Os negros dentes tortos da quarentona arregaçam promessas de prazer.
"Entra, amor, entra."
Sentadona
na banquetinha capenga, na portela do boteco sem fachada. Perfume
azedão. Caatinga de porco. Mescla de cachaça, mofo, cerveja, cigarro
paraguaio – ali, é permitido fumar dentro do estabelecimento. O tapete
do bar, desista: surrado demais, impossível ler.
"Me paga uma cervejinha, amor", suplica a quarentona.
Em
tempos de crise, resisto ao canto da sereia. A cerveja geladinha, por
lá, custa inacreditáveis R$ 15. Às sete horas, num sol das seis, o bar
estaria vazio, não fosse um cover de Francisco Cuoco. Bom de prosa,
nosso ator narra aventuras para as quatro donzelas da bodega. Além da
negra quarentona, uma gorducha estrábica, uma oxigenada magrela e outra
gorducha morena disputam a atenção do aposentado falante – você, daqui a
alguns anos?
***
"Mas hoje é só isso mesmo, viu?", avisa o velho.
Em uníssono, o quarteto de vozes implorando que fique.
"Não, não, hoje é só a cervejinha mesmo. Tó aqui, ó", avisa, arremessando duas notinhas no balcão.
"Vai trocá a gente pela casa de massagem, é?", diz, tristonha, uma das moças.
O velho sai sem respostas. Na bodega, ele é amado por todas.
***
No cômodo do bar - sem janelas, ainda mais quente e encardido de
suor, bueiro, cigarro, peixe morto -, Amado Batista berra as coisas do
coração. Mesas desertas, único casal. Magrelinho de quarenta anos,
macetado na cadeirinha de plástico, nosso herói equilibra no colo a
gorducha negra e de cabelos vermelhos. Nos pés agigantados da moçoila, o
chinelinho não dá conta de tantos dedos.
Concentrado na própria
trama, ele fisga a atenção dela com detalhes banhados na cervejinha
carérrima. Arranca suspiros, palminhas empolgadas. Gritinhos estridentes
de surpresa, terror e alívio.
Narra detalhes de alguma aventura
rocambolesca, com a mão sinalizando armas de grosso calibre, volantes de
caminhonetes, aviões, corda pendurada no pescoço. Naquela orelhona, ele
não sussurra ser o misterioso milionário maringaense, em carne e osso,
aproveitando anonimamente as coisas boas da vida, depois dos tantos dias
de horror? Cheio de grana, à espera da vida e do grande e verdadeiro
amor? Rapidinho, ela escancara a bocona para um beijo legítimo – das
entranhas da gorda ecoam as mil e uma fragrâncias do Rio Bostinha.
***
A morena cinquentona, de saiona rosa e decotão, exibe sorrisinho
banguelão: no canto esquerdo do lábio, a verruga escura com mil pelinhos
dourados. Quantos digníssimos pais de família não se perderam no
caminho de casa, numa pausinha casual ali no boteco?
***
Uma velha acena, com cuidado, para alguém: o braço estendido, fixo,
movimenta únicos quatro dedinhos. Um aceno tradicional, efusivo,
balangando o braço veementemente, não denunciaria as gordas pelancas
acumuladas do último reparo plástico?
***
"Tudo que faço, ofereço pra Ele..."
Outro desses - ai, não! - louvadores da aleluia.
"...quem me guia e me rege..."
Santa paciência: prepara-te para três horas ininterruptas de conversão religiosa.
"...quem me socorre e me protege..."
Por que tão onipresente, pô?!
"...meu Santo Satanás..."
"!!!"
"...meu Pai da magia..."
"?!?"
"...quem sempre tudo dá."
Pergunto
ao jovem músico sobre o Diabo. Jair, que interrompe o show na calçada
da Avenida Brasil, responde tudo baixinho - jamais ser descoberto pelos
cristãos maringaenses, ainda mais em climão natalino.
"Nossa seita, em Sarandi, conta com vários fiéis, mas eu não posso te dar detalhes. É tudo secreto", adianta.
"Não tem filial em Maringá?"
"Infelizmente, não."
Disso, já suspeitava. Nem o Diabo suporta esta cidade infernal, celeiro das trezentas duplas sertânicas.
"Muitas oferendas em Sarandi?", questiono.
"Dia desses sacrificamos um bode. Acho que Ele gostou. Mas o comum é oferecer galinha preta e coelho."
"Alegres, as celebrações?"
"Com muita música, viola, pacto de sangue e bruxaria: tudo com muito respeito e bom gosto."
"Quais princípios da turma satânica?"
"Liberdade, amor, vida e luta."
"Paga pra entrar?"
"Tem o cofrinho do dízimo. Quem pode, vai colaborando."
"!"
"Alguém tem que bancar as velas e o sal grosso."
Balaio
do dízimo. Musiquinha fervorosa. Fiéis clamando milagres. Orações e
sacrifícios. Deus & o Diabo não são tão diferentes na terra do sol.
***
Ventos assustadores derrubam o chapéu do velho e arrepiam os
braços nus da moçoila. "Jesus amado, meu filho, vai despencar o mundo!",
berra a mãe aflita. Nuvens negras, cinzas, soturnas e lúgubres
escurecem a noite. O menino gorducho, assustado e babão, finca as duas
mãozinhas num portão de ferro – jamais ser levado pelo vento, muito
menos pela mãe. Crianças excitadas batem palmas – finalmente, o Bom
Velhinho vai descer dos céus, em seu imponente trenó de renas voadoras.
***
Como pousarão as renas voadoras, descendo das nuvens e rasgando
estrelas? Qual altura média e idioma dos duendes? Quantos quilos de
presentes cabem no trenó? Será que Papai Noel desconfia, ai, não!, das
tantas artes acumuladas no ano inteiro? Essas e outras questões ensopam
de saliva a roupinha dos minúsculos filósofos babões – crianças pensando
jamais tiram dedos da boca.
***
Nove conselhos aos pais: 1) Cuidado ao recolher as roupas sujas:
crianças guardam o tempo no bolso da camisa. 2) Nunca proíba a criança
de cantar pela casa: é no canto que a criança desenha a própria
existência. 3) Repare na melodia: cada canto de criança é composto por
notas quentes e azuis. 4) Desbravadores experientes nunca vão explorar
tantos mundos quanto canelas de criança – a viagem de uma criança só
termina quando o sono pede pra descer. 5) Distribua canetas coloridas e
libere as paredes da casa (ou parte das paredes do apartamento):
rabiscos de criança degolam o tédio em família. 6) Com cuidado, espie
seus diálogos: crianças contam e recontam verdades de mentiras. 7) Nunca
proíba quintal nem sol nem terra nem chuva: criança compreende o mundo
no relevo da mão. 8) Choro de criança tem 14 mil caracteres (incluindo
espaços). 9) Velho, você foi a mesma criança de amanhã – não é
rejuvenescedor?
***
No bebedouro, mãos tremelicantes estendem o copo. Ao som da água que
escorre geladinha, o velho lambe os beiços rachados pelo tempo. Mata
tudo numa só golada, olhão escancarado, fio de baba escorrendo pelo
queixo - essa grande sede de viver.
***
Cinco perguntas ao milionáriomaringaense Juarez Arantes: 1) Por que
um sujeito como ele, com verba de sobra para morar em qualquer lugar do
planeta (Leblon, Cuba, Hong Kong), faz tanta questão de permanecer,
sozinho e recluso, numa suíte de 28,20 metros quadrados do Deville, com
vista para a Avenida Tiradentes? 2) É fato ou lenda esse papo de que ele
mesmo dirige o próprio carro, um Del Rey preto – já que não faltariam
economias para contratar um talentoso motorista ou adquirir um carrinho
mais moderno? 3) Quais os detalhes da queda do seu avião, quando, em
tenra idade – e pilotando a aeronave! –, teria feito um pouso forçado,
no meio da Amazônia, evitando o desastre aéreo e saindo de lá vivinho da
silva? 4) Qual bebida negra e misteriosa ele carrega na garrafinha de
guaraná Caçulinha, de 237 ml? 5) E, afinal de contas, como ele conseguiu
acumular tanta grana – teria um e outro conselho para o resto do povão,
malditos diabos afaimados que sonham com os dias de fortuna, epifanias e
levitações?
***
Durante a ligação, o repórter policial Roberto Silva assume as mesmas
características que o grande Stefan Zweig notou na estátua que Rodin
fez de Balzac: a surpresa de alguém arrancado bruscamente do céu para
cair numa realidade que já havia esquecido. O olhar de uma grandiosidade
aterradora que se assemelha a um grito. Aquela expressão fisionômica de
quem é sacudido em pleno sono. Aquele aspecto de sonâmbulo, junto ao
qual se pronuncia brutalmente o nome. Aperto o cinto, tranco a porta.
Roberto Silva volta a pisar fundo, em busca do próximo corpo.
***
Se não estivesse tão quente, Meursault não assassinaria aquele árabe e
você não invejaria os trabalhos forçados do grande Dostoiévski na
Sibéria. Batesse única rajada de vento, você não sequestraria tua irmã
nem ameaçaria teu próprio pai. Se estivesse um pouquinho menos quente,
Juarez Arantes não guiaria seu Del Rey pelas ruas maringaenses com os
vidros escancarados, exposto a trombadinhas, ladrões ou algum parente
querido.
***
Poças de água inundam axilas, encharcam a palma da mão, transbordam de palavrões o velho abanando a camisa – é verão.
***
Parque Alfredo Nyffeler: sol mergulhando na nascente do Ribeirão
Morangueiro. Setenta tons de verde, dependendo da inclinação dos raios e
das tantas sombras. Verde oliva. Musgo. Esmeralda. Samambaia. Verde
mar, amarelado, lima. O mesmo verde dos lábios de Eva Green. Aqui, o
velho Monet não pintaria novo ciclo de suas ninféias? Você não é menos
elegante que Woody Allen zanzando no Central Park ou Milan Kundera
flanando pelo Jardim de Luxemburgo.
***
Andar pelo Parque do Ingá é esbarrar num punhado de macaquinhos - a
glória da criançada. Um deles persegue uma borboleta dourada, sem ser
notado pelo grupo de turistas, todos armados com celulares
hipermodernos. Com desenvoltura, pula os troncos de árvores caídos na
mata, desvia da pedra, tenta em novo pulo abraçar a borboletinha –
brincam, os dois, ou é a fome batendo forte?
***
Quinze anos de espinhas e canelas finas. Bonés disfarçando semblantes
salivantes. Debaixo da escada rolante do shopping, gordo e magro
assistem a digníssima mãe trintona subindo em vestidíssimo florido:
panturrilhas torneadas, coxas lisinhas, a polpinha acenando no alto da
escada. Mulher em escada rolante não é melhor que goiabada com queijo?!
Videogame e Coca-cola!? A última camada de açúcar na filhó quentinha!? O
que seriam dos hormônios sem os adolescentes?
***
O vento lambe o vestidinho da morena, derruba o chapéu do velho e
empurra a abelha para dentro da tua latinha de Coca-Cola – é verão.
***
A sortuda gotícula de suor escorre pela testa da moçoila, raspa na
sobrancelha, percorre o narizinho,contorna lentamente os grandes
lábios, mergulha na profunda covinha de sorrisos e, logo na beirada do
queixo, depois de lamber cada centímetro daquele rostinho, encerra a
jornada com um salto mortal em direção à esteira negra - viver mais pra
quê?!-, onde jaz bravamente, no êxtase da paixão, aplaudida por Goethe e
outros poetinhas fatais.
***
Já leu as linhas de umbiguinho tão poético? Dois quartetos e dois
tercetos. Decassílabos platônicos. Dicção severa. Sussurros de
Shakespeare & Camões. A boquinha vermelha acelera teus batimentos
cardíacos – uma escola de samba inteirinha com repiques, surdos,
chocalhos, cuícas e tamborins batucando teu próprio peito.
***
No Sebo Cultura, diante da morena de dezoito aninhos, me perco
naqueles contornos. Dela ecoam as seis suítes de violoncelo do Bach,
executadas pelo grande Mstislav Rostropovich. A "Marcha Turca", do
Mozart, surge em cada covinha dela. Se provasse aquele riso, Bruckner
teria composto mais quarenta motetos. De passagem pelo sebo, competentes
críticos musicais falhariam vergonhosamente se tentassem desvendar cada
surpresa harmônica daqueles lábios, perdidos entre oitavas neutras,
tercinas arpejadas, linhas ondulantes e vigorosas oitavas no final.
Ouça: a tensão dramática dela não é aliviada pelo amável tema do rondó?
Ai, que rondó!
***
Molhadinha de suor, shortinho rosa coladinho, blusinha preta, cabelo
preso num rabinho de cavalo. Nas panturrilhas à mostra, duas maçãs
vermelhíssimas – só para você morder?
***
Seu riso, a última camada de açúcar da filhó quentinha, cheia de canela.
***
No adeus daquela boquinha vermelha, você não dá todas as razões ao maldito Humbert Humbert?
***
Pouco importam as loiras de Renoir, a ruiva do Klimt, os peitos de
Delacroix: há mais obras-primas circulando pelas calçadas maringaenses
do que expostas nas paredes do Louvre.
RETROSPECTIVA Publicada no Diário (3/1/2016)
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