No terminal rodoviário, você reflete a tua Maringá. Não a Maringá dos
pontos turísticos, da chatíssima igreja-cone e das infinitas
fragrâncias do Rio Bostinha. Não a Maringá dos 547 trovadores, dos
vendedores de sorte ou azar e dos incontáveis berros sertânicos – em
cada bar dessa cidade você é refém de alguma dupla sertaneja. Única
maravilha? Suas calçadas cheias de moças, banhando as delícias debaixo
do bendito sol.
***
Alguns apartamentos do Edifício Maurício Schulman têm cozinhas
e banheiros virados para os corredores. Na porta de um deles, o aviso à
Saramago extermina todas as vírgulas: "Deus está no controle não entre
aqui com raiva mau humor pessimismo intrigas inveja porque acreditamos
na vida que fazemos e principalmente temos fé". Por que exibir sua fé
aos vizinhos? "Ponhando a palavra do Senhor aqui no vidro, quero
impactar um pouco. Muita gente do prédio precisa de Deus", justifica o
sujeito.
***
Latidos graves e potentes ecoam de um dos apartamentos do
Edifício Maurício Schulman. Quem responde, noutra janela, é um latido
menos encorpado, mas também grave. Dá para ouvir tudo bem nítido: dois
barítonos no primeiro ato da opereta canina. Interrompendo o dueto
masculinizado, um terceiro latido, agudo e estridente - eis a nossa
Maria Callas! -, assume o posto de soprano. Nem o severo Karajan seria
capaz de encerrar a performance do trio.
***
Encostadinha no muro, uma loirinha transcendental refestela-se
com pastel de queijo e sodinha bem gelada. Shortinho jeans, blusinha
branca, boquinha pintadinha de vermelho – ai, essas moças de lábios
vermelhos. Não tem ela os ombros altos de Liv Ullmann? As coxas
portentosas de Anita Björk? Nos olhos, a mesma melancolia de Ingrid
Thulin? Quem não daria tudo para ouvir os pensamentos da nossa sueca
bergmaniana?
***
A sexagenária mancando, apoiada numa bengala, carrega duas
sacolas cheias de milhos e verduras. Ela está suando e parece fazer um
esforço tremendo para caminhar – a feira não é sua via crucis?
***
Na banca de rosas, com flores vermelhas, amarelas e brancas, a
japonesa lamenta a queda nas vendas. "Ninguém quer ser romântico com a
crise. O pessoal quer é comer, né?"
***
O amor é o grito suicida na goela do gago .
***
O cemitério parece quieto, mas não é. Prestando atenção, você escuta os diálogos dos mortos:
"O mausoléu mais bonito, aqui de Maringá, é do João. Parece obra de arte."
"Se esse treco é uma obra de arte, o que dizer do 'Último Adeus', do Alfredo Oliani, no Cemitério São Paulo?"
"Cala boca, quero dormir!"
"Quem consegue dormir nesse calor?"
"Fosse vivo beberia todos os vasilhames do Divina Dose."
"Venderia fácil minha alma por uma última noitada no Skolzinho."
"Alguém aí sabe dizer que horas são?"
"Mãezinha! As minhocas tão fazendo cosquinha de novo!"
***
Às
cinco da tarde, a praça Raposo Tavares é melancolicamente erótica. A
anã, negra, oferece as perninhas magricelas e as mãozinhas miúdas.
Sentada no banquinho, lançando olhares maliciosos, uma prostituta
sexagenária veste blusona vermelha, chinelão de dedo e saiona jeans. No
sorrisão da doce senhora, o que seduz mais? O dentão amarelo e a
verrugona na bochecha esquerda, ou as pernonas infestadas de longas
varizes azuis? O amor, na praça Raposo Tavares, tem todos os motivos do
mundo.
***
À mostra, as perninhas macilentas e cheias de varizes
azulonas, que se cruzam e formam cidades com pontes, igrejas, pracinhas,
penitenciárias e estádios de futebol, não são as iscas mais eficientes?
***
Vinte e poucos anos, loirinha, olhos castanhos, sorrisinho de
sexta-feira: com a professora Polyanna Bavia Capdeboscq, você não
tomaria todas as lições prazerosas da vida? Mão posta à palmatória -
bate!, bate!, bate! - você erra de propósito a tabuada e o bê-à-bá.
Sabatinado em plena saleta, diante da cruz de mármore, você confunde
briófitas com pteridófitas, troca Machadinho por Zé de Alencar, e,
espada em riste!, declara guerra a Oliver Cromwell ou qualquer outro
grande nome que desperte admiração da professorinha, oferecendo o corpo
inteiro aos tapas e beliscões, ansioso pela punição mais dolorosa - o
amor.
***
Tomasse aulas com essas novas professoras do Santo Inácio, sua
vida seria radicalmente diferente. Você não odiaria Deus, não teria
tanto ranço de duplas sertânicas, não compraria brigas com dramaturgos
medíocres, não seria adepto fervoroso do sedentarismo, e, talvez, em
alguns momentos - além da prosa do Proust, das sonatas do surdo
Beethoven, de dois ou três filmes do Bergman -, você, enfim, apreciasse
viver.
***
Novos acordes sertânicos dão o tom do baile da melhor idade.
Quem não dança, aguarda. Sapatinho brilhante, dedões pintados de
vermelho, bafão de dezessete maços de cigarro. O olhinho meio torto?
Deve ser felicidade.
***
Clima de azaração. Troca de olhares. Coxas roçando canelas e
sorrisos na melhor idade. Velhos conversam alegrinhos, mãos danadas
abanando coxas e pescoços. Línguas rugosas encharcam lábios rachados
pelo tempo – a sedução.
***
Em quarenta e seis anos de prisão, carcereiro e detenta dividindo a mesma cama de casal.
"E quantos filhos?", vou sondando.
"Tive doze filhos!"
"?!"
"Daí você me pergunta, né? Imagina, então, se o casamento fosse bom, hein?!"
Mais risadas serelepes.
"Naquele tempo, meu filho, se a mulher não queria, tinha que querer..."
"!"
"... sem berro, sem reclamar: na marra."
Uma velha afobada, de olho no verbo alheio, invade a conversa.
"A gente era estuprada! Es-tu-pra-da!", denuncia, aos berros, a voz esganiçada.
"Isso mesmo. Ai de você, se não quisesse..."
"E sempre bêbado, né, Maria?"
"Ca-cha-cei-ro! A mesma desgraça toda santa noite."
Doce gargalhada das duas velhas, alívio das mil e uma noites de horror.
***
Única entediada, uma velha tolera o show e, esvaindo-se em
suor, encharca o guardanapo de quarenta graus. Sentadinha à mesa,
dedinhos batucam versos sertânicos. Desânimo da música ruim, do calor
castigando ou da garrafa de água?
"Bom mesmo seria uma cervejinha, né?", pergunto.
Ela escancara dentes branquíssimos – quinze mãos lhe fazendo cócegas, o mesmo êxtase dos dezessete aninhos.
"Ai, sim! Cervejinha bem geladinha", responde, remexendo de um lado para o outro a dentadura vacilante.
"Em busca do grande amor?", vou sondando.
Inquietos, pré-molares e incisivos requebram na boquinha carcomida.
"Deus me livre..."
Cai ou não cai?
"... nunca mais..."
Cai ou não cai?
"... disso tô vacinada."
Correndinha,
a mão protege a bocona banguela, inteirinha nua - não para você, mas
para pouquíssimos privilegiados. Último ato erótico, arremessado ao lado
da cama, nessa longa estrada da vida.
***
Latidos de bem-te-vi, cantos de cachorros das casas
vizinhas. O solo de nove notas de um pássaro desconhecido te arrebata no
Parque Alfredo Nyffeler – você decide, de uma vez por todas, também
aprender trompete.
***
Nas paredes da cadeia, o preso aproveita o tédio da prisão
para compor versinhos delicados, em homenagem a um tal Lincon. Valsinha
dois por dois? Pagodinho romântico? Cante como quiser: "Lincon do
universo / só bala pra você / seu frango / desse (sic) na vilinha que vc
vai morrer / seu safado /Vilinha!!!" Fosse o Lincon, evitaria me
embrenhar nalguma Vilinha. Vila Operária. Vila Morangueira. Vila
Esperança. Num show do Martinho da Vila. Toda e qualquer vila - nunca,
jamais.
***
No meio de milhares de velhos enfileirados à espera do
autógrafo do padre Marcelo Rossi, avisto, ao longe, uma moçoila.
Desconfio do Todo-Poderoso. Não será dessas miragens? Troça celestial
para zanzar à toa na multidão? Loirinha, metro e sessenta de pura
louvação? Obrigado, Senhor! Afoito, vou abrindo caminho no mar de gente –
Moisés, cruzando o mar vermelho, o impávido cajado nas mãos. Depois da
longa caminhada, chego finalmente perto dela. Sorte minha, de carne e
osso - aleluia! O nome do milagre? Fernanda Félix, 19, aluna de
Psicologia da UEM. Simpática, discorre sobre Deus, totens da psicologia,
tempestades, Curitiba. Como é bom mulher que se abre.
***
A chuva encharca a gripe da criança, inunda o tédio da tarde e
agride a velha imóvel na esquina – outro
maldito motorista explodindo
poças d'água.
***
Se ela estalasse os dedinhos vermelhos, não moveria o Monte
Sinai e o Monte Sião? A escuridão não encobriria o Sol por três dias ao
seu único pedido? A nuvem de gafanhotos não dominaria a cidade, se ela
ordenasse, cochichando no ouvidinho? Claro que sim: moscas atacariam
homens e animais!, rãs cobririam a terra!, as águas do Nilo
tingir-se-iam de puro sangue!
***
O pôr-do-sol lambendo o ônibus - quase seis da tarde.
***
Vou me embrenhando numa Maringá sinistra. De ruas apertadas,
terrenos abandonados. Da Capela Papa João 23. Dos rostos desconfiados no
açougue-boteco. Da Igreja Pentecostal Diante do Trono, com gente de
terno e sorrisão nos grandes lábios – o portão sagrado escancara berros
da louvação. Pó, poeira, cheiro verde. É noite. Quilômetros e
quilômetros mal iluminados apressam o passo da moça, aumentam os
batimentos cardíacos do velho, matam de susto o tiozinho na bicicleta.
Desses becos Moisés avistou a Terra Prometida? Daqui o Senhor
mostrou-lhe toda a terra, de Gileade até Dã? Essa cidade nem de longe
lembra a Maringá dos cartões postais.
***
Na frente do Mercadão,
trânsito infernal. Não é a nossa Julie Manet, caminhando na calçada? Os
mesmos olhos tristes, aquela boquinha vermelha?! De sainha rosa,
blusinha preta, meia rosa erguidinha e cabelinho preso num rabinho de
cavalo - ó hexâmetros órficos da Grécia heroica!, ó margens do rio
Hebro!, ó azeite de oliveira puríssimo! De pé, eu me ergo: levanto
ligeiro, embasbacado pela mirra mais preciosa, arremessando flores e
versinhos líricos.
***
As bochechas de um Buldogue, no Parque do Ingá, escorrem do
rosto canino – inspiram-se nos relógios
molengões de Dalí ou nas
flácidas bochechas do dono amado?
***
Na janelinha do Facebook, a morena de vinte aninhos insiste
que o empresário sessentão envie selfies eróticos. Seguindo as
orientações, ele foi compartilhando tudinho - não era a maior provinha
de amor? Orgulhoso de sua torre de Davi!, seu cume de Hermon!, tirou
três selfies, sem aumentar nem diminuir nadinha. "E a minha vida, agora,
como é que fica?"
***
Naquela orelhinha, você não sussurra os versinhos proibidos do
danado Bocage? Não entoa, suave, a "Tristesse", do Chopin? Feche os
olhos: veja as grinaldas de Hera!, os ramos de videira!, as margens do
rio Hebro! Saciadas, as duas loiras da barraca do pastel encerram suas
respectivas contas e, cada uma para um lado, partem para o cortejo
báquico, ao som dos tamborins dos coribantes. Quem, ali, não ofereceria
bodes, coelhos e pássaros corvídeos à passagem das duas deusas?
***
Bonfim começou a perder a visão aos 11 anos e ficou
completamente cego aos 23. Às quartas de feira, canta quatro horas
seguidas.Durante o concerto, volta e meia passa a mão na cumbuca à sua
frente – esperto aos larápios sacanas. "Nunca vi alguém me roubando",
garante.
***
A resposta da moçoila causa cócegas em violinos – já ouviu, assim, tão pertinho, três bailarinas sorrindo?
***
Debaixo da mesa, na biblioteca Bento Munhoz da Rocha Netto, a
ruivinha vai despindo, lentamente, o All Star colorido. Meinha por
meinha, primeiro o pezinho esquerdo e depois o direito, até a brisa
geladinha do ar-condicionado refrescar cada dedinho nu. Embasbacado,
você testemunha o silencioso strip-tease dos pezinhos da estudante.
***
No Ceasa, encontro Rita Andrade de Paula, 76. Leitora fiel. Me presenteia com vinho francês e puxa assunto.
"Pra quê esses olhos tão grandes?"
"Jamais perder o mínimo detalhe."
"E esses dedos, por que tantos calos?"
"Marcas das tantas escritas."
"Por que insiste em usar chapéu?"
"Nele cabem todas as minhas mentiras."
Olhos trêmulos, voz tremelicante.
"E tudo o que você escreve, Gaioto, é mesmo verdade?"
"Tudo é real no universo da ficção."
"Quais conselhos aos jovens escritores?"
"Desista enquanto é tempo."
"E uma segunda dica?"
"Evite reticências... maldito recurso covarde."
RETROSPECTIVA Publicada no Diário (29/12/2015)
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