segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Número 2, banho no posto, ranho na parede e muita raiva

Os últimos dias transformaram radicalmente o humor da cidade. Saiu, você, para sentir o climão das ruas sem banho? O trânsito na Avenida Brasil surgia intensificado por palavrões – xingamentos muito além dos clichês cotidianos, mesclando elementos da umbanda com quiromancia, magia negra e maçonaria, alusões a Opus Dei e ao satanismo de Anton Szandor LaVey, tudo bem berrado em cada boca.
Motoristas enfezados recusavam ceder passagem diante da faixa de pedestre - não importa se feia ou bonita, moças eternamente à espera. As buzinas - você não ouviu? - soaram ainda mais estridentes. Rostos transbordavam raiva em cada ciclista – todo mundo pedalando bem devagar, suficiente para não suar demais. 
De repente, na cidade, sumiram todos os sabiás. Nada de jam session com pássaros trompetistas. O vinho azedou. Crianças envelheceram. Amores amargaram. A água, enfim, acabou.
Ironicamente causada pela inundação da chuva nos últimos dias, a escassez de água em Maringá parecia enredo de algum conto fantástico do Cortázar. 
Há quem diga que moradores de cidades vizinhas chegaram a escancarar as portas de casa, oferecendo banho e banheiro a suadões desconhecidos - sete minutos por R$ 10.
O desespero da velha, correndo no megamercado, não era de perder o capítulo da novela, mas agarrar o último galão de água cristalina.
Na Igreja Jerusalém de Deus, o Todo-Poderoso não fez milagres e, para a tristeza dos fiéis, as torneiras permaneceram sequinhas.
Nos cantos da cidade, filas quilométricas de distribuição não de comida aos refugiados sírios, mas de água aos maringaenses idôneos - muitos deles, com as contas todas em dia. Climão de quase calamidade e revolta infinita.

Filas

“Olha só que desgraça, moço: catando água na bica! Quando pensei que fosse fazer isso na vida? Eu, hein?!”, berra a mulher espalhafatosa, mirando o galão vazio diante de uma das duas torneiras jorrantes, no meio da Vila Olímpica.
A água geladinha batuca paredes internas do galão e transborda um pouquinho, arrancando riso rejuvenescido da velha – aqui, é permitido ostentar.
Na fila d’água, pobres, ricos, velhos e jovens vão surgindo entre garrafas e galões.
Desculpa da louça suja. Da ducha sagrada. Chegam acanhados, rostos trancados, e saem aliviados.
O casal traz dois galões de cinco litros vazios em cada mão. Sem água em casa na noite passada, os dois apelaram para um posto de gasolina. E ainda levaram a família inteira.
“Foi o pior banho da minha vida. Durou dez minutos. Tinha ranho e catarro nas paredes, cabelo entupindo o ralo e forte cheiro de mijo. Mesmo assim, melhor que ficar sem. Acredita que ainda tive que pagar cincão?!”, recorda Tatiane Soares, 24.
O maridão, agachado na coleta aquífera, ri do relato dos horrores e diz que não achou tão ruim assim.
“Claro que não era como tomar em casa, com conforto e tal, mas o banheiro masculino até que tava limpinho. Você deu azar e usou o banheiro das mulheres podres”, diz, rindo.

Cidade horrível

Melhor lugar para coletar histórias, na fila da coleta d’água você nem precisa fazer nada. Teu bloco de anotações atrai todo o tipo de detalhe. Padre no confessionário, voyeur dos causos maringaenses, você escuta de tudo.
“Também tá faltando água lá no Diário?”
“Vou te falar, viu? Ruim é ter que tomar banho na casa da sogra!”   
“Agora é que a gente aprende a dar valor, né?”   
“Cê também passou por isso? Cê esquece que acabou. Daí cê vai no banheiro, liga a luz e abre a torneira, mas não sai nada...”
“...”
“... não dá um nó no coração?”
Os detalhes duram o tempo do abastecimento. Cada pessoa leva dois minutos para encher dois galões de água. Com o reabastecimento, é só levar para o carro. E correr para casa.
“Vocês da mídia...”
O dedão em riste, de olho na tua caligrafia tremida e na foto sorridente do crachá.
“...só ficam do lado do poder! Quero que você escreva aí: que isso tudo é uma irresponsabilidade ab-su-rda!”, critica, com razão, a publicitária Suely Vasconcelos, 54.
Olhos ardendo ódio, raiva e gastrite – minha ou dela? Ouça a dor de Suely: duas pedras rasgando tua vesícula. Tanta fúria, causa da falta d’água?
“Como é que uma empresa desse tipo não tem um plano B? Se eu não pago a conta, eles cortam a minha água. Se eu pago, eles não me mandam. E agora, como é que fica?!”
Na fila, a cólera diminui quando os galões vão enchendo. Suadões trocam sorrisos camaradas entre si. “Os que se parecem juntam-se”, escreveu Homero, em algum lugar.
“Vou te dizer uma coisa: sou de Curitiba e já tô indo embora desta sua cidade. Um calorão desses, e sem água? Que cidade horrível!”, desabafa a publicitária.
“Na firma, tá um clima bem constrangedor. Tá todo mundo com vontade de ir no banheiro, mas ninguém pode”, comenta, rindo, o vendedor Reinold Stein, 24. “Daí sobrou pra mim, né? Como sou recém-contratado, tive que buscar água pra empresa”, completa o sujeito, equilibrando três grandes galões de quantidade indecifrável. “Ele só querem a nossa desgraça!”, grita uma mulher, degolando a nossa conversa.

Musa fitness nº 2

A fila d’água não é só desgosto e desabafo. Por ali, esbarro em Maria Marta, professora de inglês.
Moreninha de luzes loiras. Vinte e três aninhos, blusinha laranja e calça preta coladinha. Nos pés, tênis laranjado fosforescente. Ombros altos e braços brancos, adornos de uma estrutura óssea inigualável.
Gentilmente, ofereço toda e qualquer ajuda, seja com os baldes, abrindo e fechando torneiras, abandando leques japoneses ou protagonizando massagens tailandesas, a seu dispor, com todo prazer. Ela é só sorrisos. Narra os tantos perrengues. Mostra a revolta na ponta da língua. Detalha a situação dos familiares, fala da crise em si.
“Como faço natação, já aproveitei pra tomar banho na academia. Em casa, sem chance pra qualquer coisa. O xixi fica na patente. E...”
“?”
“...bom...”
“...”
“...você sabe...”
Sei? Sabemos?
De voz firme e respostas diretas, Maria Marta discorre sobre qualquer assunto com sorrisinhos de verão. Sorte a sua, outra mulher que se abre.
“...o número dois, né, só pode se for no saquinho!”
Tendo dispensado leques japoneses e massagens tailandesas, e levando em conta o atual teor da nossa conversa arenosa, permito que Maria Marta encerre a entrevista.
E a professorinha sai de cena, sai ostentando seu galão d’água cheinho, diante da fila cada vez maior.
“Ela não vale mais que ouro?”, sussurra um aposentado.
Lábios rachados pelo tempo, salivando miseráveis emoções, contemplando o galão cheio d’água.

Consciência

“Hoje em dia, água vale mais do que ouro!”, observa, emocionado, o aposentado Luis de Carvalho. “É só nessas horas que o povo dá valor. Quando sente falta. Mas, comigo, sempre fui econômico. Tomo banho sempre rapidinho. Lavo tudo o que tenho direito. Pensando, toda hora, no dia de amanhã”, diz o consciente aposentado.
Ouro e água, número dois no saquinho, ranho e catarro na parede: é mesmo um louco conto do Cortázar.
Repare nos rostos de derrota. O velho que não vai cantarolar “E Lucevan le Stelle” debaixo do chuveiro, com a água escorrendo geladinha, ininterruptamente, por três minutos e meio. A tristeza da quarentona pela escolha da vida errada - tivesse fugido com o malabarista do circo Maximus, não estaria aqui, sozinha, empunhando três baldes vazios, debaixo de um sol dos diabos, numa maldita cidade sem água.

Publicada no Diário (17/1/2016)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Crianças, Juarez e Deus e o Diabo na Terra do Sol

Os negros dentes tortos da quarentona arregaçam promessas de prazer.
"Entra, amor, entra."
Sentadona na banquetinha capenga, na portela do boteco sem fachada. Perfume azedão. Caatinga de porco. Mescla de cachaça, mofo, cerveja, cigarro paraguaio – ali, é permitido fumar dentro do estabelecimento. O tapete do bar, desista: surrado demais, impossível ler.
"Me paga uma cervejinha, amor", suplica a quarentona.
Em tempos de crise, resisto ao canto da sereia. A cerveja geladinha, por lá, custa inacreditáveis R$ 15. Às sete horas, num sol das seis, o bar estaria vazio, não fosse um cover de Francisco Cuoco. Bom de prosa, nosso ator narra aventuras para as quatro donzelas da bodega. Além da negra quarentona, uma gorducha estrábica, uma oxigenada magrela e outra gorducha morena disputam a atenção do aposentado falante – você, daqui a alguns anos?

***

"Mas hoje é só isso mesmo, viu?", avisa o velho.
Em uníssono, o quarteto de vozes implorando que fique.
"Não, não, hoje é só a cervejinha mesmo. Tó aqui, ó", avisa, arremessando duas notinhas no balcão.
"Vai trocá a gente pela casa de massagem, é?", diz, tristonha, uma das moças.
O velho sai sem respostas. Na bodega, ele é amado por todas.

***

No cômodo do bar - sem janelas, ainda mais quente e encardido de suor, bueiro, cigarro, peixe morto -, Amado Batista berra as coisas do coração. Mesas desertas, único casal. Magrelinho de quarenta anos, macetado na cadeirinha de plástico, nosso herói equilibra no colo a gorducha negra e de cabelos vermelhos. Nos pés agigantados da moçoila, o chinelinho não dá conta de tantos dedos.
Concentrado na própria trama, ele fisga a atenção dela com detalhes banhados na cervejinha carérrima. Arranca suspiros, palminhas empolgadas. Gritinhos estridentes de surpresa, terror e alívio.
Narra detalhes de alguma aventura rocambolesca, com a mão sinalizando armas de grosso calibre, volantes de caminhonetes, aviões, corda pendurada no pescoço. Naquela orelhona, ele não sussurra ser o misterioso milionário maringaense, em carne e osso, aproveitando anonimamente as coisas boas da vida, depois dos tantos dias de horror? Cheio de grana, à espera da vida e do grande e verdadeiro amor? Rapidinho, ela escancara a bocona para um beijo legítimo – das entranhas da gorda ecoam as mil e uma fragrâncias do Rio Bostinha.

***

A morena cinquentona, de saiona rosa e decotão, exibe sorrisinho banguelão: no canto esquerdo do lábio, a verruga escura com mil pelinhos dourados. Quantos digníssimos pais de família não se perderam no caminho de casa, numa pausinha casual ali no boteco?

***

Uma velha acena, com cuidado, para alguém: o braço estendido, fixo, movimenta únicos quatro dedinhos. Um aceno tradicional, efusivo, balangando o braço veementemente, não denunciaria as gordas pelancas acumuladas do último reparo plástico?

***

"Tudo que faço, ofereço pra Ele..."
Outro desses - ai, não! - louvadores da aleluia.
"...quem me guia e me rege..."
Santa paciência: prepara-te para três horas ininterruptas de conversão religiosa.
"...quem me socorre e me protege..."
Por que tão onipresente, pô?!
"...meu Santo Satanás..."
"!!!"
"...meu Pai da magia..."
"?!?"
"...quem sempre tudo dá."
Pergunto ao jovem músico sobre o Diabo. Jair, que interrompe o show na calçada da Avenida Brasil, responde tudo baixinho - jamais ser descoberto pelos cristãos maringaenses, ainda mais em climão natalino.
"Nossa seita, em Sarandi, conta com vários fiéis, mas eu não posso te dar detalhes. É tudo secreto", adianta.
"Não tem filial em Maringá?"
"Infelizmente, não."
Disso, já suspeitava. Nem o Diabo suporta esta cidade infernal, celeiro das trezentas duplas sertânicas.
"Muitas oferendas em Sarandi?", questiono.
"Dia desses sacrificamos um bode. Acho que Ele gostou. Mas o comum é oferecer galinha preta e coelho."
"Alegres, as celebrações?"
"Com muita música, viola, pacto de sangue e bruxaria: tudo com muito respeito e bom gosto."
"Quais princípios da turma satânica?"
"Liberdade, amor, vida e luta."
"Paga pra entrar?"
"Tem o cofrinho do dízimo. Quem pode, vai colaborando."
"!"
"Alguém tem que bancar as velas e o sal grosso."
Balaio do dízimo. Musiquinha fervorosa. Fiéis clamando milagres. Orações e sacrifícios. Deus & o Diabo não são tão diferentes na terra do sol.

***

Ventos assustadores derrubam o chapéu do velho e arrepiam os braços nus da moçoila. "Jesus amado, meu filho, vai despencar o mundo!", berra a mãe aflita. Nuvens negras, cinzas, soturnas e lúgubres escurecem a noite. O menino gorducho, assustado e babão, finca as duas mãozinhas num portão de ferro – jamais ser levado pelo vento, muito menos pela mãe. Crianças excitadas batem palmas – finalmente, o Bom Velhinho vai descer dos céus, em seu imponente trenó de renas voadoras.

***

Como pousarão as renas voadoras, descendo das nuvens e rasgando estrelas? Qual altura média e idioma dos duendes? Quantos quilos de presentes cabem no trenó? Será que Papai Noel desconfia, ai, não!, das tantas artes acumuladas no ano inteiro? Essas e outras questões ensopam de saliva a roupinha dos minúsculos filósofos babões – crianças pensando jamais tiram dedos da boca.

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Nove conselhos aos pais: 1) Cuidado ao recolher as roupas sujas: crianças guardam o tempo no bolso da camisa. 2) Nunca proíba a criança de cantar pela casa: é no canto que a criança desenha a própria existência. 3) Repare na melodia: cada canto de criança é composto por notas quentes e azuis. 4) Desbravadores experientes nunca vão explorar tantos mundos quanto canelas de criança – a viagem de uma criança só termina quando o sono pede pra descer. 5) Distribua canetas coloridas e libere as paredes da casa (ou parte das paredes do apartamento): rabiscos de criança degolam o tédio em família. 6) Com cuidado, espie seus diálogos: crianças contam e recontam verdades de mentiras. 7) Nunca proíba quintal nem sol nem terra nem chuva: criança compreende o mundo no relevo da mão. 8) Choro de criança tem 14 mil caracteres (incluindo espaços). 9) Velho, você foi a mesma criança de amanhã – não é rejuvenescedor?

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No bebedouro, mãos tremelicantes estendem o copo. Ao som da água que escorre geladinha, o velho lambe os beiços rachados pelo tempo. Mata tudo numa só golada, olhão escancarado, fio de baba escorrendo pelo queixo - essa grande sede de viver.

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Cinco perguntas ao milionáriomaringaense Juarez Arantes: 1) Por que um sujeito como ele, com verba de sobra para morar em qualquer lugar do planeta (Leblon, Cuba, Hong Kong), faz tanta questão de permanecer, sozinho e recluso, numa suíte de 28,20 metros quadrados do Deville, com vista para a Avenida Tiradentes? 2) É fato ou lenda esse papo de que ele mesmo dirige o próprio carro, um Del Rey preto – já que não faltariam economias para contratar um talentoso motorista ou adquirir um carrinho mais moderno? 3) Quais os detalhes da queda do seu avião, quando, em tenra idade – e pilotando a aeronave! –, teria feito um pouso forçado, no meio da Amazônia, evitando o desastre aéreo e saindo de lá vivinho da silva? 4) Qual bebida negra e misteriosa ele carrega na garrafinha de guaraná Caçulinha, de 237 ml? 5) E, afinal de contas, como ele conseguiu acumular tanta grana – teria um e outro conselho para o resto do povão, malditos diabos afaimados que sonham com os dias de fortuna, epifanias e levitações?

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Durante a ligação, o repórter policial Roberto Silva assume as mesmas características que o grande Stefan Zweig notou na estátua que Rodin fez de Balzac: a surpresa de alguém arrancado bruscamente do céu para cair numa realidade que já havia esquecido. O olhar de uma grandiosidade aterradora que se assemelha a um grito. Aquela expressão fisionômica de quem é sacudido em pleno sono. Aquele aspecto de sonâmbulo, junto ao qual se pronuncia brutalmente o nome. Aperto o cinto, tranco a porta. Roberto Silva volta a pisar fundo, em busca do próximo corpo.

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Se não estivesse tão quente, Meursault não assassinaria aquele árabe e você não invejaria os trabalhos forçados do grande Dostoiévski na Sibéria. Batesse única rajada de vento, você não sequestraria tua irmã nem ameaçaria teu próprio pai. Se estivesse um pouquinho menos quente, Juarez Arantes não guiaria seu Del Rey pelas ruas maringaenses com os vidros escancarados, exposto a trombadinhas, ladrões ou algum parente querido.

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Poças de água inundam axilas, encharcam a palma da mão, transbordam de palavrões o velho abanando a camisa – é verão.

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Parque Alfredo Nyffeler: sol mergulhando na nascente do Ribeirão Morangueiro. Setenta tons de verde, dependendo da inclinação dos raios e das tantas sombras. Verde oliva. Musgo. Esmeralda. Samambaia. Verde mar, amarelado, lima. O mesmo verde dos lábios de Eva Green. Aqui, o velho Monet não pintaria novo ciclo de suas ninféias? Você não é menos elegante que Woody Allen zanzando no Central Park ou Milan Kundera flanando pelo Jardim de Luxemburgo.

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Andar pelo Parque do Ingá é esbarrar num punhado de macaquinhos - a glória da criançada. Um deles persegue uma borboleta dourada, sem ser notado pelo grupo de turistas, todos armados com celulares hipermodernos. Com desenvoltura, pula os troncos de árvores caídos na mata, desvia da pedra, tenta em novo pulo abraçar a borboletinha – brincam, os dois, ou é a fome batendo forte?

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Quinze anos de espinhas e canelas finas. Bonés disfarçando semblantes salivantes. Debaixo da escada rolante do shopping, gordo e magro assistem a digníssima mãe trintona subindo em vestidíssimo florido: panturrilhas torneadas, coxas lisinhas, a polpinha acenando no alto da escada. Mulher em escada rolante não é melhor que goiabada com queijo?! Videogame e Coca-cola!? A última camada de açúcar na filhó quentinha!? O que seriam dos hormônios sem os adolescentes?

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O vento lambe o vestidinho da morena, derruba o chapéu do velho e empurra a abelha para dentro da tua latinha de Coca-Cola – é verão.

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A sortuda gotícula de suor escorre pela testa da moçoila, raspa na sobrancelha, percorre o narizinho,contorna lentamente os grandes lábios, mergulha na profunda covinha de sorrisos e, logo na beirada do queixo, depois de lamber cada centímetro daquele rostinho, encerra a jornada com um salto mortal em direção à esteira negra - viver mais pra quê?!-, onde jaz bravamente, no êxtase da paixão, aplaudida por Goethe e outros poetinhas fatais.

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Já leu as linhas de umbiguinho tão poético? Dois quartetos e dois tercetos. Decassílabos platônicos. Dicção severa. Sussurros de Shakespeare & Camões. A boquinha vermelha acelera teus batimentos cardíacos – uma escola de samba inteirinha com repiques, surdos, chocalhos, cuícas e tamborins batucando teu próprio peito.

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No Sebo Cultura, diante da morena de dezoito aninhos, me perco naqueles contornos. Dela ecoam as seis suítes de violoncelo do Bach, executadas pelo grande Mstislav Rostropovich. A "Marcha Turca", do Mozart, surge em cada covinha dela. Se provasse aquele riso, Bruckner teria composto mais quarenta motetos. De passagem pelo sebo, competentes críticos musicais falhariam vergonhosamente se tentassem desvendar cada surpresa harmônica daqueles lábios, perdidos entre oitavas neutras, tercinas arpejadas, linhas ondulantes e vigorosas oitavas no final. Ouça: a tensão dramática dela não é aliviada pelo amável tema do rondó? Ai, que rondó!

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Molhadinha de suor, shortinho rosa coladinho, blusinha preta, cabelo preso num rabinho de cavalo. Nas panturrilhas à mostra, duas maçãs vermelhíssimas – só para você morder?

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Seu riso, a última camada de açúcar da filhó quentinha, cheia de canela.

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No adeus daquela boquinha vermelha, você não dá todas as razões ao maldito Humbert Humbert?

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Pouco importam as loiras de Renoir, a ruiva do Klimt, os peitos de Delacroix: há mais obras-primas circulando pelas calçadas maringaenses do que expostas nas paredes do Louvre.

RETROSPECTIVA Publicada no Diário (3/1/2016)