segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Defuntos, lanches, preces e jam session no cemitério

Não há como ignorar a morte. Ainda mais aqui, contornando o cemitério. Batendo pernas, você escolhe o seu epitáfio. “Glad did I live and gladly die”, do grande Robert Louis Stevenson, ou “para quem pediu sempre tão pouco, o nada é positivamente um exagero”, do mestre Zé Paulo Paes? Na última despedida, quem virá? Meia dúzia de parentes e três centenas de duplas sertanejas – celebrando, felizes da vida, o teu fim? O cemitério parece quieto, mas não é. Prestando bastante atenção, você escuta os diálogos dos mortos:

“O mausoléu mais bonito, aqui de Maringá, é do João. Parece obra de arte.”


“Do João? Tá brincando, né?”


“Se esse treco é uma obra de arte, o que dizer do ‘Último Adeus’, do Alfredo Oliani, no Cemitério São Paulo?”


Silêncio entre os mortos.

“E a escultura do Francisco Leopoldo e Silva, ‘Interrogação’, no Cemitério da Consolação?”


Mais silêncio entre os mortos.

“Eu, aqui, debaixo da terra sem um túmulo decente... Bom mesmo seria um nu feminino, em cima da minha lápide, tão sensual
quanto à moça de ‘Solitudo’, do Francisco e Leopoldo e Silva, lá na Consolação.”


Os mortos voltam a discutir. Alguns berram de raiva, outros dão risadas. 


“Cala boca, quero dormir!”


“Quem consegue dormir nesse calor?”


“Parece que chegaram mais dois novatos hoje.”


“Fosse viva tomaria mil sorvetes.”


“Novatos, quem são vocês?! Nome completo e causa da morte!”


“Fosse vivo beberia todos os vasilhames do Divina Dose.”


A escalada do dólar, o impeachment petista, o escândalo de lordes ingleses - assuntos importantíssimos não interessam aos mortos maringaenses.


“Sejam bem-vindos ao cemitério, novatos.”


“Venderia fácil minha alma por uma última noitada no Skolzinho.”


“Compraria um revólver e mataria algum cantor sertanejo.”


“Alguém aí sabe dizer que horas são?”


“Mãezinha! As minhocas tão fazendo cosquinha de novo!”


Cemitério de automóveis

Os carros na frente do Prever denunciam as tantas mortes do dia. Uno. Gol. Palio. Ecosport. Corola. Pampa. Parati. Monza. Hordas de velhas, famílias, crianças. Policiais uniformizados saúdam senhoras serelepes e vão entrando no cemitério. Mais policiais zanzam no meio da rua, distribuindo tapinhas nas costas, escancarando sorrisos macilentos. Parentes que não se viam - há quê de anos? - emendam abraços e conversas. A mesma morte que separa, também une. Sentadinha na frente do Prever, abanando o suor com a mesma mão que esbofeteia o mosquito, uma velha morre de calor. Quase quarenta graus para acompanhar a morte alheia – você, suando bicas, também morre aos poucos.

Das sete salas de homenagens, duas estão abertas. Seis velhos velam o corpo de um homem numa delas. Mais concorrida, a despedida da mulher ao lado atrai nove pessoas. Ninguém chora nas salas. Não nessa segunda-feira, às seis da tarde. De frente para os dois corpos, é forte o cheiro de presunto – um menino se regala com sanduíche recheado. As outras salas estão vazias. Entro. Raspas de flores. Cadeiras tortas. Vazio suporte de defuntos. A morte passou por aqui. A fome atacou pacotes de bolachas e pães. Uma Bíblia aberta em algum versículo de Marcos refresca a leitura do crente: “apenas o trigo amadurece, logo se mete a foice, pois é a época da ceifa”. Única lembrança da homenagem, o nome da mulher continua pregado na parede: Terezinha Elias Batista. Ceifada pela vida.


No bebedouro, mãos tremelicantes estendem o copo. Ao som da água que escorre geladinha, o velho lambe os beiços rachados pelo tempo. Mata tudo numa só golada, olhão escancarado, fio de baba escorrendo pelo queixo - essa grande sede de viver.


“Tô aqui pro enterro do meu irmão”, diz o velho. “Morreu novo, só tinha 78 anos. Foi câncer de próstata, não fez direito os exames. A próstata dele ficou desse tamanho, ó. Você, quando chegar aos 40, e se chegar lá, vá logo fazendo os exames, viu?”, aconselha, num tom quase ameaçador.


O movimento parece paradão, mas o dia foi um agito só. “Hoje de manhã tinha mais cinco mortos. Às vezes, tem tanto morto que nem tem onde deixar. Daí a família tem que esperar. Ou ir noutra capela. Tem vez que morre doze, quinze, tudo de uma vez”, comenta uma faxineira. 


A passos firmes, um sujeito entra no Prever carregando um caixote de acepipes. Coca-Cola. Queijos. Pães. Margarina. Chocolates. Bate forte, a fome, rangendo teu estômago. E até penso em me regalar no velório alheio. Mudo o destino com os passos da menina. Correndinha, passa de cabeça baixa, cruzando velhas e velhos enlutados, alheia aos dois corpos mortos, rumo à máquina de refrigerantes. Ligeira, mete moedas na máquina e seleciona salgado, bombom e Guaraná. “Cresci com a morte: isso faz parte da minha vida”, comenta a jovem Keisla Amabile, 15. Neta da proprietária da floricultura ao lado, Keisla dá uma mão nos dias mais movimentados. “Venho desde pequena: entrego as coroas de flores e vou embora”, diz. Encarando a morte diariamente, ela discorre sobre o tema com desenvoltura e inteligência. “Se pudesse escolher, gostaria de morrer dormindo, sem sentir dor.” O primo dela de 18 anos, que invade a conversa, diz que a morte já deu mais trabalho. “Faz tempo que não morre um monte de gente de uma vez”, lamenta o garoto. “Parece que até a morte tá em crise”, comenta, rindo. 

Volto para a frente do Prever. Na saída de um enterro, dezenas de pessoas vão saindo do cemitério em direção aos carros. Crianças tossem desenfreadamente. Beijos, abraços, promessas para uma próxima visita. 

“A gente só se vê nessas horas tristes. Passa lá em casa, pôxa.”


“Olha que eu vô, hein”, ameaça a velha.


“Ai, vai sim. Ficamos amigas por causa dela. Agora, tem que continuar a amizade.”


No meio de tanta gente – até aqui?! -, uma moçoila cruza o Prever. Olhos castanhos, longos cabelos negros, shortinho, blusinha e tênis, tudo preto feito a morte. Vinte e um aninhos de pura louvação. Nas mãos, um skate minúsculo. De criança e anão?

“É um mini long. Adoro andar perto do cemitério”, comenta a voz melíflua e maviosa.

“Os mortos não te incomodam?”, pergunto, arrancando faíscas da boquinha mais vermelha. 


“Claro que não! Super de boa. Não é um lugar triste. Tiro o meu rolê e me sinto confortável”, diz.


Estudante de Psicologia, a moçoila implora, mais de uma vez, que não divulguem seu nome. Das musas maringaenses você não aceita os pedidos mais sórdidos?


Velório ostentação

Familiares bocejantes morrem de tédio. As salas vazias te dão um frio na espinha – não é você o próximo da fila? No meio dos bocejos, um sujeito varre preguiças. Silencioso, atento a cada palavra alheia. Taciturno, lúgubre, soturno. Calado, recolhe lixos. O faxineiro mudo, perturbador em seu silêncio, é um bocado assustador. Dele não ecoam sorrisos. Olhares vazios. Empunhando o rodão de limpeza, não é a morte com sua foice fatal? Ele se aproxima - fugir ou encarar a morte? 


“Bom mesmo foi o enterro do Pinga Fogo. Aquilo deu uma multidão de gente. Nem eu, que trabalho aqui, consegui ver o Pinga. De tão grande, a fila chegava lá no Teatro, no meio da Cerro Azul. Dois agentes funerários acompanhavam a entrada e a saída do público”, lembra o zelador, forçando o esfregão no piso.


Passos pequenos, cabeça inclinada, ombros curvados para dentro. Alma penada vagando pelos corredores desertos.
“Tem vez que dá dó: não vem ninguém velar o defunto. Geralmente, porque a família mora muito longe. Tem caso até que mora em outro país. Daí vem algum amigo da família e vela o corpo. Sem choro”, comenta, olhão esbugalhado de detalhes. “Trabalhando aqui, você aprende a respeitar a tristeza alheia, a se importar com quem tá sendo velado, ainda que seja um desconhecido. Entro, faço uma oração. Mesmo pra quem não conheço.”

Repostas firmes. Amigo dos defuntos abandonados. Único aceno, o dele, antes da lápide pesada tampar o grito do cataléptico. 

“A morte é repentina. Pode ser brutal ou serena, mas quase sempre é repentina.”

As pesadas palavras do faxineiro ecoam no corredor. O mesmo peso de ameaças. Ele, porta-voz da morte. 


“Quando eu morrer, só tenho uma certeza. O Senhor Deus estará presente no meu enterro”, garante, olhão pregado na saleta vazia, imaginando seu último dia. De terno, gravata e dedinhos entrelaçados. 


Carona fúnebre

Terça-feira, seis e pouco de tarde. Poucos carros no estacionamento. Do alto das árvores do cemitério, anu-branco, andorinha-de-casa e sabiá-do-campo solam sax e trompetes numa jam session frenética. Duas risonhas velhinhas forçam a vista, rangendo testas e sobrancelhas, tentando, em vão, observar algum dos pássaros jazzistas. Sentadas no banquinho, de frente para o cemitério, mal enxergam as nervuras azulonas e as crateras de frieiras nos próprios pés, que se esfregam violentos, banhando em sangue o dedão carcomido.


“Uma pena, ter morrido. O Mané era jovem e tinha problemas respiratórios. Lutou muito, mas a morte veio”, lamenta uma das velhas.


Casais, velhos, famílias e crianças ramelentas vão brotando, aos poucos, dos muros do cemitério. Uma chupeta vermelha escorrega e vai ao chão – não é de luto o berro do bebê. 


Pessoas abrem espaço para a passagem de um veículo motorizado. Em vez de jogadores e tacos de golfe, o carrinho motorizado carrega uma velha centenária. Serelepe e sorridente. Quieto e soturno, o motorista de terno preto guia o carrinho em câmera lenta – não matar a centenária de susto? O carro fúnebre leva uma eternidade para cruzar os poucos passos de distância, do cemitério ao Prever. Satisfeita, a velha agradece a carona. “Tchau, viu. Muito obrigada.” O motorista retribui o sorriso, sussurrando palavras quase inaudíveis. Mais dia menos dia, velha e motorista não se encontrarão, por aqui, no mesmo carrinho fúnebre, encarando o mesmo percurso? Do outro lado da rua, um glorioso grupo de mulheres deixa o cemitério. Algumas, como pede o calor de quarenta graus: vestidinho florido, saltinho alto, decotinho fatal - a morte não assassina a vaidade. Com mil e uma musas,a despedida digna de todo grande herói. Assim, o meu, o teu, o nosso fim.


Publicada no Diário (27/9/2015)