segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Rebite em branco e preto

A cidade toda parava na quarta-feira. As famílias se reuniam em casa, das 20h à 0h, para ouvir o programa "Noite e Festa", apresentado pelo vozeirão grave de Brasil Filho, semanalmente, na Rádio Cultura. Muitas moças e senhoras e até alguns rapazes não se contentavam com o áudio do programa. E faziam questão de enfrentar a fila para pegar um dos 250 lugares disponíveis no auditório da rádio, localizada na Avenida Herval com a 15 de Novembro. Em 1968, aquele era um dos endereços musicais mais cobiçados pelos instrumentistas da região. Ninguém menos que Erasmo Carlos e os Incríveis chegaram a dar o ar da graça no "Noite e Festa", concedendo entrevistas e entoando seus sucessos. Por isso mesmo, o garoto que acabava de chegar ao centro do palco, escoltado pelo talentoso Geraldinho do Cavaco, estava tão nervoso. As mãos tremiam, o peito batia forte. Sabia que era uma oportunidade única, que deveria fazer bonito. Um erro o condenaria às piadas e à humilhação. Um acerto, talvez, o empurraria para dentro daquele universo misterioso, em que alguns nomes viram estrelas, e outros, de tão grandes, chegam a formar verdadeiras constelações. O garoto abriu o peito e cantou sua própria história: "Eu sou o negro gato de arrepiar /

E essa minha vida é mesmo de amargar / Só mesmo de um telhado aos outros desacato / Eu sou o negro gato."

Presente
Entoando os versos atrás do balcão da Sapataria, não é difícil imaginar Rebite no palco. A voz ainda está firme, ligeiramente rouca, e mantém algo do grave que o consagrou em 1968, no programa "Noite e Festa", garantindo seu ingresso em três bandas maringaenses: S.O.S (de 69 a 73), Os Cometas (73 a 81) e Escala Company (86 a 96). Mesclando o rock sessentista da Jovem Guarda com veneirão, xote e muito samba de raiz, o garoto finalmente havia entrado no mundo da música. O ápice da carreira foi abrir os shows de Fafá de Belém, Martinho da Vila, Luiz Ayrão, Sandra de Sá e João Bosco no Country Club e na Apoteose. Como crooner, foi responsável pelas canções nas matinadas do Colégio Vital Brasil e nos palcos do Barril (o primeiro bar em Maringá a ter música ao vivo), no Hermácia (onde hoje é o CIQ HM), no Boliche, na Passarela e no Kanequinho (todos os três no mesmo ponto da Paraná) e nos bailes do Vale Azul (hoje abandonado e depredado). "É uma pena: a cidade se transformou, mas não há nada para preservar esses lugares", lamenta Rebite, interrompendo o concerto da sandália marrom para atender o telefone fixo, que acaba de tocar. "Sim, tá falando com ele: Rebite em branco e preto", comenta, rindo, vestindo uma camiseta branca e calça jeans azul.

A Sapataria tem um longo balcão branco que dá para a Avenida Joubert de Carvalho, 1008. Atrás do balcão, cinco estantes de ferro acumulam sacolas com sapatos e tênis, entre encomendas que já estão prontas e as que ainda serão consertadas. Quatro máquinas de costura, dezenas de cadarços coloridos e cintos em diversas cores, organizados em seus próprios cantos, completam o local de trabalho. Com os olhos no trabalho e os ouvidos na rua, Rebite acompanha a conversa de uma mãe exigindo que o filho termine com a namorada, ouve um homem sussurar pelo celular o horário de um encontro com outro homem, observa o pedinte com um espesso ferro de oitenta centímetros na mão clamando por trocados. Há 45 anos, observa a cidade desse ângulo. Escuta tudo e todos, e frequentemente é cumprimentado pelos amigos, tal como fazem um cego ("Ô, negão!"), um empresário ("Ô, urubu!") e um velho ("Ô, pau de fumo!"), que passam ligeiros demais para uma conversa, estendendo gestos e sorrisos afetuosos. A todos, Rebite responde com acenos e sorrisos. "Eles me tratam com muito carinho: trabalhar assim, sempre conhecido, é uma farra."

Mala de histórias

Um sujeito grandalhão, acompanhado pela filha e outras duas mulheres, se aproxima do balcão.

"Ô, Rebite! Quanto tempo!", diz, estendendo uma mala marrom.

"Ô, rapaz! Mas que beleza de mala, hein?!"

Numa rápida avaliação, Rebiote nota que é preciso trocar o tecido revestindo o interior. Quando notou que a mala apodrecia no armário, o advogado Adalberto de Souza, 43, se recusou a mandá-la para alguém consertá-la em São Paulo, onde reside. É uma bela mala, adquirida há quatro anos em Florença. Serviu para trazer parte das roupas usadas na viagem e algumas peças novas, adquiridas na Itália. Esperou chegar o final de ano para vir a Maringá, onde os familiares se reúnem anualmente.

"Meu pai é cliente do Rebite a vida toda. O trabalho é de muita qualidade", garante o advogado cliente.

"Vamos jogar couro nela, que tal?", sugere Rebite.

"Vai ficar caro demais. Vamos de brim mesmo", decide o cliente. "Sabe o que é bacana? Voltar aqui e lembrar de tudo. Ver como a cidade vai mudando aos poucos. O tráfego, que hoje é bem mais intenso. As calçadas, agora cheias de gente para todos os lados. Acho que gostava mais de Maringá quando ela era deserta", diz o cliente, em tom saudosista, olhando para a Joubert de Carvalho.

O orçamento ficará pronto dali a cinco dias. Rebite anota o número do celular. Não há dúvidas que o cliente autorizará o conserto da sua mala italiana.

Pertinho de Pelé
O futebol era a casa de Rebite. O pai trabalhava como roupeiro do Grêmio e a mãe lavava as roupas dos jogadores. Ainda garoto, começou a engraxar as chuteiras dos jogadores nos vestiários. Mais tarde, em 1969 e entre 1974 a 76, assumiria o posto de goleiro do Grêmio. No Willie Davids, participou de momentos históricos, como a antológica vitória de 11 a 1 do Santos. Ainda adolescente, Rebite, à beira do gramado, estava a poucos palmos de distância de seus ídolos futebolísticos. Como gandula, lançava, por trás do gol, as bolas direto nas mãos de Gilmar. A mesma bola que segundos depois, estava nos pés de Pelé, Pepe e Coutinho. A gloriosa proximidade, que resultou na humilhante derrota em casa, não incomodava os 20 mil torcedores que berravam o nome de Pelé pelas arquibancadas. Com Rebite, não era diferente. O coração só bateria naquela mesma intensidade, ameaçando pular goela afora, alguns anos mais tarde, quando ele resolveria cantar "Negro Gato", no programa "Noite e Festa", deixando sua marca na música local. O garoto, que queria pertencer apenas ao universo das canções, hoje, aos 64, é um homem de muitos mundos: o mundo do futebol, dos flagras na Joubert de Carvalho, dos sapatos que cruzam calçadas e amam e vivem e morrem.

Publicado no Diário (8/1/2017)

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