Magrelinho, voz baixa, passinhos curtos. Minúsculo em seu um metro e
sessenta - cravados! - de altura. O carcereiro mais temido de todos os
tempos do minipresídio de Maringá tem um nome nada grandioso,
ironicamente no diminutivo: Paulinho. Nunca levantou a voz - nem um ai,
qualquer ameaça que seja, mínimo xingamento no ápice das tantas tensões.
No lugar dos fortes músculos - onde foram se meter, num corpinho tão
miúdo? -, o carcereiro de apenas 57 quilos tinha seus contornos
assustadores em outros hemisférios. No olhão esbugalhado revistando cada
cela. No silêncio intimidante desafiando os presos. No ruído
estridente, quase desumano, que ecoava dos seus dedos ao arranhar, de
leve, o revólver de calibre 38 pendurado à cintura. Não foi fácil se
transformar na figura mais temida e mais respeitada desses 32 anos do
minipresídio maringaense. O momento decisivo foi em 1988: a forma
destemida - e suicida - como encarou a morte.
Os boatos de
cadeia, ao contrário da maioria dos presidiários, nunca passam muito
tempo dentro das celas. Compartilhados com um único vizinho de cárcere,
rápido ganham as ruas e a liberdade, passando, antes, pelos ouvidos dos
próprios agentes penitenciários. Qual seria a sua reação diante de uma
ameaça de morte? Pior: uma ameça de morte de um sujeito de alta
periculosidade, com seus quase dois metros de altura, um sujeito que já
está encarcerado e permanece, ali, o dia inteiro, sorrindo cinicamente
para você atrás das grades? Paulinho deve ter pensado duas vezes. Mas,
se pensou, foi tudo muito rápido. Que não deu tempo de ninguém
aconselhar nem evitar o que viria pela frente. Tranquilamente, ele
deixou a arma em cima da mesa e abriu a porta do minipresídio,
caminhando em direção à cela onde estava o preso. No submundo da
carceragem, passou rente aos 350 presidiários. Ninguém, inicialmente,
esboçou reação – estupefato, você não demora a crer em seus próprios
olhos? Em frente à cela, no meio do corredor, o presidiário das ameaças
aguardava o carcereiro com um porrete de aço afiadíssimo. Um só golpe
daquilo lava a alma de sangue. Ninguém disse única palavra. Quando a
pancadaria começou, outros presos partiram para cima de Paulinho,
armados com bugigangas caçadas no meio do caminho. Outros, preferiram
assistir. Quem viu a cena, nunca mais esquecerá os mínimos detalhes.
"Sem ajuda de ninguém, de ninguém!, ele arrebentou o sujeito grandalhão
que fazia as ameaças e ainda se defendeu dos presidiários que tentaram
fazê-lo de refém. No final, isso parece coisa de cinema, todos os presos
abriram caminho para o Paulinho. E da mesma forma como ele entrou,
quieto e sozinho, sem qualquer arranhão, debandou da carceragem, fechou a
porta e calou a ameaça. A partir dali, todos os presos passaram a
chamá-lo de Doutor Paulinho. Essa história já é uma das grandes lendas
do minipresídio", detalha o mitológico repórter policial Roberto Silva
que, embora não tenha testemunhado a tal batalha, há mais de trinta
décadas vem acompanhando, de perto, os bastidores do universo
policialesco maringaense.
Exigência do próprio Roberto Silva, eu
telefonaria mais tarde ao Doutor Paulinho. "Cada lenda tem mil e uma
lacunas de ficção. Vá atrás da verdade", ordenou. Do outro lado da
linha, a voz aguda do Doutor Paulinho me receberia com gentileza e
outros detalhes. "Não teve isso aí de porretes, não. Entrei sem arma no
inferninho e os dois sujeitos que me ameaçaram, dois homicidas, também
estavam desarmados. O problema é que eles tinham me ameaçado, num dia de
visita, e me chamaram pra porrada. Eram grandes, faziam capoeira e
ficaram jogando, me provocando, dizendo 'cê não é bom de porrada, é?'.
Eu tinha acabado de chegar a Maringá. Não podia deixar que fizessem
aquilo comigo. Então, encarei a dupla. Acertei o primeiro no pau do
pescoço. O segundo ficou surpreso, e com isso ganhei vantagem. Dei um
golpe no segundo, também sem problemas. Eu, que só tinha as lições do
treino da polícia. Nem jogar capoeira eu jogo. Bom, desde então, nunca
mais nenhum preso veio me provocar", comentaria o Doutor Paulinho, hoje
aposentado do inferninho.
Às três e meia da tarde, disputando os
últimos centímetros na sombra, seis repórteres policiais e cinegrafistas
vão matando o tédio na frente da 9ª SDP (Subdivisão de Polícia). O
vento faz cócegas na árvore, derruba o chapéu do velho, atropela o
jornal do delegado. Diante do vento e do Sol impiedoso, você só
agradece. Por sorte - ou milagre do tal padre-cantor? -, sem temporais
nem previsão de chuva molha-bobo. Aleluia! É hoje que a polícia vai
abrir a cadeia. E a imprensa poderá ver, de perto, como é acordar e
dormir dentro do inferninho.
"Cêis vieram hoje cedo?", pergunta o
cinegrafista João Vitor, 29, de uma emissora de TV. Eu e Ricardo Lopes,
fotógrafo de O Diário escalado para a missão, respondemos que não.
"De
manhã, eles já liberaram pra TV. O outro cinegrafista até passou mal.
Lá dentro é muito fedorento. Vou te falar, viu? Não tenho o estômago pra
essas coisas."
Tiro, porrada e bomba
Enquanto a polícia não libera o cárcere à imprensa, Roberto Silva
propõe um city tour pela área externa do cadeião. Os demais repórteres e
cinegrafistas também se animam. "Esse minipresídio tem uma porção de
fatos macabros", adianta o mito do jornalismo maringaense, guia
turístico num safári ensolarado. "Dizem que nos anos noventa, a polícia
descobriu um plano de fuga dos detentos. Em vez de tapar os buracos, os
agentes esperaram que os presos terminassem as escavações. E, no meio da
madrugada, quando os presos finalmente conseguiram chegar do lado de
fora da cadeia, deram de cara com os policiais, todos fortemente
armados. Todos os presos foram fuzilados", relata, fazendo pequenas
pausas precisas, controlando o tempo da ação – exímio narrador de
causos.
Nesses anos todos, segundo as contas de Roberto Silva, mais de trinta túneis foram cavados. "Era
tão fácil escavar o chão que os presos deram o apelido: 'presídio
manteiga'", comenta, a boa risada ecoando. E muita, muita gente mesmo,
conseguiu debandar, livrinha da silva. "Eu mesmo, veja só, bem aqui onde
estamos, do lado de fora do minipresídio, notei que havia um buraco
meio estranho. Recente. Feito há poucos dias. Eu imediatamente
notifiquei a polícia. Os investigadores até aceitaram a denúncia, mas
com ressalvas. Eu desconfiava que aquele buraco tinha sido escavado para
que os presos, em suas escavações, encontrassem mais facilmente o ponto
de saída. E não deu outra. Dias depois, vários presos fugiram por
aquele buraco."
O muro acinzentado, única barreira que separa a
liberdade dos presos, não é alto. Fugir por pirâmide humana, alternativa
considerável. O arame farpado não é dos mais ameaçadores. Não há
guarita nas vértices das paredes, com guardas armados, tal como nos
filmes de ação. Nos fundos do cadeião, um campinho de futebol e carcaças
de velhos carros apreendidos. É dali, do cemitério de automóveis, que
os comparsas dos presos arremessam bolas de meias embolando baseados,
cigarros, isqueiros, serras, brocas e outros regalos. Com uma vara de
pescar improvisada, ajeitada com tiras de lençol e escovas de dentes, os
presos conseguem fisgar, atrás das grades, as bolas de meia. "A única
coisa que é proibido mandar pra dentro da prisão é crack: a pedra faz
com que os presos surtem e fiquem fora de controle no meio dos demais",
comenta.
Lá dentro dos muros cinzentos, Roberto Silva explica, há
uma série de regrinhas que jamais podem ser descumpridas. 1)
Caguetagem: quem dedura o crime do próximo é punido com uma mortezinha
básica. 2) Talaricagem: deu uma de Don Juan para cima da esposa do
colega de cela? Danou-se. Crime punido severamente – outro
assassinatozinho. 3) Preso por estuprar alguém? Será recebido muito
carinhosamente. Por todos os presos, um de cada vez, democraticamente.
4) Furtou o companheiro de cela? Acabou a amizade. Você é colocado numa
roda e os presos podem fazer o que quiser – use a imaginação. 5) Soltou
gases? Ato imperdoável no mundo do crime. Condenável com bons tapas e
pontapés, embora a sova não chegue à morte.
Mais próximos do
muro, vamos andando, é possível ver a rachadura, do topo ao chão,
causada pelo explosivo C4, arsenal que costuma ser usado em guerra. "Foi
um pedacinho desse tamanho ó, minúsculo", diz o jornalista, ilustrando
com os dedos. "E mesmo assim fez esse estrago todo. Desse certo,
derrubava o muro e ninguém ficava pra contar história."
Prisões bizarras
Pelo celular hipermoderno, Roberto Silva
recebe uma mensagem do alto escalão da delegacia. Vão liberar o
minipresídio para a imprensa. Vamos voltando. "Quando a polícia
informatizou o sistema, tive acesso às fichas antigas. Documentos
fabulosos. Achei uma ficha assim: com dia, hora, nome completo do preso,
dia do nascimento dele e o motivo do crime: o cidadão tal foi preso
porque estava na rodoviária pensando em aplicar um golpe. Pensando! O
cara nem cometeu crime algum. Descobri outra ficha, registrada duas
horas depois, dizendo que o mesmo sujeito havia sido liberado. E, por
fim, tinha uma terceira ficha, registrada quatro horas depois da
segunda, oficializando a nova prisão do sujeito, na rodoviária, porque
continuava a pensar em aplicar um golpe", lembra. "Tinha tanta coisa
lá... Até uma prostituta. Essa é ótima também. A prostituta foi presa,
em 1972, no antigo cadeião, porque estava a trottoir nas calçadas",
comenta, arrancando boas risadas de repórteres e policiais.
Agentes
armados apertam o passo no corredor da delegacia. Submetralhadoras.
Pistolas. Escopetas. Olhares firmes e atentos. Cruzamos salas, salinhas e
saletas até chegar às grades do inferninho. Quatro e pouco da tarde. Os
jornalistas vão sempre atrás. Uns comentam sobre o carcereiro
assassinado não sei onde, outro sobre o jornalista, acho que do Norte,
que recebeu nova ameaça de morte, e já vão mostrando imagens no celular,
vídeos ensanguentados. Somos nove, contando câmeras, fotógrafos e os
famosos apresentadores de TV. Vamos entrando no minipresídio, cruzando
os pesados portões de ferro. Sabe você o que é estar atrás das grades? O
climão, do nada, fica tenso. Abafado. Mal iluminado. Nada de ar
correndo, livre – a última brisa fresca dá um nó no coração. E é só
alguém dar um berro lá de dentro - epa! -, ainda não é hora. "Volta,
volta, volta!", ordena um policial, com rosto surpreso. Recuamos.
Primeiro da fila, o fotógrafo Ricardo Lopes desembesta a correr - mais
ligeiro que Abebe Bikila! Veloz feito Paavo Nurmi! As mesmas pernadas de
Emil Zatopek! Olhão vidrado, esconde o fôlego numa saleta cheia de
agentes. "Tem preso escondido nas celas. Traz mais agente, traz mais!",
grita o policial. Com o pedido de reforço, quatro sujeitos abandonam a
saleta de controle e, afobados, atropelam o fotógrafo assustado, e se
metem no meião das celas, com porretes e revólveres. A funcionária
entediada, agora, sim, empolgada e atenta às dezesseis câmeras revelando
quase todo o interior do cárcere. Quase. A caçada e a correria, culpa
de um preso que ignorou a ordem e não seguiu para o pátio. "Imaginou o
susto dele, acordar e ver toda a cadeia vazia? Fugiram todos, só eu
fiquei?!", comentaria um agente, minutos mais tarde, com uma boa
gargalhada. "Tava dormindo. Deve ter fumado um bagulho estragado",
disse, apontando para o sujeito encarcerado.
Agora, tudo
liberado. Desenhos de palhaços demoníacos, símbolo do PCC. Nomes de
mulheres. Amanda. Michely. Declarações do eterno amor - para quem ver?
Paredes de histórias. Teses que sugerem novas interpretações da
Santíssima Palavra: "Deus não gosta do pecado mas ama o pecador. Vida
loka cabuloza", escreveu alguém, enforcando a gramática normativa. Outro
preso, alheio a vírgulas e distribuindo milagrosamente um e outro
acento, aproveitou o tédio da prisão para compor delicados versinhos, em
homenagem a um tal Lincon. Valsinha dois por dois? Pagodinho romântico?
Cante como quiser: "Lincon do universo / só bala pra você / seu frango /
desse (sic) na vilinha que vc vai morrer / seu safado /Vilinha!!!"
Fosse
o Lincon, evitaria me embrenhar nalguma Vilinha. Vila Operária. Vila
Morangueira. Vila Esperança. Num show do Martinho da Vila. Toda e
qualquer vila - nunca, jamais.
Aleluia!
No minipresídio, cheiro de merda e mijo. O lamaçal e a
terra molhada, culpa das tantas escavações – sorte a deles, que de
manteiga. Você tropeça num pé solitário de chinelo velho. All Star.
Colchões ensopados de lama e suor - talvez sangue. Muita gente já morreu
aqui dentro. Enforcada. Eletrocutada. Decepada. É quente aqui dentro.
Quarenta e cinco graus sem ter para onde fugir? Sorte de quem conseguiu
escapar. A cela não é maior que meu banheiro. Aqui, o banheiro, sem
urinol, fica de frente para a pia, onde os presos preparam a comida.
Você come com o mesmo cheiro que evacua. A cela, em poucos segundos,
começa a ficar mais apertada. Impossível acomodar gente nisso daqui. Teu
estômago embrulha. Apertado, em vários nós. Nesses corredores
labirínticos, concluo, só aceito me prender aos fios de Ariádiny. O
vento lambe o teu pescoço e te recebe com beijos e abraços - não é boa a
liberdade lá fora?
Publicado no Diário (15/8/15)
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