Toda pessoa esconde um punhado de enredos. Há pessoas que trazem,
dentro de si, romances inteiros compostos por seiscentas e poucas
páginas, repletos de personagens malditos e bondosos zanzando por
diversos cantos do mundo, de São Petersburgo a Manaus, de Marialva a
Madagascar, em enredos dostoievskianos de crimes e castigos, humilhados e
ofendidos, noites brancas, jogadores, idiotas e eternos maridos.
Há outras pessoas
que trazem
lirismo na alma
e quando abrem
o verbo
as frases parecem
versos
roubados
de
Manoel
de
Barros.
Há pessoas com relatos concisos que cabem em mínimas linhas - gente em forma de conto recorre sempre ao silêncio.
Há
outras pessoas que são, essencialmente, uma novela, e nelas os
microcosmos nunca se estendem demais, nem são excessivamente breves,
compondo um gênero de almas que são um meio-termo literário.
Na
3ª edição da Festa Literária Internacional de Maringá (Flim), as
histórias não estão apenas nas obras expostas nos estandes: cada alma,
aqui, é um universo literário a ser explorado. Basta observar e ouvir.
Quer ver?
"A coisa tá tão difícil que até roubaram uma casa na Morangueira, cê viu?"
"E aquela morte do galã da Globo?! Jesus amado! Logo afogado!"
"A
casa inteira foi roubada: porta, janela, parede, casinha de cachorro,
teto, só deixaram lá o terreno baldio porque não dava pra levar."
"Ler é até mais prazeroso do queee... ai, amiga, cê sabe bem do que eu tô falando."
"Minha
vida tá horrível. Inda bem que tem Tom Zé no sábado. Maior gênio não
há. Tomara que ele toque a serra elétrica e folha de fícus!"
"Caco quem?! Que nada! Me recuso a ver TV. Rede Vida, Record, SBT?! Eu, hein! Vim mesmo pela Ana Maria Machado."
"Tomara que cante 'Augusta, Angélica e Consolação': pô, eu também amo o Tom Zé."
"E o Juarez, que era milionário e agora tá pobre?! Essa Maringá é uma loucura mesmo!"
"Olha
ele ali, ó, pega a máquina, Fernandaaa, pega a máááquina, mulheeer!
Minha Nossa Senhóóóra, o Caco Barcellos é... do meu tamanho?!"
O
famoso jornalista da TV Globo cruza a multidão de leitores, escoltado
por seguranças, e, em meio a pedidos de selfies, pedidos de autógrafo,
pedidos de emprego, pedidos de conselhos profissionais, pedidos
amorosos, consegue, enfim, chegar são e salvo, às sete e meia da noite,
ao palco do auditório Flim. No caos que Caco causou, ouço ele dizer em
alto e bom som, coberto de razão:
"Cada pessoa carrega uma boa história. Todo dia é dia de ir atrás das histórias que estão acontecendo".
Caçando verbos
Caneca do Mondrian. Tiozões comprando
livros. Tapete do Shakespeare. Kanga do Kafka. Tapete da Clarice
Lispector. Patê de berinjela. Patê de tomate seco. Escultura de algum
objeto não identificado. Senhoras comprando livros. Geleia de mexerica.
Gibi do Batman. Pôster do Homem-Aranha. "Chega de Saudade", do Ruy
Castro. Dois volumes da autobiografia do Fernando Henrique Cardoso.
Pencas de livros redigidos por jovens celebridades do YouTube. Dois
garotos comprando contos. Caça-Palavras nível fácil. Caça-Palavras nível
difícil. Toda sorridente, pôster de Maria. Todo sorridente, pôster de
Jesus. Todo sorridente, pôster do Lucas Lucco – epa, até aqui?! Cantores
sertânicos não te dão descanso nem na Flim.
"O pôster do Luan
Santana já acabou: esgota sempre rapidinho. Nas capitais, o Justin
Bieber é nosso carro-chefe. No interior, só dá Luan: a meninada adora
ele", comemora, feliz da vida, o vendedor.
Gente fina, ele parece ter cara de novela e topa interromper as palavras-cruzadas, debruçado ao balcão, para uma breve conversa.
"Segunda vez que participo dessas feiras literárias. A empresa em que trabalho é grande, tá sempre na Bienal de São Paulo."
"Entre uma e outra venda, a descoberta da palavra certeira?"
"Rapaz, isso faz um bem pra mente que nem te conto. Descubro uma nova palavra a cada minuto que passa."
"E quanto tempo leva para esquecê-la?"
"Esqueço logo em seguida! É difícil, viu, guardar tanta palavra de uma vez."
"Algum conselho para iniciantes de palavras-cruzadas?"
"Vários.
Para fazer bem essa arte, você tem que ter algumas coisas básicas: 1)
Paciência; 2) Trabalhar a memória; 3) Concentração máxima; 4) Paz
interior."
Chego a segurar uma edição baratinha, em dúvida se
levo ou não. Deixo para lá. Não tenho nenhum requisito básico para caçar
palavras – elas mesmas é que me caçam.
Mulher de mil livros
Romance do Mia Couto. Romance do
Faulkner. O consumo não é ruim: ruim, sim, é o consumismo – versão
desenfreada de compras alucinadas. Às cinco da tarde, uma jovem de
dezoito anos, ao lado de uma pilha de livros, te aborda com o sorrisinho
mais generoso.
"Conhece esse livro?", questiona.
Capa preta. Desenho de mulher. O nome não te lembra nada.
"Conhece essa autora?", insiste, apontando o nome Jessica Sanz.
Jéssica.
Não venceu Jabuti. Nem Prêmio Portugal Telecom. Não foi publicada pela
Patuá. Jéssica, Jéssica. Não está na Record, na Cosac Naify, na
Companhia das Letras. Jéssica.... Não foi tema de resenha. Não virou
matéria. Não saiu em nota. Jéssica Sanz: você força cada centímetro da
memória à caça do nome, mas nada não recorda.
"Sou eu mesma, muito prazer: sou romancista", apresenta-se a moçoila, estendendo a mão.
Gentil,
a jovem fala de seu livro com detalhes empolgantes – você, de volta
para casa, entretendo familiares depois da longa viagem. Enredo que
mistura elementos da fantasia. Amigos virtuais que conheceu num jogo
chatíssimo pela internet e inspiraram personagens. Final sempre feliz,
com casais unidos até que a morte os separe – as ilusões da juventude
são sempre maviosas.
Vinda de Campos dos Goytacazes (RJ), Jéssica
Sanz participa da segunda feira literária de sua vida. A primeira, há
alguns meses, em sua cidade natal, foi um sucesso estrondoso. "Vendi
todos os cem exemplares do meu livro", comenta. Na segunda edição,
custeada pelo pai-mecenas, resolveu aumentar vertiginosamente a tiragem:
"Imprimimos mil livros", detalha.
Mil edições, ela diz, custaram
a bagatela de R$ 7 mil. Com essa grana, você não passaria uns dias em
Paris, jantando no Le Procope e bebericando na Brasserie Lipp?! Mesmo em
tempos de crise, com investimentos de alto risco na maldita
instabilidade econômica, a jovem está confiante no negócio verbal. "Se
eu vender todos os mil livros, meu lucro chega, em média, a R$ 30 mil".
Com essa grana, quantos dias você não passaria em Paris?
Mundão marginal
Esbarro em outros desconhecidos autores.
Simpáticos sujeitos com jeito de contos, eles me oferecem espumante em
tacinhas de plástico e tentam me vender seus versos - alguns, melhor
evitar. Noutro canto, quarenta e nove velhos aspirantes a Emiliano
Perneta declamam poeminhas parnasianos sobre tua chatíssima igreja-cone.
Basta ouvir uma única estrofe para ter noção de sua obra completa - não
permita, Deus, que terminemos assim.
Moçoilas vestidas de
bruxinhas e Branca de Neve fisgam fascinações de dez meninos e meninas,
em meio a contações de histórias - daqui a alguns anos, desse grupo
pequenino não sairá um grande escritor?
Para onde quer que você
olhe nos corredores da Flim, a literatura está presente. Forçando a
vista, é possível encontrar até detalhes marginais, como no caso da
estudante Heloísa Gomes. Aos dezesseis anos, ela entra na sala de aula e
vai logo escondendo um livro debaixo da mesa. Nas aulas de Geografia,
História, Matemática, Literatura e Física, ela não resiste à tentação. E
na subversão mais poética que há, esperta para jamais ser flagrada por
professoras carrancudas, recorre aos clássicos de Jane Austen. "Ela é
maravilhosa. Já li três romances e me identifico muito", comenta. As
amigas, ela reclama, infelizmente não têm o mesmo hábito. "Mais chegadas
em série de TV, joguinho de celular, bobeira de Facebook."
Conselhos premiados
Com atrações gringas, nacionais e
novos autores, a Flim sobrou até para mim. Incumbido de fazer uma
mediação, preparei algumas perguntinhas ao grande José Eduardo Agualusa.
O premiado escritor angolano, autor dos romances "O Vendedor de
Passados" e "Teoria Geral do Esquecimento", chega em cima da hora,
precisamente às 19h30. Alunos de Letras, famigerados professores da UEM e
leitores em geral compõem a plateia. Agualusa tinha 27 anos quando
escreveu sua primeira obra, o romance histórico "A Conjura". Uma
estratégia um tanto incomum para quem está iniciando a trajetória
literária. Pergunto a ele sobre essas primeiras linhas incomuns,
arriscadas, e, com um sorriso irônico, o grande Agualusa dispara a
resposta: "Para escrever, é preciso ser um pouco irresponsável".
Bem-humorado,
fala sobre: 1) o processo de escrita de suas obras ("escrevo para saber
como a história vai terminar"); 2) revela a importância do sono ("chego
a sonhar diálogos inteiros, com personagens e cenários"); 3) indica o
caminho da bonança ("escrever não vai te fazer milionário; para ficar
rico, basta entrar para a política"); 4) lembra a influência das grandes
linhas ("o bom livro é aquele que te dá vontade de escrever"); 5)
comenta a afinação das lagartixas ("infelizmente, as lagartixas nunca
cantaram para mim, só sorriram"); 6) entre outras delicadezas poéticas.
Da plateia surgem leitores angolanos e moçambicanos, todos felizes da
vida em encontrar o nobre escritor africano.
Fama & glória
Ao descer do palco, Agualusa é abordado
por leitores. Isso é comum nesse tipo de evento. As atrações principais
atendem o público, enquanto os mediadores seguem para casa ou para o
bar. Os leitores pedem fotos, autógrafos, beijos e abraços. Deve ser bom
ser querido pelos leitores, imagino, também descendo do palco. Com pés
no chão, já disposto a correr rumo às mesas do Divina Dose, sou abordado
por um sujeito quarentão.
"Você, então, é o Gaioto?"
Sujeito de boina, alguns papéis na mão, olhar vidrado de artista.
"Gosto bastante dos seus textos. Leio todo domingo."
Quem diria?! Agradeço o elogio. Maior felicidade não há que encontrar um leitor - esse, por sua vez, é exigente.
"Acho
que você deveria fazer uma crônica sobre minha vida. Fui artista de rua
na Europa, imitando Chaplin e ganhando 100 euros por dia! Lá fora, sim,
o artista é valorizado. Não aqui, onde tratam a gente feito bicho,
marginal, mendigo."
Há pessoas que carregam longas epopeias.
"A
gente poderia sentar num bar, tipo que nem aquele texto com o Demarchi,
e falar sobre mim e sobre a morte, ando pesquisando muito sobre o tema.
Sou judeu, amigo da família Leminski, minha vida dá uma crônica! Você,
por acaso, tem um cigarro?"
"Sinto muito, não fumo."
Baixando o tom, olhando para os lados.
"E uma ervinha, tem?"
"Puxa vida, não sou chegado."
"Que tipo de intelectual é você?"
"Nenhum! Cronista frustrado, poeta medíocre, músico manco, maestro incapaz de ler partituras: esse c ara sou eu."
Arranco um sorriso do leitor e já sou abordado por um senhor com o mesmo chapeuzinho lusitano de meu avô. Setenta e poucos anos?
"Sou
amigo do Rui, lá do Diário, e te leio todo domingo. To-do do-min-go!
Não acredita, é?! Um dia, pedi que o Rui falasse pra você do quanto eu
gosto dos seus textos, ele não falou? Vim na Flim só pra te ver."
Inacreditável.
Eis a tão esperada glória?! Pergunto nome, idade, vou agradecendo os
tantos elogios, embora eu não mereça nenhum deles.
"Só não gosto quando você fala de... Deus", comenta, com risadinha sacana e me dando um tapinha nas costas.
Que senhor bacana. Por essa, nunca esperava.
"Venho lendo suas crônicas todo domingo", revela uma senhora chamada Luzia, "não perdi a oportunidade de vir te ver."
Pô, melhor que Prêmio Jabuti, Portugal Telecom, Nobel de Literatura.
"Já fui em outros eventos literários em que você estava. Gosto dessas apimentadas que você dá na conversa", diz a doce senhora.
Ainda
estupefato, vou cumprimentando outros leitores. Todos muito gentis,
cordiais, bem-humorados: se, com estas crônicas dominicais, você
consegue carregar leitores para um encontro com Agualusa - este, sim, um
escritor de verdade - então tua missão está cumprida.
Publicado no Diário (18/9/2016)
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