segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Anão, pastel, musas, suor, cães e Deus

No terminal rodoviário, você reflete a tua Maringá. Não a Maringá dos pontos turísticos, da chatíssima igreja-cone e das infinitas fragrâncias do Rio Bostinha. Não a Maringá dos 547 trovadores, dos vendedores de sorte ou azar e dos incontáveis berros sertânicos – em cada bar dessa cidade você é refém de alguma dupla sertaneja. Única maravilha? Suas calçadas cheias de moças, banhando as delícias debaixo do bendito sol.

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Alguns apartamentos do Edifício Maurício Schulman têm cozinhas e banheiros virados para os corredores. Na porta de um deles, o aviso à Saramago extermina todas as vírgulas: "Deus está no controle não entre aqui com raiva mau humor pessimismo intrigas inveja porque acreditamos na vida que fazemos e principalmente temos fé". Por que exibir sua fé aos vizinhos? "Ponhando a palavra do Senhor aqui no vidro, quero impactar um pouco. Muita gente do prédio precisa de Deus", justifica o sujeito.

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Latidos graves e potentes ecoam de um dos apartamentos do Edifício Maurício Schulman. Quem responde, noutra janela, é um latido menos encorpado, mas também grave. Dá para ouvir tudo bem nítido: dois barítonos no primeiro ato da opereta canina. Interrompendo o dueto masculinizado, um terceiro latido, agudo e estridente - eis a nossa Maria Callas! -, assume o posto de soprano. Nem o severo Karajan seria capaz de encerrar a performance do trio.

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Encostadinha no muro, uma loirinha transcendental refestela-se com pastel de queijo e sodinha bem gelada. Shortinho jeans, blusinha branca, boquinha pintadinha de vermelho – ai, essas moças de lábios vermelhos. Não tem ela os ombros altos de Liv Ullmann? As coxas portentosas de Anita Björk? Nos olhos, a mesma melancolia de Ingrid Thulin? Quem não daria tudo para ouvir os pensamentos da nossa sueca bergmaniana?

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A sexagenária mancando, apoiada numa bengala, carrega duas sacolas cheias de milhos e verduras. Ela está suando e parece fazer um esforço tremendo para caminhar – a feira não é sua via crucis?

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Na banca de rosas, com flores vermelhas, amarelas e brancas, a japonesa lamenta a queda nas vendas. "Ninguém quer ser romântico com a crise. O pessoal quer é comer, né?"

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O amor é o grito suicida na goela do gago .

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O cemitério parece quieto, mas não é. Prestando atenção, você escuta os diálogos dos mortos:
"O mausoléu mais bonito, aqui de Maringá, é do João. Parece obra de arte."
"Se esse treco é uma obra de arte, o que dizer do 'Último Adeus', do Alfredo Oliani, no Cemitério São Paulo?"
"Cala boca, quero dormir!"
"Quem consegue dormir nesse calor?"
"Fosse vivo beberia todos os vasilhames do Divina Dose."
"Venderia fácil minha alma por uma última noitada no Skolzinho."
"Alguém aí sabe dizer que horas são?"
"Mãezinha! As minhocas tão fazendo cosquinha de novo!"

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Às cinco da tarde, a praça Raposo Tavares é melancolicamente erótica. A anã, negra, oferece as perninhas magricelas e as mãozinhas miúdas. Sentada no banquinho, lançando olhares maliciosos, uma prostituta sexagenária veste blusona vermelha, chinelão de dedo e saiona jeans. No sorrisão da doce senhora, o que seduz mais? O dentão amarelo e a verrugona na bochecha esquerda, ou as pernonas infestadas de longas varizes azuis? O amor, na praça Raposo Tavares, tem todos os motivos do mundo.

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À mostra, as perninhas macilentas e cheias de varizes azulonas, que se cruzam e formam cidades com pontes, igrejas, pracinhas, penitenciárias e estádios de futebol, não são as iscas mais eficientes?

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Vinte e poucos anos, loirinha, olhos castanhos, sorrisinho de sexta-feira: com a professora Polyanna Bavia Capdeboscq, você não tomaria todas as lições prazerosas da vida? Mão posta à palmatória - bate!, bate!, bate! - você erra de propósito a tabuada e o bê-à-bá. Sabatinado em plena saleta, diante da cruz de mármore, você confunde briófitas com pteridófitas, troca Machadinho por Zé de Alencar, e, espada em riste!, declara guerra a Oliver Cromwell ou qualquer outro grande nome que desperte admiração da professorinha, oferecendo o corpo inteiro aos tapas e beliscões, ansioso pela punição mais dolorosa - o amor.

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Tomasse aulas com essas novas professoras do Santo Inácio, sua vida seria radicalmente diferente. Você não odiaria Deus, não teria tanto ranço de duplas sertânicas, não compraria brigas com dramaturgos medíocres, não seria adepto fervoroso do sedentarismo, e, talvez, em alguns momentos - além da prosa do Proust, das sonatas do surdo Beethoven, de dois ou três filmes do Bergman -, você, enfim, apreciasse viver.

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Novos acordes sertânicos dão o tom do baile da melhor idade. Quem não dança, aguarda. Sapatinho brilhante, dedões pintados de vermelho, bafão de dezessete maços de cigarro. O olhinho meio torto? Deve ser felicidade.

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Clima de azaração. Troca de olhares. Coxas roçando canelas e sorrisos na melhor idade. Velhos conversam alegrinhos, mãos danadas abanando coxas e pescoços. Línguas rugosas encharcam lábios rachados pelo tempo – a sedução.

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Em quarenta e seis anos de prisão, carcereiro e detenta dividindo a mesma cama de casal.
"E quantos filhos?", vou sondando.
"Tive doze filhos!"
"?!"
"Daí você me pergunta, né? Imagina, então, se o casamento fosse bom, hein?!"
Mais risadas serelepes.
"Naquele tempo, meu filho, se a mulher não queria, tinha que querer..."
"!"
"... sem berro, sem reclamar: na marra."
Uma velha afobada, de olho no verbo alheio, invade a conversa.
"A gente era estuprada! Es-tu-pra-da!", denuncia, aos berros, a voz esganiçada.
"Isso mesmo. Ai de você, se não quisesse..."
"E sempre bêbado, né, Maria?"
"Ca-cha-cei-ro! A mesma desgraça toda santa noite."
Doce gargalhada das duas velhas, alívio das mil e uma noites de horror.

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Única entediada, uma velha tolera o show e, esvaindo-se em suor, encharca o guardanapo de quarenta graus. Sentadinha à mesa, dedinhos batucam versos sertânicos. Desânimo da música ruim, do calor castigando ou da garrafa de água?
"Bom mesmo seria uma cervejinha, né?", pergunto.
Ela escancara dentes branquíssimos – quinze mãos lhe fazendo cócegas, o mesmo êxtase dos dezessete aninhos.
"Ai, sim! Cervejinha bem geladinha", responde, remexendo de um lado para o outro a dentadura vacilante.
"Em busca do grande amor?", vou sondando.
Inquietos, pré-molares e incisivos requebram na boquinha carcomida.
"Deus me livre..."
Cai ou não cai?
"... nunca mais..."
Cai ou não cai?
"... disso tô vacinada."
Correndinha, a mão protege a bocona banguela, inteirinha nua - não para você, mas para pouquíssimos privilegiados. Último ato erótico, arremessado ao lado da cama, nessa longa estrada da vida.

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Latidos de bem-te-vi, cantos de cachorros das casas vizinhas. O solo de nove notas de um pássaro desconhecido te arrebata no Parque Alfredo Nyffeler – você decide, de uma vez por todas, também aprender trompete.

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Nas paredes da cadeia, o preso aproveita o tédio da prisão para compor versinhos delicados, em homenagem a um tal Lincon. Valsinha dois por dois? Pagodinho romântico? Cante como quiser: "Lincon do universo / só bala pra você / seu frango / desse (sic) na vilinha que vc vai morrer / seu safado /Vilinha!!!" Fosse o Lincon, evitaria me embrenhar nalguma Vilinha. Vila Operária. Vila Morangueira. Vila Esperança. Num show do Martinho da Vila. Toda e qualquer vila - nunca, jamais.

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No meio de milhares de velhos enfileirados à espera do autógrafo do padre Marcelo Rossi, avisto, ao longe, uma moçoila. Desconfio do Todo-Poderoso. Não será dessas miragens? Troça celestial para zanzar à toa na multidão? Loirinha, metro e sessenta de pura louvação? Obrigado, Senhor! Afoito, vou abrindo caminho no mar de gente – Moisés, cruzando o mar vermelho, o impávido cajado nas mãos. Depois da longa caminhada, chego finalmente perto dela. Sorte minha, de carne e osso - aleluia! O nome do milagre? Fernanda Félix, 19, aluna de Psicologia da UEM. Simpática, discorre sobre Deus, totens da psicologia, tempestades, Curitiba. Como é bom mulher que se abre.

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A chuva encharca a gripe da criança, inunda o tédio da tarde e agride a velha imóvel na esquina – outro
maldito motorista explodindo poças d'água.

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Se ela estalasse os dedinhos vermelhos, não moveria o Monte Sinai e o Monte Sião? A escuridão não encobriria o Sol por três dias ao seu único pedido? A nuvem de gafanhotos não dominaria a cidade, se ela ordenasse, cochichando no ouvidinho? Claro que sim: moscas atacariam homens e animais!, rãs cobririam a terra!, as águas do Nilo tingir-se-iam de puro sangue!

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O pôr-do-sol lambendo o ônibus - quase seis da tarde.

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Vou me embrenhando numa Maringá sinistra. De ruas apertadas, terrenos abandonados. Da Capela Papa João 23. Dos rostos desconfiados no açougue-boteco. Da Igreja Pentecostal Diante do Trono, com gente de terno e sorrisão nos grandes lábios – o portão sagrado escancara berros da louvação. Pó, poeira, cheiro verde. É noite. Quilômetros e quilômetros mal iluminados apressam o passo da moça, aumentam os batimentos cardíacos do velho, matam de susto o tiozinho na bicicleta. Desses becos Moisés avistou a Terra Prometida? Daqui o Senhor mostrou-lhe toda a terra, de Gileade até Dã? Essa cidade nem de longe lembra a Maringá dos cartões postais.

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Na frente do Mercadão, trânsito infernal. Não é a nossa Julie Manet, caminhando na calçada? Os mesmos olhos tristes, aquela boquinha vermelha?! De sainha rosa, blusinha preta, meia rosa erguidinha e cabelinho preso num rabinho de cavalo - ó hexâmetros órficos da Grécia heroica!, ó margens do rio Hebro!, ó azeite de oliveira puríssimo! De pé, eu me ergo: levanto ligeiro, embasbacado pela mirra mais preciosa, arremessando flores e versinhos líricos.

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As bochechas de um Buldogue, no Parque do Ingá, escorrem do rosto canino – inspiram-se nos relógios
molengões de Dalí ou nas flácidas bochechas do dono amado?

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Na janelinha do Facebook, a morena de vinte aninhos insiste que o empresário sessentão envie selfies eróticos. Seguindo as orientações, ele foi compartilhando tudinho - não era a maior provinha de amor? Orgulhoso de sua torre de Davi!, seu cume de Hermon!, tirou três selfies, sem aumentar nem diminuir nadinha. "E a minha vida, agora, como é que fica?"

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Naquela orelhinha, você não sussurra os versinhos proibidos do danado Bocage? Não entoa, suave, a "Tristesse", do Chopin? Feche os olhos: veja as grinaldas de Hera!, os ramos de videira!, as margens do rio Hebro! Saciadas, as duas loiras da barraca do pastel encerram suas respectivas contas e, cada uma para um lado, partem para o cortejo báquico, ao som dos tamborins dos coribantes. Quem, ali, não ofereceria bodes, coelhos e pássaros corvídeos à passagem das duas deusas?

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Bonfim começou a perder a visão aos 11 anos e ficou completamente cego aos 23. Às quartas de feira, canta quatro horas seguidas.Durante o concerto, volta e meia passa a mão na cumbuca à sua frente – esperto aos larápios sacanas. "Nunca vi alguém me roubando", garante.

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A resposta da moçoila causa cócegas em violinos – já ouviu, assim, tão pertinho, três bailarinas sorrindo?

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Debaixo da mesa, na biblioteca Bento Munhoz da Rocha Netto, a ruivinha vai despindo, lentamente, o All Star colorido. Meinha por meinha, primeiro o pezinho esquerdo e depois o direito, até a brisa geladinha do ar-condicionado refrescar cada dedinho nu. Embasbacado, você testemunha o silencioso strip-tease dos pezinhos da estudante.

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No Ceasa, encontro Rita Andrade de Paula, 76. Leitora fiel. Me presenteia com vinho francês e puxa assunto.
"Pra quê esses olhos tão grandes?"
"Jamais perder o mínimo detalhe."
"E esses dedos, por que tantos calos?"
"Marcas das tantas escritas."
"Por que insiste em usar chapéu?"
"Nele cabem todas as minhas mentiras."
Olhos trêmulos, voz tremelicante.
"E tudo o que você escreve, Gaioto, é mesmo verdade?"
"Tudo é real no universo da ficção."
"Quais conselhos aos jovens escritores?"
"Desista enquanto é tempo."
"E uma segunda dica?"
"Evite reticências... maldito recurso covarde."

RETROSPECTIVA Publicada no Diário (29/12/2015)

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