quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Raul Seixas, top model, choro, paraíbas e trenzinho de tédio

"Eu não sou besta pra tirar onda de herói. Sou vacinado, eu sou cowboy. Cowboy fora da leeeei!", esgoela-se o rapaz magricelo, empunhando um velho violão, na frente de uma loja. São oito horas da noite e o comércio surge escancarado. Vai e vem de gente, famílias inteiras, uma e outra pessoa com sacola de presente nas mãos. Quinze loiras cruzam a calçada em um minuto e meio de canção – ninguém arremessa moedinhas, nem ao menos acenos e afagos ao jovem cantor. As capengas luzes coloridas, agarradas aos troncos das árvores, deveriam distribuir alegria aos cantos da cidade – as ruas não ficam, no final das contas, mais tristes e melancólicas? No caos da São Paulo, o cantor insiste nos versos ignorados. "Durango Kid só existe no gibiiii." A criança babona tapa com as mãozinhas as duas únicas orelhas, irritadiça de Raul. "E quem quiser, que fique aquiiii." Tivesse outra orelha, não taparia também a terceira? Dois gordos riem deboches do artista – a voz do povo não é a voz de Deus? Uma velha se benze, fazendo sinal da cruz – rock nunca foi coisa do Senhor. "Entrar pra história é com vocêêêês", finaliza o sujeito, berrando ainda mais alto, diante do descaso público.

Sem única palma, encosta o violão na parede. A pausa do cantor popular não tem pedidos de selfies nem disputa por autógrafos. Onde as tantas groupies insaciáveis? Calça jeans, camiseta preta, chapéu de vaqueiro. O cansaço evidente de quantos concertos?

"Tô desdas duas. Canto uma hora, uma e pouco. Daí, intervalo. Senão, diretão, ninguém guenta", comenta Jair Moreira, 20, sem estrelismos nem petulantes assessores de imprensa.

A capa da viola, dormindo no chão, não recebeu notas nem moedas. Mas o público nem sempre é tão muquirana.

"Já teve dia que tirei R$ 120", gaba-se o cantor, que mora em Sarandi e toca para cá quase diariamente, há seis meses, onde assume a trilha da calçada. De repertório minimalista, dedica-se a retomar canções de apenas três artistas: Raul Seixas, Zé Ramalho e Ventania. Sua Santíssima Trindade. Vez ou outra, sem aviso prévio, chega a executar uma de suas únicas doze músicas próprias.

"Tudo que faço, ofereço pra Ele..."

Outro desses - ai, não! - louvadores da aleluia.

"...quem me guia e me rege..."

Santa paciência: prepara-te para três horas ininterruptas de conversão religiosa.

"...quem me socorre e me protege..."

Por que tão onipresente, pô?!

"...meu Santo Satanás..."

"!!!"

"...meu Pai da magia..."

"?!?"

"...quem sempre tudo dá."

Pergunto sobre o Diabo. Jair responde tudo baixinho - jamais ser descoberto pelos cristãos maringaenses, ainda mais em climão natalino.

"Nossa seita, em Sarandi, conta com vários fiéis, mas eu não posso te dar detalhes. É tudo secreto", adianta.

"Não tem filial em Maringá?"

"Infelizmente, não."

Disso, já suspeitava. Nem o Diabo suporta esta cidade infernal, terra das trezentas duplas sertânicas.

"Muitas oferendas em Sarandi?", questiono.

"Claro. Dia desses sacrificamos um bode. Acho que Ele gostou. Mas o comum é oferecer galinha preta e coelho."

"São alegres as celebrações?"

"Com muita música, viola, pacto de sangue e bruxaria: tudo com muito respeito e bom gosto."

"Quais princípios da turma satânica?"
"Liberdade, amor, vida e luta."

"Paga pra entrar?"

"Tem o cofrinho do dízimo. Quem pode, vai colaborando."

"!"

"Alguém tem que bancar as velas, o sal grosso... São várias despesas."

Balaio do dízimo. Musiquinha fervorosa. Fiéis clamando milagres. Orações e sacrifícios. Deus & Diabo não são tão diferentes assim na terra do sol.

Agruras do coração

Longe dos seguidores diabólicos, vou flanando pela Brasil anoitecida. Papai Noel sorridente. Árvores enfeitando vitrines. "PROMOÇÃO." "TUDO POR R$ 10,99." "PRESENTE DE NATAL E AMIGO SECRETO É AQUI." Entro. Chinelo verde. Cadeira de praia. Bomba de chimarrão. Boia de jacaré. Copo vermelho. Boia de pato. Puff rosado. Todo mundo espia, mas poucos abrem carteiras. No bocejo da vendedora, o tédio de nada fazer. Animadinha, a senhora serelepe é a única empolgada nas compras.

"Venha cá, Camila, ponha isso por cima!"

A garota de cinco aninhos obedece e vai vestindo o vestido branquelo.

"A Camila é oito, né?"

"Isso, mãe."

Decotadíssima e curtíssima, a tal peça infantil.

"Sei não, hein. Isso aí tá curto demais."

"Que nada, filha, tá cada vez mais quente!"

A menina tira o vestido, a vó já enfia outro pela cabeça.

"Um mais lindo que o outro!"

Debando da loja. O trenzinho cheio de crianças cruza a Brasil, tocando musiquinha estridente e revelando rostos entediados.

Planalto bombástico

"Ólhaaa rédi!", anuncia o paraibano na calçada.

"Quanto, amigo?", indaga o pai de família, já prevendo a sesta serena, apreciando a qualidade dos panos na ponta dos dedos.

"Quarentinha!"

"Credo, que horror!", diz, imediatamente afastando a mão – o mesmo pavor de tocar num velho leproso.

As pencas de pano não emplacam. Culpa de quem?

"Da Dílma. Ela meréce sábi u quê?"

"?"

"Qui um cábra ponha dinamíti e exploda túdo áquilo lá."

"!"

"Tém que explodí a Dílma!"

Anti-cristos, crise econômica e paraibanos explosivos. Tem quase de tudo. Menos travestis e garotas de programa. Ninguém quer se exibir com tanta gente zanzando de lá para cá, nas mesmas calçadas natalinas.

Agruras do coração II

Passos adiante, uma pausa. Não para contemplar as chatíssimas árvores de luzinhas tortas. Mas, sim, para aplaudir um vestidíssimo branco. Tatuagem indecifrável no punho. Às nove e pouco, esperando familiares consumistas. Sobrancelhas perdidas na Getúlio Vargas, rosto ensopado de lágrimas.

"Por que choras, meu bem?"

Deve ser essa época do ano. Todos, cada vez mais melancólicos.

"Não, nada disso. Adoro Natal. O problema não é a festa..."

No cantinho da bochecha, uma lágrima salta ao suicídio.

"...meu problema é ele."

Namorado? Ex? Noivo? Maridão louco de amor?

"Um amigo... meu vizinho. Resolveu infernizar minha vida e fica 'fazendo fusquinha'!"

"?"

"Virar a cara, fingir que nem sabe o motivo do choro: isso é 'fazer fusquinha'."

Entre os grandes lábios, trinta e dois dentes respondem a cócegas imaginárias da gíria automobilística – finalmente, um sorriso.

"Não admito que pensem isso de mim, sabe?"

"..."

"Sou tra-ba-lha-do-ra. Estudo à noite, trampo o dia in-tei-ro, de do-min-go a do-min-go. E agora vem esse i-di-o-ta..."

Mãos que se coçam não querem esganar o vizinho?

"...dizer pra toda a minha família que eu sou..."

"?"


"...ga-ro-ta de pro-gra-ma?!"

Um rapaz moreno invade nosso diálogo. Meio constrangimento de. Teria ele? Achando que ela? Ai, não.

"Aceitam cone trufado?", questiona o vendedor, fingindo nada ouvir.

Essa época do ano, todo mundo tem algo a oferecer.

Educadamente, a moça responde que não. Também dispenso acepipes adocicados.

"Me desculpe, viu? Sou assim, toda derramada..."

Braços morenos arrepiadinhos pela lambida do vento.

"...qualquer coisa, eu choro."

Quer dizer, chorava. Agora, seu rosto surge livre da tristeza. A mãe, gorducha cheia de compras, surge por trás e diz que é hora de ir embora. Menos tristonha, a moça agradece o dedo de prosa. Você, anônimo psicólogo das ruas maringaenses.

Top model

Quando me dou conta, estou sentado num ponto de ônibus da Joubert de Carvalho. Há umas três horas, quando o Sol ainda dava os últimos acenos, foi exatamente aqui. Ainda, no ar, os mesmos tons de begônias e camélias. De início, desconfiei de minha miopia. Forcei a vista. Ombros altos, olhos castanhos, lábios vermelhíssimos. Séria sisuda. Mulheres assim não existem só na ficção? Sainha jeans, um palmo e meio acima dos joelhos - ai, que joelhos. A literatura não surpreende tanto quanto a misteriosa moçoila maringaense. O nó na blusinha jeans exibia o mais lírico dos umbigos – ali se encontram o Bem, a Beleza e a Verdade. Já leu as linhas de umbiguinho tão poético? Dois quartetos e dois tercetos. Decassílabos platônicos. Dicção severa. Sussurros de Shakespeare & Camões. Naquele umbiguinho, razão e emoção te confundem. Catatônico, fui puxando assunto.

"Aposto que..."

Um metro e setenta e nove de curvas morenas te encarando sem curiosidade.

"...modelo?"

Sinta cada perfume: mescla de lírio do vale, begônias,camélias, gardênias, jasmim-manga e canela.

"Como adivinhou?", surpreendeu-se Mariana.

A boquinha vermelha acelera teus batimentos cardíacos – uma escola de samba inteirinha com repiques, surdos, chocalhos, cuícas e tamborins batucando teu próprio peito.

"Sou modelo formada há muitos anos. Fiz fotos, desfilei em São Paulo, Curitiba, Londrina, Cianorte e até posei para a Vogue brasileira."

"!"

"Mas a foto só saiu da cintura pra baixo..."

"!"

"...era matéria sobre calça jeans."

Ai, o tão esperado sorrisinho natalino. Geralmente, essas modelos são todas secas e antipáticas. Tudo diferente com nossa top model. Nas marés de Mariana, você navega o Pacífico, o Atlântico Índico, o Glacial Ártico e o Antártico – cuidado, Gaioto, para nela não se afogar.

"Tô pensando seriamente em ir embora desta cidade."

Ai, não. Nunca!

"Aqui, modelos magrinhas, como eu, não têm muito mercado. Só querem essas do tipo paniquetes, bombadas e tal."

Maringá, túmulo da beleza feminina.

"E o tal do book rosa... você já..."

"Nunca nem ouvi dizer dessas coisas por aqui."

"E o namorado? Aposto que..."

"Larguei domingo. Em dúvida se gostava ou não."

Solteiríssima, ela estende o braço nu de pelinhos dourados. É o ônibus dela. Tua despedida tem gosto amargo - não poderia ser diferente.

"Última pergunta: qual idade?"

"Dezesseis anos. Acredita?"

"!!!"

"Vou terminar o Ensino Médio e ir embora dessa cidade."

E me pego salivando detalhes do encontro, ainda em plena Joubert de Carvalho. No adeus daquela boquinha vermelha, você não dá todas as razões ao maldito Humbert Humbert?

Publicado no Diário (13/12/15)

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