segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O silêncio de Raduan Nassar

Publicado no Correio Braziliense,  em 21/9/2013

Para um escritor recluso, Raduan Nassar é muito vacilão. Até dezembro do ano passado, qualquer um podia descobrir seu telefone e endereço com uma ligeira fuçada no Google: a bendita da internet, alcagueta impiedosa dos discretos literatos. Pessimista, não acreditei no achado.Mais provável, do outro lado da linha, um homônimo anônimo. Liguei umas duas ou três vezes, deu ocupado. E só fui tentar novamente após algumas semanas, nem crendo naquilo, num meio-dia de algum dia da semana.
 — Por favor, o Raduan Nassar.
— É ele, quem fala?
—Mas é o Raduan, do Lavoura arcaica?
— Raduan é o autor; Lavoura, a obra. Quem é?
Apressei a fala. Acho que até gaguejei um pouco tentando me identificar: aluno do Mestrado em Estudos Literários, em Maringá, e aspirante a escritor. Elogio Lavoura arcaica, digo que é bom pacas, que a prosa poética é invejável. Ouço um“obrigado”, seco e ligeiro, do outro lado da linha. Após o elogio, pergunto se ele teve de enfrentar um processo doloroso para encerrar sua curta trajetória literária, de apenas três obras. A resposta vem rápida, à queima-roupa.

“Não é nada doloroso parar de escrever”, revelou o escritor. “Mas eu preciso desligar agora, tá? Estou
muito ocupado”, avisou.

Não dei trégua. Com Raduan Nassar do outro lado da linha telefônica, pedi um conselho. Para mim, para
outros jovens escritores. Ele soltou uma risada meio sem graça, acompanhada de um grunhido sinistro: mescla de ironia e desprezo.“Conselho? Essa palavra até me assusta”, respondeu.

Aproveito o silêncio dele, aproveito que ainda não bateu o telefone na minha cara e indago sobre seu estilo próprio, sua preciosa prosa poética.“Como você fez para se livrar das influências, como alcançou um estilo próprio?”, pergunto. “Cada escritor tem um jeito: vá escrevendo. Se você ainda não encontrou seu estilo próprio, não se preocupe.Você tem quantos anos? Só 24?Você é jovem, ainda vai encontrar o seu caminho. Mas agora eu preciso desligar. Estou realmente muito ocupado. Tudo de bom para você”, diz, cordialmente, batendo o telefone na minha cara.

Em Sampa

“O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor”, escreveu Raduan Nassar, lá pelas tantas, no Lavoura arcaica. E me pego rindo dessa frase quando cruzo a roleta do metrô, levando um exemplar da obra nas mãos.Tempo, no meu caso, prevejo que seja mínimo — se Raduan Nassar descer ao portão do prédio ou, numa inimaginável possibilidade, se permitir que eu, um insignificante leitor desconhecido, suba
ao seu apartamento. Meu maior tesouro, na frente de Raduan Nassar, são as perguntas certeiras: estratégias para prendê-lo, para assegurar algum tempo.

Às três da tarde, o maldito sol de São Paulo não perdoa os poucos pedestres de Pinheiros. Depois de uma boa caminhada,confiro o número e o nome da rua no papel amassado que levo no bolso. Aperto a campainha e pergunto de Raduan Nassar ao porteiro do prédio. “Ele mora aqui, sim. Aguenta aí que vou interfonar para ele”,diz o sujeito,solícito.Depois de um minuto, o porteiro me pergunta de onde eu sou. “Sou um leitor dele, do Paraná”, explico. E aguardo. O sujeito abre o portão e aponta para o interfone: “O Raduan quer falar com você.”
— O que você quer de mim, pergunta o escritor.
—Vim do Paraná para te conhecer. Estou no Mestrado de Literatura.Você pode assinar o meu Lavoura arcaica?
Raduan Nassar solta um resmungo incompreensível do outro lado da linha. E só depois de algum tempo ele diz. “Olha, estou muito ocupado. Muito ocupado mesmo. Eu vou assinar o seu livro, mas será tudo bem rapidinho, tá bom?” Digo que sim, está tudo bom, já vou subir, e o porteiro me avisa, apontando o caminho do elevador, que é no quinto andar. Entro no elevador. “O tempo é o maior tesouro de que um homem
pode dispor”. O cara do meu lado olha o meu exemplar de Lavoura arcaica e adianta que o escritor é gente fina. "Todo fim de semana aparece alguém aqui no prédio. As pessoas aproveitam que estão em
São Paulo e vêm conhecer o Raduan. Às vezes ele atende, às vezes não”, comenta o vizinho.

Com um sorriso no rosto, Raduan abre, silenciosamente, a porta de seu apartamento. Chego agradecendo, “obrigado mesmo por me receber”, esse tipo de coisa. Elogio novamente Lavoura arcaica. Ele me encara, não é um sujeito grande. Mede um pouco mais de 1,60 metros, está vestindo uma camiseta branca, calça bege e sapatos. Prestes a completar 78 anos, em 27 de novembro deste ano, ele está bem conservado. “Você perdeu o seu tempo lendo esse livro”, diz o autor, arrancando uma boa risada nossa, e já vai me apresentando a seu filho, que puxa uma cadeira e senta na sala. “Ali, vamos ali na mesa para eu assinar o livro para você. Estou muito ocupado. Será tudo muito rápido, tudo bem?”

Livros encalhados

Frente a frente com Raduan, falo das minhas desconfianças. “Duvido de que você nunca mais escreveu
um outro livro”, provoco. Ele garante que não. “Eu abandonei a literatura há mais de 30 anos. Nunca mais
escrevi uma linha, nunca mais vou voltar a escrever”, responde, abrindo o livro para iniciar a dedicatória.
“Onde você quer que eu assine?”, pergunta o autor. Peço que assine em qualquer lugar, onde preferir.

Enquanto ele olha a edição, indago sobre Lavoura arcaica. Quando a obra foi lançada, em 1975, ninguém
deu a mínima importância. Os livros ficaram encalhados na casa de Raduan, e ele só virou um ícone da lite-
ratura em 1989, quando foi reeditado pela Companhia das Letras. Pergunto, enquanto Raduan observa aquela edição, se daqui a 50 anos as pessoas ainda vão ouvir falar de Lavoura arcaica.

O escritor abre um sorriso atrás da mesa. Seu filho também sorri. E fecha o livro nas mãos.“A literatura é
imprevisível. Mas acho que daqui a 50 anos ninguém vai mais saber do Lavoura arcaica”, diz, enquanto todos rimos. Mas seu filho, que até agora estava curvado em seu próprio silêncio, rebate a resposta paterna: “Ah, vão saber, sim”, diz. Raduan continua sorrindo, pergunta qual é o meu nome inteiro e já vai rascunhando num pequeno papel, para observar o esqueleto da grafia que, depois, será levada ao livro.

Na pequena sala, não há vestígio algum de literatura. Não há livros nas estantes, não há livros espalhados
pelo chão, aquela não parece a casa de um escritor. A fala de Raduan, concisa e lacônica, também não se parece com a voz de um escritor. Alguns escritores falam por meio da poesia, recorrem a metáforas paridas na hora, comentam, empolgados, os detalhes do processo criativo de determinadas obras: vivem e respiram a literatura diariamente. Não é o caso de Raduan. Não há metáforas em suas falas, nem poesia vazando daquele verbo, mas há o silêncio. Não chega a ser triste nem melancólico, mas é um pouco desconfiado. Tem contundência aquele silêncio.Tem textura aquele silêncio. É o mesmo silêncio que enche, aos berros estridentes, a literatura dele. E aproveito que ele está novamente em silêncio para perguntar sobre seu estilo próprio.

Embora inovadora no Brasil, a prosa fortemente lírica queRaduan se apropriou já fazia sucesso, há anos, em Portugal.Indago se Raul Brandão e os outros autores portugueses influenciaram, de alguma forma, a sua literatura. Aresposta é rápida.“Nunca li Raul Brandão nem os outros autores portugueses para escrever Lavoura arcaica.”

Com Chico Buarque

Pela primeira vez, começo a notar os papéis que estão à minha frente, na mesa de Raduan. São recortes de jornais de várias épocas, não dá para saber exatamente sobre o quê. Leio algo sobre Chico Buarque e Raduan Nassar juntos, em algum evento de literatura. Pergunto sobre esse encontro. “Mostre para ele, filho”, ordena, calmamente e com um sorriso, Raduan.

Então o filho de Raduan ergue a pilha de jornais e tira uma página lá do meio. Meio amarelada pelo tempo, a capa do caderno de cultura de um jornal carioca traz a foto de Chico Buarque e Raduan, lado a lado, sorridentes: dois velhos amigos das letras.

“Eu e o Chico fizemos três leituras. Em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Ele lia trechos do meu livro, Menina a caminho, e eu lia trechos do Estorvo, o primeiro livro do Chico. Para mim, esse é o melhor livro dele. O último ele me mandou, mas não cheguei a ler”, diz Raduan, voltando-se para o seu silêncio e para a dedicatória.

“E o que você acha da literatura brasileira contemporânea?”, pergunto. “A literatura brasileira já não é mais a mesma, está diferente. Não sei dos novos escritores”, diz Raduan, emendando uma pergunta para mim. “Você me disse que está fazendo mestrado. Então, você terá de fazer uma tese, não é?” Digo que sim. Revelo que minha tese será sobre a obra de Dalton Trevisan. Mas que não descarto, num Doutorado, estudar Lavoura arcaica.

Raduan Nassar dá outro sorriso.“Você vai  gastar seu tempo à tôa”, ironiza. E novamente o filho rebate, rindo, a fala do pai.“Faça, sim.Você vai ganhar muito, se fizer”, incentiva o filho. “Aqui está”, diz o escritor, me passando o livro sobre a mesa.“Para Alexandre Gaioto, muito cordialmente, com um abraço do Raduan Nassar”, escreveu o autor, com letras miúdas, típicas de pessoas tímidas e reservadas.

Agradeço a dedicatória, enquanto o escritor se levanta da cadeira e estende a mão.“E, daqui a 50 anos, Raduan, como você vai querer ser lembrado?”, indago. E, pela primeira vez na nossa conversa, ele se
apropria da poesia para soltar a resposta.“Como alguém que sai desse mundo cantando”, diz Raduan, com um sorriso nos lábios, iluminando a sala vazia de literatura.

Ao lado do filho, Raduan me acompanha até a porta. É hora de ir embora. Agradeço a rápida conversa, agradeço a recepção cordial em seu apartamento.“E volte a escrever, poxa”, eu peço. São as minhas últimas palavras: um incentivo à sua prosa poética. Com um sorriso amigável, o escritor nada não diz. Espera eu entrar no elevador e só então fecha a porta, submerso num silêncio de cristaleiras.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

você me olha como se eu fosse
um alien
obcecado pelos seus pés
(minhas mãos em brasa não despertam o mínimo de compaixão)

você me ouve num silêncio estridente
enquanto imploro cada acorde mudo da sua voz
(às vezes levo até quinze dias para decifrar a cor da sua voz)

às vezes você me olha como se eu fosse um arame
um balde cheio de água da torneira da rua
um poste na esquina dessa mesma rua