Rapazotes com o mesmo cabelo do Xororó e meninas de longos saiotes
cruzam a Avenida Mauá, de olho nas Belinas e Fuscas. A sete passos do
portão do colégio de madeira, outros estudantes se aglomeram em volta de
uma carriola de algodão-doce. A foto, feita em 1982, hoje está
pendurada na secretaria do Colégio Santo Inácio. Quase tudo mudou. A
estrutura do colégio. Os pedregulhos da avenida. As roupas das moças.
Mudaram os carros e os cortes de cabelo. Aparentemente, nada resistiu ao
tempo. Mas basta lançar um olhar mais atento à foto para notar a única
brava resistência: Alair Arengue, hoje com 66 anos, e seu carrinho de
algodão-doce permanecem na mesma calçada do colégio, a exatamente sete
passos da entrada.
Vestindo uma camisa branca, com três botões
refrescando o calor infernal - o mesmo calor dos tempos d'outrora -, o
ambulante escapa do sol debaixo do boné branco e vermelho. Há 53 anos,
Alair oferece raspadinhas, algodão-doce e chicletes nesse ponto da Mauá,
em frente ao Santo Inácio. "Durante 32 anos, eu ficava aqui pela manhã
e, à tarde, fazia o Marista. Hoje tô velho. Só fico aqui", diz,
sossegadão, encostado em seu carrinho adocicado.
De raspadinha em
raspadinha, Alair foi esquentando a poupança. Comprou casa própria, há
35 anos, na Vila Operária e, desde que adquiriu um Fusca em 1973, nunca
mais abriu mão de um carro próprio. Hoje, aliás, ele tem dois: um Corsa
1996 e uma Safira 2008.
Testemunha ocular dos sentimentos
maringaenses, presenciou o amor tomar forma, à sua volta, com os 79.873
casais de adolescentes que, cheios de paixão, engataram namoros
bebericando a mais doce das raspadinhas. Também viu o amor morrer, com
os 79.871 casais de adolescentes que, tempos depois, empunhando a mais amarga das
raspadinhas, terminaram seus relacionamentos. Ao lado do carrinho, Alair
ouviu brigas de mães com seus filhos, brigas de pais com suas esposas e
sustentou conversas com 76.324 crianças esquecidas pelos pais à frente
do colégio, após o término das aulas. Culpa dos tantos atrasos paternos?
Alguma reunião importante? Algum amado secreto? Alguma irrecusável
amante?
Político, eu?!
Fonte ignorada por historiadores, conhece detalhes que ninguém mais
recorda. "Bem aí onde tá a igreja tem um grande poço de água que atende
tranquilamente toda a cidade. Os maringaenses, isso lá no passado,
formavam filas pra pegar água nesse poço. Depois de um tempão, a igreja
ficou com o terreno. E os padres fizeram questão de arrumar o tal poço. O
tanto de água que os padres daí têm acesso, viu? É coisa de louco",
diz, sentadão na banqueta na calçada, com a mesma tranquilidade de quem
conversa no sofá da própria casa.
Embora o ponto de Alair seja
fixo, os maringaenses podem encontrá-lo, de tempos em tempos, dentro de
suas próprias residências. Incontáveis candidatos a prefeito já se
apropriaram de seus sorrisos e acenos em propagandas na TV – muitos,
inclusive, fizeram questão de serem filmados abraçando e conversando com
o Tio da Raspadinha. "Acredita que até já me convidaram pra virar
vereador?! Recusei na hora."
Orgulhoso da clientela, elenca os
nomes que, em tenra idade, já se regalaram com sua raspadinha. "O Silvio
Iwata. O Dr. Sala. O Darlei, do Bom Dia. O Hiran, do Santa Rita. O
Turkinho, do Monte Líbano. Pena que, quando crescem, já não compram
raspadinhas", lamenta. Até mesmo os maiores adversários políticos
encontram, nas raspadinhas de Alair, algo em comum. "O Ulisses Maia foi
meu cliente dos cinco aos nove anos. O Silvio Barros também vinha direto
quando era garotinho. Os dois ainda lembram de mim." A receita para
agradar a gregos e troianos? "Não faço ideia. O que sei é que minha
raspadinha e meu algodão-doce são os mais tradicionais da cidade."
Circular
por aí com dinheiro no bolso rendeu alguns momentos tensos. Em dois
fins de tarde, Alair tomou voz de assalto. Dois sujeitos trintões,
mal-encarados, sempre na Mauá. "Eram grandalhões desse tamanho, ó. Mas
não contavam com isso", comenta Alair, tirando de um compartimento
secreto, no teto do carrinho de doces, um assustador facão de
açougueiro. "É pra cortar o gelo. E também pra me proteger. Fugiram tudo
em desespero ali pra frente."
Encontro fatal
"Manhêêê, me dá?", pergunta um garotinho de
cinco anos, que acaba de se aproximar, estendendo os dois braços na
direção das raspadinhas.
A mãe hesita um instante.
"Meu filho nunca provou uma raspadinha."
"Nunca?!", surpreende-se Alair.
"Quanto custa?"
"Tem de R$ 3, R$ 4 e R$ 5: cê que manda."
"Vê a de R$ 5."
"Seu
filho nunca mais vai ser o mesmo: depois que provar, quando me ver por
aqui, vai ficar louco e chamar pelo Tio da Raspadinha", avisa,
entregando a bebida colorida.
As duas mãozinhas agarram, firmes, o
copo de plástico. O menino arregala os olhos, surpreso com o azedinho
da menta harmonizando perfeitamente com o doce da groselha. Dito e
feito: quando verá, novamente, o Tio da Raspadinha?
Perfil publicado no Diário (27/11/2016)
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