segunda-feira, 20 de julho de 2015

Ruivas, morenas, escadas, salas, burocracia e berros sertânicos

Debaixo da bandeira da cidade, centenas de estudantes aglomerados com cartazes, punhos fechados, vozes firmes: foi aqui. O povo marchando na Avenida XV de Novembro, entrando pela noite escura, exigindo mais educação, mais saúde, gritando “não é só pelos 15%!”, caramba, há quanto tempo foi isso mesmo, um, dois anos? Tudo isso?

“Lembra?” 

Aqueles protestos organizados pela internet e combinados concomitantemente em diversas cidades, exigindo troca-troca de presidente, cancelamento da Copa do Mundo, extradição de duplas sertanejas, entre outras exigências que o esquecimento soterrou no quintal da memória. Flashes. Selfies. Camisetas de partidos políticos e bandas de rock. A moça com garrafa de vinho.

“Lembra?”

Foi aqui, debaixo da bandeira da cidade, pouco antes de alguém quebrar a vidraça da prefeitura, causando um estardalhaço estridente, todos nós nos afastamos, tentando identificar o autor, mas, naquela altura, o grito de protesto já era outro, e quando eu seguia para a praça, longe do núcleo da gritaria, você, então, cruzava a minha frente, um perfume cítrico, boquinha vermelha, olhinhos roucos das palavras de desordem.

“Lembra?”

Como esquecer uma ruivinha na multidão? Bem que pode ser a mesma, sim, aquela mesma ruiva engajada, uma das musas da “Água agitada”, do Klimt, reflito, enquanto acompanho, com o olhar, a ruivinha saindo da Prefeitura e passando lá longe – quase cinquenta metros? –, apressada, cabisbaixa, cheia de papéis, até entrar num carro de vidros escuros e frear o peito aflito.

“Lembra ou não? Você está com a cara engraçada.”

Grande José Luiz de Araújo. Um dos tantos bons professores que tive na UEM, no curso de Letras.

“E sempre de chapéu!”

“No chapéu cabem todas as minhas mentiras”, respondo, ainda sob o forte impacto da ruivinha – dentes gaguejantes de frio ou emoção? Devo estar um bocado estranho porque o Zé Luiz, que me parou para falar qualquer coisa sobre Pulinópolis, já se despede, diz que vai na outra esquina, rapidinho, mas que, daqui a pouco, a gente se encontra lá dentro da prefeitura, e vou respondendo que sim, claro, seguindo meu caminho sozinho.

Mulheres fatais

As ruivas, vou pensando, não são por acaso. Os pré-rafaelitas ingleses, com suas pinturas simbolistas, e acumulando seguidores na Áustria, Alemanha e Bélgica, foram os responsáveis pela popularização da imagem da mulher ruiva. Gosto da “Água agitada”, com as musas do Klimt retratando a perversidade feminina e a mulher fatal. Como não gostar? No térreo da prefeitura, interrompo o fluxo – ruivas para que te quero.

Culpa de duas caminhonetes com som alto, delas ecoam dois arrochas universitários, com letras grosseiras e infelizes. O gabinete do prefeito fica no primeiro andar. Será o prefeito capaz de ouvir os arrochas sertânicos que emanam dos carros maringaenses agora mesmo, às quatro da tarde desta terça-feira?

Em meio à ruivinha e ao arrocha, tento me concentrar. Paredes cinzentas, um lugar ainda mais melancólico e triste com o tempo nublado lá fora. Calado e avesso à conversa, um velho de roupa acinzentada e olhar lúgubre vaga pelo corredor do térreo, empunhando um sacolão transparente com latas amassadas de refrigerante – se visse vivo, o grande Iberê Camargo faria nova pintura.

Crianças entediadas morrem de silêncio num dos quatro aparelhos, igualmente silenciosos, da ATI (Academia da Terceira Idade). O maior boceja no simulador de caminhada. Não há risos na prefeitura. Quase todo mundo só está aqui porque tem mil e um problemas. Ninguém vem pra cá à toa, para dar uma caminhada aprazível entre papéis, burocracia e processos, determinado a apreciar ambientes diferenciados. Na praça de atendimento, a essa hora sem fila, tem gente com todo o tipo de missão.

Recém-contratada, a ajudante de limpeza Mayara Fernandes, 23, perambulando à caça de vale-transporte. Ela mora em Sarandi e trabalha num colégio da Vila Operária. São quatro ônibus, diariamente, para ir e voltar do trabalho. “Tô com um probleminha. Como eu não tenho conta de luz, água, telefone, não consigo o vale-transporte. Daí, tenho que tirar da boca pra pagar o ônibus e conseguir chegar no trabalho”, comenta.

Recém-formado em Jornalismo, um jovem maringaense tirou carteira de funcionário autônomo - exigência do promissor primeiro emprego - e trabalhou por dois meses numa empresa. Demitido e desiludido com a profissão, resolveu cursar História. Um ano depois, ele se deu conta de que não tinha solicitado o cancelamento da carteira de funcionário autônomo. O resultado? Uma dívida de quase R$ 700 com a prefeitura. “Agora, tenho que cancelar isso o mais rápido possível e parcelar a dívida”, lamenta.

“É um problema atrás do outro, né?”, observa a empresária Bruna Staub, 29. Visivelmente cansada, ela equilibra nos braços a pilha de papéis. “É a sexta vez que venho aqui hoje!”, contabiliza. As idas e vindas são culpa do processo burocrático, iniciado em março deste ano, para que ela possa construir, finalmente, uma casa na Vila Santa Isabel. “A obra ficou embargada porque a prefeitura, há muitos anos, ocupou 50 centímetros do terreno. Entre outras coisas, hoje tive que doar esses centímetros pra Prefeitura, pra que minha casa seja liberada”, conta.

Banheiro de Judas

Sisudo, empunhando pasta e papéis, o engenheiro Jacir Cardoso chega para pegar um de seus projetos, que está, no momento, em avaliação. “Se pudesse, mudaria algumas coisas desse prédio da prefeitura. Veja o banheiro: antigos e sujos. Não parecem aqueles banheiros de rodoviária dos cafundós do Judas?” Desconheço os banheiros dos cafundós do Judas. Mas, realmente, a coisa está feia. Um cheiro desagradável emana dos banheiros masculino e feminino. Acostumada com as tantas fragrâncias, trabalhando estrategicamente de frente para os tronos públicos, a senhorinha da portaria, com seus 65 anos, nem parece se importar tanto com o odor.

Solícita e sorridente – eis o bendito sorriso! –, tenta ajudar todo o tipo de gente perdida, desde outubro passado. Antes, ela dava aulas de artesanato, em escolas integrais, para alunos do Ensino Médio. “O problema é que minhas cordas vocais secaram. Como dar aulas com a voz enroscada? Passei por uma adaptação funcional e me trouxeram pra cá”, resume.

Com fácil adaptabilidade, ela, hoje, já está acostumada aos milhares de setores da prefeitura e diz que gosta do que faz. Lidar com pessoas, um trabalhão danado, não é das missões impossíveis para ela. “Sabe qual é o segredo? Atender da mesma forma como eu gostaria de ser atendida”, revela. “Às vezes, cavo um buracão pro pessoal, pego de um lado, mando pro outro, tento ajudar de toda forma possível.”

Vou penetrando o ventre do prédio, encarando as rampas centrais que levam ao primeiro piso, passando pela Secretaria de Comunicação Social e Secretaria da Fazenda. Os corredores folgam desertos. Dentro das saletas transparentes, homens e mulheres redigem textos, preenchem processos, imprimem arquivos.
Dos corredores você não ouve a risada do japonês gorducho nem o espirro da morena. Sigo. Gabinete do prefeito, portas fechadas. Ninguém à espera. Da rua, nada escuto. Protegido pelas espessas paredes, o prefeito deve trabalhar em paz, a salvo dos berros sertânicos.

Milagres e curas na vila

“O que eu estava te dizendo”, retoma o grande Zé Luiz, já me alcançando no segundo andar, “é que você mostra uma Maringá diferente. Chega a cumprir um papel memorialista. Minha mulher adora os seus textos.”
Estendo um sorriso. Mando um beijo à digníssima esposa. De que valem as tantas tortas linhas sem uma leitora fiel?

“Eu mesmo, que passo com alguma frequência pelo Centro Comercial, nunca tinha notado aqueles detalhes. Suicidas românticos, escritórios misteriosos, cada coisa. Você está preservando essas histórias, perdidas no esquecimento e na morte. Os personagens, o estilo, os temas vibrantes, as suspensões que nutrem a expectativa, diálogos com réplicas breves! Ah, não fosse Gustave Planche, no decênio de 1820, na França, não teríamos esse nosso romance de folhetim aos domingos!”


Agradeço, acumulando elogios debaixo do chapéu. E já no terceiro andar, cruzando a Procuradoria, a Direção de Licitação e os Recursos Humanos, disparo duas frases, de “As Cidades Invisíveis”, do Italo Calvino:

“Nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a escreve. No entanto, há uma relação entre ambos.”

Zé Luiz abre um sorriso.

“Gostaria que você escrevesse uma história... É fantástica. Você sabia que ali em Pulinópolis, distrito de Mandaguaçu, houve o desaparecimento de uma vila de quase mil pessoas, nos anos setenta? Você teria que ir para lá, claro, passar um dia inteiro, mas renderia um bom material. Em 1975, talvez um pouco antes, a vila Allan Kardec recebia pessoas de diversos lugares do País, do Mato Grosso, São Paulo, Minas. Muita gente acreditava que o médico de lá, um médium muito respeitado, era capaz de realizar milagres, curas e salvações. E ele dava aqueles passes, bênção, fazia de tudo.

Os meus pais, que eram de Iguaraçu, vieram para cá. Esse médico construiu até um hospital, dedicado a pessoas com problemas mentais, e a vila chegou a ter pousadas, restaurantes, bares...”

“E como tudo desapareceu?”

“Esse médico, que já morreu há muitos anos, acabou mudando para Sarandi, com a família. E as pessoas que viviam na vila, pouco a pouco foram parar em outras cidades. Como ninguém permaneceu no local, a vila simplesmente desapareceu do mapa. Virou tudo pasto.”

Vou anotando, no bloco de notas, os detalhes da história. O contista não é, como disse Baudelaire, “o pintor da vida moderna?” Ali mesmo, pincelo o futuro quadro. Cheio de pastas e de olho no relógio, o Zé Luiz se despede. Entretido com ruivas e com o sumiço da vila Allan Kardec, até esqueci de perguntar o que ele foi fazer ali. Devia ser outro desses problemões.

No último andar, nada diferente. O mesmo chão calado. As mesmas saletas envidraçadas. Triste, não esbarrar em outra ruiva. Secretaria de Obras. Secretaria de Planejamento. Secretaria do Meio Ambiente. Funcionários concentradíssimos à espera dos próximos problemas, filas livrinhas e banquetas vazias – não há melhor dia para ir à prefeitura.

Ali, encontro uma morena de 28 anos. Advogada, nascida em Maringá, há dois anos morando em São Paulo. Em passagem-relâmpago pela cidade, aproveitou para cumprimentar uma velha amiga na prefeitura. Vamos descendo, juntos, pelo ventre do prédio.

De barco em Bertioga

“No escritório, somos só em três: eu, minha chefe e a secretária. Quer dizer, agora tudo mudou.”
Olhinhos castanhos. Blusinha branca. Saltinho preto. Frases aceleradas, dessas que escancaram o armário a desconhecidos. Meu tipo favorito.

“Na sexta-feira passada, minha chefe disse que era pra eu ensinar um monte de coisas pra secretária, porque ela estava com tempo ocioso demais e seria bom que fizesse umas atividades mais simples.”

“...”

“Ou seja: basicamente, qualquer coisa que não precise de OAB.”

Tão bom encontrar moça que se abre.

“Na segunda-feira de manhã, saí pra pegar uns processos na Justiça do Trabalho e disse à secretária que à tarde ensinaria alguns negócios diferentes. Quarenta minutos depois, eu volto e a minha chefe tinha demitido a secretária. Sabe qual justificativa? Disse que precisava ‘diminuir o escritório’. Pô, o escritório só tinha três pessoas!”

Seu riso, a última camada de açúcar da filhó quentinha e cheia de canela.

Além da crise decepando os colegas de trabalho, a advogada ainda tem que lidar com um problema ainda mais delicado e inusitado, entre rimas de ventos e velas, vidas que vem e que vai.

“Nosso escritório praticamente trabalha para um único grande cliente. Empresário cinquentão, solteiro, até que bonito pra idade. Agora, por meio da minha chefe, ele vem me sondando pra passar um final de semana ao seu lado, viajando de barco, em Bertioga. Já imaginou? Sai sexta e volta domingo?”

Qual amor não é louca viagem? Quem nunca navegou nas ondas turbulentas da paixão? O azul da cor do mar não te remete à inocência perdida? Despacho malícias cheias de clichês.

“Me parece romântico...”

“Esse é o problema! Tenho namorado sério, moramos juntos há dois anos, somos praticamente casados. Se eu entro nesse barco, meu relacionamento naufraga em alto-mar. Se não entro, corro o risco de ser despedida. Que rolo, viu?”

Qual grande amor não parece outro neurótico enredo do Woody Allen? Quando me dou conta, já estamos no térreo. A voz acelerada agradece a conversa.

“Melhor que a minha terapia.”

Ligeira, deserta pela prefeitura e encara o toró, com o inseparável guarda-chuva preto. A chuva encharca a gripe da criança, inunda o tédio da tarde e agride a velha imóvel na esquina – outro maldito motorista explodindo poças d’água.

Publicado no Diário (19/7/2015)

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Crimes, corpo, chifres e outras histórias

Roberto Silva entra na Redação de O Diário às dez para as duas. O homem que já resolveu casos antes mesmo da polícia, chegando a arrancar confissões de experientes criminosos, tudo em primeira mão, mede um metro e setenta e pouco.

Magrelo, usa tons sóbrios: calça jeans azul escura e camisa jeans da mesma cor. Nos pés, botinas pretas feito a morte – talvez, dessas impermeáveis. O mito do jornalismo policial maringaense tem sua mesa num canto da Redação, debaixo do ar-condicionado e a três passos da cruz boiando na parede. Acessa os e-mails e vasculha, ligeiro, um e outro site. Basta. Pega um café.

Conversa com três jornalistas, exibe no celular hipermoderno as fotos de um corpo banhado em sangue, arrancando um “Deus me livre, que horror!”, de uma delicada editora japonesa, e repete a piada que vem disparando, diariamente, há 32 anos nos corredores do Diário, perguntando se alguém, por ali, “tem um furo pra dar”. E, como sempre, por incrível que pareça, a velha piada minimalista funciona: não há riso que resista ao trocadilho sacana. Pense errado, não. Furo, caro leitor, é só um jargão jornalístico para uma notícia exclusiva.


“Tô indo pra delega. Quer mandar notícia pra algum preso?”


A moçoila responde com uma boa risada – a cabeça negando até a alma.


“Então, vamos nessa, Gaioto.”


Não é qualquer um que tem o aval de Roberto Silva para mergulhar, ao seu lado, no submundo do crime. Avesso a exposições midiáticas, o jornalista de 55 anos tem um lado meio recluso. “Meu sonho era fazer uma matéria na TV com esse cara. Mas ele nunca aceita. Não gosta de aparecer”, comentaria, horas mais tarde, o repórter de TV Jota Junior.


Entramos num Palio do jornal. Saindo da empresa, ele berra ao porteiro:


“Quer mandar recado pro Tião Coca-Litro?”


O porteiro cai na risada, o dedo indicando jamais. Nunca que ele quer envolvimento com o tal Tião, famigerado protagonista do universo piadístico de Roberto Silva. “Faz trinta anos que o Tião tá lá trancado, sem sexo, na solitária. Quer passar a noitada com ele, Gaioto?!”


De tudo vai rolar


Bem casado há vinte anos, Roberto Silva gosta de Bob Dylan, Rolling Stones, Pink Floyd. Não suporta Beatles nem João Gilberto. Cervejas, cachaças e uísques também não fazem sua praia. Enquanto acelera nas ruas maringaenses, rumo à 9ª SDP (Subdivisão de Polícia), vai adiantando o que poderemos esbarrar pela frente.


“É sempre uma incógnita. Pode ter muita coisa, e também pode não ter nada. E prepare-se: você vai ver muita bobagem. Gente que registra boletim de ocorrência porque foi xingada no Facebook e um monte de outras ocorrências à toa, de roubinho besta e trecos amalucados. Aliás, 70% dos crimes não existiriam se a população fosse mais cuidadosa com seu próprio patrimônio.

Por exemplo: o cara viaja pra praia e gasta R$ 300, todo o dia, bebendo cerveja e comendo camarão de frente pro mar. Mas deixa a casa dele, que não tem grade nas janelas nem câmera nem muro alto, toda abandonada. Daí alguém rouba a casa, e o sujeito ainda bota a culpa na polícia”, comenta, antes de frear bruscamente, numa esquina próxima da Avenida Colombo, para uma senhora serelepe cruzar a faixa de pedestres.

“Gosto dos velhinhos. Da molecada, não: moleque eu passo por cima”, brinca.
 
Chegamos à delegacia em inacreditáveis nove minutos. Rostos tristes em pé, sentados, famílias inteiras debaixo da árvore fugindo da fúria solar. E já estamos entrando na delegacia, quando toca o celular dele. Durante a ligação, Roberto Silva assume as mesmas características que o grande Stefan Zweig notou na estátua que Rodin fez de Balzac: a surpresa de alguém arrancado bruscamente do céu para cair numa realidade que já havia esquecido.

O olhar de uma grandiosidade aterradora que se assemelha a um grito. Aquela expressão fisionômica de quem é sacudido em pleno sono. Aquele aspecto de sonâmbulo, junto ao qual se pronuncia brutalmente o nome. O mito do jornalismo policial dá meia volta. E, correndo em direção ao carro, começa a dizer que uma de suas fontes passou os detalhes de um corpo, encontrado, nesse exato momento, às margens do Ribeirão Morangueiro, entre os Jardins Alvorada e Oásis, na zona norte. Aperto o cinto, tranco a porta. Roberto Silva volta a pisar fundo nas ruas maringaenses.

Córrego mortífero


O grito estridente da mulher atravessa a Avenida Alexandre Rasgulaeff, aguça a curiosidade do marido e das pessoas em volta, quem estava em dúvida vai se aproximando: “Tá morto, tá morto, vem ver!”. Adolescentes, tiazonas, velhos, pedreiros sujos de tinta e moçoilas com roupinhas de ginástica se engalfinham na grade que separa a calçada do início do matagal, caçando com olhares lá em baixo, no córrego, vestígios do corpo, abraçado a um tronco de árvore, na margem do rio. Um bebê de um ano, no colo do pai, e o cachorro nos braços da velha são os únicos desinteressados no morto.


“Quero ver tudo bem de perto: daqui só saio depois do IML.”


“Deve ser outro craquento.”


“Não, parece boneco de Judas?”


“Vão ter que abrir uma clareira, ó.”


Quem tem celular aproveita para enquadrar o corpo em diferentes ângulos. “Vou passar um filtro e já vou postar no Facebook”, comenta, alegrinha, a dona de casa Marisa Fenaco, 40. “Isso não é meio tétrico?”, pergunto.


Ela abre um sorrisão: “Claro que não. Todo mundo faz!”


Na cena do crime, Roberto Silva é saudado por repórteres, cinegrafistas e bombeiros: “Grande Roberto!”, “Chegou o cara!”, “Roberto Silva, o mito!”. Gente boa, retribui os tantos cumprimentos. Ouve moradores, entrevista bombeiros e policiais: quase trinta minutos. Na calçada, concede rápida entrevista sobre o descobrimento do corpo para um locutor de voz empostada, que estende o celular e pede detalhes, ao vivo, para alguma rádio da cidade.


“Uma mão lava a outra. Nesse meio, você tem que ser amigo de todo mundo.”


A analogia não é só recurso metafórico. No meio da confusão de gente e polícia e curiosos e bombeiros, o próprio Roberto Silva surge, fora do enfoque da câmera, empunhando o microfone de uma TV local e entrevistando o velho que achou o corpo no córrego: cinco perguntas, rapidinho. “Esse câmera, aí, é meu filho. Você já conhecia ele?”


Com 30 anos nas costas e onze de jornalismo, Robertinho, o cinegrafista, é igualmente gente fina – bom humor é, entre os Silvas, um atavismo. Engraçado. O filho parece mais velho que o próprio pai. Vampiro que se alimenta do sangue no submundo maringaense, Roberto Silva assim mantém sua jovialidade? Tá explicado.


“Segundo a polícia, esse cadáver está aqui há, no máximo, 72 horas. Ainda não há informações se há marcas de violência ou perfurações de faca ou tiro. O sujeito usava blusa. Isso pode indicar que ele morreu à noite, já que, nas últimas 72 horas, as manhãs e as tardes estavam quentes; e as noites, geladas.”

Roberto Silva termina de passar as informações por telefone para a repórter de odiario.com. Última olhada no corpo, ao longe, e arrisca a conclusão: “Aqui perto, há uns mil metros, tem um conhecido ponto de drogas, bem num córrego, relativamente fundo. Esse corpo está abraçado ao galho, parece que o cara tentou se salvar. Acho que veio de lá. Até porque o córrego, no ponto onde estamos, é rasinho: ninguém, por mais chapado que esteja, conseguiria se afogar. Pode ser assassinato. Vamos ver o que o pessoal da polícia vai dizer.”


Entramos no carro. Hora de voltar à delegacia de polícia. No meio do caminho, próximo ao Hospital Universitário, Roberto Silva aponta: bem ali, há alguns anos, morava uma família riquíssima. Muita briga, ódio, até que um adulto morreu sozinho. “Ninguém reclamou o corpo. Só acharam meses depois. O cheiro era insuportável e restava pouca coisa: os ratos tinham devorado o corpo inteiro. Uma cena horrível.”


Acesso ao proibido


Na delegacia, Roberto Silva é de casa. Vai entrando em salas, salinhas e saletas – para ele não valem as centenas de avisos em letras garrafais: PROIBIDO: SOMENTE POLICIAIS. Cumprimenta delegados, moçoilas, investigadores, distribui dois exemplares do Diário para alguém, dá tapinhas nas costas do famoso sargento e conta suas tantas piadas. A passos céleres, é até difícil acompanhá-lo, disparado lá na frente. Nos corredores labirínticos, surge a carceragem. Epa, não foi aqui que, mês passado, decapitaram um detento? O perfume de cafezinho e papelada, esquecido nas saletas lá atrás, dá lugar a um forte cheiro de merda e mijo. No setor de triagem, apenas três das cinco celas têm banheiros.


Lamentos do cárcere


“Cadeia é desumano. Não tô conseguindo nem comer, cara, porque tem um cocozão aqui na cela”, reclama o preso lá de dentro. Roberto Silva chega junto. Ouve a história do garoto: 23 anos, vendendo crack na quebrada, arrependidíssmo. “Não faz mais isso, pô, cê tá acabando com a sua vida”, aconselha o jornalista.

Da carceragem encardida tocamos para outro canto. Abrindo e fechando portas, perambulando em corredores e bebedouros – ai, que saudades das minhas musas maringaenses! -, Roberto Silva entra e sai de salas que abrem espaço para outras salas menores, e de repente é como estar perambulando nos corredores claustrofóbicos e infinitos do “Processo”, do Kafka.


“Tem alguma coisa interessante por aí?”, ele vai perguntando, em cada sala, insaciável colecionador de nãos.


Empunhando o monte de BOs, Roberto Silva vasculha possíveis matérias. Estelionatos, ameaças, golpe de falso prêmio, gente que se lasca vendendo moto e não faz a transferência do veículo, alguém reclama do carro riscado nalguma rua da cidade e outro assume não pagar pensão e vai até a delegacia registrar a ameaça jurada pela sogra.

Depois de meter seu carro numa estrada rural, num canto da zona norte, e encontrar um lamaçal à beça pela frente, o revoltado motorista maringaense registrou um BO porque tinha muito barro - quem diria?! - na estrada rural. Depois da noitada regada a cachaça e outros pileques, um bêbado surgiu na polícia para registrar o grandessíssimo roubo de R$ 2. Segundo o depoimento da vítima, um desconhecido lhe afanou a dinheirança, pegando-o desprevenido em sua boemia.


“O bêbado, que teve seus R$ 2 roubados, gastou R$ 6 para se locomover de ônibus até a 9ª SDP, acredita?! Tá vendo que loucura é isso? Olha esse, ó. A mulher agrediu o marido verbal e fisicamente e ainda quebrou o para-brisa do carro dele. Quer outro? Uma mulher diz estar sendo caluniada e jura que as fotos nuas circulando no WhatsApp não são dela, diferentemente do que tão comentando. Agora, a polícia vai acionar escrivão, cartorário, promotor e mais um monte de gente pra investigar essa besteira do celular, ver quem postou, primeiro, a tal foto e quem tá caluniando a moça. Esses casinhos, aí, besteiras de internet, custam cada um, cerca de R$ 3 mil para o contribuinte”, diz.


Nessa hora, Roberto Silva recebe de alguém um bolo de páginas: penca de BO’s de desaparecimentos. Num banco da delegacia, ele vai separando os perfis que se aproximam do morto encontrado no córrego e passa a ligar para as famílias. Sozinho, correndo contra o tempo, à caça da identificação do corpo.


“Tenho uma história boa pra você”, avisa um policial, chegando junto, dando risada.“Dia desses, veio uma japonesinha de uns sessenta e poucos anos, já velhinha, acima de qualquer suspeita, sabe? Registrou um BO. Ela chifrava o marido com um garotão de vinte e poucos anos, e o marido descobriu. Com a traição, o marido nem se importou. O problema é que ele descobriu, também, que a velha tinha dado R$ 20 mil pro Ricardão. Revoltado, o marido desceu a mão na esposa e, agora, vai responder pelo crime, enquadrado na Lei Maria da Penha”, relata o policial, aos risos.


Depois de três ou quatro ligações, ele ainda não conseguiu identificar o sujeito. Embora pareça alheio à conversa, absorto na investigação, Roberto Silva dá uma boa risada e emenda: “Se você for um corno, então, que seja um corno manso!”. Fica a lição.
 
Abandonando os BO’s, corremos por outros departamentos. “Tem algum furo pra dar?”, pergunta Roberto Silva. Mais risadas de figurões – não é aquele sargento famoso do YouTube? Passamos pelas saletas de interrogatório. Olhares vigilantes, armas à vista, molecões ainda imberbes, com pés e mãos algemados, respondendo por assassinatos, tráfico de drogas e o diabo.

No corredor, encontramos Jota Junior, repórter de TV, de voz empostada e cabelo penteadinho. “O Roberto tem um jeito especial: ele conversa com o criminoso como se conhecesse o sujeito há uns 300 anos. E, claro, tem sua malandragem. Ele chega assim: ‘Ô, fulano, sei que você acariciou a criança, passou a mão nela, estuprou mesmo, e só depois foi estuprar a mãe’. Daí o suspeito responde, como se conversasse com um amigo: ‘Peraí, a criança não! Só estuprei a velha!’”, comenta.


“O Roberto é do tempo em que não tinha celular nem internet. Então, o jornalista tinha a informação, um dia antes, por exemplo, que um grupo de Sem Terra iria invadir, no dia seguinte, no horário tal, alguma fazenda. O Roberto tinha que ir pra essa fazenda e fazer a matéria. E se não tivesse a tal invasão? E se fosse trote? Ele tinha que arranjar outra pauta, em cima da hora, para não voltar de mãos vazias pro Diário. Sabe o que ele é? Um gênio”, avalia.


Gente fina, o repórter é mais um dos tantos alunos de Roberto Silva. “Ele é uma escola. Agora há pouco, no caso do corpo no córrego. Não é só o corpo que importa. O velho que achou o corpo, sabe? Quando bati o olho, vi que o velho estava com algumas folhas na cabeça e a calça suja de barro. Então, perguntei pro velho se ele desceu até o córrego pra ver o corpo de perto. E o velho comentou que viu, sim, mas por acaso. Todo o dia, não lembro há quantos anos, esse velho vai pra beira do córrego regar a plantinha que ele tem ali na margem. Mesmo com a chuvarada que deu ontem, olha só!, ele estava lá, para regar a tal plantinha. Com esses detalhes, consegui humanizar uma história que, inicialmente, era só mais um corpo descoberto. No final das contas, mostrei um pouco daquela região e do cotidiano de seus moradores. Quem me ensinou tudo isso foi ele .”


Quando me dou conta, Roberto Silva já está em outra sala, tomando notas de um caso de estelionato e de uma vistoria que será feita não sei por quem, na carceragem. Sigo seus passos, vamos saindo. Muitas armas, risadas, alguém notifica o roubo de um vídeo game. Na frente da delegacia, quase cinco da tarde, os primeiros minutos em que Roberto Silva está, finalmente, um pouco menos acelerado. “Viu que correria? Tô o dia inteiro querendo mijar, e nem tive tempo”, revela, rindo.


E o banheiro espera mais um pouco. O trabalho ainda não acabou. A escrita, aliás, nem começou. Cinco e quinze da tarde, chegamos ao jornal. Roberto Silva invade a Redação e vai comentando, em voz alta, no léxico da juventude, todo os detalhes do morto, até o momento sem indícios de assassinato, além do caso do estelionatário e umas outras ideias que, se mexer bem, podem virar tantas matérias. O papo com o editor-chefe, no meio da Redação, dura menos de cinco minutos. Antes de seguir para o computador, Roberto Silva dá um berro: “E vocês não conversem comigo nos próximos trinta minutos, hein!”
Furiosos, seus dedos arquitetam histórias, personagens, detalhes, com uma rapidez impressionante. Quieto e compenetrado, desafiando o tempo. Encaro Roberto Silva, novamente, pela última vez. Ele sabe que tenho um livro de 223 páginas sobre suas histórias. Amanhã de manhã, quantos leitores não vão ler e tresler as linhas do seu corpo?


Ainda na Redação, me dou conta de que talvez - assim como aconteceu com o Machadinho -, só depois de quatro décadas de sua morte a posteridade consiga traçar, de maneira consideravelmente satisfatória, o perfil humano desse sujeito cheio de piadas minimalistas e dedos ágeis, obcecado pelo processo de investigação e pela escrita: o gênio multiplicado que é o mito Roberto Silva.

Publicado no Diário (5/7/2015)