segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Sempre de portas abertas

Rua Duvivier, Copacabana, a poucos metros do mar. Era ali, no primeiro andar de um prédio antigo, que Ferreira Gullar escancarava seu apartamento para leitores desconhecidos. Ao porteiro, bastava informar o nome e a cidade de onde você vinha. De segunda a segunda, de manhã ou à tarde, o poeta autorizava o acesso para quem quer que fosse, pedindo que a visita subisse. O próprio Gullar, magrelo, alto, sorridente, surgia à porta, cordialmente, já apontando uma longa mesa de madeira. Diante da sala, repleta de quadros, esculturas, colagens e livros, dava conselhos a jovens escritores, criticava as artes plásticas contemporâneas, maldizia meia dúzia de políticos e refletia sobre seu fazer literário, disparando metáforas e sutilezas poéticas.

“A vida é pouca”, disse-me Gullar, em um dos nossos dois encontros sem hora marcada. E, na frente dele, emendei o restante dos versos do poema No mundo há muitas armadilhas: “A vida é louca, mas não há senão ela. E não te mataste, essa é a verdade”. Até o maior poeta brasileiro estende o mais longo dos sorrisos quando vê seus versos ganharem vida na trajetória de outra pessoa.

Contato
Nesses encontros improvisados, não havia pressa. Os relógios paravam. As buzinas silenciavam. Os quarenta graus, ali, não te infernizavam. Gullar fazia dedicatórias em quantos livros fossem necessários. Posava para fotos. Até mesmo quando pedi que assinasse meu ukelele, que ele pensou ser um cavaquinho, não recusou o autógrafo. Figura cada vez mais rara em eventos literários, ele tinha consciência do distanciamento de seus leitores. Sabia, sim, de sua importância. Sabia que era preciso, de alguma forma, manter algum contato com seu público. O apartamento da Rua Duvivier era uma ponte, sem mediadores, entre autor e público — jornalistas, estudantes, professores, leitores em geral. E nas vezes em que me recebeu, em 2009 e 2013, despediu-se com o mesmo sorriso gentil, até rejuvenescido pelo encontro.

Enquanto poeta, Gullar serviu-se de revoltas e espantos, medos e cenas triviais. Qualquer tema, em suas mãos, rendia grandes versos. O osso da própria perna. O alto preço do feijão — que, ainda hoje, não cabe no poema. Um gato andando pelo apartamento. O desemprego. O número de crianças mortas no Piauí. O branco do açúcar que adoça o café. Um homem — eu?, você? —, à procura do grande amor, olhando para uma vitrine no meio da Avenida Nossa Senhora de Copacabana. A poesia, ensina Gullar, é onipresente.

Quanto à morte, deixou belos poemas, como Morrer no Rio de Janeiro, Os mortos e Despedida. Este último, relido agora, arrepia a alma ao traduzir o sentimento do nosso último grande poeta:

“Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro
(…)
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique
Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.”

Gullar pode até ter sido um homem de carne e de memória, de osso e esquecimento, brasileiro, maior, casado e reservista, mas, definitivamente, não era um homem comum. Homens comuns não deixam legados líricos, nem precisam escancarar suas residências a desconhecidos íntimos. O poeta maranhense, na verdade, jamais morrerá. Uma parte de Gullar estará sempre dentro daquele apartamento, na Rua Duvivier; uma parte de mim, também.

Publicado no Correio Braziliense (5/12/16)

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