mesas de bares e cafés, costumam
descambar, rapidinho, para o palavrório de baixos calões, xingamentos,
chutes, pontapés, uma e outra ameaça. Até mesmo sujeitos absolutamente
apolitizados passaram a desfilar longas arengas em defesa de seus ideais
políticos nunca dantes revelados. E, sem um único sopro de vento
geladinho, alunos engajados decidem paralisar escolas públicas,
reivindicando uma série de melhorias. Unidos e organizados, professores
também se lançam em protestos, combinando para bater pernas por seus
direitos numa quarta-feira ensolarada. "O ser humano", já adiantava
Aristóteles, "é um animal político".
O calor banha a regata do
gorducho, esgota os palavrões da velha e enriquece vendedor de picolé,
mas não cancela a passeata dos professores. Às duas em ponto - ai, essas
professoras que nunca se atrasam! -, o batalhão de senhoras, rapazotes,
moçoilas e tiozões divide-se na Avenida Carneiro Leão, em frente ao
Núcleo de Educação. Num caminhão de micareta - felizmente, sem os 357
percussionistas -, duas vozes esgoelam palavras de ordem. Entre uma fala
e outra, Raul Seixas canta "Tente Outra Vez". Quem chegou antes cuida
do precioso lugarzinho, debaixo da marquise, na cadeirinha de praia, a
salvo do sol cancerígeno. Três mil manifestantes, dirão, mais tarde,
organizadores? Mil professores, calculará a Polícia? Trezentos e poucos
sujeitos à sua frente? Impossível chegar a um número redondo. Passeata,
assim como a literatura, não é uma arte exata.
"Não importa que esteja quente", avisa uma querida professorinha cinquentona, aplaudida pelas três colegas em volta.
"Se chovesse pedra, se desse trovão..."
"É uma santa provação!"
"...nem assim eu ficava em casa."
"É como a música, tá ouvindo? Não pode desistir fácil das coisas. Tente sempre, tente outra vez."
"Viu só? Até dá mais força, sabe?", comenta a professorinha, que pede mil vezes para não ter o nome revelado.
Todas
de roupas confortáveis, guarda-sóis coloridos, tênis ideais para essa
longa estrada da vida. Gentis, falam sobre o desafio de ser professor.
Da necessidade de um ensino de alta qualidade. Revoltam-se contra os
alunos respondões. Como ensinar sobre organelas citoplasmáticas, modelo
do mosaico fluido, proteína alfa-hélice, com moleques vendo nudes? Com
moçoilas mandando nudes? Em tom saudosista, relembram as noites de
graduação, os amores soterrados pelo tempo, a velha canção que sumiu do
rádio, e mais não é possível. Em cima do caminhão, vozes estimulam a
caminhada. Senhoras levantam das cadeirinhas de praia, correm para
guardá-las no carro e invadem o meio da rua.
"Olha o sonho! Olha o
sonho!", oferece a ambulante Marily Barbosa, 41. Diante do batalhão de
professores visionários, não é o melhor negócio?
Senhoras se
aglomeram em busca do docinho mais que perfeito. "Eu mesma faço e a Benê
me ajuda a vendê", comenta, realizando o sonho dos professores por
apenas R$ 3.
Sair da Carneiro Leão, entrando na Joubert de
Carvalho, é adentrar um novo mundo. Maringá Botões. Sajama Tecidos e
Malhas. Mercadinho do Retalho. Sanvest Máquinas. Marinex. Seu Tecido Sua
Moda. Marisol Tecidos. Quantos mais? Na rua que presta homenagem ao
compositor, o comércio é dominado por rolos de tecidos coloridos e
máquinas de costura. Nas empresas, clientes e vendedores esquecem das
compras. Tentam identificar, na multidão, algum rosto conhecido. Dentro
de um hotel, alguém ouve bem alto "Borbulhas de Amor". Na portela da
entrada, uma moça gorducha e de cor vende amor eterno por quinze
minutos. Trinta e poucos anos? Melhor chutar quarenta. Nos grandes
lábios rosados, promessas de êxtases e delírios – qual louca epopeia
você não viveria neste hotel? "Para em teu límpido aquário mergulhar",
grita Fagner num dos quartos. Chinelinho macilento. Shortinho minúsculo
verde-berrante. Celular pendurado na cinturona. Pés escamosos. Unhas
vermelhonas. Blusinha verde-estridente escrita "Beautiful". Barrigona
decorada de fartas veias. Profundas celulites. Teias de estrias. Duas
tatuagens ilegíveis – num quarto escuro, como ler?
"Fazer silhuetas de amor à luz da luuua, saciar essa loucuuura", esgoela-se o grande Fagner.
"É da polícia, é? Greve da polícia, né?", pergunta a moça, desconfiada, soprando calientes cortinas de fumaça no teu rosto.
Do bafio da fera emanam as mil e uma fragrâncias do Rio Bostinha.
Já pensou?
"Uma noite para unir-nos até o fiiim"?
"Cara a caraaa, beijo a beijooo"?
"E viveeer para sempreee dentro de tiii"?
Ai, não. Melhor não imaginar nada.
Os
grevistas já cruzando a Joubert de Carvalho com a Duque de Caxias.
Aqui, nada de tecidos nem máquinas de costuras. Euvany Presentes. JV
Presentes. Gnomos Presentes. Eis a Chinatown maringaense. Nas minúsculas
lojinhas, o punhado de guarda-chuva, relógio, chapéu, carregador de
celular, mochila esverdeada, boneca de olhão esbugalhado. Será tudo
falsificado? Sem clientes - culpa da crise?, do preço?, qualidade do
atendimento?, do sol sacana? -, lojistas correm à porta. Alguns sacam
celulares e enquadram professores em ângulos alternativos. "Acontece
alguma coisa diferente, já sai todo mundo correndo. Acidente de carro,
então?! Tem que ser rápido: todo mundo querendo bater a foto primeiro e
tirar a mais bonita", orgulha-se a vendedora Maria de Fátima, 40.
Três
ou quatro quarteirões, e pronto. Tuas panturtilhas começam a protestar.
Como essas senhoras protestantes resistem ao esforço físico?
Alimentam-se da força e do sangue dos jovens alunos? Rejuvenescidas,
sim, muito mais dispostas do que você. O coração dispara rapidinho,
fatigado e farto – será o fatal enfarto?
Por sorte, nada de mais.
Ensopado em suor, você é só lamentos. Onde as carrancas lançando nas
praças a água fresquíssima? Onde a Fontana di Trevi para você banhar
pulso, rosto, coração? O diabo arrota lufadas de ar quentíssimo a cada
segundo. Impossível, na passeata, não maldizer mil santos.
Um
professor trintão, magrelo e de cabelos desgrenhados, corre para
alcançar os protestantes. Fosse narigudo e judeu, não seria a
reencarnação de Bob Dylan? Uma pena, ninguém cantar Bob Dylan nesta
cidadela infeliz. Por que o maringaense não entoa Bob Dylan? Por que não
existem covers de Bob Dylan? A única brisa geladinha te arrepia a nuca.
A resposta, meu amigo, vem soprada ao vento.
"Claro que canto!",
comenta Raquel Costa, com o timbre mais arrebatador que há. "Quer
ouvir?", oferece. Só ela, empunhando um violão, seria digna de
homenagear Bob Dylan. Vinte e poucos anos? Prefere Dylan em folk, rock,
blues? Correndo para protestar? Essas e outras respostas, você nunca
saberá. Improvisado à capella, o canto de Raquel Costa domina as ruas
maringaenses, diminuindo ainda mais Joubert de Carvalho, invadindo os
quartos no hotel, colecionando acenos de trinta e sete motoqueiros,
sendo aplaudido, em pé, por balconistas e gerentes das lojas de tecidos e
presentes paraguaios. O protesto segue, organizado, enchendo a cidade
de canções.
Publicado em O Diário (23/10/2016)
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