segunda-feira, 20 de julho de 2015

Ruivas, morenas, escadas, salas, burocracia e berros sertânicos

Debaixo da bandeira da cidade, centenas de estudantes aglomerados com cartazes, punhos fechados, vozes firmes: foi aqui. O povo marchando na Avenida XV de Novembro, entrando pela noite escura, exigindo mais educação, mais saúde, gritando “não é só pelos 15%!”, caramba, há quanto tempo foi isso mesmo, um, dois anos? Tudo isso?

“Lembra?” 

Aqueles protestos organizados pela internet e combinados concomitantemente em diversas cidades, exigindo troca-troca de presidente, cancelamento da Copa do Mundo, extradição de duplas sertanejas, entre outras exigências que o esquecimento soterrou no quintal da memória. Flashes. Selfies. Camisetas de partidos políticos e bandas de rock. A moça com garrafa de vinho.

“Lembra?”

Foi aqui, debaixo da bandeira da cidade, pouco antes de alguém quebrar a vidraça da prefeitura, causando um estardalhaço estridente, todos nós nos afastamos, tentando identificar o autor, mas, naquela altura, o grito de protesto já era outro, e quando eu seguia para a praça, longe do núcleo da gritaria, você, então, cruzava a minha frente, um perfume cítrico, boquinha vermelha, olhinhos roucos das palavras de desordem.

“Lembra?”

Como esquecer uma ruivinha na multidão? Bem que pode ser a mesma, sim, aquela mesma ruiva engajada, uma das musas da “Água agitada”, do Klimt, reflito, enquanto acompanho, com o olhar, a ruivinha saindo da Prefeitura e passando lá longe – quase cinquenta metros? –, apressada, cabisbaixa, cheia de papéis, até entrar num carro de vidros escuros e frear o peito aflito.

“Lembra ou não? Você está com a cara engraçada.”

Grande José Luiz de Araújo. Um dos tantos bons professores que tive na UEM, no curso de Letras.

“E sempre de chapéu!”

“No chapéu cabem todas as minhas mentiras”, respondo, ainda sob o forte impacto da ruivinha – dentes gaguejantes de frio ou emoção? Devo estar um bocado estranho porque o Zé Luiz, que me parou para falar qualquer coisa sobre Pulinópolis, já se despede, diz que vai na outra esquina, rapidinho, mas que, daqui a pouco, a gente se encontra lá dentro da prefeitura, e vou respondendo que sim, claro, seguindo meu caminho sozinho.

Mulheres fatais

As ruivas, vou pensando, não são por acaso. Os pré-rafaelitas ingleses, com suas pinturas simbolistas, e acumulando seguidores na Áustria, Alemanha e Bélgica, foram os responsáveis pela popularização da imagem da mulher ruiva. Gosto da “Água agitada”, com as musas do Klimt retratando a perversidade feminina e a mulher fatal. Como não gostar? No térreo da prefeitura, interrompo o fluxo – ruivas para que te quero.

Culpa de duas caminhonetes com som alto, delas ecoam dois arrochas universitários, com letras grosseiras e infelizes. O gabinete do prefeito fica no primeiro andar. Será o prefeito capaz de ouvir os arrochas sertânicos que emanam dos carros maringaenses agora mesmo, às quatro da tarde desta terça-feira?

Em meio à ruivinha e ao arrocha, tento me concentrar. Paredes cinzentas, um lugar ainda mais melancólico e triste com o tempo nublado lá fora. Calado e avesso à conversa, um velho de roupa acinzentada e olhar lúgubre vaga pelo corredor do térreo, empunhando um sacolão transparente com latas amassadas de refrigerante – se visse vivo, o grande Iberê Camargo faria nova pintura.

Crianças entediadas morrem de silêncio num dos quatro aparelhos, igualmente silenciosos, da ATI (Academia da Terceira Idade). O maior boceja no simulador de caminhada. Não há risos na prefeitura. Quase todo mundo só está aqui porque tem mil e um problemas. Ninguém vem pra cá à toa, para dar uma caminhada aprazível entre papéis, burocracia e processos, determinado a apreciar ambientes diferenciados. Na praça de atendimento, a essa hora sem fila, tem gente com todo o tipo de missão.

Recém-contratada, a ajudante de limpeza Mayara Fernandes, 23, perambulando à caça de vale-transporte. Ela mora em Sarandi e trabalha num colégio da Vila Operária. São quatro ônibus, diariamente, para ir e voltar do trabalho. “Tô com um probleminha. Como eu não tenho conta de luz, água, telefone, não consigo o vale-transporte. Daí, tenho que tirar da boca pra pagar o ônibus e conseguir chegar no trabalho”, comenta.

Recém-formado em Jornalismo, um jovem maringaense tirou carteira de funcionário autônomo - exigência do promissor primeiro emprego - e trabalhou por dois meses numa empresa. Demitido e desiludido com a profissão, resolveu cursar História. Um ano depois, ele se deu conta de que não tinha solicitado o cancelamento da carteira de funcionário autônomo. O resultado? Uma dívida de quase R$ 700 com a prefeitura. “Agora, tenho que cancelar isso o mais rápido possível e parcelar a dívida”, lamenta.

“É um problema atrás do outro, né?”, observa a empresária Bruna Staub, 29. Visivelmente cansada, ela equilibra nos braços a pilha de papéis. “É a sexta vez que venho aqui hoje!”, contabiliza. As idas e vindas são culpa do processo burocrático, iniciado em março deste ano, para que ela possa construir, finalmente, uma casa na Vila Santa Isabel. “A obra ficou embargada porque a prefeitura, há muitos anos, ocupou 50 centímetros do terreno. Entre outras coisas, hoje tive que doar esses centímetros pra Prefeitura, pra que minha casa seja liberada”, conta.

Banheiro de Judas

Sisudo, empunhando pasta e papéis, o engenheiro Jacir Cardoso chega para pegar um de seus projetos, que está, no momento, em avaliação. “Se pudesse, mudaria algumas coisas desse prédio da prefeitura. Veja o banheiro: antigos e sujos. Não parecem aqueles banheiros de rodoviária dos cafundós do Judas?” Desconheço os banheiros dos cafundós do Judas. Mas, realmente, a coisa está feia. Um cheiro desagradável emana dos banheiros masculino e feminino. Acostumada com as tantas fragrâncias, trabalhando estrategicamente de frente para os tronos públicos, a senhorinha da portaria, com seus 65 anos, nem parece se importar tanto com o odor.

Solícita e sorridente – eis o bendito sorriso! –, tenta ajudar todo o tipo de gente perdida, desde outubro passado. Antes, ela dava aulas de artesanato, em escolas integrais, para alunos do Ensino Médio. “O problema é que minhas cordas vocais secaram. Como dar aulas com a voz enroscada? Passei por uma adaptação funcional e me trouxeram pra cá”, resume.

Com fácil adaptabilidade, ela, hoje, já está acostumada aos milhares de setores da prefeitura e diz que gosta do que faz. Lidar com pessoas, um trabalhão danado, não é das missões impossíveis para ela. “Sabe qual é o segredo? Atender da mesma forma como eu gostaria de ser atendida”, revela. “Às vezes, cavo um buracão pro pessoal, pego de um lado, mando pro outro, tento ajudar de toda forma possível.”

Vou penetrando o ventre do prédio, encarando as rampas centrais que levam ao primeiro piso, passando pela Secretaria de Comunicação Social e Secretaria da Fazenda. Os corredores folgam desertos. Dentro das saletas transparentes, homens e mulheres redigem textos, preenchem processos, imprimem arquivos.
Dos corredores você não ouve a risada do japonês gorducho nem o espirro da morena. Sigo. Gabinete do prefeito, portas fechadas. Ninguém à espera. Da rua, nada escuto. Protegido pelas espessas paredes, o prefeito deve trabalhar em paz, a salvo dos berros sertânicos.

Milagres e curas na vila

“O que eu estava te dizendo”, retoma o grande Zé Luiz, já me alcançando no segundo andar, “é que você mostra uma Maringá diferente. Chega a cumprir um papel memorialista. Minha mulher adora os seus textos.”
Estendo um sorriso. Mando um beijo à digníssima esposa. De que valem as tantas tortas linhas sem uma leitora fiel?

“Eu mesmo, que passo com alguma frequência pelo Centro Comercial, nunca tinha notado aqueles detalhes. Suicidas românticos, escritórios misteriosos, cada coisa. Você está preservando essas histórias, perdidas no esquecimento e na morte. Os personagens, o estilo, os temas vibrantes, as suspensões que nutrem a expectativa, diálogos com réplicas breves! Ah, não fosse Gustave Planche, no decênio de 1820, na França, não teríamos esse nosso romance de folhetim aos domingos!”


Agradeço, acumulando elogios debaixo do chapéu. E já no terceiro andar, cruzando a Procuradoria, a Direção de Licitação e os Recursos Humanos, disparo duas frases, de “As Cidades Invisíveis”, do Italo Calvino:

“Nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a escreve. No entanto, há uma relação entre ambos.”

Zé Luiz abre um sorriso.

“Gostaria que você escrevesse uma história... É fantástica. Você sabia que ali em Pulinópolis, distrito de Mandaguaçu, houve o desaparecimento de uma vila de quase mil pessoas, nos anos setenta? Você teria que ir para lá, claro, passar um dia inteiro, mas renderia um bom material. Em 1975, talvez um pouco antes, a vila Allan Kardec recebia pessoas de diversos lugares do País, do Mato Grosso, São Paulo, Minas. Muita gente acreditava que o médico de lá, um médium muito respeitado, era capaz de realizar milagres, curas e salvações. E ele dava aqueles passes, bênção, fazia de tudo.

Os meus pais, que eram de Iguaraçu, vieram para cá. Esse médico construiu até um hospital, dedicado a pessoas com problemas mentais, e a vila chegou a ter pousadas, restaurantes, bares...”

“E como tudo desapareceu?”

“Esse médico, que já morreu há muitos anos, acabou mudando para Sarandi, com a família. E as pessoas que viviam na vila, pouco a pouco foram parar em outras cidades. Como ninguém permaneceu no local, a vila simplesmente desapareceu do mapa. Virou tudo pasto.”

Vou anotando, no bloco de notas, os detalhes da história. O contista não é, como disse Baudelaire, “o pintor da vida moderna?” Ali mesmo, pincelo o futuro quadro. Cheio de pastas e de olho no relógio, o Zé Luiz se despede. Entretido com ruivas e com o sumiço da vila Allan Kardec, até esqueci de perguntar o que ele foi fazer ali. Devia ser outro desses problemões.

No último andar, nada diferente. O mesmo chão calado. As mesmas saletas envidraçadas. Triste, não esbarrar em outra ruiva. Secretaria de Obras. Secretaria de Planejamento. Secretaria do Meio Ambiente. Funcionários concentradíssimos à espera dos próximos problemas, filas livrinhas e banquetas vazias – não há melhor dia para ir à prefeitura.

Ali, encontro uma morena de 28 anos. Advogada, nascida em Maringá, há dois anos morando em São Paulo. Em passagem-relâmpago pela cidade, aproveitou para cumprimentar uma velha amiga na prefeitura. Vamos descendo, juntos, pelo ventre do prédio.

De barco em Bertioga

“No escritório, somos só em três: eu, minha chefe e a secretária. Quer dizer, agora tudo mudou.”
Olhinhos castanhos. Blusinha branca. Saltinho preto. Frases aceleradas, dessas que escancaram o armário a desconhecidos. Meu tipo favorito.

“Na sexta-feira passada, minha chefe disse que era pra eu ensinar um monte de coisas pra secretária, porque ela estava com tempo ocioso demais e seria bom que fizesse umas atividades mais simples.”

“...”

“Ou seja: basicamente, qualquer coisa que não precise de OAB.”

Tão bom encontrar moça que se abre.

“Na segunda-feira de manhã, saí pra pegar uns processos na Justiça do Trabalho e disse à secretária que à tarde ensinaria alguns negócios diferentes. Quarenta minutos depois, eu volto e a minha chefe tinha demitido a secretária. Sabe qual justificativa? Disse que precisava ‘diminuir o escritório’. Pô, o escritório só tinha três pessoas!”

Seu riso, a última camada de açúcar da filhó quentinha e cheia de canela.

Além da crise decepando os colegas de trabalho, a advogada ainda tem que lidar com um problema ainda mais delicado e inusitado, entre rimas de ventos e velas, vidas que vem e que vai.

“Nosso escritório praticamente trabalha para um único grande cliente. Empresário cinquentão, solteiro, até que bonito pra idade. Agora, por meio da minha chefe, ele vem me sondando pra passar um final de semana ao seu lado, viajando de barco, em Bertioga. Já imaginou? Sai sexta e volta domingo?”

Qual amor não é louca viagem? Quem nunca navegou nas ondas turbulentas da paixão? O azul da cor do mar não te remete à inocência perdida? Despacho malícias cheias de clichês.

“Me parece romântico...”

“Esse é o problema! Tenho namorado sério, moramos juntos há dois anos, somos praticamente casados. Se eu entro nesse barco, meu relacionamento naufraga em alto-mar. Se não entro, corro o risco de ser despedida. Que rolo, viu?”

Qual grande amor não parece outro neurótico enredo do Woody Allen? Quando me dou conta, já estamos no térreo. A voz acelerada agradece a conversa.

“Melhor que a minha terapia.”

Ligeira, deserta pela prefeitura e encara o toró, com o inseparável guarda-chuva preto. A chuva encharca a gripe da criança, inunda o tédio da tarde e agride a velha imóvel na esquina – outro maldito motorista explodindo poças d’água.

Publicado no Diário (19/7/2015)

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