quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Famosos & desconhecidos nos corredores da 3ª Flim

Toda pessoa esconde um punhado de enredos. Há pessoas que trazem, dentro de si, romances inteiros compostos por seiscentas e poucas páginas, repletos de personagens malditos e bondosos zanzando por diversos cantos do mundo, de São Petersburgo a Manaus, de Marialva a Madagascar, em enredos dostoievskianos de crimes e castigos, humilhados e ofendidos, noites brancas, jogadores, idiotas e eternos maridos.

Há outras pessoas
que trazem
lirismo na alma
e quando abrem
o verbo
as frases parecem
versos
roubados
de
Manoel
de
Barros.

Há pessoas com relatos concisos que cabem em mínimas linhas - gente em forma de conto recorre sempre ao silêncio.

Há outras pessoas que são, essencialmente, uma novela, e nelas os microcosmos nunca se estendem demais, nem são excessivamente breves, compondo um gênero de almas que são um meio-termo literário.

Na 3ª edição da Festa Literária Internacional de Maringá (Flim), as histórias não estão apenas nas obras expostas nos estandes: cada alma, aqui, é um universo literário a ser explorado. Basta observar e ouvir. Quer ver?

"A coisa tá tão difícil que até roubaram uma casa na Morangueira, cê viu?"

"E aquela morte do galã da Globo?! Jesus amado! Logo afogado!"

"A casa inteira foi roubada: porta, janela, parede, casinha de cachorro, teto, só deixaram lá o terreno baldio porque não dava pra levar."

"Ler é até mais prazeroso do queee... ai, amiga, cê sabe bem do que eu tô falando."

"Minha vida tá horrível. Inda bem que tem Tom Zé no sábado. Maior gênio não há. Tomara que ele toque a serra elétrica e folha de fícus!"

"Caco quem?! Que nada! Me recuso a ver TV. Rede Vida, Record, SBT?! Eu, hein! Vim mesmo pela Ana Maria Machado."

"Tomara que cante 'Augusta, Angélica e Consolação': pô, eu também amo o Tom Zé."

"E o Juarez, que era milionário e agora tá pobre?! Essa Maringá é uma loucura mesmo!"

"Olha ele ali, ó, pega a máquina, Fernandaaa, pega a máááquina, mulheeer! Minha Nossa Senhóóóra, o Caco Barcellos é... do meu tamanho?!"

O famoso jornalista da TV Globo cruza a multidão de leitores, escoltado por seguranças, e, em meio a pedidos de selfies, pedidos de autógrafo, pedidos de emprego, pedidos de conselhos profissionais, pedidos amorosos, consegue, enfim, chegar são e salvo, às sete e meia da noite, ao palco do auditório Flim. No caos que Caco causou, ouço ele dizer em alto e bom som, coberto de razão:

"Cada pessoa carrega uma boa história. Todo dia é dia de ir atrás das histórias que estão acontecendo".

Caçando verbos

Caneca do Mondrian. Tiozões comprando livros. Tapete do Shakespeare. Kanga do Kafka. Tapete da Clarice Lispector. Patê de berinjela. Patê de tomate seco. Escultura de algum objeto não identificado. Senhoras comprando livros. Geleia de mexerica. Gibi do Batman. Pôster do Homem-Aranha. "Chega de Saudade", do Ruy Castro. Dois volumes da autobiografia do Fernando Henrique Cardoso. Pencas de livros redigidos por jovens celebridades do YouTube. Dois garotos comprando contos. Caça-Palavras nível fácil. Caça-Palavras nível difícil. Toda sorridente, pôster de Maria. Todo sorridente, pôster de Jesus. Todo sorridente, pôster do Lucas Lucco – epa, até aqui?! Cantores sertânicos não te dão descanso nem na Flim.

"O pôster do Luan Santana já acabou: esgota sempre rapidinho. Nas capitais, o Justin Bieber é nosso carro-chefe. No interior, só dá Luan: a meninada adora ele", comemora, feliz da vida, o vendedor.

Gente fina, ele parece ter cara de novela e topa interromper as palavras-cruzadas, debruçado ao balcão, para uma breve conversa.

"Segunda vez que participo dessas feiras literárias. A empresa em que trabalho é grande, tá sempre na Bienal de São Paulo."

"Entre uma e outra venda, a descoberta da palavra certeira?"

"Rapaz, isso faz um bem pra mente que nem te conto. Descubro uma nova palavra a cada minuto que passa."

"E quanto tempo leva para esquecê-la?"

"Esqueço logo em seguida! É difícil, viu, guardar tanta palavra de uma vez."

"Algum conselho para iniciantes de palavras-cruzadas?"

"Vários. Para fazer bem essa arte, você tem que ter algumas coisas básicas: 1) Paciência; 2) Trabalhar a memória; 3) Concentração máxima; 4) Paz interior."

Chego a segurar uma edição baratinha, em dúvida se levo ou não. Deixo para lá. Não tenho nenhum requisito básico para caçar palavras – elas mesmas é que me caçam.

Mulher de mil livros

Romance do Mia Couto. Romance do Faulkner. O consumo não é ruim: ruim, sim, é o consumismo – versão desenfreada de compras alucinadas. Às cinco da tarde, uma jovem de dezoito anos, ao lado de uma pilha de livros, te aborda com o sorrisinho mais generoso.

"Conhece esse livro?", questiona.

Capa preta. Desenho de mulher. O nome não te lembra nada.

"Conhece essa autora?", insiste, apontando o nome Jessica Sanz.

Jéssica. Não venceu Jabuti. Nem Prêmio Portugal Telecom. Não foi publicada pela Patuá. Jéssica, Jéssica. Não está na Record, na Cosac Naify, na Companhia das Letras. Jéssica.... Não foi tema de resenha. Não virou matéria. Não saiu em nota. Jéssica Sanz: você força cada centímetro da memória à caça do nome, mas nada não recorda.

"Sou eu mesma, muito prazer: sou romancista", apresenta-se a moçoila, estendendo a mão.

Gentil, a jovem fala de seu livro com detalhes empolgantes – você, de volta para casa, entretendo familiares depois da longa viagem. Enredo que mistura elementos da fantasia. Amigos virtuais que conheceu num jogo chatíssimo pela internet e inspiraram personagens. Final sempre feliz, com casais unidos até que a morte os separe – as ilusões da juventude são sempre maviosas.

Vinda de Campos dos Goytacazes (RJ), Jéssica Sanz participa da segunda feira literária de sua vida. A primeira, há alguns meses, em sua cidade natal, foi um sucesso estrondoso. "Vendi todos os cem exemplares do meu livro", comenta. Na segunda edição, custeada pelo pai-mecenas, resolveu aumentar vertiginosamente a tiragem: "Imprimimos mil livros", detalha.

Mil edições, ela diz, custaram a bagatela de R$ 7 mil. Com essa grana, você não passaria uns dias em Paris, jantando no Le Procope e bebericando na Brasserie Lipp?! Mesmo em tempos de crise, com investimentos de alto risco na maldita instabilidade econômica, a jovem está confiante no negócio verbal. "Se eu vender todos os mil livros, meu lucro chega, em média, a R$ 30 mil". Com essa grana, quantos dias você não passaria em Paris?

Mundão marginal

Esbarro em outros desconhecidos autores. Simpáticos sujeitos com jeito de contos, eles me oferecem espumante em tacinhas de plástico e tentam me vender seus versos - alguns, melhor evitar. Noutro canto, quarenta e nove velhos aspirantes a Emiliano Perneta declamam poeminhas parnasianos sobre tua chatíssima igreja-cone. Basta ouvir uma única estrofe para ter noção de sua obra completa - não permita, Deus, que terminemos assim.

Moçoilas vestidas de bruxinhas e Branca de Neve fisgam fascinações de dez meninos e meninas, em meio a contações de histórias - daqui a alguns anos, desse grupo pequenino não sairá um grande escritor?

Para onde quer que você olhe nos corredores da Flim, a literatura está presente. Forçando a vista, é possível encontrar até detalhes marginais, como no caso da estudante Heloísa Gomes. Aos dezesseis anos, ela entra na sala de aula e vai logo escondendo um livro debaixo da mesa. Nas aulas de Geografia, História, Matemática, Literatura e Física, ela não resiste à tentação. E na subversão mais poética que há, esperta para jamais ser flagrada por professoras carrancudas, recorre aos clássicos de Jane Austen. "Ela é maravilhosa. Já li três romances e me identifico muito", comenta. As amigas, ela reclama, infelizmente não têm o mesmo hábito. "Mais chegadas em série de TV, joguinho de celular, bobeira de Facebook."

Conselhos premiados

Com atrações gringas, nacionais e novos autores, a Flim sobrou até para mim. Incumbido de fazer uma mediação, preparei algumas perguntinhas ao grande José Eduardo Agualusa. O premiado escritor angolano, autor dos romances "O Vendedor de Passados" e "Teoria Geral do Esquecimento", chega em cima da hora, precisamente às 19h30. Alunos de Letras, famigerados professores da UEM e leitores em geral compõem a plateia. Agualusa tinha 27 anos quando escreveu sua primeira obra, o romance histórico "A Conjura". Uma estratégia um tanto incomum para quem está iniciando a trajetória literária. Pergunto a ele sobre essas primeiras linhas incomuns, arriscadas, e, com um sorriso irônico, o grande Agualusa dispara a resposta: "Para escrever, é preciso ser um pouco irresponsável".

Bem-humorado, fala sobre: 1) o processo de escrita de suas obras ("escrevo para saber como a história vai terminar"); 2) revela a importância do sono ("chego a sonhar diálogos inteiros, com personagens e cenários"); 3) indica o caminho da bonança ("escrever não vai te fazer milionário; para ficar rico, basta entrar para a política"); 4) lembra a influência das grandes linhas ("o bom livro é aquele que te dá vontade de escrever"); 5) comenta a afinação das lagartixas ("infelizmente, as lagartixas nunca cantaram para mim, só sorriram"); 6) entre outras delicadezas poéticas. Da plateia surgem leitores angolanos e moçambicanos, todos felizes da vida em encontrar o nobre escritor africano.

Fama & glória

Ao descer do palco, Agualusa é abordado por leitores. Isso é comum nesse tipo de evento. As atrações principais atendem o público, enquanto os mediadores seguem para casa ou para o bar. Os leitores pedem fotos, autógrafos, beijos e abraços. Deve ser bom ser querido pelos leitores, imagino, também descendo do palco. Com pés no chão, já disposto a correr rumo às mesas do Divina Dose, sou abordado por um sujeito quarentão.

"Você, então, é o Gaioto?"

Sujeito de boina, alguns papéis na mão, olhar vidrado de artista.

"Gosto bastante dos seus textos. Leio todo domingo."

Quem diria?! Agradeço o elogio. Maior felicidade não há que encontrar um leitor - esse, por sua vez, é exigente.

"Acho que você deveria fazer uma crônica sobre minha vida. Fui artista de rua na Europa, imitando Chaplin e ganhando 100 euros por dia! Lá fora, sim, o artista é valorizado. Não aqui, onde tratam a gente feito bicho, marginal, mendigo."

Há pessoas que carregam longas epopeias.

"A gente poderia sentar num bar, tipo que nem aquele texto com o Demarchi, e falar sobre mim e sobre a morte, ando pesquisando muito sobre o tema. Sou judeu, amigo da família Leminski, minha vida dá uma crônica! Você, por acaso, tem um cigarro?"

"Sinto muito, não fumo."

Baixando o tom, olhando para os lados.

"E uma ervinha, tem?"

"Puxa vida, não sou chegado."

"Que tipo de intelectual é você?"

"Nenhum! Cronista frustrado, poeta medíocre, músico manco, maestro incapaz de ler partituras: esse c ara sou eu."

Arranco um sorriso do leitor e já sou abordado por um senhor com o mesmo chapeuzinho lusitano de meu avô. Setenta e poucos anos?

"Sou amigo do Rui, lá do Diário, e te leio todo domingo. To-do do-min-go! Não acredita, é?! Um dia, pedi que o Rui falasse pra você do quanto eu gosto dos seus textos, ele não falou? Vim na Flim só pra te ver."

Inacreditável. Eis a tão esperada glória?! Pergunto nome, idade, vou agradecendo os tantos elogios, embora eu não mereça nenhum deles.

"Só não gosto quando você fala de... Deus", comenta, com risadinha sacana e me dando um tapinha nas costas.

Que senhor bacana. Por essa, nunca esperava.

"Venho lendo suas crônicas todo domingo", revela uma senhora chamada Luzia, "não perdi a oportunidade de vir te ver."

Pô, melhor que Prêmio Jabuti, Portugal Telecom, Nobel de Literatura.

"Já fui em outros eventos literários em que você estava. Gosto dessas apimentadas que você dá na conversa", diz a doce senhora.

Ainda estupefato, vou cumprimentando outros leitores. Todos muito gentis, cordiais, bem-humorados: se, com estas crônicas dominicais, você consegue carregar leitores para um encontro com Agualusa - este, sim, um escritor de verdade - então tua missão está cumprida.

Publicado no Diário (18/9/2016)

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Na busca de um bom boteco, em busca de Maringá perdida

Ademir Demarchi está confortavelmente sentado numa das mesas do Divina Dose. Quase não o reconheço: protegido pelo frio, refugiado sob uma dessas toquinhas bolivianas, preparadas em lã azulíssima. Observo-o de longe, concentrado em anotações: quieto, escutando anonimamente as histórias dos clientes em volta, rabiscando frases e expressões numa caderneta. Cuidado, você, ao confessar teus segredos no bar: escritores podem surrupiar todos teus detalhes. Encho o copo de Serra Malte geladíssima e já vamos engatando assunto. Milan Kundera & Mia Couto. Geraldo Vandré & Woody Allen. Michel Houellebecq & Paolo Sorrentino – essas duplas, sim, você encara sem medo. "Vir pra cá me deixa um tanto melancólico", desabafa o grande poeta e cronista do Diário, em passagem pela cidade para visitar alguns familiares.

Eu também ficaria extremamente melancólico, se estivesse na pele do Demarchi. Não deve ser fácil abandonar, ainda que por uns dias, a luxuosa cobertura em Santos, com vista de frente para o mar, e regressar às remotas ruas do passado. Para alguns autores, a cidade - ou seu distanciamento dela - é extremamente importante. Impossível ler Kafka sem refletir sobre sua relação conturbada com Praga. Ninguém fica imune a São Luís versada no "Poema Sujo", do Ferreira Gullar, nem a Combray mitificada por Proust. Em busca da Maringá perdida, pergunto ao cronista sobre suas memórias, caçando resquícios de 1975 a 1985, período em que Demarchi viveu por aqui.

"Infelizmente, algumas coisas não resistiram ao tempo. Sinto falta de uma portinha, perto da banca do Massao, que vendia uma porpeta frita muito saborosa, feita lá mesmo. Sinto falta do Cine Maringá, Cine Plaza, Cine Horizonte, Cine Pedutti. Da Biblioteca Pública. Do antigo calçadão rústico da praça da Prefeitura, que foi azulejado por um arquiteto desses aí que azulejam paisagem", lembra, saudosista, encarando o copo à frente, criando casas, casebres, casarões, ruas, avenidas e uma imensa Catedral a partir da espuma da cerveja, que ele faz questão de entornar, sedento, num só gole.

Sempre atencioso, Seu Valter pousa outra Serra Malte e vamos molhando o verbo na mesa 33. Comento com Demarchi meu sonho recente: eu estava morto, todo de branco, e bebia com vários amigos (ele, inclusive) naquele boteco. Se há um único paraíso em Maringá, esse lugar é o Divina Dose.

Crítico severo de bares, Demarchi concorda. "Não me lembro de bares que me marcaram na minha Maringá de antigamente. Havia uns pontos de encontro, os bares na Zona 7, insossos, e a Cantina da UEM até o fim das aulas. Na juventude, a diversão era improvisada nas festinhas de bairro: uma lona no quintal, muita música de toca-discos embaixo e rock alternado com música melosa pra se grudar com as moças. Bebida barata, vida simples", comenta, com um sorriso sacana.

"Como eram as belas maringaenses da sua época? Existiam tantas loiras quanto nos dias de hoje?", vou sondando.

"Não é tão diferente de hoje, está aí você casadão em plena juventude se metendo à besta. Eram todas casadoiras, aliás, como todas as mulheres, românticas incuráveis nessa Maringá, a sentimental. Muitas, muitas caipiras. Me apaixonei umas vezes por minhas fantasias, tive uma primeira namorada vestida de pétalas de rosas e me evadi em busca do Santo Graal que ressoava na distante voz de uma sereia."

"O amor é lindo", digo, tirando uma gargalhada do poeta, que acaba de publicar um livro com esse mesmo título irônico.

"No dia em que impichmaram a Dilma, acho-a uma chata, mas sua cassação foi uma encenação feita por bandidos, pois bem, o que dizer quando nesse dia marcante para a história do País abri um jornal e li duas manchetes: 'Homem ateia fogo em carro onde ex estava com namorado em Piracicaba' e 'Separação de William Bonner e Fátima Bernardes causa comoção na internet'. A notícia mais importante era a liquidação da empresa Bonner & Bernardes Ltda. O amor é lindo", sacaneia o poeta, esvaziando mais uma Serra Malte.

A Maringá de hoje tem Festa Literária Internacional. Tem festival em que músicos de outros Estados executam Shostakovich, Brahms, Chopin. Tem exibições de filmes alternativos. Tem festival de jazz com big bands. Tudo isso com entrada grátis.

"Minha Maringá não teve nada disso. Minha época exigia atitude, fazer jornais, fazer teatro e criamos um cineclube, que reunia meia dúzia, pois os cinemas não davam o que queríamos de cinema europeu, japonês, russo, italiano, onde pulsava a vida longe do cinema norte-americano."

"Difícil acesso a livros, filmes, discos... Como você sobreviveu àquela infernal Maringá?"

"O jeito era viajar atrás da cultura. Fiz muitas viagens, fui parar até num encontro de cineclubes numa cidade italiana perto de Vitória, no Espírito Santo, dias de viagem de ônibus, onde me embriaguei com vinho de jabuticaba, assistindo um gay interpretar ao piano e cantando Lisa Minelli e seu 'Life is a Cabaret'..."

"!?"

"...não me interessei pelo ator-poeta e seus olhares melífluos e conheci uma húngara que me introduziu nos mistérios gozozos diluindo refinadamente a embriaguez do vinho de jabuticaba feito pelos monges daquele monastério em que estávamos hospedados e que depois me acompanhou até São Paulo, onde nos hospedamos em um hotelzinho perto do Teatro Municipal, passeamos pelo Anhangabaú e aprendi a amar a cultura húngara e suas proximidades a um ponto em que tenho praticamente todos os autores publicados no Brasil, a começar por um 'Tradutor Cleptomaníaco' e acabar com 'Antologia da Literatura Ucraniana', de Wira Selanski, uma raridade que teve adaptação poética sabe de quem?"

"?"

"Nossa Helena Kolody."

"!"

"Como você pode ver, Maringá, essa sentimental, me fez ir longe para estar sempre de volta."

Demarchi pede umas cachaças para rebatermos a cerveja geladíssima. Dona Ione, sempre gentil, ajeita os copinhos translúcidos de onde emanam os doces perfumes dos porres homéricos.

"A frase do Dickens 'aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos' se encaixa bem na sua Maringá?"

"Perfeitamente. O lugar da juventude é esse, o melhor e o pior ao mesmo tempo. Se se consegue um blend perfeito disso, tira-se um ótimo vinho para a velhice", aconselha.

Nosso diálogo é degolado por um jovem moreno. Um metro e sessenta, bicicleta estropiada, celular hipermoderno, empilhando três metros de tapetes coloridos.

"Vamo comprá tapete hoje?", oferece, gentilmente, Johnny Tapete.

Culpa da crise, recusamos os adornos de chão – na tua casa, os dezoito tapetes vendidos noutras noites pelo mesmo Johnny Tapete, quando você estava ligeiramente alcoolizado, já não lotam teus armários? Figura folclórica da noite maringaense, ele insiste.

"Não é um tapete comum: é um tapete voador", garante, erguendo na altura do rosto uma das opções de tapetes e deixando cair, de uma vez, rumo ao chão.

Propaganda é mesmo a alma do negócio: mais três tapetes, de Johnny Tapete, para tua vasta coleção.

"Tua Maringá é muito melhor que a minha. Como pude viver, nesses 56 anos, sem conhecer Johnny Tapete?", questiona-se Demarchi.

Seu Valter traz nova rodada de cachaça e outra Serra Malte com a noitada avançando é ali que eu pergunto sobre a meretriz septuagenária Tia Maria "sou virgem disso" & a famigerada Mansão de Pedra "um mito para mim" e como foi mesmo aquele dia em que ele assistiu Lula discursar na carroceria de um caminhão em frente à Igreja São José eu estava na organização mas não me lembro das conversas que tenha tido e das relações de Kurosawa & Trotski ou de como Beckett & Peppino di Capri se encontram e se afastam não sei os motivos agora que nos levaram até o Gógol talvez sejam as descrições do "Almas Mortas" mas não posso afirmar com veemência daí Demarchi tira o celular do bolso aponto para ele rindo da touca chilena quer dizer boliviana tá muito estranho mesmo cara e dou risada quando ele lê um trecho bom à beça do começo de um conto? romance? nunca ouvi falar desse escritor caramba me envie amanhã porque eu com certeza claro que mando pode deixar vou esquecer sem falar na ressaca esse escritor é ótimo o amor Gaioto é um dos maiores FÓUM FÓUM males contemporâneos eficientemente incorporado FÓUM FÓUM como um dos mais profícuos meios de alimentação do capitalismo FÓUM FÓUM FÓUM FÓUM um caminhão de bombeiro cruza a frente do Divina Dose com luzes faiscantes será incêndio em prédio? na minha casa? gato no alto da árvore? criança engasgada com comida? e bebericamos a terceira rodada de cachaça a sociedade das formas econômicas que moldam os afetos e os transformam em objeto o casamento é uma encenação caríssima feita pra alegrar mulher e damos risada e brindamos porque é um teatro ele diz erguendo o copo é uma grande produção é uma relação de contrato empresarial e Seu Valter atende meu pedido trazendo conta e saideira quando pagamos no crédito com Demarchi declamando um dos seus novos poemas "O Amor"

ar aprisionado num vidro
com tampa de pedra
em forma de pássaro

Publicada em 4/8/2016