segunda-feira, 29 de junho de 2015

Salas, sonhos, hippies, letras, superação, amores e viagens

Não gosto de perambular por lugares tristes, embora tenha total consciência de que a boa arte é, essencialmente, uma só tristeza. Você encara “MacBeth”, “Rei Lear” ou “Hamlet” gargalhando? Escuta o Quarteto nº 2, do Buhuslav Martinu, rindo à beça? Difícil imaginar alguém com ataques de risos num filme do Bergman. O sorrisão do pagodeiro, os coraçõezinhos felizardos de Romero Britto, as gargalhadas desses comediantes de stand-up – a felicidade, eterna inimiga da arte maior. Vou pensando nisso no meio do bar-lanchonete. Quase quatro da tarde. A loirinha da TV dá os detalhes do enterro de algum cantor sertanejo. Cristino Araújo, Cristiano Ronaldo, qualquer treco assim.

“Ele lançou os grandes sucessos ‘Efeitos’ e ‘Mente pra Mim’. É ídolo de Goiânia”, ensina a moça da TV. Tento lembrar algum refrão dessas músicas. Não lembro nenhum. Devo ser o único a ignorar a obra poética e musical do tal Cristino Araújo. Porque logo atrás da repórter surgem milhares de mulheres chorando, enfileiradas, esperando a vez de se aproximar do túmulo.

 “Que pena, né? Tão jovem...”

O sujeito quarentão, camisa verde e bermuda, chega puxando assunto.

“... morreu ele e a namorada, cê viu?”

“Não, não vi”, respondo, de olho na TV.

E começo a pensar em Shakespeare, Bergman e Buhuslav Martinu no momento em que a telinha exibe cenas do tal cantor sertanejo, todo sorridente, balançando as mãos e batendo palmas, em cima do palco, entoando outro desses arrochas universitários.

“Bem agora que ele tava começando a ganhar dinheiro, que coisa.”

“Você era fã? Quais suas três músicas favoritas dele?”, questiono.

O sujeito perde a resposta na goela.

“Rapaz, agora cê me pegou. Não conheço, não. Na verdade, minha filha é que gosta. Ele tem aquela música lá, sabe?”

“...”

“Aquela lá, que fala não sei o quê do amor?”

“...”

“Olha, pra falar a verdade, eu nem gosto dele, não.”

 “?!”

“Não é porque esse moleque morreu que eu vou ficar gostando dele.”

“?!”

“O que eu gosto, mesmo, é de sertanejo raiz”, confessa o sujeito.

Outro cara, agora de dentro do balcão, pergunta se quero alguma coisa. Cafezinho, cerveja, esfihas, suco, chips, pão de queijo a R$ 1. É tentador, mas ainda não. Única porta, abre durante a semana, das 7h às 23h, servindo um pouco de tudo. “90% da clientela é por causa do colégio”, comenta o proprietário do bar-lanchonete Pasárgada. Voltarei depois, eu digo, e saio do bar-lanchonete. Engraçado. No famoso poemeto, o velho Bandeira diz que, quando estiver triste, triste de não ter jeito, vai-se embora pra Pasárgada. Bandeira também não era chegado na tristeza. Coincidentemente, Pasárgada fica a meia dúzia de passos do Ceebja (Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos), na Rua Paranaguá, 430.

Quem me mandou pra cá foi o Emanuel Lopes. Num e-mail muito gentil, ele disse ser um “leitor assíduo” dessas mal traçadas linhas e garantiu que o local renderia boas histórias. Sei não. Como eu disse, não gosto de perambular por lugares tristes -quem cruza esse portão não escorrega num barranco de melancolia?

Caminho a passos céleres. Roleta. Coordenação. Secretaria. Bebedouros. Banheiros. Pátio deserto. Portas escancaradas de saletas vazias. TVs alaranjadas. Pego o corredor. Centenas de apostilas coloridas empilhadas num canto. Deve ser nessa porta escancarada. Entro. Um grande galpão - quadra de esportes? -, com salas improvisadas e delimitadas por divisórias de um metro de altura. Várias salas. Inglês. Sociologia. Física. Química. Filosofia. Matemática. O nome de cada matéria pregado no alto da parede. Um silêncio generalizado: é dia de prova. Tiozinhos sessentões e jovens de 18 a 30 anos se debruçam sobre as questões. Todo mundo realmente concentrado. Epa, quase todo mundo. Observe com calma: ali, ó, na última fileira de Inglês, empunhando um celular hipermoderno, a senhorinha sessentona confere as últimas atualizações do Facebook e, escondendo-se de professores e alunos – ó assassino que envenena o próprio pai, toma o trono e casa-se com a rainha! -, hesita por um instante em trocar mensagens pelo WhatsApp. Responder ou não responder, eis a questão? Dedinhos enrugados e serelepes fazem cócegas na tela – ela responde.

Unidos na exclusão

“Todo mundo que está aqui passou por um processo de exclusão. Ou teve que trabalhar no lugar de estudar, ou repetiu de ano, ou teve algum problema pessoal”, comenta uma professora que pede para não ser identificada. “Tem muita gente que aprende, já adulto, a ler e escrever aqui. Tem o caso de uma senhora, de 50 anos, que nasceu no Nordeste, passou fome e sede, numa vida miserável, e só agora, há alguns anos, veio se alfabetizar com a gente. Hoje, como ela consegue se explicar e falar com alguma desenvoltura, diz pra todo mundo que se acha uma madame”, relata outra professora.

O maior desafio da escola, ela conta, é fazer com que os alunos não desistam no meio do processo de aprendizado. “Muitos abandonam porque não conseguem conciliar com o trabalho. E tem o lado negativo: antes, os alunos poderiam vir no horário que quisessem. Hoje, os horários são definidos. Essa organização é prejudicial pro aluno”, observa.

Na saleta de inglês, uma garota se levanta. Caminha até a professora, entrega a prova e, discreta, sai do galpão de aulas coletivas. Crislaine Felipe, 26, estuda geografia, inglês e educação física, todos os dias, de manhã e de tarde. Pretende concluir os estudos de 5ª a 8ª série até o final do ano. Mora perto do colégio, junto com um irmão, e vem a pé: quinze minutos de caminhada. Paranaense nascida em Mariluz, a cerca de 138 quilômetros de Maringá, ela começou a trabalhar desde muito cedo com o corte de cana e, depois, virou auxiliar de cozinha num restaurante oriental. “Eu já tinha reprovado quatro vezes a 4ª série. Estava parada, sem fazer nada, e foi aí que comecei a trabalhar. Eu tinha desistido do estudo”, diz. A rotina, na casa dela, era de muito suor. Mais dois irmãos trabalhavam na roça e ajudavam nas despesas. O pai, caminhoneiro, abandonou a família e nunca mais deu as caras. “Minha mãe, que era espancada todo o dia pelo novo marido, foi uma heroína: conseguiu colocar comida dentro de casa pra todos nós.”

Hoje, Crislaine não abre mão da sala de aula. E sonha longe. “Quero seguir o exemplo do meu irmão e conseguir ser uma boa professora. Um dia ainda vou me formar na UEM”, diz. Com 40 anos, o irmão dela, que hoje dá aulas em Campo Mourão, fez das tripas coração para virar professor de História. Deslocava-se diariamente de Mariluz a Umuarama, onde estudava, e contava com a ajuda dos professores, que vez ou outra lhe ofereciam lanches e bolachas. “Ele pegava o ônibus às cinco da manhã e chegava em casa a uma hora da manhã do dia seguinte. Passava o dia inteiro estudando, muitas vezes passando fome. Se ele venceu, eu também posso vencer na vida”, comenta.

Desejo boa sorte à Crislaine. É sempre bom trombar com pessoas determinadas. Volto a vagar pelo Ceebja. Numa saleta de artes, um grupo de vinte e poucas pessoas tem seus dotes artísticos avaliados. Concentrados, alunos capricham nos traços e cores. Saio. Três senhoras passam por mim. Comentam, alegrinhas, o desempenho na prova.

“Fui um horror. E você?”

“Mais ou menos. Sorte que eles não podem reprovar a gente.”

Amor x sala de aula

Com roupas de academia, Amanda Amancio, 18, cruza a roleta rumo à rua. Parece um bocado cansada depois da prova – os pés na calçada sustentam a alminha exausta. Novata na área, ela encara o supletivo de dia e à noite, há duas semanas. Recém-casada, Amanda ficou um ano sem estudar. O amor, já dizia Diógenes, não é mesmo “a desocupação dos desocupados”? Sempre certeiro, o nosso Cínico. “O casamento modifica toda a sua vida. Vida a dois, dar mais atenção ao marido, esse tipo de coisa. Como estamos emocionalmente e economicamente mais estáveis, quero voltar a estudar e sonho cursar Psicologia, na UEM”, comenta. Enquanto a faculdade não chega, ela continua a se deslocar, diariamente, de Paiçandu, onde mora, a Maringá. “Em Paiçandu, o Ceebja é só de noite. Minhas noites, eu divido com meu marido”, diz.

Já estou há quase uma hora vagando pelo Ceebja. Bate forte a fome no peito. Lembro do pão de quejo a R$ 1. Chega de tristeza. Vou-me embora pra Pasárgada. Lá, peço o tal acepipe a preços módicos. O sujeito que falava sobre o sertanejo sumiu de cena. O Pasárgada estaria deserto, se não fosse a garota com os dreads cheios de cabelos. De vestidinho colorido, chinelinho rosa e blusinha preta, a curitibana Ellen Patricio guarda uma porção de viagens e mil e uma aventuras em seus 18 aninhos. Numa das poucas mesas do Pasárgada, ela toma um cafezinho e se regala com pão de queijo, enquanto segue a leitura do livro “Maestros, Obras-Primas e Loucura”, do Norma Lebrecht. Olhinhos intensos e voz maviosa, diz que parou de estudar aos 15 aninhos.

“Só não me pergunte o motivo. Porque eu nunca te direi”, responde, desafiadora. Certo, certo. Mudemos o rumo da conversa. Sobre qualquer outro tema, porém, ela topa falar numa boa. Da paixão por caiaques, ioga, cachoeiras e muita natureza. De sua admiração por Van Gogh, Modigliani, Picasso. De seu bom gosto musical, que vai de Caetano Veloso e Chico Buarque a Chopin e Bach, passando por Louis Armstrong e John Coltrane. “Acho que tô em fase de transição: nem gosto mais tanto de reggae”, reconhece. Dos mochilões por Sergipe, Mato Grosso do Sul, Bahia, Alagoas, Minas Gerais, conversando com nativos, buscando inspiração, vivendo a vida intensamente – quem sorri, ela ou você? Das oito telas já pintadas e a vontade danada de cursar Artes Visuais, talvez em Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, em qualquer canto do País.

Curioso, você, pelos quadros da nossa jovem pintora on the road? De nada adianta fuçar na internet, vasculhando as plataformas sociais da moçoila. “Pintar é algo muito íntimo: não mostro para qualquer um. Tô até planejando uma exposição, mais pra frente. Mas, se isso acontecer, terei que estudar como fazer as réplicas desses meus quadros. Ciumenta que sou, me recuso a exibir os originais ao público”, diz, já de olho no relógio e debandando de Pasárgada. “Tô atrasada pra aula de ioga, fica aqui perto. Tchau, bom falar contigo.”

Seis e pouco da tarde, mais alunos vão tomando a frente do Ceebja. Futuros pintores, psicólogos, professores – quantos sonhos cabem numa só pessoa? -, quase todos com passados lúgubres ou arrependidos. Na mesa do bar-lanchonete Pasárgada, ouço Bandeira sussurrar os famosos versinhos de seu poemeto: “E quando eu estiver mais triste / Mas triste de não ter jeito / Quando de noite me der / Vontade de me matar / — Lá sou amigo do rei — / Terei a mulher que eu quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada”. Colado ao Ceebja, o paraíso de Bandeira está localizado a menos de meia dúzia de passos. Para toda essa gente, à espera do início da aula, o paraíso fica um pouquinho mais distante, a duas quadras, precisamente, nalguma sala da UEM.

Publicado no Diário (29/6/15)

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Cabelo, barba, lobisomens e muitas outras histórias

Os planos eram mirabolantes e cheios de luxo, no início dos anos setenta. Erguido na Avenida Brasil, num edifício imponente, com quatro andares e influências arquitetônicas do Modernismo, o atual Centro Comercial deveria ser uma espécie de Galeria Lafayette, reunindo lojas de roupas caras, perfumes europeus, joias, relógios e outros milhares de acessórios de gala.

Difícil imaginá-lo, assim, esquecido ao lado da Praça Raposo Tavares, com as paredes pichadas e surradas – restos resistentes da Maringá d'antanho. No lugar das lojas afrancesadas, os quatro andares foram tomados por advogados, contadores, cabeleireiros, dentistas, vendedores de auditórios para igrejas e até uns sujeitos desconfiados, silenciosos em escritórios sem fachadas, trabalhando sabe-se lá com o quê.

Passo pela farmácia na esquina, desviando de treze pombas obesas e de quinze barrigonas se fartando com cachorro quente – a salsicha na chapa é a perdição do gorducho. Vou entrando pela porta que dá para a Brasil. Quase todas as lojas têm portas de vidro: olhar e ser visto, nas ruas ou nos corredores. Óculos nas prateleiras, máquinas fotográficas antigas, dezenas de celulares. Aparelhões cinzas, vermelhos, azuis, modernetes, com câmera de vídeo e fotos em alta resolução – sonho de consumo de todo tarado, recebendo e enviando mil e uma obscenidades.

Barbeiro das estrelas
No térreo, reencontro Nelson Ide, 71. Um barbeiro finíssimo, bom de prosa e, sobretudo, privilegiado. Proprietário do Ide Cabeleireiro, há 27 anos no Centro Comercial, Nelson aparou a cabeleira de todo o tipo de gente: gloriosas atrizes globais, ícones da UDR, baluartes do MST, três ditadores, quatro ex-BBBs depravadas e sete santíssimos cardeais. No início dos anos noventa, Bob Dylan era figurinha fácil: entabulava longas conversas com os clientes, quase sempre falando de Deus e das maravilhas provindas do Senhor. João Gilberto, Caetano Veloso e Elomar, ocupando num sábado de manhã as três confortáveis cadeiras do salão, chegaram a fazer planos para uma turnê, juntos, dividindo o mesmo palco e entoando somente canções de Dorival Caymmi. Desde que aderiu à reclusão, David Bowie dá as caras pelo menos cinco vezes por semestre, pede o corte de sempre e até dá uma palhinha, geralmente no final da tarde - prova irrefutável, o violão com a dedicatória carinhosa na parede do salão: "To Nelson, with love, Bowie".

Pintores, filósofos e fazendeiros abastados convivem em harmonia no salão do Nelson, que ainda conta, na labuta diária, com a ajuda de sua esposa, Nilda Ide, e da funcionária Cleuza Ferreira. Além dos cortes caprichados, o salão tem outro atrativo: um café de receita sigilosa, preparado com blends especiais. "Ninguém faz um café como o meu: é bebericando que a gente põe o papo em dia", conta Nilda. À base da cafeína, numa tarde de outono, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca saíram no braço, entre tapas e pontapés, após uma divergência sobre o processo de escrita do conto. Sebastião Salgado enxotou Romero Britto do salão, acusando-o de "louco", "incompetente" e "picareta". O cantor Otto soube, ali, que sua esposa, Alessandra Negrini, o traía descaradamente nas ruas do Leblon. Geraldo Vandré e Jards Macalé revelaram-se grandes piadistas. "Deveriam largar a música e fazer stand-up. Nunca ri tanto na minha vida", comenta um cliente que pediu para não ser identificado.

Fosse um desses barbeiros qualquer, Nelson teria ostentado no Facebook suas selfies com todos os figurões que passaram pelas suas mãos. Certamente, exibiria na parede do salão os retratos de todos eles – antes e depois de sua tesoura. Reservado e discreto, como todo bom oriental, limitou-se a exibição do violão. Quando questionado sobre os detalhes, porém, chega a negar que tantos encontros realmente aconteceram, inventando justificativas aleatórias para o instrumento autografado, exposto no salão. Tudo para preservar a intimidade dos clientes e evitar que seu pacato local de trabalho se transforme em parada obrigatória de fãs e paparazzis. "O que eu posso te dizer é que nossos clientes preferem o corte tradicional, não gostam de ficar inventando moda. Esse pessoal que gosta de cortes modernos fica mudando de salão para salão, dependendo da onda do momento. Aqui, trabalhamos com a tradição. Acredita que já estamos na terceira geração de clientes? Tem vez que vêm todos juntos: avô, pai e neto", comenta.

Nelson recusa falar da clientela estelar, mas topa abrir o bico sobre o Centro Comercial. "O prédio tem umas histórias engraçadas. Teve o caso do romântico suicida, há uns três anos. O sujeito levou fora da namorada, subiu aí pra cima e ameaçou se jogar. Só que desistiu e foi salvo pelos bombeiros", lembra, rindo. "Depois de uns dias, o sujeito voltou: ameaçou de novo, juntou um monte de gente, e ele não se jogou. Hoje em dia, ninguém mais faz isso em nome do amor, né?", comenta. Voltarei mais tarde, com tempo, cortar meu cabelo com Nelson. Peço um café, cortesia da casa: é mesmo o melhor café da cidade.

Algumas pessoas circulam de um lado para o outro, a caminho dos cabeleireiros, da cantina ou das vitrines de celular. Cumprimento o porteiro, que não desgruda os olhos do monitor, esperto às várias câmeras de segurança, e subo para o primeiro andar.

Sebo fino
Outra loja de celular. Venda de aparelhos zeros e usados. Disposto a me livrar do mal do século, pergunto ao vendedor quanto vale a velharia que tenho em mãos. Surrado, retrô, dispara mensagens e – incrível! – até faz ligações: nada de internet nem de coisas modernetes. "Você me diz quanto quer, e eu te digo se quero comprar", avisa o vendedor. Peço R$ 500. Ele se espanta. "Nem a pau." Diminuo para R$ 250. "E tem documento?", ele pergunta, olhando o velho aparelho. Digo que sim. "Aguentaí, vou levar pro meu chefe." Pega o meu celular e some pela porta lateral. Quarenta segundos, o vendedor volta. "Hoje não, amigo. Fica pra próxima."

Azarado nos negócios, toco para o Musical Box, sebo de LP's e CD's do Aquiles. Entrar ali e sair de mãos vazias? Missão impossível. Já comprei, em outros tempos, discos do Assis Valente, Neil Young, Sá & Guarabyra, tudo em boas condições e preço justo. O sebo do Aquiles, pequeno e aconchegante, completou a maioridade neste mês: há 18 anos resistindo, no mesmo Centro Comercial, com o som puríssimo. Nadando contra a corrente, ele abriu o sebo com 300 discos quando o CD começava a dominar o mercado. Outras duas lojas de discos, na época, também funcionavam naqueles andares. Só restou o Aquiles.

Hoje, ele oferece maravilhas da MPB (Vicente Celestino, Chico Buarque, Luiz Gonzaga) e do rock, nacional ou internacional, além de duplas sertanejas. Há, também, umas coisas inusitadas, como o LP "Vibrações", de Alexandre Frota, autografado pelo artista. "Passo esse treco pra frente por qualquer cinco reais", sinaliza Aquiles. Enquanto conversamos, um sujeito se aproxima. Nas mãos, CD's com MP3 de Amilton Lelo e Moreno & Moreninho. Pedreiro alagoano de um metro e meio, negro, simpático e de fala acelerada – às vezes, com longos trechos incompreensíveis -, o sujeito pede que Aquiles copie aqueles dois CD's. E, no balcão, vai falando um pouco de sua busca e seus gostos.

"Ouvir música boa faz bem pra alma. E eu tô procurando também, rapaz, aquele filme, 'Na Trilha da Justiça', de 1975, o filme com o Teixeirinha, porque (trecho incompreensível). Lembro de ver esse filme na roça, no dia que morava, adolescente, na região lá de Goioerê. Já fui em loja de computador, gente com conhecimento profundo, e não consegue (trecho incompreensível) puxou tudinho, mas não era o que eu quero. Você me ajuda?"

Aquiles confessa que nunca ouviu falar do filme. Vou explicando que, infelizmente, também não faço ideia. O alagoano pega os CD's copiados e toma seu rumo. Eu também saio pela galeria - um compacto do Geraldo Vandré debaixo do braço.

Cantos sem fachada
Com exceção dos fregueses que entram no sebo do Aquiles, não há pessoas nos corredores do primeiro andar. Passo por escritórios de advogados e de contabilidade - alguns, fechados. O velho e desgastado letreiro informa que, à minha frente, fica a Centro América Imobiliária. Na entrada, o antigo balcão de madeira e a cadeira de couro desbotado. O escritório acumula pilhas de carimbos, montes de listas telefônicas, papéis e anotações nas mesas de madeiras.

Dois simpáticos senhores setentões, sentados em suas respectivas mesas, vão logo contando os causos da imobiliária. "Estou aqui há 42 anos", comenta o proprietário Benedito Luiz, o Bene, 73. Curioso, pergunto a ele se alguma coisa mudou nesses anos todos. Ele responde sorrindo. "Que nada. Basicamente, tudo continua a mesma coisa." Há nesses anos todos, uma coisa que poucas pessoas sabem, adianta o Bene. "A cruz que hoje tá lá na Catedral, sabe? Ela é de um artista plástico que tinha um atelier lá na Colombo. E antes de ir para a igreja, a Cruz ficava aqui no Centro Comercial", comenta. Isso eu não sabia, digo. "Teve até um rapaz que se desequilibrou, pelo que parece, e caiu do primeiro ou segundo andar. Como ele não se machucou, ficou todo mundo dizendo que era milagre de Deus, porque foi tudo pertinho da cruz", recorda, rindo. Com o surgimento da Catedral, Jesus, então, foi levado para dentro da igreja. "E ninguém nunca reclamou a falta da cruz", diz.

O barulho diminui no segundo andar. Único som, carros se esgoelam na Brasil. No consultório de um dentista, impossível identificar o número do telefone – a escrita não resiste ao tempo. Letras garrafais, que provavelmente eram vermelhas, hoje amareladas anunciam o principal serviço: IMPLANTES DENTÁRIOS. Na portinha do consultório, uma imagem santificada sorri acima da frase: "Jesus vive e é o Senhor". Entro na antessala vazia do consultório e o alarme estridente dispara. Quatro antigas cadeiras de madeira aguardam os muitos clientes. O chão está sujo de terra e poeira. Na parede, oito quadrinhos e um certificado de honra ao mérito, todos tortos, decoram a espera de ninguém. O alarme soa cinco minutos, nenhum dentista aparece. Vou embora.

Mistérios da meia-noite
"Bom mesmo era quando tinha o Clube do Lobisomen", lembra, saudoso, um empresário setentão. Aberto apenas para convidados seletos, o bar funcionava no terceiro andar do prédio, com juízes, advogados e políticos se refestelando com cerveja geladinha e um e outro acepipe. Na trilha, bolachões de Ray Coniff e Casino de Sevilha. Às sextas, o clube abria das seis da tarde à meia-noite. "Fechávamos precisamente nesse horário. Depois da meia-noite, cada um saía pra se aventurar nas ruas maringaenses. Se alguma esposa reclamasse do horário, era só dizer que passou a noite com a gente, no Clube do Lobisomem", lembra, com um sorriso sacana.

Sigo para o terceiro andar. O Clube do Lobisomem faz falta por aqui. O silêncio dominando os corredores – qual o barulho do abandono? Passo por uma sala vazia, empoeirada, com pastas e papeis no chão. Não há qualquer nome na fachada. Outro escritório de advogado solitário? Mais um de contabilidade? Um sujeito gordo e de camisa verde anota um monte de coisas em agendas, sentado à única mesa, no pouco que resta da sala. À sua frente, dois anosos sofás de couro.

"Tudo bem? Aqui é o quê?", pergunto.

"Aqui? Uma sala."

Uma confusão de agendas pretas e marrons, pilhas de papeis rasurados, pastas, anotações. Longas contas aritméticas ou um extenso poemeto épico? – que azar, a maldita miopia.

"Escritório de advocacia?"

"Não, não. Uma sala que alugo. É minha."

"É uma empresa?", questiono.

"Empresa? Não, não", responde o sujeito, com alguma relutância.

"Então aqui é o quê?", insisto.

"Aqui não é nada", resume o sujeito, encerrando a nossa conversa.

Dou a última olhada: o sujeito gordo e de camisa verde volta a anotar uma porção de coisas nas agendas espalhadas pela mesa. Redigiria, ele, um grande poema existencialista sobre o nada? Vá saber.

Ainda no terceiro andar, passo por outro escritório de contabilidade – na parede da antessala, um quadrinho de violino azulão, pintado ao lado de uma partitura. A alguns metros dali, um dentista trancou o consultório com cadeado e deixou aviso de "volto já" pregado na porta, informando o número do celular. No consultório abandonado, outro quadrinho decorando a antessala: uma rua no centro da tela, sobrados à esquerda, um dia ensolarado. Seriam obras de um mesmo manco artista?

Deus é mais!

Vejo um aviso numa das salas: "Tudo para a sua igreja: valorize seu templo com auditório". Como não entrar? Diferentemente de algumas salas, esta tem porta de madeira. Bato e logo sou atendido.

"Boa tarde, você quer o quê?", pergunta um jovem atendente, o mesmo sorrisão nos grandes lábios.

Na pequena saleta, dezenas de cremes e outros produtos de beleza se espremem nas tantas prateleiras.

"Aqui é o quê?"

"Depende. O que você quer?", pergunta, ligeiro, o rapaz.

"O aviso na porta diz que vocês vendem auditório para igrejas, mas, pelo jeito, também oferecem produtos de beleza, né?"

"É. Desde que a crise começou, há um ano, nosso movimento caiu 90%. Estamos começando agora com os cremes", conta.

"E vocês fazem auditórios para qualquer igreja?"

"Exato: para todas elas, sem preconceitos."

No quarto piso, nada de cabeleireiros nem auditórios ecumênicos sob encomenda. A primeira sala comercial traz, em vez de malfadados quadrinhos capengas, um grande painel exibindo o azul do mar, dezenas de palmeiras, coqueiros e ondas quebrando debaixo do sol infernal. Deve ser revigorante trabalhar nesse escritório, debruçando-se sobre as leis, a poucos centímetros da praia paradisíaca. Sigo. Tropeço em mais escritórios de advogados e contadores, esbarrando na infinidade de saletas vazias. No Sindicato Nacional dos Aposentados, um silêncio comovente - nem entro. Onde foi parar todo mundo? Onde a nobre clientela da Lafayette maringaense? Como seria bom tomar a saideira no Clube do Lobisomem, com a vitrola tocando "El Sítio de Zaragoza" e "Granada" – saudosismo não é a negação do presente doloroso? Sou arrebatado pelo vazio. Quieto, desando a escrever versinhos existencialistas. Daqui de cima, a Avenida Brasil é um filme mudo de carros coloridos.

Publicado no Diário (21/6/2015)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Valsa, tomates, jilós, limão e Rita no café

Num canto da rodovia PR-317, a alguns quilômetros do aeroporto, a Ceasa (Centrais Estaduais de Abastecimento) é um universo à parte de Maringá, com suas rotinas, cidadãos e meios de locomoção específicos. Disposto a vasculhar almas entre frutas, verduras e legumes, chego à Ceasa às quinze para as sete de uma terça-feira - os últimos boêmios, no Bar do Jô, ainda longe de encarar a eterna odisseia de volta para casa. Da entrada - há quantos metros? -, você já escuta o desafinado coral de gritos, assovios, ronco de caminhões, risadas graves e estridentes escapulindo das tantas goelas. "Vai começar o piseiro", definiria o nobre vereador Negrão Sorriso.

Vou me aproximando, lentamente, tentando amenizar o choque com a manhã preguiçosa. Subo a rampa, ramela ainda brotando nos olhos, rumo às primeiras lojas. Nos poucos passos, tropeço em batatas, tomates, vendedores, jacas, muitos compradores, berinjelas, legumes e frutas não-identificados. No lixo, laranjas e tomates azedos vão impregnando o ar puríssimo, alguém pergunta "e a cebola, quanto tá?", mas não ouço resposta do vendedor, só a réplica do sujeito, "vou levar quatro caixas", e é tudo muito rápido, surgem mais jacas, laranjas e gente passando de um lado para o outro, difícil acompanhar direito a transação, impossível identificar um rosto na multidão que talvez me soe familiar. Por sorte, não sei como, é um milagre, Deus é mais!, não sou atropelado, atrofiado, pinchado no chão por dois compridos carrinhos de madeira, carregados com dezenas de caixas e puxados por figurões que raspam minhas canelas canhestras. Num canto seguro, menos movimentado, repenso a estratégia: atenção redobrada em cada passo.Um mínimo deslize te deixa manco, coxo, perneta.

Nos corredores, negros, bombadões, magrelos, branquelos, japoneses, produtores rurais tingidos de terra, vão circulando e conversando e vendendo e comprando num ambiente extremamente masculinizado. Onde se refugiaram as nossas musas maringaenses? Uma pena se afastar, logo cedinho, de todas elas.

Atento aos carrinhos furiosos e às caixas de madeira no chão, noto a penca de troféus na parede de uma das lojas. Seis deles, prateados e dourados, frutos das disputas futebolísticas. Ali, uma baita muralha de zagueiro? Anônimo lateral impiedoso? "Não vou mentir, não, viu? Nosso timinho jogava mais ou menos nos campeonatos do Ceasa", comenta, coberto de modéstia, o empresário e atacante Delson Bulla, 50. Noto a preferência de Delson: "o Ceasa", não "a Ceasa". Há 32 anos no ramo, ele - tal como tantos outros - prefere o tratamento masculinizado: nome mais robusto para um trabalho que é uma pauleira. Ao talentoso atacante, pergunto sobre as ninfas. Ele me dá um tapinha nas costas, num tom de lamento. "É toda hora encarando caixas de 20 quilos, num serviço bruto, pesado. Raras mulheres aguentam o tranco", adianta.

De chapelão na cabeça, debando do box. Quinze caçambas escancaradas, recebendo caixas de tudo que é tipo. Um cheiro azedo queima a narina – limões bagaçados debaixo do caminhão. Sigo adiante, rumo ao outro pavilhão de lojas. Tento acompanhar, em vão, o carrinho puxado por Adriano Gomes da Silva. É incrível como ele desafia o espaço geográfico. Há um mês na cidade, vindo de Paraíso do Norte, Adriano teve que aprender rápido a perambular entre pernas e trecos e caixas de frutas e legumes. "Eu já trabalhava com lajota, não achei difícil carregar isso aqui", comenta, antes de sair em alta velocidade, guiando seu carrinho.

No Ceasa, ninguém marca bobeira. "Se você atrasar, perde os melhores produtos", comenta o empresário Alexandre Braga. Filho de comerciantes, ele cresceu com o Ceasa. Há uns anos, debandou para o Mercadão Municipal, onde abriu uma frutaria. Acostumado às madrugadas do Ceasa, ele teve que chegar, nesta terça, às cinco em ponto. "Nesse tempo todo que passei aqui, muita coisa mudou. O preço, principalmente: as coisas, cada vez mais caras."

Abóbora cabotiá. Milho verde. Maçã Gala. Couve-flor. Alguém revira as caixas de tomates, conferindo a qualidade da mercadoria – ou procura LP's raros num sebo bagunçado? Passo por um Camaro vermelho, estacionado ao lado do Caminhão do Miltinho, emparelhado com o caminhão da Galera do Repolho, e são caminhões amarelos, azuis, vermelhos, brancos, pretos, num arco-íris psicodélico de caminhões antigões.

Rotina viciante
Os dias mais corridos são segunda, terça, quinta e sexta. "Quarta e sábado a gente vem só pra conversar", diz Elizeu de Souza, 27. Ele trabalhou por três anos no Ceasa de Cascavel. Logo nos primeiros dias, viu que, controlando a venda de uva, caqui, mamão e abacaxi, havia encontrado, finalmente, um trabalho com o qual se identificava. "O ritmo é muito diferente. Tem que levantar às três da madrugada, mas meu expediente vai até as dez da manhã. Não tem que trabalhar à tarde, como num emprego comum. É melhor assim", comenta.

Flanando no Ceasa, estranho não encontrar com os amigos de outras crônicas. Onde os índios kaingangs com balaios coloridos? Onde os pastores de sorrisões nos grandes lábios? Onde a famosa onipresença do Todo-Poderoso? Enquanto me dedico a pequenos pensamentos hereges – não é que as palavras têm mesmo força? -, eis que surge um soldado do Senhor. Uma muralha com a camiseta escrita "Orai com Fé" - possível orar sem? "Minha vida daria um filme", diz o sujeito, grandalhão e gente fina. "Trabalhei como segurança e agora tô aqui: cinco meses puxando carrinho. Muito prazer, viu? Todo mundo me chama de Montanha", diz, estendendo a mão. Digo ao Montanha que deve ser um trabalhão e tanto. "Você se acostuma. É como escrever: você, de repente, não pega um jeito?" Enquanto fala sobre sua vida, vai cumprimentando quem cruza a nossa frente. "Esse é o cara da alface, esse o da cachaça, esse o da jaca", e vai emendando piada com um e outro. Engana-se, porém, que matando o serviço e enrolando o horário. "Conversar é essencial. É assim que os grandes negócios são feitos: você tá conversando e também tá vendendo."

Japonesa ameaçadora
Ofegante com a caminhada - esse Ceasa não acaba nunca? -, encontro o bendito fruto. A primeira mulher. Uma japonesa atenciosa. "O povo daqui sofre muito e ganha pouco", reclama a vendedora, que vai logo me oferecendo um molho de pimenta artesanal (R$ 5). Já viu gorducho recusar acepipes? Aceito, claro, e passo o molho picante no chips – qual boa pimenta não remete ao êxtase com a primeira mulher nua, no escurinho do quarto desconhecido, olhos lacrimejando emoção? É de lamber os dedos, a pimenta oriental. "Agora, prove isso aqui, ó: doce de Jiló." Epa! Jiló? Jamais. Tem limite, a epopeia maringaense. Onde o adicional por insalubridade gastronômica? "O bom jornalista tem que provar de tudo", desafia a japonesinha, rindo para dentro, ameaçadora com seus docinhos cristalizados. Estendo a mão ao menor dos jilós – ou balanço a mão do velho leproso? Arremesso goela abaixo, de uma só vez, o tal docinho. Quem escorrega na sua garganta – o minúsculo jiló ou três treminhões arrancando ladeira abaixo? Abro os olhos, aliviado: não é de todo ruim.

Chega de fortes emoções. Uns metros à frente - ou pra trás?, pro lado?, caramba, onde estou mesmo? -, encontro outra funcionária. Mais uma mulher resistindo no ambiente masculinizado. "É até melhor, sabia? Não tem fofoca nem briga boba. Trabalhar com mulher é só confusão", diz Carla Rebelato, 38.

Cafeína literária
Num dos blocos do Ceasa, acho um café. Rostos cansados se engalfinham no balcão. Ninguém fala com ninguém. Sento num dos bancos, peço um café. Do meu lado, uma senhora serelepe se aproxima: um presente embrulhado, olhos curiosos de azuis.

"Então, você é o Gaioto?"

"Depende", respondo ligeiro – jamais revele seu nome de guerra no campo de batalha.

Voz trêmula - a mesma entonação de minha vó? -, rapidinho estende a mão e senta no banco ao lado.

"Meu nome é Rita Andrade de Paula. Tenho 76 anos, sou mãe de quatro filhos, moro sozinha, e há muito tempo quero me encontrar com você."

"Como você me achou aqui?", pergunto, surpreso.

"É possível esbarrar no Alexandre Gaioto em cada esquina dessa cidade."

"E você confirmou isso mesmo!"

Nós dois rimos, embriagados de preguiça e manhã.

"É sempre bom encontrar uma leitora", digo, sorrindo, enquanto peço um cafezinho para Rita.

Leitora fiel, ela revela que não perde os textos dominicais. Passa a semana inteira esperando as próximas aventuras. Entre meus tantos obrigados - qual voz mais trêmula, a dela ou a minha? -, Rita diz que sempre quis ser escritora. No balcão, estende o embrulho colorido com lacinho vermelho. Toda minha, uma garrafa de vinho francês Hâteauneuf du Pape:

"Presente para o meu recluso boêmio querido. Agora que finalmente te conheci, posso te fazer algumas perguntas?"

Tão gentil, você negaria?

"Pra quê esses olhos tão grandes?"

"Jamais perder um mínimo detalhe."

"E esses dedos, por que tantos calos?"

"Marcas das tantas escritas."

"Por que insiste em usar chapéu?"

"Nele moram todas as minhas mentiras."

Os olhos trêmulos, a voz sussurrada.

"E tudo o que você escreve, Gaioto, é mesmo verdade?"

"Tudo é real no universo da ficção."

Ela abre um sorriso.

"Quais conselhos aos jovens escritores?"

"Escrever bem é pensar bem."

"E uma segunda dica?"

"Evite reticências... maldito recurso covarde."

"Último pedido: dança uma valsa comigo?"

Penso duas vezes. Quem não? Em meio a cenouras e milhos, eu e Rita encarnamos uma valsa de Strauss: dois pra lá, dois pra cá. No caos das compras e carrinhos do Ceasa, ninguém se importa com os nossos passos vienenses, guiados pelos violinos e cellos soando ao longe. Quase nove da manhã. A orquestra, de repente, silencia. À Rita, ergo minha taça de vinho. O Ceasa continua barulhento e vibrante, como deve ser.

Publicado no Diário (14/6/15)

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Sacolejo, musas, traição, ETs, bíblia e perseguição

Terminal rodoviário, véspera de feriado de Corpus Christi: às cinco e pouco da tarde, num silêncio coletivo, você acompanha jovens estudantes voltando para casa, índios kaingangs com balaios coloridos, doze velhos à espera dos próximos ônibus e a senhorinha serelepe desfilando com uma bolsa amarela, onde se lê - em letras garrafais! - o imponente nome de Victor Hugo: homenagem ao grande autor de "Os Miseráveis"? Vá saber.

Relinchando em voz alta, um ônibus para na minha frente. Rostos exaustos se levantam, entediados e enfileirados diante do 6417. Entro ou não entro? Tive aulas de latim, há alguns anos, na UEM. Confesso, não me dei muito bem com a língua morta – prefiro, sim, as línguas bem vivinhas e danadas. Talvez melhor esperar o próximo ônibus. Mesmo mau aluno, em doze meses decorei uma e outra frase do Horácio, como "ira furor brevis est" ("o ódio é um surto de insanidade") e fiquei por dentro de algumas curiosidades etimológicas. Sei, por exemplo, que a origem do nosso substantivo "ônibus" veio do latim, "omnibus" ("para todos"), porque "omnis" significa "tudo", "todos". Um nome, portanto, ideal para o meio de transporte coletivo. "Moço, você vai pegar esse pro Laranjeiras?", questiona-me a loirinha L. S. D., de 18 aninhos. Eu entro, eu entro, eu entro!

Um alô para o motorista, vamos passando a roleta, sentamos lado ao lado. De calça jeans amarelinha, blusa de oncinha e boquinha pintada de vermelho - como é bom moça pintada de vermelho! -, L. S. D. tem a ansiedade cheia de olhos. Dedinhos tamborilando pela bolsa, seus pés marcam, rapidinho, alguma música imaginária – certamente outro sertanejão. O que se passa pela cabeça de uma jovem de 18 aninhos? "Tudo o que eu mais quero na vida é casar com homem decente", desabafa a nossa loirinha. Sobem quinze ou dezessete passageiros. O ônibus fecha as portas e começa a jornada. Boa de prosa, L. S. D. vai abrindo o coração: desde cedo, perdida no amor. Não apenas num só grande e avassalador, mas em três: Francisco, Ricardo, Guilherme. Atraída, até quando, por homens trissílabos? Um deles, conheceu quando criança. Juntos e felizes para sempre por sete meses – não é o bendito número sagrado? Outra grande paixão acabou quando o sujeito conheceu uma falsa loira – antes disso, a traição no banheiro do Dionísio. "Até que era bonita, viu?" O resultado? Em três meses, já casados. "Mesmo assim, todo mundo sabe que ele gosta de mim."

Por fim, o terceiro: estudante de mesma idade, magrelo e miúdo. "Olha a foto dele aqui, ó", exibe a moçoila, estendendo o celular hipermoderno. Se estalasse os dedinhos vermelhos, não moveria o Monte Sinai e o Monte Sião? A escuridão não encobriria o Sol por três dias ao seu único pedido? A nuvem de gafanhotos não dominaria a cidade, se ela ordenasse, cochichando no ouvidinho? Claro que sim: moscas atacariam homens e animais!, rãs cobririam a terra!, as águas do Nilo tingir-se-iam de puro sangue! Se quisesse, os três correndo rapidinho aos seus pés. "Qual deles escolho? Ai, sou tão azarada."

Juntos, vamos sacolejando pelas avenidas Colombo e Paraná, cruzamos o Colégio Ipiranga, penetramos na Mandacaru. Penso no velho Diógenes, o Cínico, refletindo sobre as coisas do coração: "o amor é uma desocupação dos desocupados". Mas isso eu só penso, não digo à nossa loirinha cheia de enredos rocambolescos. Tudo o que ela quer é rapaz longe de balada e boteco. Alguém que goste de coisas simples: cinema, comidinha caseira, passeio no parque aos domingos. Muito lençol, travesseiro e colchão. "Tudo pra ter a família que não tive", avalia.

Desde muito cedo, L. S. D. sabe das aventuras paternas. Casado com duas mulheres, o paizão administra, ao mesmo tempo, duas famílias na mesma Maringá. Nas casas, estrategicamente construídas em lados opostos da cidade, tudo bem com o relacionamento múltiplo. "Minha mãe diz que assim é até melhor. Num final de semana, ele passa com a gente. No outro, com a outra mulher e os outros filhos. Sabia que eu nunca tive curiosidade de ver a outra esposa? Só os filhos. Uma vez vi todos eles, juntinhos. Nada demais", comenta, e já vai se despedindo. "Foi bom desabafar com você. Valeu, viu? Vou descer por aqui. Até!"

Cinco paras as seis – o pôr-do-sol lambendo o ônibus. Abandonado no 6417, coração tremelicante saracoteando em cada quebra-mola, esbarro em Graziela Morais. Com 22 anos, ela não marca bobeira. Quando encerra a labuta numa rede de fast-food no Centro, só sai às ruas maringaenses sob proteção de dois poderosos fones de ouvido. Graziela sabe que uma inofensiva caminhadinha até o terminal é fatal à boa audição: soterrado, você, pela enxurrada de músicas sertanejas, do caubói com som alto no carro à loja de roupas em promoção. "Assim, posso ouvir meu Guns N' Roses em paz", justifica.

Discordando do otimismo de Voltaire, de que estamos vivendo sempre o melhor dos tempos, ela comenta que sua adolescência foi, sim, pelo menos musicalmente, muito melhor do que esses dias sertânicos. "Minha época tinha boas bandas covers. Show de rock com qualidade. Hoje só dá esse lixo aí", reclama, com razão, esperta a qualquer sinal sonoro da turma do Camaro Amarelo. "Preciso descer aqui. Moro no Laranjeiras. Tchau, até a próxima."

Revólver e perseguição
Vou me embrenhando numa Maringá sinistra. De ruas apertadas e terrenos abandonados. Da Capela Papa João 23. Dos rostos desconfiados no açougue-boteco. Da Igreja Pentecostal Diante do Trono, com gente de terno e sorrisão nos grandes lábios – o portão sagrado escancara os berros da louvação. Pó, poeira, cheiro verde. Já é noite. Quilômetros e quilômetros mal iluminados apressam o passo da moça, aumentam os batimentos cardíacos do velho, matam de susto o tiozinho na bicicleta. Desses becos Moisés avistou a Terra Prometida? Daqui o Senhor mostrou-lhe toda a terra, de Gileade até Dã? Essa cidade que viajo nem de longe lembra a Maringá dos cartões postais. "Esse horário é tranquilo. Dá pra fazer nuns quarenta minutos. Problema é a última viagem, às oito. Tem que dar uma acelerada, o trânsito cada vez mais complicado", diz o motorista. Estamos sozinhos no ônibus. Onde se escondeu o Sol? Guiando das 11h às 13h30 e das 16h às 21h, o sujeito diz que é uma aventura constante enfrentar os talentosíssimos motoristas maringaenses. "A culpa é dos instrutores ruins que temos na cidade", observa. O motorista debandou de São Paulo, onde dirigiu ônibus por quinze anos, e voltou há dois meses para sua cidade natal. "Aqui, ninguém respeita a sinalização. Pra piorar, a cidade é descuidada.Por que não colocam um semáforo na Mandacaru, na frente do HU?"

Num dos tantos becos escuros, o ônibus para e outro motorista sobe. Somos três, puxo conversa. Muita reclamação sobre falta de segurança e várias aventuras nas linhas do Cidade Alta, o bairro mais temido entre os motoristas de ônibus. "Lá é um horror. Você tá sempre correndo perigo. Um dia, rapaz, fui seguido por um motoqueiro, lá numa rua do Cidade Alta, que apontava o revólver e mandava eu encostar", comenta o maringaense, motorista há 15 anos. Às sete da noite, com oito passageiros, ele teve que pisar fundo e improvisar uma rota alternativa. "Saí por umas ruas diferentes e consegui me livrar dele, mas foi um sufoco. A polícia chegou depois, deu escolta. No mesmo dia pedi pra me tirarem daquela linha."

Aleluia!
Aos poucos, outros passageiros vão tomando assento. No breu, poucos leitores. Uma quarentona acompanha as letras miúdas de algum contrato de emprego. À sua frente, um negro de terno preto alimenta a alma de letras miúdas. "Na bíblia, você encontra todas as lições pra vida", garante, apontando para o nome de Jeremias grafado na página. Da janela lateral, agora sim, me dou conta de onde estamos, vejo que voltamos à Mandacaru: um gorducho de chinelos toma goladas desesperadas de sua cerveja Litrão – a grande sede de viver.

Na frente do Mercadão, trânsito infernal. Culpa da feira de quarta. Não é a nossa Julie Manet, caminhando na calçada? Os mesmos olhos tristes, aquela boquinha vermelha?! De sainha rosa, blusinha preta, meia rosa erguidinha e cabelinho preso num rabinho de cavalo - ó hexâmetros órficos da Grécia heroica!, ó margens do rio Hebro!, ó azeite de oliveira puríssimo! De pé, eu me ergo: levanto ligeiro, embasbacado pela mirra mais preciosa, arremessando flores e versinhos líricos.

Nocauteado pela musa anônima, desço do ônibus num terminal barulhento, às sete e pouco. Duas horas sacolejando histórias no 6417.

"Ela conheceu um árabe e foi lá pra aquele país..."

"Por favor, dois passes pra Maringá."

"Estudei bruxaria, misticismo e gnose. Tô te dizendo: aqui tem muito ET. Eles existem."

"... caramba, como é mesmo o nome daquele país?"

"E o fiador?"

"Turquia?"

"Tava tudo errado: o nome de um com CPF de outro!"

"Equador?"

"Essa cidade tá um horror."

"Tem o caso famoso, dos dois irmãos, daqui de Maringá, que até fizeram sexo com ET, dentro da nave, lá no Jardim Alvorada. Acho que nos anos oitenta. Tá na internet."

"Sabe se esse vai pro Laranjeiras?!"

Fim da linha de todo boêmio, única dúvida ribombando forte no peito: onde beber a véspera do santíssimo feriado?

Publicado no Diário (7/6/2015)

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Bares, cervejas, poetas, pontapés é muita fé

Voltei de meu autoexílio parisiense no domingo passado. Desembarquei no aeroporto de Maringá, na calada da noite, e fui surpreendido por centenas de leitores, todos muito amáveis, empunhando faixas e buquês de flores, saudando meu regresso com selfies, beijos e abraços. Estavam lá Madalena Stocco, Graciele Gallé, Cristiano Martinez – rouco de tanto berrar "Gaioto, o nosso Hunter Thompson paranaense!" -, um tal de Ricardo e até mesmo o recluso milionário maringaense Juarez Arantes, que me ofereceu carona em seu confortável Del Rey preto. Os outros tantos nomes, infelizmente, não deu para guardar. Se retorno às tortas linhas, hoje no braços do povo, é só por causa de vocês.

Decidido a levar adiante o plano megalomaníaco de mitificação literária dos cantos maringaenses, resolvi inverter um pouco as coisas e dar um pulo em Sarandi, perambulando pela Avenida Maringá. Curioso: há uma homenagem a Maringá em Sarandi, mas não há Rua Sarandi nem Avenida Sarandi por aqui. Com suas vinte e poucas quadras, é a principal avenida de Sarandi. Impávida e colossal. Tão importante que, além dos comércios, casas e 367 bares, numa extremidade fica a Câmara dos Vereadores - à noite elegantemente iluminada por luzes azuis, verdes e amarelas - e, na outra, o Fórum Estadual. Mal chego na famigerada avenida, às cinco da tarde, corro logo para o primeiro bar - você me conhece bem, dentro deste peito afoito despertam mil e uma revoadas de pássaros bêbados. Entro no botecão: sertanejão de raiz berrando alto nas caixas de som, outra história de algum manso. Doze clientes, espalhados pelas mesas da calçada. Sento num canto, sozinho. Do meu lado, um sujeito gorducho e barbudo, metido numa camisa cavada e numa bermuda macilenta, refestela-se com cerveja geladinha – nos pés agigantados, o chinelinho não dá conta de tantos dedos. Ao seu lado, uma senhora magrela de quarenta e poucos anos, vestidão azul, sorriso banguelão e decotão para afogar as mágoas de um batalhão, berra suas desilusões amorosas.

"Aquele desgraçado arruinou minha vida."

"Bebe, amor, bebe."

"Com o João foi assim. Quase me picou inteirinha com facão desse tamanho..."

"Santo Deus."

"... só porque dei bafão no bailão. Daí foi em cana. Mais que merecido. Agora, livrinho, saiu para a vida e deu pra ficar me seguindo. Onde eu vou ele aparece, cheio de ódio."

"Bafão de cachaça, droga, sabe lá Deus o que mais."

"Sorte minha você aqui comigo."

Uma pampa branca, toda despedaçada, dá uma bruta freada na porta do boteco - não cheira à morte o fedor dos pneus? A mulher se assusta, olhão arregalado. O gorducho, ligeiro, mete a mão na cintura - caçando o velho canivete de guerra? Já de pé, no canto do bar, vou saindo de cena. Outro mau motorista, por sorte não o ex-presidiário maluco.

Na Avenida Maringá, nada de marcar bobeira. Ando vinte e poucos passos, entro noutro boteco – tão parecido, da nobre clientela à bendita trilha sonora, não seria o mesmo? Vou ancorando numa mesa da calçada. No cemitério de vasilhames, um cara diferente. Bebendo sozinho e rabiscando poemetos em guardanapos. Dalton (nome fictício) é bacharel em Letras, tem 27 anos, mora em Maringá e namora uma estudante de Sarandi. "Ela já tá chegando. Como não tenho chave da casa, dei um tempo aqui. Vai uma cerveja?", convida Dalton.

Já no primeiro gole, o bacharel em Letras revela-se um exímio contador de histórias. Baixinho e gorducho, narra tudo com mínimos detalhes. Conduz as cenas e os microcosmos controlando o suspense e a tensão, apropriando-se de verbos certeiros, sem tropeçar na adjetivação afetada. Escrever bem não é pensar bem? Eis o nosso bacharel-escritor, ligeiramente alcoolizado, contando suas aventuras em Sarandi.

Tiro, porrada e bomba
"A mãe da minha namorada berrava alto lá embaixo, na garagem da sobreloja, aqui na Avenida Maringá. Achei que era uma brincadeira, sei lá. Eu e minha namorada estávamos no topo da escada, levando um monte de compras. Às sete da noite, numa sexta-feira, tinha um monte de gente na rua, caminhão de lixo, ciclista, motorista, vi que não era brincadeira: quando me dei conta, tinha um negão, alto e forte, segurando a mãe da minha namorada contra a parede, prestes a esganá-la. E o portão continuava escancarado. Até hoje não sei como fiz aquilo. Eu tinha tomado uma e outra cerveja, é verdade. Daí soltei as compras e corri escada abaixo. Chegando numa altura boa, dei um pulo e carimbei meu All Star na boca do pelego. Foi uma bruta porrada. No chão, depois, tive certeza que eu tava lascado: porque o negão era bombadão e certamente ia me dar uma surra. Por sorte, ele levantou meio tonto. E passei a meter socos e pontapés, na bunda e nas costas e na cabeça e na boca do ladrão", vai contando Dalton, o nosso boêmio heroico. Olhos esbugalhados - já viu bom escritor sem? -, toma uma cerveja e continua a epopeia.

"Foi tudo muito rápido. Peguei o sujeito pela gola da camisa e, do nada, já tava jogando e chutando ele para fora da garagem. Bicho, você não acredita: cheguei na calçada e notei mais quatro negões do bando, prestes a invadir a casa", comenta, tomando outra golada de cerveja. "Como tava todo mundo surpreso e o sujeito tava todo arrebentado, fugiram correndo até entrar num carro vermelho. Espantei cinco bandidos de uma vez só", gaba-se, com razão, o nosso Dalton. Já estamos na segunda garrafa, e ele vai dizendo que, depois disso, fez questão de comprar um revólver. "Da próxima vez, não vai ser só o meu All Star marcando a cara do vagabundo", prevê, com uma boa risada.

Gostei do Dalton e parece que ele também foi com a minha cara. Exigimos outra cerveja de Litrão – a grande sede de viver. À vontade, Dalton conta que, antes de seu namoro, nunca havia perambulado por Sarandi. "Nem sabia que tinha uma Avenida Maringá, nessa cidade." Em três anos de convivência - com a cidade e sua digníssima -, o bacharel em Letras e metido a poeta se meteu em outra confusão. O local? A mesma Avenida Maringá, em frente a casa da amada.

"A gente tinha acabado de voltar do lançamento de livro de um amigo meu, em Maringá. Estávamos meio bêbados. Quando estacionei o carro, notei dois ciclistas se aproximando. Dois branquelos de boné. Um deles, é Gaioto, né?, o seu nome? Então, um deles, Gaioto, me encarou de uma forma muito estranha. Como traduzir? Dois olhos vermelhos sedentos pela morte. Daí os ciclistas pararam a uns cinquenta metros, no meio da Avenida Maringá, e nos encararam novamente. A rua tava vazia. Não tinha carro passando, nem gente nas calçadas. E minha namorada já estava do lado de fora do carro, abrindo o portão da garagem. Notei, então, que um deles se aproximava: magrelo e alto. Saí do carro, acionei o alarme, e minha namorada começou a dizer 'não deixe o carro aí, estacione aqui dentro na garagem', claro que não dava tempo para nada. Puxei ela com força para dentro da garagem, gritei que trancasse o portão, uma duas, três vezes, até que ela fechou. Por sorte, Gaioto, o portão fechou no mesmo momento em que o cara imbicava a bicicleta: foi o que nos salvou", relata, bebericando outro copão.

"Subimos na casa dela e, de lá, ouvimos os gritos de socorro. Voz de mulher. Minha namorada queria descer e abrir o portão e ver o que diabos acontecia na avenida. Claro que eu não deixei. E se são os dois sacanas? Como da janela a gente não via nada, ligamos para a polícia. Os gritos só pararam quando os dois ciclistas saíram pedalando tranquilamente pela rua. Uns poucos carros foram estacionando, os motoristas ligando para a ambulância. A polícia, lá debaixo, fez duas ou três perguntas. Depois, vi na TV, o serial killer de bicicleta esfaqueou uma mulher aleatoriamente no meio da rua. Não quis carteira, dinheiro, nada: o simples prazer de esfaquear alguém. A mulher morreu dias depois. Deixou família e filhos? Vai saber. Quando me dou conta de que poderia ter sido eu, Gaioto, é uma sensação bem assustadora", revela Dalton.

Já estamos ligeiramente alcoolizados. A noite vai chegando. Divido as cervejas com Dalton e sigo pela Avenida Maringá. Na Praça Ipiranga, uma morena de uns 14 anos, no máximo, passa por mim com shortinho jeans apertado, cabelo liso, blusinha curtinha exibindo barriga e decote, e grita para um grupo de amigos, reunidos num banco perto da igreja, "cadê o meu baseado, pô?!".

"Aqui na Praça da igreja, no meio da quadra de esportes, sempre tem uns índios. Tipo uma vez por ano. Mas é muito índio mesmo, uns quatrocentos. Fica todo mundo dormindo em rede, cabana, esquentando panela e cuidando das crianças", diz um empresário.

Da praça da igreja e dos índios sazonais, sigo para a Praça dos Três Poderes, bem iluminada e bonita a seu modo. "Essa praça tem muita história", dedura a empresária Irene Rinaldi. "Você sabia que, bem aqui, antigamente era um cemitério? Como a cidade cresceu e chegou até esse ponto, tiraram todos os mortos, um por um, e foram levando para outro canto. Por isso que a gente se acostumou a tropeçar em esqueleto de morto e pisar no cabelo de defunto", comenta, com uma boa gargalhada. É na praça dos Três Poderes que os naturebas mais dispostos se arriscam em esportes radicais, como a caminhada e a corrida diária. Quem não aguenta o tranco, tipo a diarista Ivanilda Sousa, 40, refocila-se num banquinho. "Só consegui uma volta, muita dor na coluna." Vinda de São Paulo, Ivanilda mora há duas décadas em Sarandi.

Pergunto, a quem passa, como seria a Avenida Maringá dos sonhos. "Cheia de boas padarias", sugere um empresário quarentão. "Com um shopping bem grande, com boliche e cinema", exige o jovem Natanael Eduardo, 12. "Repleta de bons bares", clama a estudante Mariene. Mas, rapidamente, todos nós caímos na realidade. E a realidade, vista assim, parece, para alguns, um tanto injusta. "Se em Sarandi tem a Avenida Maringá, porque em Maringá não tem uma Avenida Sarandi? Isso tá errado", reclama Carolina de Andrey, 20. "Seria bonito se Maringá desse pra gente essa homenagem, né?", sugere a diarista Ivanilda Sousa, 40.

Na esquina da praça, uma esfiharia ajeitadinha. Mesinhas de madeira e acepipes caprichados: Big Esfihas. Com torre de chope, porções, pizzas e, claro, sertanejo na trilha. "Confesso que não esperava um público tão grande. Apostei no diferencial e abri um bar ajeitadinho. Coloquei tudo o que aprendi, em 7 anos, numa esfiharia", comenta o empresário Jean Oliveira, 22. "Os moradores de Sarandi, por falta de opção, acabam gastando parte do salário em Maringá. Há muito espaço para investir aqui", avalia.

Saio da esfiharia. Passo por um igreja com fiéis bem à vontade, vestindo calça jeans e camiseta. Quarenta passos à frente surge outra igreja, com religiosos em trajes elegantes: todo mundo usando ternos sóbrios e vestidões longos, sem decote nem outras gracinhas. Calmo demais, vou em frente. Autoelétrica. Pizzaria. Cheiro da calabresa frita. Lanche do Baixinho. Loja de veículos. Farmácias. Casa do Norte. Quiosque de cachorrão. Borracheiro. Rações e aquários. Empório mineiro. Pássaros. Padaria. Dentista. De longe, escuto o barulho. Show de dupla sertaneja? Revival de Milionário & José Rico? Que nada. Outra igreja. Agitadona, essa, sim, eu me regalo. Na fachada, a foto agigantada de um pastor com chapéu de cowboy – como não entrar ali?

No meio do palco, um sujeito branquelo e careca parece possuído pelo sertanejo "universitário". Gorducho e suando um bocado, ele berra seu louvor no ritmo do arrocha. A letra da canção fala qualquer coisa sobre satanás e diabo, mandando as duas entidades demoníacas "para lá, para lá, para lá", ordena o pastor, enquanto bate pernas desengonçadamente de um lado para outro do palco, frenético, fazendo uma coreografia destrambelhada com as mãos, o eterno sorrisão escancarado nos grandes lábios. A igreja está lotada. Duzentos a trezentos fiéis. Velhos, crianças, moças, adultos, muitos chegaram e ainda chegam de bicicleta – dezenas acumuladas num canto. "Gente, quem entrou aqui chateado com a vida e agora tá mais feliz?", pergunta o pastor, enquanto os fiéis vão tomando lugar em cadeiras de plástico. "Olha, a gente tem que dançar mesmo. Porque o céu vai ser uma festa eterna. Isso aqui, minha gente, isso aqui é só o aquecimento. No céu vai ter muito mais", promete o sujeito, aos berros, iniciando outro arrocho celestial. Nessas horas, dou graças a Deus por ser ateu convicto e condenado, ai de mim, ao mais pérfido dos infernos do velho Dante.

Publicado no Diário (31/5/2015)