Debaixo da bandeira da cidade, centenas de estudantes aglomerados com cartazes, punhos fechados, vozes firmes: foi aqui. O povo marchando na Avenida XV de Novembro, entrando pela noite escura, exigindo mais educação, mais saúde, gritando “não é só pelos 15%!”, caramba, há quanto tempo foi isso mesmo, um, dois anos? Tudo isso?
“Lembra?”
Aqueles protestos organizados pela internet e combinados
concomitantemente em diversas cidades, exigindo troca-troca de
presidente, cancelamento da Copa do Mundo, extradição de duplas
sertanejas, entre outras exigências que o esquecimento soterrou no
quintal da memória. Flashes. Selfies. Camisetas de partidos
políticos e bandas de rock. A moça com garrafa de vinho.
“Lembra?”
Foi aqui, debaixo da bandeira da cidade, pouco antes de alguém
quebrar a vidraça da prefeitura, causando um estardalhaço
estridente, todos nós nos afastamos, tentando identificar o autor,
mas, naquela altura, o grito de protesto já era outro, e quando eu
seguia para a praça, longe do núcleo da gritaria, você, então,
cruzava a minha frente, um perfume cítrico, boquinha vermelha,
olhinhos roucos das palavras de desordem.
“Lembra?”
Como esquecer uma ruivinha na multidão? Bem que pode ser a mesma,
sim, aquela mesma ruiva engajada, uma das musas da “Água agitada”,
do Klimt, reflito, enquanto acompanho, com o olhar, a ruivinha saindo
da Prefeitura e passando lá longe – quase cinquenta metros? –,
apressada, cabisbaixa, cheia de papéis, até entrar num carro de
vidros escuros e frear o peito aflito.
“Lembra ou não? Você está com a cara engraçada.”
Grande José Luiz de Araújo. Um dos tantos bons professores que
tive na UEM, no curso de Letras.
“E sempre de chapéu!”
“No chapéu cabem todas as minhas mentiras”, respondo, ainda
sob o forte impacto da ruivinha – dentes gaguejantes de frio ou
emoção? Devo estar um bocado estranho porque o Zé Luiz, que me
parou para falar qualquer coisa sobre Pulinópolis, já se despede,
diz que vai na outra esquina, rapidinho, mas que, daqui a pouco, a
gente se encontra lá dentro da prefeitura, e vou respondendo que
sim, claro, seguindo meu caminho sozinho.
Mulheres fatais
As ruivas, vou pensando, não são por acaso. Os pré-rafaelitas
ingleses, com suas pinturas simbolistas, e acumulando seguidores na
Áustria, Alemanha e Bélgica, foram os responsáveis pela
popularização da imagem da mulher ruiva. Gosto da “Água
agitada”, com as musas do Klimt retratando a perversidade feminina
e a mulher fatal. Como não gostar? No térreo da prefeitura,
interrompo o fluxo – ruivas para que te quero.
Culpa de duas caminhonetes com som alto, delas ecoam dois arrochas
universitários, com letras grosseiras e infelizes. O gabinete do
prefeito fica no primeiro andar. Será o prefeito capaz de ouvir os
arrochas sertânicos que emanam dos carros maringaenses agora mesmo,
às quatro da tarde desta terça-feira?
Em meio à ruivinha e ao arrocha, tento me concentrar. Paredes
cinzentas, um lugar ainda mais melancólico e triste com o tempo
nublado lá fora. Calado e avesso à conversa, um velho de roupa
acinzentada e olhar lúgubre vaga pelo corredor do térreo,
empunhando um sacolão transparente com latas amassadas de
refrigerante – se visse vivo, o grande Iberê Camargo faria nova
pintura.
Crianças entediadas morrem de silêncio num dos quatro aparelhos,
igualmente silenciosos, da ATI (Academia da Terceira Idade). O maior
boceja no simulador de caminhada. Não há risos na prefeitura. Quase
todo mundo só está aqui porque tem mil e um problemas. Ninguém vem
pra cá à toa, para dar uma caminhada aprazível entre papéis,
burocracia e processos, determinado a apreciar ambientes
diferenciados. Na praça de atendimento, a essa hora sem fila, tem
gente com todo o tipo de missão.
Recém-contratada, a ajudante de limpeza Mayara Fernandes, 23,
perambulando à caça de vale-transporte. Ela mora em Sarandi e
trabalha num colégio da Vila Operária. São quatro ônibus,
diariamente, para ir e voltar do trabalho. “Tô com um probleminha.
Como eu não tenho conta de luz, água, telefone, não consigo o
vale-transporte. Daí, tenho que tirar da boca pra pagar o ônibus e
conseguir chegar no trabalho”, comenta.
Recém-formado em Jornalismo, um jovem maringaense tirou carteira
de funcionário autônomo - exigência do promissor primeiro emprego
- e trabalhou por dois meses numa empresa. Demitido e desiludido com
a profissão, resolveu cursar História. Um ano depois, ele se deu
conta de que não tinha solicitado o cancelamento da carteira de
funcionário autônomo. O resultado? Uma dívida de quase R$ 700 com
a prefeitura. “Agora, tenho que cancelar isso o mais rápido
possível e parcelar a dívida”, lamenta.
“É um problema atrás do outro, né?”, observa a empresária
Bruna Staub, 29. Visivelmente cansada, ela equilibra nos braços a
pilha de papéis. “É a sexta vez que venho aqui hoje!”,
contabiliza. As idas e vindas são culpa do processo burocrático,
iniciado em março deste ano, para que ela possa construir,
finalmente, uma casa na Vila Santa Isabel. “A obra ficou embargada
porque a prefeitura, há muitos anos, ocupou 50 centímetros do
terreno. Entre outras coisas, hoje tive que doar esses centímetros
pra Prefeitura, pra que minha casa seja liberada”, conta.
Banheiro de Judas
Sisudo, empunhando pasta e papéis, o engenheiro Jacir Cardoso
chega para pegar um de seus projetos, que está, no momento, em
avaliação. “Se pudesse, mudaria algumas coisas desse prédio da
prefeitura. Veja o banheiro: antigos e sujos. Não parecem aqueles
banheiros de rodoviária dos cafundós do Judas?” Desconheço os
banheiros dos cafundós do Judas. Mas, realmente, a coisa está feia.
Um cheiro desagradável emana dos banheiros masculino e feminino.
Acostumada com as tantas fragrâncias, trabalhando estrategicamente
de frente para os tronos públicos, a senhorinha da portaria, com
seus 65 anos, nem parece se importar tanto com o odor.
Solícita e sorridente – eis o bendito sorriso! –, tenta
ajudar todo o tipo de gente perdida, desde outubro passado. Antes,
ela dava aulas de artesanato, em escolas integrais, para alunos do
Ensino Médio. “O problema é que minhas cordas vocais secaram.
Como dar aulas com a voz enroscada? Passei por uma adaptação
funcional e me trouxeram pra cá”, resume.
Com fácil adaptabilidade, ela, hoje, já está acostumada aos
milhares de setores da prefeitura e diz que gosta do que faz. Lidar
com pessoas, um trabalhão danado, não é das missões impossíveis
para ela. “Sabe qual é o segredo? Atender da mesma forma como eu
gostaria de ser atendida”, revela. “Às vezes, cavo um buracão
pro pessoal, pego de um lado, mando pro outro, tento ajudar de toda
forma possível.”
Vou penetrando o ventre do prédio, encarando as rampas centrais
que levam ao primeiro piso, passando pela Secretaria de Comunicação
Social e Secretaria da Fazenda. Os corredores folgam desertos. Dentro
das saletas transparentes, homens e mulheres redigem textos,
preenchem processos, imprimem arquivos.
Dos corredores você não ouve a risada do japonês gorducho nem o
espirro da morena. Sigo. Gabinete do prefeito, portas fechadas.
Ninguém à espera. Da rua, nada escuto. Protegido pelas espessas
paredes, o prefeito deve trabalhar em paz, a salvo dos berros
sertânicos.
Milagres e curas na vila
“O que eu estava te dizendo”, retoma o grande Zé Luiz, já me
alcançando no segundo andar, “é que você mostra uma Maringá
diferente. Chega a cumprir um papel memorialista. Minha mulher adora
os seus textos.”
Estendo um sorriso. Mando um beijo à digníssima esposa. De que
valem as tantas tortas linhas sem uma leitora fiel?
“Eu mesmo, que passo com alguma frequência pelo Centro
Comercial, nunca tinha notado aqueles detalhes. Suicidas românticos,
escritórios misteriosos, cada coisa. Você está preservando essas
histórias, perdidas no esquecimento e na morte. Os personagens, o
estilo, os temas vibrantes, as suspensões que nutrem a expectativa,
diálogos com réplicas breves! Ah, não fosse Gustave Planche, no
decênio de 1820, na França, não teríamos esse nosso romance de
folhetim aos domingos!”
Agradeço, acumulando elogios debaixo do chapéu. E já no
terceiro andar, cruzando a Procuradoria, a Direção de Licitação e
os Recursos Humanos, disparo duas frases, de “As Cidades Invisíveis”, do Italo Calvino:
“Nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a escreve.
No entanto, há uma relação entre ambos.”
Zé Luiz abre um sorriso.
“Gostaria que você escrevesse uma história... É fantástica.
Você sabia que ali em Pulinópolis, distrito de Mandaguaçu, houve o
desaparecimento de uma vila de quase mil pessoas, nos anos setenta?
Você teria que ir para lá, claro, passar um dia inteiro, mas
renderia um bom material. Em 1975, talvez um pouco antes, a vila
Allan Kardec recebia pessoas de diversos lugares do País, do Mato
Grosso, São Paulo, Minas. Muita gente acreditava que o médico de
lá, um médium muito respeitado, era capaz de realizar milagres,
curas e salvações. E ele dava aqueles passes, bênção, fazia de
tudo.
Os meus pais, que eram de Iguaraçu, vieram para cá. Esse médico
construiu até um hospital, dedicado a pessoas com problemas mentais,
e a vila chegou a ter pousadas, restaurantes, bares...”
“E como tudo desapareceu?”
“Esse médico, que já morreu há muitos anos, acabou mudando
para Sarandi, com a família. E as pessoas que viviam na vila, pouco
a pouco foram parar em outras cidades. Como ninguém permaneceu no
local, a vila simplesmente desapareceu do mapa. Virou tudo pasto.”
Vou anotando, no bloco de notas, os detalhes da história. O
contista não é, como disse Baudelaire, “o pintor da vida
moderna?” Ali mesmo, pincelo o futuro quadro. Cheio de pastas e de
olho no relógio, o Zé Luiz se despede. Entretido com ruivas e com o
sumiço da vila Allan Kardec, até esqueci de perguntar o que ele foi
fazer ali. Devia ser outro desses problemões.
No último andar, nada diferente. O mesmo chão calado. As mesmas
saletas envidraçadas. Triste, não esbarrar em outra ruiva.
Secretaria de Obras. Secretaria de Planejamento. Secretaria do Meio
Ambiente. Funcionários concentradíssimos à espera dos próximos
problemas, filas livrinhas e banquetas vazias – não há melhor dia
para ir à prefeitura.
Ali, encontro uma morena de 28 anos. Advogada,
nascida em Maringá, há dois anos morando em São Paulo. Em
passagem-relâmpago pela cidade, aproveitou para cumprimentar uma
velha amiga na prefeitura. Vamos descendo, juntos, pelo ventre do
prédio.
De barco em Bertioga
“No escritório, somos só em três: eu, minha chefe e a
secretária. Quer dizer, agora tudo mudou.”
Olhinhos castanhos. Blusinha branca. Saltinho preto. Frases
aceleradas, dessas que escancaram o armário a desconhecidos. Meu
tipo favorito.
“Na sexta-feira passada, minha chefe disse que era pra eu
ensinar um monte de coisas pra secretária, porque ela estava com
tempo ocioso demais e seria bom que fizesse umas atividades mais
simples.”
“...”
“Ou seja: basicamente, qualquer coisa que não precise de OAB.”
Tão bom encontrar moça que se abre.
“Na segunda-feira de manhã, saí pra pegar uns processos na
Justiça do Trabalho e disse à secretária que à tarde ensinaria
alguns negócios diferentes. Quarenta minutos depois, eu volto e a
minha chefe tinha demitido a secretária. Sabe qual justificativa?
Disse que precisava ‘diminuir o escritório’. Pô, o escritório
só tinha três pessoas!”
Seu riso, a última camada de açúcar da filhó quentinha e cheia
de canela.
Além da crise decepando os colegas de trabalho, a advogada ainda
tem que lidar com um problema ainda mais delicado e inusitado, entre
rimas de ventos e velas, vidas que vem e que vai.
“Nosso escritório praticamente trabalha para um único grande
cliente. Empresário cinquentão, solteiro, até que bonito pra
idade. Agora, por meio da minha chefe, ele vem me sondando pra passar
um final de semana ao seu lado, viajando de barco, em Bertioga. Já
imaginou? Sai sexta e volta domingo?”
Qual amor não é louca viagem? Quem nunca navegou nas ondas
turbulentas da paixão? O azul da cor do mar não te remete à
inocência perdida? Despacho malícias cheias de clichês.
“Me parece romântico...”
“Esse é o problema! Tenho namorado sério, moramos juntos há
dois anos, somos praticamente casados. Se eu entro nesse barco, meu
relacionamento naufraga em alto-mar. Se não entro, corro o risco de
ser despedida. Que rolo, viu?”
Qual grande amor não parece outro neurótico enredo do Woody
Allen? Quando me dou conta, já estamos no térreo. A voz acelerada
agradece a conversa.
“Melhor que a minha terapia.”
Ligeira, deserta pela prefeitura e encara o toró, com o
inseparável guarda-chuva preto. A chuva encharca a gripe da criança,
inunda o tédio da tarde e agride a velha imóvel na esquina –
outro maldito motorista explodindo poças d’água.
Publicado no Diário (19/7/2015)
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